CEFAC CENTRO DE ESPECIALIZAÇÃO EM FONOAUDIOLOGIA CLÍNICA LINGUAGEM O PAPEL DA FAMÍLIA NA REABILITAÇÃO DO PACIENTE AFÁSICO Daniela Bonini São Paulo 1998 CEFAC CENTRO DE ESPECIALIZAÇÃO EM FONOAUDIOLOGIA CLÍNICA LINGUAGEM O PAPEL DA FAMÍLIA NA REABILITAÇÃO DO PACIENTE AFÁSICO Monografia de conclusão do curso de especialização em linguagem Orientadora: Mirian Goldenberg Daniela Bonini São Paulo 1998 RESUMO O objetivo do presente estudo foi o de verificar o papel da família na reabilitação do paciente afásico. Para tanto, foi realizado um levantamento bibliográfico visando pesquisar as reações do paciente afásico e de sua família com relação ao déficit lingüístico decorrente de uma lesão cerebral. Constatou-se, no decorrer do estudo, que as reações vividas e ações realizadas pela família que convive com um afásico dependem do grau de flexibilidade e abertura para mudanças. Existem famílias preparadas para desempenhar seus papéis, aceitando situações de mudança e conflito com maior facilidade. Por outro lado, existem famílias que mantém rigidamente os seus padrões de interação, até mesmo quando uma mudança nas regras é essencial para o desenvolvimento de seus membros. A aceitação da afasia, acompanhada por uma atitude aberta, favorece a adaptação social e a utilização mais satisfatória da linguagem funcional. Desta forma, conclui-se que o comportamento da família influencia o do afásico, e até mesmo sua recuperação. Portanto, ocupa um papel importante no processo de reabilitação tanto no que se refere à fala quanto no que diz respeito ao aspecto emocional. SUMMARY The objective of this paper was to verify the role of the family in the reabilitation of the aphasic patient. For that reason it was done a bibliographical examination in order to search for the reaction of the aphasic patient and his family in relation to the linguistic défice originated from a cerebral injury. It was confirmed, in the course of the study, that the experienced reaction and the realized action by the family that live together with na aphasic depend on the degree of flexibility and opening to changes. There are families prepared to play their parts, accepting siterations of change and conflict with more facility. On the other hand, there are families that keep their standard of interaction rigidly, even when a change in the rules is essencial to the development of their members. The aphasia acceptance, fellowed by an open attitude, benefits the social adaptation and the most satisfactory utilization of the functional language. In this way, we conclude that the behavior of the family influences the behavior of the aphasic and even his recuparation. Therefore, it occupies an important role in the process of reabilitation as much relating to the speech as to the emocional aspect. Dedico esta monografia a todos os fonoaudiólogos e profissionais afins. de áreas AGRADECIMENTOS Aos meus pais, por tudo o que me proporcionam. À minha irmã Vanessa e prima Jade por disponibilidade imensa e espírito colaborador. Ao Beto, meu noivo, pela sua compreensão e incentivo a cada novo desafio. À Patrícia, Daniela, Marisa, Beth e Priscila pela carinhosa revisão deste trabalho. “Assim, se todas as coisas inteiras pudessem ser partidas ao meio... todos teriam possibilidade de sair de sua unidade obtusa e ignorante. Eu era inteiro e todas as coisas eram, para mim, naturais e confusas, estúpidas como o ar, acreditava ver tudo, porém, era apenas aparência. Se algum dia se transformar na metade de si mesmo...compreenderá coisas que estão além da inteligência comum dos cérebros inteiros. Terá perdido a metade de si e do mundo, porém, a metade que sobrar será mil vezes mais profunda e preciosa.” ITALO CALVINO SUMÁRIO 1. Introdução................................................................................1 2. Discussão Teórica...................................................................4 3. Considerações Finais............................................................28 4. Referências Bibliográficas.....................................................34 1. INTRODUÇÃO Tem sido muito discutida por profissionais da área da saúde, a importância da família na reabilitação do paciente afásico. Sabe-se que a perda da capacidade de se comunicar pelo emprego adequado da linguagem constitui-se um grave problema, que não só atinge o paciente, como a todos que com ele convivem ou que dele dependem. O indivíduo, ao ficar afásico, percebe que não mais tem controle sobre sua forma de exteriorização verbal, parecendo ser uma pessoa diferente daquela que era antes. O afásico vive o peso da solidão mais profunda, sentindo-se incompreendido. Para a família, muitas vezes sua presença torna-se um incômodo e ele se sente aprisionado dentro de si e embora o deseje não consegue ter uma relação com o mundo exterior. Tudo isso porque não consegue mais compreender o que os outros dizem ou dizer o que pensa. Tendo em vista essa realidade, busquei, no meu estudo, respostas para a seguintes questões: - Qual a importância da família na reabilitação do paciente afásico? - Até que ponto a família tem consciência de sua importância no processo de reabilitação do paciente? - Que ajuda a família pode lançar mão para estimular e incentivar o afásico? Na presente investigação optei por desenvolver uma pesquisa teórica, na 1 qual realizei um levantamento bibliográfico na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com o objetivo de evidenciar aspectos importantes que foram apresentados e desenvolvidos neste estudo, abordando a importância da família no processo de recuperação do paciente afásico. Uma vez que o papel da família é considerado, por diversos autores, como estruturante na reconstrução não somente da linguagem do afásico, mas também das relações sociais e afetivas, fica nítida a importância de novos estudos para o enriquecimento da fonoaudiologia, áreas afins, além de também orientar os familiares do paciente afásico. Quando se fala em afasia logo se pensa na família do paciente. Isso porque é comum a mesma não saber lidar com o sujeito no dia-a-dia, tratá-lo como criança, falar alto ou devagar com ele e, pior ainda, falar no lugar dele, tentando adivinhar sua vontade. Não é raro, também que a família reaja contra as poucas expressões que o afásico consegue produzir. O ambiente familiar é o lugar mais apropriado para que o afásico se reconstrua como sujeito, independentemente das restrições de seu novo estado pessoal. Diante disso, é de extrema relevância conhecer a família e o modo como esta concebe e lida com o afásico. Quando uma família está vivendo com um doente, ela toda pode ficar doente. A saúde de todos os membros é importante para que haja uma ajuda eficaz. O presente estudo foi inspirado pelo interesse em dois assuntos pouco 2 explorados por mim: afasia e família. Assuntos esses que se fundiram, para dessa forma contribuir para a fonoaudiologia, áreas afins, bem como para os pacientes e os familiares. Eu acredito que a família pode ajudar, incentivar o afásico não só na reabilitação de sua linguagem, mas também na recuperação de sua auto-estima, proporcionando momentos de independência e autonomia no que se refere a situações hábeis. Além disso, eu acredito que o apoio familiar é essencial em todos os momentos da recuperação do paciente, devendo portanto ocorrer por parte dos profissionais envolvidos uma série de explicações e orientações pertinentes a cada caso, evitando que o afásico seja relegado a seu silêncio ou que seja superprotegido, impedindo dessa forma que ele conquiste um certo grau de autonomia. Eu acredito também que as famílias que estão sendo bem atendidas e orientadas possuem consciência de sua importância no processo de reabilitação do paciente afásico. 3 2. DISCUSSÃO TEÓRICA A afasia é definida por alterações dos processos lingüísticos de significação de origem discursiva e articulatória decorrentes de lesão focal adquirida no sistema nervoso central, em áreas responsáveis pela linguagem, podendo ou não se associarem a alterações de outros processos cognitivos. Um indivíduo é considerado afásico quando, do ponto de vista lingüístico, o funcionamento de sua linguagem, após lesão cerebral, não leva em conta determinados recursos de produção ou interpretação (COUDRY, 1988). As causas da afasia são danos cerebrais e/ou acidentes encefálicos (derrames) e que cientificamente recebem a sigla de AVC (acidente vascular cerebral) e/ou AVE (acidente vascular encefálico). Dentre eles encontram-se as embolias, os infartes, os aneurismas, as tromboses, os ferimentos por quedas ou armas de fogo quando atingem a massa encefálica, e, às vezes, tumores cerebrais (JAKUBOVICZ e MEINBERG, 1992). Segundo estas autoras, as afasias ocorrem em maior freqüência em época de guerra e, é estimado que até bem pouco tempo sua ocorrência era muito maior no sexo masculino. Essa freqüência tenderá a igualar-se em decorrência da modificação dos hábitos da vida feminina, quer dizer, pela maior exposição aos acidentes automobilísticos, ferimentos de guerra, fumo, álcool e pela própria tensão do trabalho dentro e fora de casa. A afasia não é uma doença nova e nem mesmo rara. É conhecida 4 e estudada desde o final do século XIX por clínicos interessados, como o francês Paul Broca (1865) ou o alemão Carl Wernicke (1874), que até legaram os seus nomes para formas clínicas particulares de afasia (PONZIO, LAFOND, DEGIOVANI et al., 1995). BOONE e PLANTE (1994), categorizaram a afasia baseados em GOODGLASS e KAPLAN (1984), de acordo com a fluência ou não fluência. Os tipos de afasia estão descritos a seguir: 1- Afasia não-fluente: 1.1- Afasia de Broca ou motora Pacientes com este tipo de afasia possui muitas dificuldades quanto à fonologia, embora apresentem compreensão de linguagem normal. A apraxia oralverbal também é encontrada com freqüência. 1.2- Afasia transcortical motora Pacientes com este tipo de afasia possuem uma fala telegráfica (sem artigos e conjunções). Além disso, o fluxo prosódico melódico da fala está ausente. Neste tipo de afasia a compreensão também não está afetada. 2- Afasia fluente: 2.1- Afasia anômica Pacientes com anomia apresentam déficits de linguagem receptiva entre leves à moderadas. A maior dificuldade entretanto está em encontrar as palavras, tornando sua fala disfluente no momento de encontrar a palavra que quer dizer. 2.2- Afasia condutiva 5 Pacientes com este tipo de afasia possuem compreensão próxima à normal, sendo que a dificuldade está em dizer uma palavra específica. A afasia condutiva não é muito encontrada clinicamente. 2.3- Afasia de Wernicke Neste tipo de afasia os pacientes apresentam um padrão de fala fluente que soa como jargão. Além disso, o indivíduo exibe problemas de compreensão auditiva que vão de moderados à severos. 2.4- Afasia transcortical sensorial Este tipo de paciente possui uma fala que soa como jargão, com algumas palavras soando próximas às reais. O maior problema entretanto é com a compreensão auditiva e de leitura, que é considerada severa. 3- Afasia global: Pacientes com este tipo de afasia possuem dificuldades tanto de compreensão como de emissão, tornando a maior parte da comunicação impossível. A presente investigação irá se apoiar neste modelo de categorização das afasias por considerá-lo amplo e detalhado, fato que contribuirá para o conhecimento do indivíduo a ser pesquisado perante sua família. É importante ressaltar que na maioria das vezes o afásico é mal compreendido pelos que o cercam. Alguns pacientes, como os que possuem afasia de Wernicke são considerados como doentes psiquiátricos ou como tendo problemas intelectuais. 6 Em seus estudos sobre a afasia JAKUBOVICZ e MEINBERG (1992;45) apontam os aspectos da inteligência e pensamento como sendo processos mais lentos em alguns indivíduos afásicos, mas não ausentes. Isso é constatado no processo de reabilitação, no qual ocorrem melhoras, pois o afásico reaprende a operar, utilizando uma capacidade que já possuía. Nessa perspectiva, as autoras colocam que: “... trata-se de um indivíduo que já possui linguagem, em todas as suas formas, e, em conseqüência de uma lesão cerebral, ficou impedido de exteriorizar seus pensamentos e sua inteligência em forma lingüística. O lesionado cerebral é mais lento, demorado, tanto nos processos de input como nos de output. Todos os seus processos intelectuais se fazem com maior dificuldade, falando-se de maneira genérica, porém sabemos que há o pensamento e há a inteligência...” A afasia afeta o indivíduo, tanto no que diz respeito a sua capacidade de compreender ou de se expressar como também no que se refere ao seu estado psíquico. A afasia é, provavelmente, a seqüela ou limitação mais importante, mais incapacitante, seja no plano pessoal, social ou econômico, provocada por uma lesão cerebral. Ela atinge a pessoa em vários níveis, tanto no plano intelectual quanto afetivo (COUDRY, 1988). Neste contexto, não é raro encontrar sujeitos afásicos que apresentam mudanças radicais em sua personalidade, parecendo não se tratar da mesma pessoa. Outros fatores como o prognóstico, a qualidade dos cuidados tanto 7 da família quanto da equipe clínica, e o nível de qualidade de vida que o afásico pode esperar de seu futuro imediato (volta ou não para casa, possível retomada de suas atividades preferidas) também desempenham um importante papel na determinação das condições emocionais do indivíduo afásico (PONZIO, LAFOND, DEGIOVANI et al., 1995). De acordo com estes autores, uma série de comportamentos ou reações psicológicas fazem parte do quadro clínico encontrado nos pacientes afásicos (em média de seis à doze meses após a lesão) e consideram que essas atitudes devem ser compreendidas, pois derivam de momentos de adaptação diante da perda e do fracasso em que estão passando. Tais comportamentos são: • Ansiedade O nível de ansiedade freqüentemente é elevado nos afásicos (medo de recaída, medo de morrer ou de não entender o que está acontecendo). Eles enfrentam também o medo de um futuro incerto, o medo de não serem mais como antes e o risco de perder pessoas amadas. Precisam enfrentar a situação mais difícil de suas vidas e têm de fazê-lo com meios limitados. Quanto mais aumenta o grau de consciência, mais a ansiedade se amplia e algumas vezes de maneira incontrolável. • Negação O afásico muitas vezes faz de conta que nada está acontecendo, ou seja, recusa tomar consciência de seus limites, tanto físicos quanto psicológicos. Freqüentemente a negação pode funcionar como uma 8 proteção contra a depressão. • Regressão Em alguns casos o afásico, ao procurar formas de adaptação, regride a comportamentos menos evoluídos, menos elaborados. Dessa forma, não é surpresa a família considerar a pessoa afásica como se ela tivesse voltado à infância. • Egocentrismo e Infantilismo Algumas vezes, a pessoa afásica pode se comportar como se fosse o centro de tudo, exigindo atitudes imediatas. A dificuldade de perceber uma situação em sua totalidade pode aumentar esse tipo de comportamento. • Danos a Auto-Estima O afásico por se sentir profundamente atingido e ferido pode chegar a perder o senso de identidade. Ele vê desaparecer boa parte daquilo que podia dar-lhe importância ou prestígio. Pode encontrar-se na impossibilidade de cumprir seus papéis familiares e sociais, como fazia antes. Durante algum tempo, seus meios de valorização ficam inibidos e alguns talvez nunca mais voltem. • Solidão e Isolamento A dificuldade para se comunicar com os outros e a diminuição da autoestima podem levar o afásico a se isolar socialmente. Além disso, o medo de ser rejeitado pelos que lhe são próximos também facilita o isolamento. Dessa forma, a solidão pode aumentar o sentimento de tristeza e 9 depressão, ao mesmo tempo em que diminui a chances de ocorrência de situações que possam melhorar a linguagem ou a elaboração de novos meios de comunicação. • Labilidade das Emoções As pessoas afásicas possuem com bastante freqüência uma tendência a chorar de modo inapropriado, devido à limitação dos processos de inibição e de controle das emoções ligados à lesão cerebral. Pode ocorrer também a tendência a passar rapidamente de um estado emocional para outro, sem que a realidade exterior justifique. • Agressividade Os afásicos são facilmente irritáveis devido às numerosas fontes de frustração e o controle prejudicado de suas emoções. Para alguns, a agressividade torna-se uma maneira de controlar o ambiente ou de se afirmar. Inevitavelmente, são os que lhes são próximos que se tornarão suas vítimas, não porque mereçam, mas sobretudo porque estão presentes no momento da crise de agressividade. • Vergonha e Culpa O fato de se ver diminuído enquanto pessoa pode provocar vergonha no afásico. Ele freqüentemente tem vergonha do que lhe ocorreu, chega a se sentir como alguém que não vale nada. Pode também achar que está sobrecarregando as pessoas que lhe são próximas (cônjuge, família e colegas) devido a suas limitações físicas e ou psicológicas. Se a causa 10 dos déficits não for bem compreendida, a família e o círculo próximo também podem ter vergonha do afásico ou se sentirem incomodados ao acompanhá-lo fora de casa. • Dependência e Passividade Considerando-se tudo de negativo que acontece com o afásico, não é de estranhar que ele seja tentado a se resignar e a se abandonar aos cuidados dos outros. Muitas vezes as limitações são tantas que a pessoa afásica não pode deixar de depender do meio por algum tempo, implicando um golpe na auto-estima e dessa maneira provocando agressividade ou desencorajamento. • Desinibição Devido à falta de controle de suas necessidades de afeição e pulsões sexuais ou à auto-crítica inadequada, a pessoa afásica pode se comportar de modo incorreto e transgredir as normas sociais por sua falta de compostura e cerimônia. As reações ou manifestações citadas podem evidentemente ser menores ou maiores, dependendo da gravidade e duração das seqüelas, da reação do meio e da qualidade do apoio que ele pode oferecer, da rapidez e qualidade dos cuidados oferecidos pela equipe de reabilitação. Sendo a linguagem um instrumento de comunicação privilegiado, sua perda gera no afásico uma fonte de isolamento perante sua família e a sociedade. Incapazes de se exteriorizarem, de se comunicarem pela 11 linguagem, seus pensamentos tornam-se acessíveis apenas a si mesmos. Neste processo, a família possui uma função fundamental, pois ela é o local de relações privilegiadas, ou seja, é o lugar da estruturação da vida psíquica ( REIS, 1984). Entretanto, a afasia pode provocar tanto um estritamento, quanto um distanciamento dos laços familiares. Isso não depende somente das relações anteriores, ou seja, do tipo de vínculo, mas também das reações dos membros em resposta a esse evento perturbador. Tais reações podem ser: indiferença, rejeição, superproteção e entusiasmo frente a resultados espetaculares, quer dizer, melhoras. MINUCHIN (1990), refere-se à família como sendo um sistema aberto em transformação, que se adapta às diferentes exigências das fases de desenvolvimento que enfrenta. Desta maneira, a família precisa se reestruturar e encorajar o crescimento de todos os seus membros. Quanto mais flexibilidade e adaptabilidade dos membros, mais significativa se tornará a família, como a fundante do desenvolvimento psicossocial. Segundo este mesmo autor, a família é uma unidade social que enfrenta uma série de tarefas de desenvolvimento. Estas diferem junto com parâmetros de diferenças culturais, mas possuem raízes universais. O envolvimento familiar é algo que antecede até mesmo o nascimento. Sendo assim, a família contribui para a formação da personalidade do indivíduo, pois exerce uma série de influências extremamente significativas que acabam 12 por gerar seu perfil psicológico (FRANCO, 1992). Para ACKERMAN (1986), o grau de adaptação do indivíduo à sua família é determinado pela sua personalidade bem como por processos interpessoais na família, que podem colaborar ou não com as suas buscas. Em seus estudos sobre a família POSTER (1979) afirma que ela é a formadora de nossa primeira identidade social. O autor coloca que a família: “... é o lugar onde se forma a estrutura psíquica e onde a experiência se caracteriza, em primeiro lugar, por padrões emocionais. A função de socialização está claramente implícita nesta definição, mas a família não está sendo conceptualizada primordialmente como uma instituição investida na função de socialização. Ela é, em vez disso, a localização social onde a estrutura psíquica é proeminente de um modo decisivo.” A família, considerada como uma entidade, enfrenta um desequilíbrio quando um de seus membros torna-se afásico. Antes do ajustamento, no qual cada membro terá o seu lugar, ele vive mudanças e passa por uma série de atitudes e reações variadas. A família tem uma estrutura, que pode ser observada somente em movimento. São preferidos certos padrões, que são suficientes em resposta às exigências costumeiras. Mas a força de um sistema depende de sua capacidade de mobilizar padrões transacionais alternativos, quando condições internas ou externas da família exigem a sua reestruturação. Uma família se adapta ao estresse de uma maneira que mantenha a continuidade familiar, embora 13 tornando possível a reestruturação. Se uma família responde ao estresse com rigidez, ocorrem padrões disfuncionais ( MINUCHIN, 1990). PONZIO, LAFONDI, DEGIOVANI et al. (1995) relatam em seus trabalhos que o afásico dificilmente retoma as relações sociais que tinha antes da doença, desde sua relação com o cônjuge como seu relacionamento com os filhos. Seu papel perante o grupo familiar parece estar modificado, ameaçado. A família por sua vez também encontrará dificuldades em situar o seu papel frente ao indivíduo doente. Alguns membros entram em pânico diante da amplitude da tarefa para com o afásico, outros encontram dentro de si possibilidades até então desconhecidas e consideram seus novos papéis satisfatórios ou até mesmo gratificantes. Diante dessa perspectiva, fica nítido a necessidade de haver um trabalho de orientação por parte da equipe multidisciplinar para com a família do paciente afásico. Um trabalho que busque a conscientização e que informe o que é a doença, como será o tratamento, que benefícios poderão ocorrer, etc. A família deve ser orientada no sentido de compreender e aceitar as dificuldades e limitações do afásico interagindo com ele tal como ele é; não tratálo como criança; não tentar substituí-lo em suas atividades; não falar no lugar dele e acompanhar sua evolução (COUDRY, 1988). JAKUBOVICZ e MEINBERG (1992), por sua vez, descrevem uma série de incentivos que a família pode prestar para o afásico, afim de favorecer e acelerar sua recuperação, dentre eles estão: falar com o paciente de maneira 14 clara, pausada, procurando olhá-lo; não interrompê-lo no momento em que estiver falando; encorajá-lo sempre para participar de atividades familiares; compreender o aparente egoísmo do afásico; se esforçar para entender o que o paciente quer dizer ou fazer e não isolá-lo no seu convívio, mas tampouco colocá-lo em situações estressantes. Como vimos, o comportamento da família influencia o do afásico, e até mesmo sua recuperação. WILLIAMS e FREER (1986), afirmam que os pacientes sem apoio familiar tendem à deterioração física e emocional e não tiram muito proveito da reeducação. Atualmente, é reconhecido por muitos centros especializados que a família ocupa um lugar importante no processo de reeducação do afásico e assim é incluída no programa de recuperação tanto no que se refere à fala quanto no que diz respeito ao aspecto emocional. Conhecer e identificar a dinâmica familiar e suas conseqüências, bem como compreender o que significa e como se estrutura o sintoma linguagem nessa relação, parece colaborar muito para a sua compreensão contextualizada, o que facilita o trabalho com o indivíduo. Tal conduta favorece ainda uma possível intervenção que ajude na modificação dessa dinâmica, quando necessário, permitindo à família facilitar o processo terapêutico (FRANCO, 1992). Nem sempre, porém, é possível intervir em determinadas dinâmicas familiares. O grau de flexibilidade e abertura para mudanças vai depender de cada família. 15 Existem famílias que não só aceitam como estimulam, tanto a coesão familiar, como a individualidade de seus membros, reagindo bem diante de certas desorganizações que possibilitam o crescimento, o encontro com novos papéis e com novas formas de equilíbrio mais amadurecidos. Neste tipo de organização familiar, segundo ANDOLFI (1984;20), “cada um sabe que pode compartilhar seu espaço pessoal com os outros sem sentir-se forçado a existir apenas como função deles”. Por outro lado, há famílias mais rígidas, que reagem a qualquer tipo de mudança, buscando manter seus equilíbrios sempre constantes, dificultando, desta forma, a individualidade, o crescimento e a maturidade de seus membros e impossibilitando a existência de limites interpessoais claros. Neste tipo de relacionamento, ANDOLFI (1984;20) analisa que o “espaço pessoal é confundido com o espaço interativo”. Portanto, neste caso, “a única possibilidade para coexistência pode então tornar-se a intrusão no espaço pessoal dos outros, acompanhada pela perda de seu próprio espaço pessoal”. A medida em que o clínico conhece mais a fundo o paciente e sua família, e observa que, embora a terapia seja centrada no indivíduo (o que se oporia a uma terapia centrada na família) MAIA (1986), descreve que suas modificações geram também mudanças perceptíveis na família. Isto indica que, mesmo um atendimento individual repercute sobre a família: as transformações do afásico afetam suas representações sobre si mesmo e sobre sua família, assim como alteram as representações mesmos. dos familiares sobre o afásico e sobre si 16 Desta forma, movimenta-se a dinâmica das relações familiares como um todo. De acordo com ANDOLFI (1984), a família é um sistema relacional, que se configura como um sistema aberto. Ou seja, a família estrutura uma rede de relações interna, numa progressão por mútuas influências. No interior desta unidade familiar, vamos encontrar subsistemas, ou seja, uma forma de organização fundadas nas relações de papéis familiares. Assim, numa família nuclear intacta, encontramos os subsistemas dos pais, dos esposos, dos filhos e dos irmãos, cada um desses subgrupos possui tarefas específicas dentro da família (CALIL, 1987). Através da forma que estes subsistemas (que devem ter uma delimitação própria) se relacionam entre si e com o sistema global é que a família terá sua organização e estrutura específica. É a partir deste todo estruturado que vai se relacionar com o mundo externo, influenciando-o e sendo por ele influenciado. Neste sentido, podemos entender a família como um todo coeso que formula implícita ou explicitamente uma série de regras de funcionamento, num jogo de atribuições e assunção de papéis, que vai buscar equilíbrio e estabilidade. Este processo é difícil e turbulento por circunstâncias inerentes à convivência social. Em primeiro lugar porque a família deve corresponder minimamente às solicitações do meio social em que está inserida, meio este que está em constante transformação. Em segundo, porque é dentro deste sistema interacional que os indivíduos se desenvolvem em direção à uma progressiva personalização, a se tornarem uma singularidade, até o ponto de se tornarem 17 independentes e formarem sua própria família. E em terceiro, porque a própria unidade familiar está em constante transformação, por mais rígidas que sejam suas relações. Isto posto, podemos entender a família e o indivíduo como dois sistemas em evolução (ANDOLFI, 1984). Assim sendo, a família, para cumprir sua função de permitir a maturação biológica e o desenvolvimento psicossocial, ao mesmo tempo em que deve manter-se unida, deve ser capaz de tolerar situações de crise e conflito, tendo uma espécie de norte: a estabilidade possível que lhe permita a própria sobrevivência como grupo social. Mas nem sempre a sobrevivência da família se dá através de padrões interacionais funcionais. Por vezes, a família pode equilibrar-se em torno de padrões disfuncionais, pois não suporta a ameaça de desintegração (GOMES, 1994). De acordo com CALIL (1987), as famílias preparadas para desempenhar seu papel, apresentam flexibilidade para lidar com as situações de mudança e conflito. Além disso, no interior destas famílias, existe uma predominância de mensagens recíprocas (os parceiros são capazes de aceitar as diferenças individuais, levando ao respeito mútuo e à confiança no respeito do outro, o que equivale a uma confirmação realista e recíproca de semipermeabilidade nas fronteiras que delimitam a família e seus subsistemas, ou seja, há uma possibilidade de diferenciação de seus subsistemas ao mesmo tempo em que há possibilidade de trocas entre os membros e entre os subsistemas. De outro lado, há famílias que, como já foi mencionado, se organizam 18 em torno de padrões disfuncionais. CALIL (1987), descreve o sistema familiar disfuncional como aquele que mantém rigidamente os seus padrões de interação, até mesmo quando uma mudança nas regras é essencial para o desenvolvimento de seus membros, ou para a adaptação a novas condições familiares. Nesse caso as regras de associação e comunicação que governam o sistema familiar impedem a individuação e a autonomia de seus membros isolados, as pessoas passam a coexistir ao nível das funções: um é apenas função do outro. Cada um encontra dificuldade de afirmar e reconhecer sua própria identidade, bem como a dos outros. Ninguém pode escolher livremente entre elaborar certas funções ou libertar-se. Cada um acha-se forçado a ser sempre aquilo que o sistema lhe impõe. A família disfuncional pode reagir à situações de mudança e \ ou conflito, sentidas como ameaçadoras da unidade familiar. Neste caso, o membro eleito para desempenhar o papel de “bode expiatório” ou “messias salvador da família”, passa a ser o depositário dos conteúdos ameaçadores ou das expectativas ilusórias. PICHON-RIVIÈRE (1986), se refere a este mecanismo propondo a teoria dos três “Ds”: o depositário (aquele em que se deposita uma mensagem do grupo), o depositante (aquele que deposita) e o depositado ( o conteúdo da mensagem que foi depositada). Este membro é, em geral, aquele que a família refere como sendo o portador do problema, da patologia. É o paciente identificado. Diante desta perspectiva, pode-se afirmar que não existem 19 relações isoladas da família às adversidades. A família não inventa um padrão relacional totalmente alheio ao seus padrões usuais para responder aos problemas que enfrenta (GOMES, 1994). No seio da célula familiar, o afásico é rapidamente identificado como um doente, mas precisa lutar, não apenas contra seu problema de linguagem, mas também contra uma freqüente má interpretação do que está na origem desse problema, que diz respeito à dinâmica psicológica individual e, principalmente, à natureza das estruturas familiares. Assim, é comum ocorrer nos familiares e nos indivíduos próximos ao afásico, reações de catástrofe, de rejeição ou de superproteção e, às vezes, de negação pura e simples da doença. Esses mecanismos, freqüentemente concomitantes, podem resultar em situações de fracasso terapêutico (PONZIO, 1987). As mudanças nos papéis familiares e a dificuldade de ajustamento aos novos papéis constituem um importante problema. O cônjuge sadio subitamente precisa assumir responsabilidades e funções que até então eram da competência do outro membro do casal. A maior parte dos cônjuges enfrenta alterações nas responsabilidades. O cônjuge não afásico além de se tornar o único provedor, torna-se responsável também pela educação das crianças, pela manutenção e organização da casa, bem como pelos cuidados e atenção para com o parceiro. Essas mudanças ainda são mais duras nas famílias em que o afásico era o único sustentáculo financeiro. Em alguns casos, o outro cônjuge afirma esmagado (BUCK,1968). por sentir-se tantas responsabilidades, que antes eram divididas 20 Este mesmo autor coloca que quando os dois parceiros trabalham ou quando estão acostumados a dividir as responsabilidades financeiras, familiares e domésticas, o impacto da mudança de papéis é menos dramática, e o aumento de responsabilidades pode parecer menos assustador, apesar de difícil. Habituados a dividir, eles acham justo que seu parceiro, mesmo tendo se tornado afásico, reencontre seu lugar na dinâmica familiar e assuma responsabilidades compatíveis com seu déficit lingüístico. Neste contexto familiar, as chances de reencontrar um novo equilíbrio parecem maiores. PONZIO, LAFONDI, DEGIOVANI et al. (1995) referem que o constrangimento e a culpa impedem, com muita freqüência, o cônjuge de comportar-se naturalmente com aquele que sofreu uma alteração em sua maneira de ser e de se exprimir. Já a atenção, a escuta podem ajudar o afásico a estar presente e a valorizar o que ainda existe nele. A angústia, a fadiga e a depressão impedem o outro de ser disponível, ter paciência, ser criativo. Os fatos da vida cotidiana são outros tantos pretextos de insatisfação e de isolamento, levando cada um dos cônjuges a se fechar em uma existência paralela. O cônjuge que não está doente dedica-se a atividades externas, ocupa-se com o dinheiro e os gastos, assume todas as responsabilidades, enquanto outro se isola dentro de casa, protegendo-se assim, dos contatos sociais que teme. Os mesmos autores colocam ainda que o afásico sem ter escolhido esta posição que lhe é imposta pela doença, torna-se possessivo, exigente em 21 relação àquele que não perdeu nada e que está até mesmo tomando posse de em que um dos cônjuges é afásico, os laços de união ou de desunião tornamse mais intensos, existe um exagero do tipo de vínculo que existia antes da doença. De acordo com BUCK (1968), a ruptura e a perda não existem só para o afásico e para o casal, mas também para o cônjuge sadio. Aquele que é sadio precisa, sozinho, salvar a identidade do casal e deve deslocar para outro lugar tudo aquilo que havia projetado sobre o outro. A destruição provocada pela doença e a castração criada pela afasia mobilizam defesas que vão permitir a cada um enfrentar a crise. As acomodações serão diferentes, dependendo dos casais. Nos casais mais jovens, não apenas o presente, mas também todo o futuro são alterados. Eles perdem seus sonhos, esperanças e projetos de vida. É uma etapa difícil, pois perdem-se coisas que ainda nem chegaram a ser conquistadas. Já em alguns casais por volta dos cinqüenta anos ou mais, as mudanças serão bastante limitadas. Os anos passados juntos cristalizaram certas atitudes. Mas é também graças a esse passado comum que os déficits podem ser, às vezes, melhor aceitos. A cumplicidade dos anos comuns, têm, para alguns, importância significativa para permitir-lhes conservar estima e energia suficientes para continuarem juntos apesar da afasia (PONZIO, LAFONDI, DEGIOVANI et al., 1995). Para KINSELLA & DUFFY (1978), a afasia gera nos casais mudanças 22 em suas vidas conjugais. Os cônjuges se queixam das dificuldades para conversar sobre os acontecimentos cotidianos. Eles não conseguem mais exprimir com detalhes suas impressões ou sentimentos. Os casais vivem problemas de comunicação interpessoal, perda do sentimento de compartilhar algo e diminuição da satisfação sexual. Uma insegurança em relação ao outro se instala e os atritos não tardam a aumentar. Em seus estudos os autores relatam que 83% dos casais pararam de ter relações sexuais. A perda da capacidade de falar afeta também o relacionamento entre pais e filhos como é demonstrado por PONZIO, LAFONDI, DEGIOVANI et al. (1995) que colocam o afásico como experienciador de uma diminuição de autoridade em relação aos filhos na medida em que essa autoridade é mal verbalizada, ou seja, a formulação de ordens, de pedidos, de justificativas falham. O afásico, então, toma uma atitude de isolamento, de distanciamento devido à impotência. Eventualmente podem ocorrer reações violentas, significando o papel de válvula de escape da tensão interna vivida pelo sujeito. Dessa forma, a educação das crianças passa a ser controlada apenas pelo cônjuge sadio, acompanhada por um olhar impotente, mas presente, do doente. O papel do pai é particularmente ameaçado, pois a doença deixa-o constantemente em casa, assumindo às vezes o papel tradicionalmente feminino nas atividades domésticas, sendo necessário conseguir um novo equilíbrio, com papéis não habituais. Estes mesmos autores descrevem que a idade dos filhos no momento em 23 que ocorre o evento traumatizante e a qualidade da relação com os pais influenciam as reações das crianças e a sua adaptação à afasia de um dos pais. O afásico, pai de crianças pequenas, se arrisca com mais facilidade de emitir suas idéias, não temendo a crítica por uma linguagem incorreta. Na adolescência, os filhos reagem ao pai afásico com a impulsividade forte e ativa característica de sua idade. O pai deficiente raramente é mencionado diante dos colegas. Sua existência é negada, sua palavra é inexistente. Os adolescentes às vezes assumem um tom protetor e maternal, podendo ter um papel importante na ajuda prestada. SATIR (1967), considera a família como uma entidade homeostática, onde cada unidade depende da outra e onde a dependência mútua significa que qualquer mudança em uma unidade modifica o todo. Assim, quando a afasia atinge um dos familiares, transtorna todo o equilíbrio familiar, cria ansiedade e gera novos comportamentos em todos os outros membros da família. Para este autor, família pode ser sua própria família de origem, seus pais, irmãos, tios e, talvez, também a família do cônjuge, a qual os laços de afeição variam de acordo com as histórias e as afinidades. O afásico busca na família disponibilidade e compreensão, precisa de alguém para compartilhar um ritmo de vida que tornou-se lento, mas nem sempre esse alguém é o pai, a mãe ou o próprio cônjuge. Às vezes, é um cunhado, uma tia, ou seja, uma pessoa não diretamente envolvida com o doente. A doença deixa as conveniências de lado, as cumplicidades aparecem 24 de maneira espontânea. O afásico, em sua família de origem ou por afinidade, pode deixar vir à tona sua identidade real e isso ajuda a aceitar a regressão e a impotência. Muitas vezes, a família por afinidade é suficientemente próxima para poder compreendê-lo, apesar de sua linguagem reduzida ou ininteligível. Além disso, os parentes menos próximos têm menos necessidade de se defender e pode aceitar reações que são insuportáveis para o cônjuge ou para os pais (PONZIO, LAFONDI, DEGIOVANI et al., 1995). Durante os três ou quatro primeiros meses de hospitalização, a família se preocupa com as necessidades imediatas do paciente: seu bem-estar físico, seu moral positivo, sua recuperação física e lingüística. Depois disso, vem o período de reintegração do afásico no meio familiar. É nesse momento que o estresse, os déficits físicos, cognitivos e lingüísticos se manifestam concretamente e assumem todo seu significado (MALONE, 1970). Este autor coloca que a adaptação às mudanças no gênero de vida e no funcionamento da família que o afásico deve enfrentar em seu retorno ao lar será facilitada se a família adotar uma atitude colaboradora. Os ganhos obtidos com a reeducação serão mantidos e superados somente se a família encorajar a utilização da linguagem funcional. A família é igualmente incumbida da tarefa de facilitar a reintegração social do afásico. Para este mesmo autor, algumas atitudes mantêm o afásico em um estado de impotência e contribuem, a longo prazo, para o desenvolvimento de um estado depressivo. Já as famílias que persistem nas atitudes 25 superprotetoras, evitando submeter o afásico a situações embaraçosas, contribuem para seu retraimento social e progressivo isolamento. PONZIO, LAFONDI, DEGIOVANI et al. (1995) descrevem que a indiferença por parte dos familiares para com o afásico freqüentemente é uma aparência atrás da qual esconde-se uma boa dose de ódio. Ódio que ficava reprimido antes do acidente e impossível de se manifestar depois. Consideram que neste tipo de dinâmica ocorrem, as situações mais dramáticas, onde a regra será a negação pura e simples de tudo que possa ser considerado como necessidade vital do indivíduo, e a ausência total de consideração pelos desesperados esforços de comunicação do afásico. De acordo ainda com estes autores, a exclusão é, às vezes, o destino do afásico quando a dinâmica familiar é de indiferença. Mas essa exclusão pode, evidentemente, tornar-se óbvia nos casos em que ela própria constitui o sintoma. Em sua família, o afásico vive uma farsa, faz-se de conta que tudo é como antes: sua presença real é uma imagem dolorosa. Ele é afastado das discussões e das decisões. Os atos mais comuns tornam-se experiências novas às quais é preciso adaptar-se ( PONZIO, LAFONDI, DEGIGIOVANI et al.,1995). O fenômeno da afasia abala fortemente o indivíduo, até o mais profundo de seu ser. Ela liga-se ao papel privilegiado que a linguagem tem em nossa sociedade e à importância da qual se reveste na definição da personalidade e da identidade do ser humano (TISSOT, 1986). A aceitação da afasia, acompanhada por uma atitude aberta, favorece 26 a adaptação social e a utilização mais satisfatória da linguagem funcional. WEBSTER (1986) descreve como uma mudança de atitude e de percepção do déficit lingüístico por parte do cônjuge de um afásico, permite o surgimento de uma comunicação funcional e de mudanças no comportamento social, apesar de uma afasia severa. A ocorrência da afasia provoca importantes alterações no funcionamento da família. Na fase crítica do inicio da doença, a família, tomada por grande inquietação, dedica-se totalmente às necessidades do paciente. Quando as dificuldades de comunicação persistem, a família pouco a pouco toma consciência delas. Nesse estágio, o desejo de reencontrar o equilíbrio perdido e voltar à situação anterior oculta-lhe a gravidade do déficit levando-a a crer em um possível retorno à normalidade. Gradualmente, a situação torna-se tão opressiva que uma grande ansiedade invade os membros da família e leva-os a se afastarem. Eles assumem responsabilidades pesadas e sentem-se incapazes de enfrentar as mudanças que a doença impõe. Eles tendem a crer que não podem fazer nada para melhorar o estado de seu parente afásico (JAKUBOVICZ e MEINBERG, 1992). Ao papel de apoio ao qual a família é associada, FLORENCE (1981) descreve um mais específico, o de agente terapêutico. O cônjuge que se torna um auxiliar terapêutico, afirma o autor, torna mais eficazes os esforços terapêuticos e diminui também o tempo de terapia, facilitando os processos de generalização e ajudando a consolidar as mudanças. 27 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS O interesse pelo tema da presente monografia surgiu da vontade de me aprofundar a respeito de afasia e família, bem como desta difícil relação. O pouco contato com indivíduos afásicos e suas famílias também contribuíram para aumentar a minha motivação. Contudo, o objetivo não foi abordar a afasia enquanto entidade patológica, mas sim o afásico enquanto indivíduo que é posto diante de um problema que, não só diminui ou acaba com suas possibilidades de comunicação, como, freqüentemente, é acompanhado por problemas familiares e ou sociais. A pesquisa mostra as conseqüências da afasia sobre a família e sobre a pessoa por ela atingida, o afásico, que nesta obra é considerado como sujeito de sua própria história. No âmbito profissional, nas poucas vezes que tive contato com pessoas afásicas pude constatar através de seus relatos ou de relatos de familiares o quanto a afasia é ruptura. Ao meu ver, é ruptura pessoal, quando a afasia torna difícil a expressão do pensamento, colocando o indivíduo em um universo fechado. É ruptura familiar, pois pode transformar o afásico em um ser estranho no dia a dia de sua própria casa. É ruptura conjugal, quando anos ou dezenas de anos de vida em comum são destruídos, diante da impossibilidade de compartilhar sentimentos e idéias. Dentre todas as doenças que uma pessoa pode sofrer durante a vida, 28 a afasia é, provavelmente a que mais diretamente repercute sobre a família. Como ela interrompe a comunicação bruscamente, sem aviso prévio, e freqüentemente de modo permanente, todo sistema de interações familiares é perturbado. A súbita perda da capacidade de se comunicar afeta todos os aspectos da vida dos afásicos e de suas famílias. O afásico é alguém que intimida seus familiares. Ele se sente envergonhado de sua condição atual quando comparada às suas capacidades anteriores; ele provoca pena e sugere indulgência, da mesma forma como pode ser considerado uma criança ou uma pessoa com deficiência mental. O afásico percebe esse sentimentos e sofre por ser vítima dessa fatalidade. Ele procura uma razão que explique o porquê desse golpe trágico. Estes fatos vem ressaltar o que COUDRY (1988) disse antes: a afasia é provavelmente a seqüela ou limitação mais importante, mais incapacitante, seja no plano pessoal, social ou econômico. Ela atinge a pessoa em vários níveis, tanto no plano intelectual quanto afetivo. Outros autores vem confirmar estas perspectivas, revelando que uma série de comportamentos ou reações psicológicas fazem parte do quadro clínico encontrado nos pacientes afásicos. Sendo a linguagem a forma de comunicação mais eficiente, eu acredito que a sua perda gera no indivíduo uma limitação, não apenas na sua capacidade de compreender ou de se expressar, mas também em seu estado psíquico. Não é difícil imaginar o estigma que pode representar, para uma pessoa, o fato de não poder mais se comunicar efetivamente. Ela fica repentinamente fora do circuito. 29 Diante disso, eu quero salientar que não é só o indivíduo afásico que sofre com o seu atual estado, mas também todos os que o cercam. Familiares muitas vezes apresentam reações diversificadas, tais como: rejeição, superproteção, negação para com o indivíduo doente. Antes de iniciar este estudo, achava que era obrigação da família entender o indivíduo afásico, principalmente quando as conseqüências cognitivas, psicológicas e sociais da afasia eram bastante significativas. Diante disso, o trabalho em um primeiro momento de sua construção foi voltado para uma relação considerada ideal entre família e pessoa afásica. Nesta etapa, foi enfocada a questão do que a família deve e não deve fazer com o indivíduo afásico. Enfatizou-se desta forma um modelo de interação considerado perfeito, no qual, a família age sempre de forma muito satisfatória, visando totalmente a evolução do membro doente. Entretanto, a medida em que a monografia foi se realizando, pude notar através das bibliografias pesquisadas que o que foi descrito anteriormente não acontece com freqüência. A doença, e a afasia, criam uma grave crise no seio da família e provocam alterações nos laços fundamentais. Desse momento em diante, a doença ocupa o lugar permanente de um terceiro, às vezes aliado, às vezes inimigo. Com o decorrer da pesquisa, constatei que uma convivência harmoniosa na família, apesar da afasia, deve-se à qualidade da relação que existia entre os membros antes da doença. 30 O movimento realizado pela família que convive com um afásico, dependerá do grau de flexibilidade e abertura para mudanças. Esta dicotomia foi demonstrada por CALIL (1987), que descreve as características tanto das famílias funcionais como também das disfuncionais. Neste contexto, ele coloca que existem famílias mais preparadas para desempenhar seu papel, apresentando flexibilidade para lidar com as situações de conflito e mudança. E outras famílias que possuem padrões de interação mais rígidos, mesmo quando uma mudança favorece o desenvolvimento geral. Acredito que a minha posição no início do estudo (achar que a família era obrigada a entender o afásico) ocorreu devido a idéia que fazia do indivíduo afásico e de sua família. Tinha como concepção o afásico como aquela pessoa que não possuía um passado, uma vida marcada por atitudes / relações boas e más. Quanto a família, considerava que tinha que aceitar esse membro doente de qualquer forma. Diante disso, analiso que valorizava mais o afásico do que o seu próprio grupo familiar. Ao chegar no final desta monografia, concluo que tanto o afásico como sua família merecem ser considerados. O indivíduo afásico deve ser considerado, conforme já dito anteriormente, como um sujeito de sua própria história. A família por sua vez, necessita ser bem orientada e compreendida, pois ao meu ver, sofre tanto quanto a pessoa que sofreu a lesão cerebral. Verificou-se durante a pesquisa, o quanto a família é abalada pela afasia. Quando ocorre uma crise importante na vida de um homem, de uma mulher, ou 31 de um adolescente, os laços familiares fundamentais podem ser questionados em todas as suas dimensões. No sentido biológico, a família pode ser comparada a uma célula, com suas relações internas e externas. No interior, o núcleo, constituído pelo casal e pelos filhos. Nas proximidades do núcleo, quer envolvendo-o ou constituindo uma outra unidade à distância, os parentes. Constatou-se também que algumas vezes o indivíduo afásico prefere relacionar-se com parentes mais distantes. Esse relacionamento é considerado satisfatório pois o afásico nestas situações sente-se bem a vontade, deixando vir à tona sua identidade real, o que ajuda a aceitar a regressão e a impotência. Além disso, os parentes mais distantes tem menos necessidades de se defenderem e aceitam reações que seriam intoleráveis para os parentes muito próximos. A análise das atitudes familiares, permitiu observar como a família pode incentivar adequadamente o paciente. Desta forma, quero ressaltar o que JAKUBOVICZ e MEINBERG (1992) sugeriram: falar com o paciente de maneira clara, procurando olhá-lo; não interrompê-lo no momento em que estiver falando; encorajá-lo sempre para participar de atividades familiares; compreender o aparente egoísmo do afásico; se esforçar para entender o que o paciente quer dizer ou fazer e não isolá-lo no seu convívio, mas tampouco colocá-lo em situações estressantes. Entretanto, como já citado anteriormente, nem sempre estas atitudes são possíveis, ocorrendo muitas vezes reações adversas, como indiferença e 32 rejeição, surgidas algumas vezes por um sentimento de ódio que estava reprimido, pois como descreve GOMES (1994), não existem relações isoladas da família às adversidades. A família não inventa um padrão relacional totalmente alheio aos seus padrões usuais para responder aos problemas que enfrenta. Esta monografia evidenciou a difícil, porém importantíssima relação entre o indivíduo afásico e sua família. Observou-se o quanto a afasia afeta o sujeito e o seu grupo familiar. A análise dessas relações permitiu notar a influência que a família desempenha na reabilitação do afásico, não só no que diz respeito à fala, mas também no que se refere ao aspecto emocional. Eu acredito que apoiar e estimular o afásico tornam-se mais fácil para a família quando ela está informada e compreende a natureza do problema que deve enfrentar. Atitudes contrárias são encontradas também em famílias que subestimam os distúrbios da comunicação ou que atribuem as reações e comportamentos do afásico a problemas de memória ou a outros déficits cognitivos. Diante do exposto, ficou nítido que a família possui um papel importantíssimo na reeducação do sujeito afásico, mas nem sempre é capaz de exercê-lo. Porém não cabe julgar os padrões interacionais realizados pela família. Ao meu ver, a nós fonoaudiólogos cabe orientar e entender a dinâmica familiar, visando dessa forma uma melhora na qualidade de vida familiar em geral e sendo assim, uma melhora conseqüente do indivíduo afásico. 33 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACKERMAN, N.W. Diagnóstico e tratamento das relações familiares. Porto Alegre, Artes Médicas, 1986. ANDOLFI, M.; ANGELO, C.; MENGHI, P.; NICOLO, A.M.; CORIGLIANO, A. Por trás da máscara familiar. Porto Alegre, Artes Médicas, 1984. BOONE, D.R. & PLANTE, E. Comunicação humana e seus distúrbios. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994. 402 p. BUCK, M. - Dysphasia: professional guidance for family and patient. In: PONZIO, J.; LAFONDI, D.; DEGIOVANI, R. et al. O afásico: convivendo com a lesão cerebral. Prentice Hall, Englewood Cliffs,1968. CALIL, V.L.L. Terapia familiar e de casal. São Paulo, Summus Editorial, 1987. COUDRY, M.I.H. Diário de narciso. São Paulo, Martins Fontes, 1988. 205p. FRANCO, M.L.Z. Família em fonoaudiologia. São Paulo, 1992. 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