MISTÉRIOS IMANENTES ABREM CAMINHO PARA A
TRANSCENDÊNCIA – ANÁLISE DE O ESTUDANTE EMPÍRICO DE
CECÍLIA MEIRELES
Maria Edinara Leão Moreira e Paulo Becker.
São inúmeras e variadas experiências que passa o estudante a fim de conhecer os
mistérios imanentes do espaço onde habita. Por querer a mais profunda das conquistas humanas –
engendrar em si a alma, este estudante passa por infindáveis dificuldades, apartar-se dos seus,
perfazer um caminho difícil e solitário que vão, em síntese, conferir-lhe conhecimento e
sabedoria.
Nesse caminho, a primeira observação diz respeito aos domínios do imanente, vem a
consolidar a história de um sábio que se põe a rir do artifício de uma borboleta, um ser que já
domina o universo contracenando com um pequeno animal que tenta esconder-se do perigo,
manifestando a força dos seres simples num poema carregado de simbologia.
Mimetismo
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O sábio no jardim sorria
do artifício da borboleta
convertida em folha amarela
até com manchas e defeitos.
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O sábio sorria daquela
Mentira. Ó colorido embuste!
Ó fingimento desenhado
por cegos presságios e sustos!
9 Para salvar seu breve tempo,
10 - tempo de inseto! – dom dos vivos,
11 tinha a borboleta bordado
12 seu sigiloso mimetismo.
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(Atrás das máscaras, que morte
pode alcançar o oculto pólo
sensível, no pulsante abismo
onde a hora de existir se acolhe?)
17 Sendo e não sendo, perto e longe,
18 escondia-se, ignota e inquieta,
19 guardando, em paredes de medo,
20 a esperança da seiva eterna.
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O sábio no jardim sorria
do cauteloso fingimento,
de tênue silêncio expectante
sobre os universais segredos.
Este é um poema que sonda os mistérios da natureza. Escrito em terceira pessoa, trata
de um sábio que domina o conhecimento da natureza. Ao observar o truque da borboleta, de se
converter em folha amarela (v. 3), percebe que ela consegue ser tão perfeita no disfarce de até
imitar manchas e defeitos (v. 4). O sábio, diante disso, sorri, pois ninguém engana a um sábio, se
enganasse, ele na seria sábio. A natureza estava lhe pregando uma peça, havia uma mentira, um
embuste (v. 6), um fingimento. Só que, por detrás disso, havia o instinto de sobrevivência,
ditando “cegos presságios e sustos” (v. 8), a borboleta queria “salvar seu breve tempo”(v. 9) “–
tempo de inseto” (v. 10), ela gozava de seu dom, “o dom dos vivos”(v. 10) e, para garantir a
continuidade da vida é que a borboleta construía seu secreto mimetismo. Inquieta e mascarada,
ela tentava salvaguardar seu tempo, longe da morte, para ela, “o pulsante abismo/ onde a hora do
existir se acolhe” (v. 15-6).
Esse brinquedo da natureza produz beleza estética através da imagem criada. O
teórico PAZ (1996, 37) utiliza-se de uma terminologia própria para definir imagem: “toda forma
verbal, frase ou conjunto de frases, que o poeta diz e que unidas compõem um poema.” Em outra
passagem (id., 45) refere que: “As imagens do poeta tem sentido em diversos níveis. Em primeiro
lugar, possuem autenticidade; o poeta as viu ou ouviu, são a expressão genuína de sua visão e
experiência do mundo.”A borboleta, imagem vivenciada pelo eu-lírico da poeta, torna-se real no
poema. Depois de passar por tão difíceis processos para tornar-se borboleta, após deixar seu
tempo de lagarta, depois, seu tempo de crisálida, e da metamorfose, ganha o direito a uma vida
breve, precisa defender seu tempo, almeja prolongar seu período e nessa tentativa sacrifica até o
seu ser “sendo e não sendo” (v. 17).
Ao mesmo tempo que é borboleta para o sábio, é folha para os predadores, está perto
e longe, esconde-se do perigo, permanece ignota (v. 8), mas algo a inquieta, ela sabe que o preço
do prolongamento da vida é a semi-vida, é a quase imobilidade da folha e dela por sobre a folha,
um mínimo gesto, um impulso de vôo podem traí-la a qualquer instante. Há muitas diferenças
entre os reinos vegetal e animal, no animal já se acresce o instinto, o vegetal está completamente
a serviço da natureza. A borboleta, ainda que “em paredes de medo” (v. 19), guarda a
“experiência da seiva eterna” (v. 20), personifica-se dentro de si e do seu meio na plenitude do
instante que a encobre, antes de devolve-la á crueldade de seu tempo. O sábio que a observa
nesse frágil instante sorri do “cauteloso fingimento” (v. 22), desse “tênue silêncio” (v. 23) que se
interpõe “sobre os universais segredos” (v. 24). Segundo PAZ (Id., 43), o “Sábio prega a doutrina
sem palavras”. Ele já está além da palavra, consegue manifestar-se através do silêncio. Essa é
mais uma experiência vivida pelo estudante empírico, no plano da imanência.
O poema, no aspecto estrutural, é constituído de seis quartetos, em que o primeiro
verso da última estrofe reitera o início do poema. Não apresenta rima, assim como os demais, por
tratar-se de poema descritivo, é farto no uso de adjetivações. Há uma única e forte imagem visual
que perpassa todo o poema – o sábio observando a borboleta que se oculta entre folhas amarelas,
uma sabedoria intuitiva, a da borboleta, uma sabedoria conquistada, a do sábio. Os adjetivos
primeiro dão conta do sentido da visão, o primeiro sentido, através de sua luz, pode-se ver que as
folhas são “amarelas” (v. 3), e também aparecem outras imagens visuais: “colorido” embuste (v.
6) e fingimento “desenhado” (v. 7). Num segundo momento, recolhe-se o sentido da visão: os
presságios e sustos ao “cegos”, intuídos, medrosos, calados. No verso 9, o adjetivo “breve” dá a
noção da efemeridade do tempo, do quão ele é escorregadio e fugaz, nesse poema, contrapõe a
idéia da seiva “eterna”, apesar do breve tempo, há o desejo da seiva eterna. Esse aspecto corre
paralelo à tentativa de adiar o tempo da morte para um momento outro, para o momento seguinte,
qualquer momento que não seja o atual. No verso 12, o apontamento de um caracter – “sigiloso”
mimetismo, “oculto” pólo, “cauteloso” fingimento, borboleta “ignota” – o do encobrimento,
coisas veladas, escondidas à visão. Depois os adjetivos denotam uma apreensão sensível, como
ocorre em “tênue” silêncio “expectante”, borboleta “inquieta”, e termina com a idéia da
totalidade, ocorrida em “universais” segredos.
A essência deste poema pertence ao reino animal, as peripécias de um animal para
ocultar-se e, assim, prolongar seu tempo; o próximo, radica-se principalmente no reino vegetal.
No fruto quase amadurecido
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No fruto quase amadurecido
começa agora a circular gloriosa doçura;
luz dos dourados outonos.
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Que pode ele saber de sua própria, densa
estrutura secreta de sumo e gosto,
ele, só conclusão da flor?
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Mas os pássaros salteadores sabem-no e miram
de longe: orbe, coroa, biografia...
e caem sobre ele em setas.
O tema desse poema são os mistérios da natureza, que o fruto é tão somente a mera
“conclusão da flor” (v. 6), um dia cresce e recebe a doçura, presente do outono. Mas ele, o que
poderá saber, do que contém, de sua estrutura interna? O fruto participa de uma estrutura maior, a
árvore que o abriga, cuja seiva cumpre a função de alimentá-lo, mas ele está sempre a serviço de
seu reino, cumpre um destino certeiro, amadurece quando chega a estação certa, pode ser colhido,
pode apodrecer nos galhos, pode ser levado pelo vento, ele não tem consciência, mas há um
elemental da natureza regendo-o, como a uma orquestra, para que tudo venha a ser no tempo
certo.
A presença do reino animal vem no verso 7: “mas os pássaros salteadores sabem-no e
miram”, o instinto do pássaro fá-lo saber a época certa do fruto amadurecer. Então, o pássaro
cuida “orbe, coroa, biografia” durante um certo tempo, até que chega o esperado momento “E
caem sobre ele em setas” (v. 9). O adjetivo “gloriosa” referindo-se a doçura (v. 2), reforça-lhe o
sentido, personificando a doçura; “dourados” embeleza a estação outono, acrescentando novo
vigor a sua cor um tanto já esmaecida. As imagens são a do fruto e a do pássaro, e fecha com este
último caindo sobre ele em setas, certeiras setas, de quem não tem dúvida, indecisão em seu
gesto, apenas cumpre o seu papel, já predeterminado pela natureza.
O estudante deve observar as fases da natureza, segundo BACHELARD (1994, 79)
“a Natureza tem sempre necessidade de ser formada, ela procura formas precisamente por
intermédio da atividade humana.” Assim, há tempo de semear e colher, tempo de esperar e
avançar, faz-se necessário apreender a sabedoria de seus tempos, dos seus seres, dos elementos
que a habitam, fazendo dela sua casa, seu ecossistema – ekhós, do grego casa. Há na natureza, a
sabedoria do equilíbrio, existem leis que controlam tudo e, se não pela intervenção humana,
durante séculos e séculos, os seres da natureza continuariam cumprindo seus tempos e seus
destinos, exatamente da mesma forma, regidos pela lei cósmica.
Ao estudante só cabe incorporar essa nova experiência em sua caminhada, bem como
a seguinte, que diz respeito ao reino mineral:
Vista aérea
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São altitudes cinzentas,
são arestas farpadas,
são áridas crateras.
Isto é uma cidade morta,
uma estrutura de ossos apenas,
frios e amarelos.
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Um fio d’água inútil desce
como se estivesse parado.
(Oh! é uma vista de muito longe,
de uma desmedida distância!)
Um fio d’água desce. (Longo.)
Para nenhum lábio. (Fino.)
Para raiz nenhuma. (Interminável.)
Estritamente mineral caminho.
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Deve haver na profundidade,
para além destes sulcos,
destas escarpas, destas fissuras,
no fim deste abismo de pedra
um centro líquido, uma pupila espelhante,
por onde passem os nossos rostos, as
nuvens,
e nos desenhos do céu
a medida do mundo inalcançável.
O poema traz a imagem de alguém (o estudante?) sobrevoando uma região árida, pela
distância e altitude, parece estar o estudante, protagonista de todas as experiências, fora do corpo
físico, numa outra dimensão, para estudar, compreender outros mundos – é uma de suas primeiras
experiências transcendentais. E o que vê? Do alto, avista um planeta morto, como uma lua,
embora na haja esta referência explícita. Para ELIADE (1992, 123), “a morte não põe um termo
definitivo à vida: a morte não é mais do que uma outra modalidade da existência humana.” Um
planeta morto pode ser perfeitamente um planeta em transformação.
A primeira estrofe descreve a “terra”, dando-lhe o tom cinzento (v. 1), com “arestas
farpadas” (v. 2) e “áridas crateras” (v. 3). A constatação definitiva surge no verso 4: “Isto é uma
terra morta”. Uma terra morta, esotericamente falando, é um planeta que já abrigou todas as suas
idades: ouro, prata, chumbo e bronze, todo seu período de vida. A Idade do Ouro, segundo
ELIADE (1986, 23) é aquela em que “todas as cidades reais indianas, mesmo modernas, são
construídas pelo modelo mítico da cidade celeste”. Reviver a Idade do Ouro “torna actual um
reino perfeito”. Nesta terra morta, apenas é possível avistar um fio d’água que “inútil” desce. A
que plantas irá regar? De que seres irá matar a sede? ELIADE (1992, 109) assevera que “as
Águas existiam antes da Terra (conforme se exprime o Gênesis, ‘as trevas cobriam a superfície
do abismo, e o Espírito de Deus planava sobre as águas’)” O simbolismo da água também está
presente nos ritos iniciáticos, conforme ELIADE (Id. 161) [ao iniciado] “Aspergem-no com água:
a água é a semente viril...”A água é símbolo da vida antes da vida plasticamente sensível, é
símbolo da vida além da vida.
A distância que o estudante se encontra enxerga como se estivesse parado, o que logo
é explicitado no parênteses “(Oh! é uma vista de muito longe, / de um desmedida distância!)” (v.
9-10). Continua a falar do fio d’água no verso 11 é adjetivado como “longo”, num diferente
recurso estético, o adjetivo vem após o ponto, constituindo outra estrutura frásica e entre
parênteses, como um explicação complementar. E, como nenhum lábio irá bebê-lo, ele é fino, e
como raiz nenhuma irá sorvê-lo, ele é interminável, e resume: “Estritamente mineral caminho”
(v. 14). Ele só vai por um caminho mineral, sem vegetais, nem animais nem o elemento humano.
A visão é horrenda, difícil de ser olhada, tanto o é que na terceira estrofe, o estudante
arquiteta uma possibilidade – “deve haver”, ele, do que ele consegue ver (sulcos – v.16, escarpas,
fissuras – v. 17), “um abismo de pedra” (v. 18), “um centro líquido” (v. 19), a água, o elemento
de onde tudo emerge, a simbologia do nascimento, “uma pupila espelhante” (v. 19), a pupila que
reflete, que arquiva, seriam os arquivos akássicos da natureza, somente neste haveria a
comprovação de que alguém passou por ali. E nesta terra por onde passaram os nossos rostos,
apesar da idéia de morte espalhada por tudo, ainda haveria “desenhos do céu” (v. 22) – o mundo
inalcançável, ou seja, depois que um planeta abriga as sete grandes raças, cada uma nas suas
quatro idades, já não ode voltar à vida, torna-se para sempre um planeta morto. Esse é um
conhecimento que só a uma altura elevada do trabalho, o Estudante pode adquirir, pois ele já
precisa dominar o desdobramento do corpo, as saídas astrais para poder visitar, com o corpo
energético, esses lugares, ver com seus próprios olhos, incorporando mais esta experiência.
Do ponto de vista estrutural, o poema é composto de três estrofes: um sexteto, uma
oitava e uma nona, caracteriza-se por ser um poema descritivo, com presença do discurso
modalizante. Por ser descritivo, os adjetivos ganham força no poema, todo substantivo é
adjetivado; altitudes “cinzentas” (v. 1), arestas “farpadas”(v. 2), “áridas” crateras (v. 3), terra
“morta” (v. 4), ossos “frios e amarelos” (v. 5-6). Na segunda estrofe, este fio d’água “inútil” (v.
7), “longo/ fino/ interminável” (v. 11-3), “desmedida” distância (v. 10), mundo “inalcançável”
(v. 23), “mineral” caminho (v. 14), centro “líquido”, pupila “espelhante” (v. 19). Ter uma vista
aérea é olhar de cima, Herder (Apud BACHELARD, 1974, 423) refere que “O ar é um pomba
que, apoiada sobre seu ninho, aquece seus filhos”. E prossegue o estudante sem se identificar
com o objeto observado, sem manifestar dó, em caso de tristeza, nem fascínio, em caso de
alegria. Aqui a visão já foi educada, as imagens vistas são tanto de abandono, que o lugar foi
sintetizado como um “abismo de pedra” (v. 17). Por outro lado, a pedra representa um outro
estágio de cristalização, Nietzche1 diz: “Quão necessário é petrificar-se – tornar-se duro,
lentamente, lentamente como uma pedra preciosa – e finalmente permanecer ali tranqüilamente,
para a alegria da eternidade.”
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Rio de Janeiro: Edições 70, 1970.
BACHELARD, Gaston. A dialética da duração. São Paulo: Ática, 1994.
____________. O novo espírito científico. In: Os Pensadores - Vol. XXXVIII. São Paulo: Abril,
1974
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix,1990.
1
IN: Aurora, par. 541.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
____________. O mito do eterno retorno: arquétipos e repetições. São Paulo: Martins Fontes,
1969.
MEIRELES, Cecília. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguillar,1994.
REIS, Carlos. Técnicas de análise textual. 3 ed. Coimbra: Almedina, 1981.
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