PERCEPÇÕES DO SER: O ENDEREÇAMENTO DA POESIA
DE CECÍLIA MEIRELES E ROSEANA MURRAY
Daniela Padilha
USP
A escolha do corpus desta pesquisa, um poema de Cecília Meireles e um de Roseana
Murray, tem como propósito, a partir da análise comparativa, questionar o endereçamento
de suas obras, a partir de procedimentos estéticos de ambas as autoras. Da primeira,
tomaremos sua produção para o público adulto e, da segunda, para o público infantil e
juvenil.
Espera-se discutir neste trabalho a estética literária que rege o enquadramento da literatura
para determinado receptor, adulto, jovem ou criança, a partir dos poemas selecionados.
Embora Cecília Meireles também possua poemas destinados a crianças, a seleção foi feita a
partir de seus poemas destinados a adultos, justamente para tratar do endereçamento.
A escolha das duas autoras se deu por uma identificação percebida da temática subjetiva
trabalhada por ambas, como mar, espelho, viagem, amor, destino e outros, assim como uma
simplificação aparente de linguagem, além de possíveis rimas, jogos de palavras,
sensibilidade poética e múltiplas possibilidades de leituras destinadas a adultos e crianças.
Autora de mais de 40 livros, com indicações para o Prêmio Jabuti, o maior prêmio
brasileiro de literatura infantil e juvenil, premiação pela Academia Brasileira de Letras e
reconhecimento em diversos livros com o selo Altamente Recomendável, da Fundação
Nacional do Livro, Roseana Murray está entre as maiores poetas da modernidade de
literatura brasileira destinada a crianças e jovens.
Em sua poesia, reconhecemos o silêncio que requer toda produção artística, silêncio que o
receptor toma para si e constrói sua obra.
A poesia de Roseana Murray é feita de delicadezas e transparências, como se ela falasse para mostrar
o silêncio. E assim a linguagem alcança a condição de pluma ou porcelana.
Ferreira Gullar, na quarta capa do livro Manual de Delicadezas, de Roseana Murray.
A literatura de Roseana exige atuação do sujeito-leitor, que completa e recria os silêncios.
Selecionamos um poema da obra Jardins, publicada no ano de 2001 pela editora Manatti,
com ilustrações de Roger Mello. Vamos nos ater nesse trabalho apenas ao código verbal do
livro.
Um estrela vem espiar:
Estrelas são iluminadas
Flores noturnas
No quintal do céu
Lembrando a estrutura de hai-kais, com versos breves, o poema não é possui rimas finais.
Quando tratamos de poesia, as palavras não são elas mesmas providas de significados, mas
sim quando tomadas por seus agrupamentos.
As palavras chegam e se juntam sem que ninguém as chame; e essas reuniões e separações [...] são regidas
por uma ordem de afinidades e repulsões. As palavras se juntam e se separam atendendo a certos princípios
rítmicos. [...] O poeta cria por analogia. Seu modelo é o ritmo que move todo o idioma. [...] O ritmo é um ímã.
Ao reproduzir um ritmo, por meio das rimas, dos metros, das repetições [...] o poeta convoca as palavras. E, à
esterilidade, sucede-se um estado de abundância verbal. [...] Esta corrente rítmica tende a se manifestar em
imagens e não em conceitos.
(Octavio Paz)
A falta de conectivos permite ao leitor diversas relações dentro do texto. O leitor pode ou
não obedecer a lógica dos termos. Temos no primeiro verso a personificação da estrela, que
vem espiar. No segundo verso temos Estrelas são iluminadas e, no terceiro, Flores noturnas.
Podemos ler que estrelas são iluminadas como flores noturnas; que estrelas são flores
noturnas e iluminadas; que estrelas noturnas são iluminadas como flores; além de uma
infinidade de combinações.
Seguindo no quarto verso, No quintal do céu, temos a determinação de um espaço ilimitado, o
céu. A partir dessa relação de combinações, que o leitor pode acolher ou rejeitar, nascem as
múltiplas metáforas por ele elaboradas.
O silêncio dos versos dá ao leitor a condução do poema e construção de sentidos.
À essa construção de sentidos Pound (2000) chama de logopéia, “associações (intelectuais
ou emocionais) que permaneceram na consciência do receptor em relação às palavras ou
grupos de palavras efetivamente empregados”, coincidindo com as propostas de
multiplicidade de Calvino (2000).
A poesia de Roseana apresenta-se como uma possibilidade aberta a todos os homens, “um
ir além de sim um romper os muros temporais para ser outro”, como afirma Octavio Paz.
Talvez possamos afirmar que o que a classifica como autora de literatura infantil e juvenil
seja o suporte, ou seja, o livro ilustrado, com determinado número de páginas e tamanho de
texto, e não a sua poética. Assim como textos destinados a adultos já foram transformados,
por meio da mudança de suporte, com um trabalho gráfico mais apurado, em livros destinos
a crianças e jovens. Temos como exemplos edições de Manoel Bandeira, como Berimbau,
além de contos de Machado de Assis, Edgar Alan Poe, Alphonsus Guimarães e Cecília
Meireles.
Para confrontar com a poética destinada a crianças e jovens de Roseana Murray,
escolhemos uma poesia destinada a adultos de Cecília Meireles, por tratar-se de uma poeta
consagrada do cânone literário brasileiro, que atinge sensibilidade do leitor por meio de
uma poética lírica rica em imagens e possível de múltiplas leituras.
O poema selecionado foi Canção Mínima, da obra Vaga Música.
No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro, uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
Entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de uma borboleta.
Numa espécie de lenga-lenga, lembrando cantigas do imaginário popular, o poema possui
um encadeamento sintático, com rimas de fácil assimilação.
No primeiro verso temos o Sem-Fim como caracterização do universo ou de outro elemento
que nos remeta ao infinito, ao interminável, ao além dos nossos olhos, causando mistério.
Dentro desse espaço, o eu-lírico, apresenta um elemento concreto, o planeta.
O poema continua com uma espécie de zoom, aproximando os elementos do externo para o
interno, do universo, fora, para um jardim, dentro (do planeta).
Cecília apresenta elementos concretos, um planeta, um jardim, um canteiro, uma violeta,
interrompidos por um elemento abstrato que dialoga com o concreto: no canteiro uma violeta, /
e, sobre ela, o dia inteiro.
Na terceira e última estrofe, composta de dois versos, assim como a primeira, a poeta
retoma um elemento concreto, o planeta, e a metonímia para universo, o Sem-Fim, e
acrescenta, entre eles, a asa de uma borboleta.
A repetição das palavras e o ritmo da poesia, características da parlenda, aproxima o texto
da oralidade e do universo infantil.
Para o leitor mais experiente, não em relação à faixa etária, mas em relação a experiências
literárias/vidas, é possível enxergar na asa de uma borboleta uma infinidade de sentidos
para compor, com a poeta, a obra. Para o leitor iniciante, a asa da borboleta pode ser apenas
um elemento referencial.
Maria José Palo, em Literatura Infantil: voz de criança (2007), nos diz que os projetos mais
arrojados de literatura infantil investem:
não escamoteando o literário, nem o facilitando, mas enfrentando sua qualidade artística e
oferecendo os melhores produtos possíveis ao repertório infantil, que tem a competência necessária
para traduzi-lo pelo desempenho de uma leitura múltipla e diversificada. Leitura que segue trilhas,
lança hipóteses, experimenta, duvida, num exercício contínuo de experimentação e descoberta. Como
a vida.
Oras, a qualidade estética que permite uma leitura múltipla e diversificada, não é
especificidade de uma literatura para criança, mas de qualquer obra literária. Ou seja,
quando tratamos de arte, que se desliga gradativamente de elementos de referencialidade,
previsibilidade, funcionalidade e identificação (Mendes, 1999), desaparecem os limites
entre a literatura destinada a adultos e crianças. O não direcionamento do leitor toma o
texto em sua condição ímpar de literatura. O que determinará as associações, os jogos
plurais de sentidos e imagens será o trabalho - ou texto, como propõe Barthes, que os
designa os textos num plural ilimitado, “que podem ser idefinidamente reescrito (isto é,
reinterpretados) pelo leitor” (2002), permite-nos aproximar a poesia de Cecília Meireles e
Roseana Murray partindo da sua escritura, e não do seu destinatário.
Referencias bibliográficas
BARTHES, Roland. O prazer do texto. trad. J. Guinsburg. 3.ed. São Paulo: Perspectiva,
2002.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. trad. Ivo Barroso. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. trad. Izidoro Blikstein e José Paulo
Paes. 9.ed. São Paulo: Cultrix, 1977.
MEIRELES, Cecília. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1991.
MENDES, Maria dos Prazeres (1999). Níveis de atuação crítico-criativa face ao texto
literário juvenil. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA INFANTIL E
JUVENIL, Salão Internacional do Livro de São Paulo, Câmara Brasileira do Livro.
Anais.
MURRAY, Roseana. Jardins. Il. Roger Mello. Rio de Janeiro: Manatti, 2001.
PALO, Maria José, OLIVEIRA, Maria Rosa Duarte (2007). Literatura infantil: voz de
criança. 4.ed. São Paulo: Ática.
POUND, Ezra (2006). ABC da literatura. 11.ed. São Paulo: Cultrix.
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