DNA: Passado, Presente e Futuro O passado O modelo do DNA que hoje nos é tão familiar foi divulgado em abril de 1953 na revista científica Nature pelos cientistas James Watson e Francis Crick. Eles afirmaram que a molécula de DNA era uma estrutura semelhante a uma escada retorcida sobre um eixo imaginário (a dupla-hélice), com os “degraus” formados pelas bases nitrogenadas unidas. Esse modelo foi elaborado a partir de dados químicos obtidos por outros cientistas e a “forma” da molécula foi entendida enquanto eles trabalhavam com pedaços de papelão para representar as bases e palitos para representar as ligações químicas entre elas. A estrutura molecular simples proposta por essa dupla de cientistas estava de acordo com os dados até então disponíveis sobre a composição química do DNA. Além disso, através dessa estrutura era possível explicar o processo de replicação e, consequentemente, o papel do DNA na hereditariedade. A união entre as bases nitrogenadas pode se romper, separando as duas fitas da hélice; desse modo, cada fita pode servir de molde para a montagem de outra, complementar, mediante o correto emparelhamento entre as bases A, T, C e G. Pouco tempo depois, descobriuse também que esse modelo de DNA permitia explicar como ocorre a síntese de proteínas codificada pelos genes, por intermédio da produção de RNA mensageiro a partir de uma das fitas do DNA. Mas a história da elaboração desse modelo não é tão simples quanto a da molécula de DNA. James Watson, americano, tinha 21 anos e já havia concluído sua pósgraduação na área de Zoologia quando foi trabalhar em um laboratório de pesquisas na Inglaterra. Lá conheceu Francis Crick, 12 anos mais velho, que estava concluindo um estudo sobre a estrutura molecular da hemoglobina, proteína presente nos glóbulos vermelhos do sangue. Os dois tornaram-se amigos e, entre as muitas afinidades, ambos achavam que as pesquisas sobre DNA eram interessantes porque poderiam ajudar a compreender como funcionavam os padrões de herança genética. Mas nenhum dos dois cientistas sabia preparar amostras de DNA para trabalhar em laboratório e não possuíam muitos conhecimentos sobre a química do material genético. Como foi possível que justamente esses jovens cientistas tenham chegado ao modelo que até hoje é considerado correto? Na época em que Watson e Crick se conheceram, vários cientistas estavam pesquisando sobre a natureza química do material genético e alguns modelos já haviam sido propostos para a molécula de DNA. Em 1944, Oswald Avery demonstrou que o “material genético” era constituído de uma substância que ele chamou de ácido desoxirribonucleico (DNA ou ADN), composto de um açúcar (desoxirribose), de grupos fosfatos e de nitrogênio (as bases nitrogenadas adenina, citosina, guanina e timina). Alguns anos depois, Erwin Chargaff descobriu que havia uma relação matemática entre o número das bases nitrogenadas: a quantidade de adenina em uma molécula de DNA era sempre igual à quantidade de timina e o mesmo acontecia entre citosina e guanina. O químico Linus Pauling propôs um modelo para a molécula de DNA: era uma hélice formada por três filamentos, e não apenas dois. Um modelo é uma ferramenta importante para a ciência, porque permite a compreensão de estruturas ou fenômenos que não podem ser visualizados, e a construção de um modelo exige conhecimento e imaginação. À medida que novas informações transformam o conhecimento sobre um fenômeno, os modelos precisam ser revistos e às vezes reformulados. O modelo de Linus Pauling não correspondia a certos dados referentes ao DNA, mas certamente foi uma etapa importante até se chegar ao outro modelo. Os novos dados que desmentiram o modelo em tripla-hélice partiram dos experimentos da cientista Rosalind Franklin. Naquela época, ela trabalhava na mesma universidade em que Watson e Crick. Ela era especialista na técnica chamada “difração de raios X”: a amostra de uma molécula era bombardeada com raios X e os raios eram desviados de maneiras diferentes, dependendo do arranjo espacial da molécula. O resultado desse processo era a formação de imagens que captavam o desvio de radiação, permitindo assim a visualização indireta da estrutura da molécula. Quando utilizou essa técnica com moléculas de DNA, Franklin obteve imagens as quais indicavam que a estrutura era uma hélice constituída por dois filamentos – e não três – com diâmetro constante. Enquanto isso, Watson e Crick realizavam pesquisas com outras moléculas, mas nas horas vagas ficavam tentando imaginar uma estrutura para o DNA. Eles tinham certeza de que essa descoberta seria muito importante para a Biologia. Watson foi assistir a uma palestra de Rosalind Franklin para compreender melhor como a técnica de difração funcionava; depois, ele e seu amigo Crick tiveram acesso às imagens da molécula de DNA que a cientista obteve em seu laboratório, sem que ela estivesse ciente ou tivesse consentido esse acesso. Com os novos dados em mãos, Watson e Crick começaram a montar modelos. Watson recortou figuras geométricas no papelão para representar as bases nitrogenadas e foi aí que percebeu: o emparelhamento de guanina com citosina era semelhante, geometricamente, ao que ocorre entre adenina e timina. Esse emparelhamento específico deveria ser o responsável pelo diâmetro constante da dupla-hélice (ou seja, todos os “degraus” com a mesma “largura”). Essa ideia estava de acordo com os resultados de Chargaff sobre a relação matemática entre as bases: A=T e C=G. A partir daí, finalizaram o modelo em dupla-hélice e enviaram um breve comunicado à revista Nature descrevendo a estrutura do DNA. Watson e Crick, porém, fizeram questão de dizer que não utilizaram as conclusões de Chargaff em sua descoberta, mas que foram “empurrados para ela”. Em 1962, eles ganharam o Prêmio Nobel por esse trabalho, juntamente com Maurice Wilkins, físico que também trabalhava com obtenção de imagens de DNA e era amigo de Francis Crick. Foi ele, aliás, quem fez os resultados das pesquisas de Rosalind Franklin chegar às mãos de Watson e Crick sem que ela soubesse. A cientista Franklin não foi citada pelos autores do modelo e, só após a publicação na revista científica, ela descobriu que seus dados haviam inspirado a elaboração do modelo correto de DNA. Ela morreu em 1958, aos 37 anos, de câncer causado pelo seu contato praticamente diário com radiação. Presente e futuro A estrutura do DNA descoberta em 1953 permitia compreender como essa molécula poderia ser copiada e transmitida entre organismos de geração para geração. Dez anos depois, demonstrou-se como o DNA armazena a informação genética, na forma de código, que comanda a produção de proteínas. Na década de 1970, foram desenvolvidas tecnologias que permitiram isolar genes de uma molécula de DNA. Nos anos 80, os primeiros organismos geneticamente modificados foram produzidos em laboratório. Também surgiu a técnica que permitia determinar a sequência de genes em uma molécula de DNA e assim tiveram início os “Projetos Genoma” de diversas espécies. No ano 2000, foi a vez do genoma humano ser decifrado. Em pouco mais de 50 anos, o assunto “genética” deixou de ser considerado um mistério e passou a ser explicado por meio da estrutura de uma simples molécula. Hoje convivemos com várias aplicações das técnicas de manipulação do DNA, como a presença de alimentos geneticamente modificados, os exames para diagnóstico de doenças genéticas ou os exames de paternidade/maternidade a partir de gotas de sangue, fios de cabelo ou restos de saliva na ponta de um cigarro... A imagem da dupla-hélice tornou-se um símbolo cultural do avanço científico e gera reações diversas. Muitos se empolgam e outros se assustam diante da possibilidade de o ser humano controlar o futuro das espécies (inclusive a nossa), modificando genes para eliminar doenças, criando superalimentos ou produzindo clones em laboratório. A mídia faz sempre um grande alarde em torno das recentes descobertas, profetizando o que irá acontecer a partir dos novos conhecimentos. O próprio James Watson, um dos autores do modelo do DNA, foi dirigente do Projeto Genoma Humano em 1998 e afirmou que: “Nós crescemos pensando que o nosso destino estava nas estrelas. Agora sabemos que, em boa parte, nosso destino está nos genes”. Watson teve o cuidado de dizer “em boa parte”... Passada a empolgação inicial da descoberta da molécula de DNA, descobriu-se que a genética não é absoluta, ainda mais no que diz respeito ao “destino” dos organismos. A conclusão do Projeto Genoma Humano resultou em uma sequência de bilhões de bases ATCG, mas não trouxe consigo a cura para o câncer ou outras respostas. O genoma tornou-se, isso sim, mais uma ferramenta de trabalho para os cientistas. O que sabemos hoje é que existe uma complexa rede de mecanismos que regulam a atividade dos genes. Ter o genoma decifrado foi, portanto, um passo importante dentro de uma longa caminhada que ainda está por vir. A partir de agora, o DNA terá de dividir sua importância com proteínas, moléculas de RNA e outros fatores que resultam da interação entre organismos e ambiente. Tudo isso interfere no processo de expressão de características determinadas geneticamente e essa interferência ainda é, em grande parte, um mistério para os cientistas. Outra discussão atual relacionada com o DNA e as tecnologias que permitem sua manipulação envolve os princípios éticos da pesquisa genética. Watson disse, na época do lançamento do Genoma Humano, que uma das vantagens do projeto seria poder determinar geneticamente a burrice para então eliminá-la da espécie humana! É claro que se trata de um comentário infeliz, pois, conforme discutimos acima, nosso “destino” - seja ele a inteligência ou a falta dela - não depende apenas dos genes, havendo também a interferência do meio. Mas, de qualquer forma, levanta-se a questão de se manipular e selecionar características genéticas. Esse poder de manipulação envolve milhares de possibilidades, mas também de riscos e responsabilidades. Alguns cientistas posicionam-se contra a manipulação de células germinativas e embriões, pois as modificações genéticas poderiam ser transmitidas a descendentes e escapar ao controle. Além disso, essas experiências ainda são feitas na base da tentativa, que pode resultar em acerto ou erro. É ético fazer um teste genético contra a vontade de uma pessoa? Uma pessoa tem o direito de “não” saber se pode desenvolver uma doença letal? E se empresas tiverem acesso às informações sobre o “destino genético” de uma pessoa e excluírem da contratação aqueles portadores de genes causadores de doenças? Se alguém decide doar células (óvulos/espermatozoides) para pesquisa, como e com que finalidade esse material será utilizado? Talvez seja esse o momento para discutirmos o que é e o que não é ético, e definirmos que tipo de mundo queremos para o futuro. Essas e outras questões que certamente virão precisam ser discutidas por toda a sociedade, e não apenas pelos cientistas. Já sabemos o que é o DNA e como ele pode ser manipulado. E todo conhecimento traz consigo direitos e responsabilidades. Para saber mais: · Revista Pesquisa Fapesp especial, abril de 2003, Fapesp, Secretaria da Ciência e Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo. p. 3-42. · Revista Ciência Hoje vol. 32, nº 192, abril de 2003, SBPC. p. 68-70 · Folha de S. Paulo – Caderno Especial “DNA: A hélice do milênio”, 7 de março de 2003. p. 1-8. · Folha de S. Paulo – Caderno Mais! “Reengenharia Genética”, 22 de junho de 2003. p. 4-8. Texto elaborado por Vivian Lavander Mendonça e Sônia Lopes (Agosto de 2003)