Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
CURRÍCULO DE CIÊNCIAS E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: UMA RELAÇÃO
EM CONSTRUÇÃO
Fabiana Benvenuto (PPG em Ensino de Ciências, Ambiente e Sociedade – UERJ; SEEDUCRJ; SME-RJ;)
Ana Cléa Moreira Ayres (Faculdade de Formação de Professores; PPG em Ensino de
Ciências, Ambiente e Sociedade – UERJ)
Resumo
Para reparar os danos causados pelo processo de escravização da população negra no Brasil,
diversas políticas públicas foram implementadas ao longo dos anos. Com relação à educação,
destacamos a Lei N° 10.639/03, que determina a obrigatoriedade do ensino da História e
Cultura Afro-brasileira e coloca no centro do debate a base de construção curricular das
disciplinas escolares. Neste trabalho buscamos confrontar as Orientações Curriculares para a
disciplina Ciências da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro e as Diretrizes
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Defendemos que o reconhecimento
da Lei Nº 10.639/03 e do parecer CNE/CP 003/04 por parte das secretarias de ensino
configura uma ação importante para a promoção das relações étnico-raciais.
Palavras chaves: Currículo de Ciências; relações étnico-raciais; diferença; diversidade
cultural.
Introdução
A história predominante indica que em 1500 o território hoje denominado Brasil foi
invadido e dominado pelos europeus. Tal dominação consistiu no extermínio de milhares de
nativos, nomeados pelos invasores de índios, de diferentes nações. Os que não foram
exterminados foram escravizados, catequizados e abusados sexualmente. Situação muito
semelhante ocorreu com os negros trazidos do continente africano a fim de consolidar a
economia colonial, processo esse que se estendeu por longos anos. E foi assim que a tão
exaltada mestiçagem brasileira teve seu início, baseada na dominação e violência.
Cento e vinte e seis anos após o fim da escravidão, no Brasil, ainda não é possível
observar o reconhecimento da cultura negra como uma das bases estruturais do que hoje se
reconhece como sendo a cultura brasileira. A sociedade brasileira ainda é calcada num padrão
estético e educacional eurocentrado sem identificar e reconhecer a origem multicultural desse
país. Dessa forma, a comunidade negra vive, a partir de 1888, em condições de liberdade
formal, mas aprisionada às condições de vida propiciadas pela história. Hoje, os descendentes
desse povo ainda comungam das mazelas herdadas de um período histórico em que eram
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oficialmente apresentados como seres inferiores em relação à população branca. É importante
destacar que reconhecer a cultura negra não diz respeito apenas a sua identificação, posto que
reconhecer:
implica justiça e iguais direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem como a
valorização da diversidade daquilo que distingue os negros de outros grupos que
compõem a população brasileira [...] requer também que se conheça a sua história e
cultura apresentadas, explicadas, buscando-se explicitamente desconstruir o mito da
democracia racial na sociedade brasileira [...] requer adoção de políticas
educacionais a fim de superar a desigualdade étnico-racial presente na educação
escolar brasileira (BRASIL, 2004, p. 3).
Apesar da população negra brasileira ainda amargar o dissabor dessa herança,
inúmeros direitos sociais foram conquistados ao longo dos anos. Tais conquistas não se deram
sem organização, resistência e insistência do movimento negro e do povo negro como um
todo.
Nesse sentido, em 1951, foi criada a lei que proíbe a discriminação racial no país. No
entanto, em função da falta de uma punição rígida, a mesma se mostrou pouco eficiente. Para
superar tal falha legal, em 1989, foi sancionada a Lei Nº 7716/89, que define o racismo
enquanto crime inafiançável. É inegável a contribuição trazida por tal instrumento legal,
entretanto, o mesmo não se faz suficiente para a superação do racismo e discriminação racial
no Brasil.
Cabe destacar que aqui não utilizaremos o conceito biológico de raça, posto que este
se apresenta como superado pela ciência (VERRANGIA e SILVA, 2010). Utilizaremos o
conceito social do termo se referindo à construção social que envolve características físicas e
culturais (GUIMARÃES, 2003 apud VERRANGIA e SILVA, 2010). Concordamos, então,
com Gomes (2003, p. 78), que afirma que “raça é um conceito relevante para pensar os
lugares ocupados e a situação dos negros e brancos em nossa sociedade [...] ao não
politizarmos a “raça” e a cultura negra caímos fatalmente nas malhas do racismo e no mito da
democracia racial”.
É curioso constatar o quão presente e enraizado é o mito da democracia racial na
sociedade brasileira. Ainda que diversos dados estatísticos sejam apresentados, demonstrando
a imensa desigualdade dos padrões de vida entre negros e brancos, o mesmo segue como
adjetivo chave do país.
Quando comparados os níveis de escolaridade de negros e brancos encontramos uma
taxa de analfabetismo de 16,7% e 17,3% das pessoas de cor negra/preta e parda
respectivamente, em contraponto a 7,5% das pessoas brancas. A população de 10 anos ou
mais de cor negra/preta e parda possui em média 5,5 e 5,2 anos de escolaridade, enquanto que
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a população de cor branca apresenta em média 7,1 anos (IBGE, 2003 apud SILVA e
COELHO, 2013). Dados como esses deixam explícitos a penalização sofrida pelos negros
“por meio da exclusão do sistema formal de ensino como também nas outras esferas da vida
social” (SILVA e COELHO, 2013, p. 130).
Vivemos em um sistema sócioeconômico que tem por base de edificação e sustentação
a exaltação das diferenças para a construção de desigualdades. A diferença foi construída não
a partir da valoração da individualidade num universo diversificado. Na maioria dos casos a
diferença é “a manifestação do poder ou de chegar a ser, de ter possibilidades de ser e de
participar dos bens econômicos e sociais” (SACRISTÁN, 2002, p. 14). Para validar a ideia de
que alguns tenham e outros não é necessário que se construa e se consolide no imaginário da
sociedade justificativas sociais que legitimem as desigualdades em função de tais diferenças.
Admitir a existência de diferenças e que essas nos remetem a diversos estereótipos é
fundamental para nos aprofundarmos e entendermos a grave situação racial do Brasil. Não
reconhecer a construção histórica da imagem que temos do outro não faz avançar o debate da
superação do racismo, pois:
quando estamos face a face com outra pessoa, é inegável que seu fenótipo, cor da
pele, penteado e forma de vestir-se desencadeiam, de nossa parte, julgamentos sobre
quem é, o que faz e até o que pensa tal pessoa. Dessa forma, informados por
estereótipos, se não estivermos atentos, podemos manifestar, por palavras e gestos,
discriminação, desrespeito, desqualificação. Estes julgamentos decorrem de
preconceitos. Pessoas negras têm sido vítimas deles. Não poucas vezes se ouve que
pessoas “desta raça”, os negros, são feios, sujos, violentos ou preguiçosos. [...] No
Brasil, tensas relações étnico-raciais são vividas, principalmente, entre negros e
brancos (VERRANGIA e SILVA, 2010, p. 709).
A instituição escolar irá se apresentar como fundamental para construção de uma
sociedade onde a diferença seja ponte para a interculturalidade. Sendo assim, pode contribuir
para o processo de ressignificação da imagem negra de modo a construir representações
positivas sobre o negro, sua história, sua cultura, sua corporeidade e sua estética (GOMES,
2003).
Estamos de acordo com o pensamento de que não compete somente à escola dar conta
da superação do racismo na sociedade. No entanto, concordamos com Verrangia e Silva
(2010) quando afirmam que a escola, em função da sua diversidade, é um espaço privilegiado
para a promoção das relações étnico-raciais. Mais ainda, a mesma se coloca em posição de
destaque para a eliminação das desigualdades e para promover a emancipação dos grupos
historicamente discriminados (SILVA e COELHO, 2013). Nesse sentido, dedicar atenção
especial à escola é primordial por ser nesse espaço que
se desenvolve o processo de transmissão da cultura socialmente produzida e
acumulada, inclusive aquela considerada obrigatória para a população infanto-
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juvenil. Sendo tanto esta obrigatoriedade quanto as próprias condições de acesso e
permanência na escola propiciadas, direta ou indiretamente, pelo Estado. (CUNHA,
2009, p. 13).
Com base em tais reflexões precisamos descortinar os condicionantes da existência de
currículos e práticas docentes que não contemplem a diversidade cultural presente nas escolas,
em especial, a diversidade étnico-racial.
A escola pública teve seu público alterado em função de diversos processos de
ampliação de acesso e permanência na mesma. No entanto, a diversidade decorrente desses
processos ainda não é reconhecida e incorporada nas práticas docentes da grande maioria das
escolas (MULLER, 2013). É preciso se aprofundar no debate da construção de currículos que
garantam tanto a representatividade do público escolar, quanto os quesitos legais para se
alcançar uma educação que forme para cidadania. Cabe assim problematizar o papel do
ensino de Ciências e Biologia para a formação cidadã plena do indivíduo já que hoje a
legislação educacional brasileira reconhece a importância de se trabalhar as relações étnicoraciais nos processos educativos com a finalidade de formação para a cidadania
(VERRANGIA e SILVA, 2010).
Neste trabalho nos ocupamos de examinar as Orientações Curriculares de Ciências da
Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME-RJ) cotejando-as com as
Diretrizes Nacionais de Educação para as Relações Étnico-Raciais (DCNER). Assim,
pretendemos verificar se os princípios presentes nestas Diretrizes foram de alguma forma
incorporados pela política curricular municipal para o ensino de Ciências e, desta forma,
fornecem subsídios que contribuam na elaboração de ações que promovam a educação das
relações étnico-raciais no âmbito desta disciplina.
Este estudo corresponde a uma das primeiras etapas de uma dissertação de mestrado
que se dedica a investigar a produção curricular de professores de Ciências que se propõem a
educar para as relações étnico-raciais. Neste momento, realizamos uma primeira aproximação
no nível das políticas curriculares, através da análise dos dois documentos acima
mencionados. A seguir, faremos uma breve discussão sobre currículo e diversidade cultual e
sobre as implicações curriculares da Lei 10.639/03, seguida das reflexões construídas a partir
do que encontramos no documeento da SME-RJ e das preocupações advindas de tais
resultados.
Currículo e diversidade cultural: alguns apontamentos
A igualdade é um dos princípios centrais no ideario da modernidade, desconsiderando
qualquer diversidade em nome de uma unidade pretendida (CANDAU, 2009). Esse princípio
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da modernidade defendia a ideia de “existir um conjunto cristalino de considerações de que
todos os membros partilham, podendo ser reivindicadas como verdadeiras e genuínas”
(GABRIEL, 2005 apud NUNES, 2011, p. 118).
É plausível compreender a dificuldade apresentada pela instituição escolar de pensar
currículos que reconheçam a diversidade cultural existente no seu interior por esta ser uma
instituição que historicamente embasa suas concepções curriculares numa perspectiva
monocultural e homogeneizadora (NUNES, 2011). Esta perspectiva ainda tem grande força
nos dias atuais e, por isso, se faz urgente “romper com esta visão e construir práticas
educativas em que a questão da diferença e do multiculturalismo se façam cada vez mais
presentes” (CANDAU, 2008 apud NUNES, 2011, p. 120).
Dessa maneira, o momento atual vivido pela educação pública no país prima por
reflexões em torno daquilo que é ensinado e a forma como os conteúdos são apresentados nas
escolas. Vivemos em uma sociedade marcada pela pluralidade e esta, por vezes, é renegada e
submetida a cultura branca hegemônica. É preciso criar ações para reverter esse quadro e
construir currículos que não só reconheçam a existência de outras culturas, que não a
hegemônica, mas que parta dessas diferenças para a construção dos mesmos (WALSH, 2005,
apud CANDAU, 2009).
Através dos debates e pesquisas oriundas do campo do currículo admitimos que este se
constitui fruto de inúmeras disputas e embates carregando em si a marca ideológica de
determinado grupo e contexto histórico social (APPLE, 1982). Santomé (1995 apud GOMES,
2012), reflete sobre a relação entre currículo e culturas negadas e silenciadas problematizando
o lugar ocupado pelas questões étnico-raciais nos currículos. Para o autor:
Quando se analisam de maneira atenta os conteúdos que são desenvolvidos de forma
explícita na maioria das instituições escolares e aquilo que é enfatizado nas
propostas curriculares, chama fortemente a atenção à arrasadora presença das
culturas que podemos chamar de hegemônicas. As culturas ou vozes dos grupos
sociais minoritários e/ou marginalizados que não dispõem de estruturas importantes
de poder continuam ser silenciadas, quando não estereotipadas e deformadas, para
anular suas possibilidades de reação (Santomé, 1995, apud Gomes, 2012, p. 104).
Partindo desse pensamento cabe indagar como se dá o reconhecimento da diversidade
cultural trazida pelo novo público que ocupa de forma mais permanente o espaço escolar e se
essa diversidade é referendada em suas práticas curriculares. Para Forquin (1993) parte da
cultura social é selecionada para ser transmitida na escola e esta não se faz de forma neutra e
imparcial, sendo preciso destacar a face do currículo enquanto veículo de conhecimento,
poder e cultura (SILVA e COELHO, 2011) e definir a quem desejamos ou não empoderar.
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A Lei 10.639/2003: implicações para o currículo
Ao longo dos últimos anos inúmeras políticas públicas foram implementadas na
tentativa de reconhecimento dessas novas identidades que passaram a ocupar o cenário da
escola básica brasileira e a fim de estabelecer uma contra-hegemonia cultural. Nesse sentido,
podemos citar a Lei Nº 10.639/2003 que determina a obrigatoriedade da inclusão no currículo
dos estabelecimentos de ensino das escolas básicas oficiais, públicas e particulares, a temática
da História e Cultura Afro-Brasileira. Esta lei reconhece a importância da apropriação desse
conteúdo para a construção da cidadania de todos os brasileiros, uma vez que o Brasil se
afirma enquanto um país fruto da miscigenação.
No entanto, passados onze anos que esta lei foi sancionada, pouco mudou nos
currículos das diferentes disciplinas oferecidas nos diversos estabelecimentos de ensino.
Reconhecemos que a escola é uma instituição que comumente oferece resistência às
mudanças em função de suas tradições e hierarquias (FORQUIN, 1992). No entanto, não
podemos também desconsiderar o fato “da educação escolar brasileira ser herdeira direta do
sistema discriminatório da sociedade escravista sob dominação imperial onde mesmo com o
fim da escravidão, as marcas do escravismo ainda persistem na escola atual” (CUNHA, 2009,
p. 31), o que contribui para colocar a temática das relações étnico-raciais em um patamar
inferior nas disputas presentes na elaboração do currículo.
Gomes (2012) defende que a Lei Nº 10.639/03, ao alterar a lei maior da educação (Lei
Nº 9.394/1996 - LDB), não indica uma adição de conteúdos no currículo escolar e sim uma
alteração epistemológica na construção deste. Apenas dessa forma avançaremos na ideia
trazida pela constituição federal, de que vivemos em um país construído por várias culturas, e
reconheceremos de fato as diversas contribuições trazidas pelos negros africanos à
estruturação desse país (SILVA e COELHO, 2013).
Essa lei determina a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira
em três disciplinas escolares em especial: educação artística, literatura e história brasileira.
Isto, no entanto, não anula o debate que deve ser travado no âmbito de todas as disciplinas
escolares, sobretudo aquelas como Ciências e Biologia, que ao longo de sua trajetória
contribuíram e ainda contribuem de forma direta para o fortalecimento de uma hegemonia
cultural branca, já que seus conteúdos são orientados pelas contribuições científicas oriundas
de poucos segmentos da população mundial, majoritariamente européia, deixando de expor as
contribuições que tiveram origem no continente africano. Além disso, não se pode negar o
papel da ciência, em especial da biologia, no fortalecimento de concepções racistas,
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conhecidas como “racismo científico”, cuja discussão precisa ser incluída nestas disciplinas
escolares (VERRANGIA e SILVA, 2010).
Orientação Curricular de Ciências da rede municipal do Rio de Janeiro e as DCNER:
buscando aproximações
Para orientar a aplicação da Lei Nº 10.639/03, em 2004 o Conselho Nacional de
Educação aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para uma Educação das Relações
Étnico-Raciais (BRASIL, 2004).
As DCNER buscam orientar para a construção de currículos que contemplem a
educação para as relações étnico-raciais. Assim como o explicitado pelo documento, diretrizes
são “dimensões normativas, reguladoras de caminhos, embora não fechadas a que
historicamente possam, a partir das determinações iniciais, tomar novos rumos” (BRASIL,
2004, p. 16), destinando-se aos administradores e mantenedores de estabelecimentos de
ensino.
Este documento deixa explícito que a questão central é a de reformulação de
currículos para a superação do racismo e que tal superação só irá ser alcançada a partir e por
intermédio de uma educação das relações étnico-raciais onde brancos e negros reconstruam
seus valores, suas posturas e seu olhar sobre o outro. Segundo as formulações trazidas pelas
diretrizes a busca é para além da identificação das contribuições trazidas pelos negros para a
edificação do Brasil, mas, o reconhecimento dessa cultura para que assim as atuais e futuras
gerações possam criar um novo campo imagético de si. Nesse sentido, as diretrizes e a lei em
questão assim como dito anteriormente, orientam não para adição de conteúdos e sim para
uma “mudança nos discursos, raciocínios, lógicas, história e cultura apresentadas,
explicitadas, buscando-se especificamente desconstruir o mito da democracia racial na
sociedade brasileira” (BRASIL, 2004, p. 3). As DCNER dirigem-se ao conjunto das ações
pedagógicas realizadas nas escolas, uma vez que, educar para as relações étnico-raciais exige
uma mudança estrutural do currículo e de construção do pensamento de todo o conjunto das
disciplinas escolares.
Dez anos após a publicação da Lei Nº 10.639/03 e nove das DCNER a SME-RJ
publica a edição revisada das Orientações Curriculares para o Ensino Fundamental de todas as
áreas do conhecimento.
Estas Orientações Curriculares refere-se a todos os bimestres do 4º ao 9º ano do ensino
fundamental. Aqui trataremos especificamente do 6º ao 9º ano e da disciplina Ciências (RIO
DE JANEIRO, 2013). Considerando estes anos, o documento possui 42 páginas, sem texto
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introdutório, restringindo-se à apresentar uma listagem de objetivos, conteúdos, habilidades e
sugestões de atividades a ser seguida pelos professores.
Com relação à organização dos conteúdos e aos objetivos a serem alcançados, o
documento não se diferencia da forma tradicional e amplamente conhecida de se organizar os
currículos de Ciências, tal como aparece na grande maioria dos livros didáticos. Para cada
item que constitui os conteúdos do documento se encontra uma ou mais sugestões de forma
de trabalho. Tais sugestões giram em torno de indicação de vídeos, sites e revistas; realização
de experimentos; produção de textos; jogos; interpretação de imagens, dentre outros.
Considerando os objetivos de ensino e suas sugestões do 6º ao 9º ano, o documento
apresenta 83 objetivos e 176 sugestões de atividaes. Foi possível detectar ao longo desses um
único objetivo, associado a uma única sugestão que menciona a expressão “étnico-racial” e o
uso da Lei Nº 11.645/08, que além de orientar sobre o ensino da temática da história e cultura
afro-brasileira inclui o ensino da cultura indígena. Em nenhum outro item do conteúdo
aparece qualquer termo que nos remeta a esta questão.
A expressão aparece nos objetivos do 4º bimestre do 8º ano referente ao conteúdo
“pele”. Assim, o documento apresenta como objetivo neste tema: “reconhecer a pele humana
como um sistema multifuncional de fator étnico-racial” e traz como sugestão para o alcance
do mesmo a realização de “discussão a respeito dos trechos da Lei 11.645 de 10/08/2008 que
orienta sobre a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”,
conforme indicamos na Figura 1:
Fig. 1: Trecho das Orientações Curriculares para o Ensino de Ciências
ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA O ENSINO DE CIÊNCIAS – 8º ANO
Objetivos
Conteúdos
Reconhecer a pele
humana como sistema
multifuncional
(estrutural, de excreção,
de proteção
e de regulação) de fator
A pele é um
órgão que
estabelece a
relação do
corpo com o
meio ambiente
étnico cultural.
1° 2º 3º 4º
x
Sugestões
Discussão a respeito da concentração
do pigmento melanina na pele, como
fator de proteção.
Discussão a respeito dos trechos da Lei
11.645 de 10/08/2008 que orienta sobre
a obrigatoriedade da temática História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena.
Elaboração de uma cartilha sobre a
prevenção do câncer de pele, a partir de
material de divulgação
publicado pelo INCA.
Fonte: SME-RJ, 2013.
Esse fato instiga algumas reflexões sobre as razões de um documento oficial de
orientação curricular publicado dez anos após o sancionamento de uma lei que define a
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obrigatoriedade da temática da história e cultura afro-brasileira no currículo mencionar uma
única vez a expressão “relações étnico-raciais”. É importante questionar também o quanto o
silenciamento dessa temática implica em sua não incorporação no cotidiano das práticas de
ensino da disciplina Ciências.
Cabe esclarecer que a Lei N°11.645/08 passou a ser utilizada em substituição da Lei
Nº 10.639/03, incluindo, além da temática afro-brasileira, a cultura indígena. No entanto, em
função da imensa trajetória de lutas travadas pelo movimento negro organizado para a
resolução da Lei Nº 10.639/03, esta continua sendo a lei de referência para o ensino da
história e cultura afro-brasileira, na maioria das vezes, por simbolizar em si todo o processo
de disputa até a sua publicação.
Alterar o paradigma cultural racista em que vivemos não é uma tarefa fácil bem como
não é tarefa apenas da educação, como já apontamos. Por esta razão a Lei Nº 10.639/03 e o
Parecer CNE/CP 003/04 primam por políticas públicas de currículo que materializem o
discurso da lei em práticas de ensino concretas para que dessa forma seja garantido o direito a
formação plena da cidadania de todos os indivíduos do território brasileiro. Nesse sentido,
cabe destacar alguns encaminhamentos das DCNER que foram desconsiderados nas
Orientações Curriculares de Ciências elaborada pela SME-RJ.
O texto das DCNER, ainda que apóie ações educacionais individuais de combate ao
racismo, deixa claro que para que se consiga alterar a mentalidade racista, centrada no padrão
cultural europeu, não é possível e aceitável trabalhar de forma improvisada - é necessário
ações políticas governamentais que contribuam para a desalienação dos processos
pedagógicos. Para superar as ações individuais as DCNER dirigem-se ao conjunto dos
profissionais de ensino, entretanto, resvalando a função dos diferentes setores educacionais.
Assim, o documento atribui aos administradores e mantenedores de instituições de ensino
algumas funções que deverão ser realizadas por estes para que o objetivo da lei seja
alcançado. Com isso expõe que,
Caberá, aos administradores dos sistemas de ensino e das mantenedoras prover as
escolas, seus professores e alunos de material bibliográfico e de outros materiais
didáticos, além de acompanhar os trabalhos desenvolvidos, a fim de evitar que
questões tão complexas, muito pouco tratadas, tanto na formação inicial como
continuada de professores, sejam abordadas de maneira resumida, incompleta, com
erro (BRASIL, 2004, p. 9).
Mais adiante, as DCNER apontam as responsabilidades dos sistemas de ensino e
estabelecimentos que devem garantir, entre outros, “apoio sistemático aos professores para a
elaboração de planos, projetos, seleção de conteúdos e métodos de ensino, cujo foco seja
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e a Educação das Relações Étnico-Raciais”
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(BRASIL, 2004, p. 13). Podemos considerar, então, que ao elaborar um documento de
orientação curricular e neste mencionar apenas uma vez esta temática a SME-RJ deixa de
cumprir seu papel perante o que preconiza esta legislação.
Cabe destacar que as DCNER, ao determinar as formas de inclusão do ensino sobre
História e Cultura Africana no currículo, apontam para algumas temáticas que facilmente se
articulam com os conteúdos abordados na disciplina Ciências, como, por exemplo, “as
contribuições do Egito para a ciência [...]; as tecnologias de agricultura, de beneficiamento de
cultivos, de mineração e de edificações trazidas pelos escravizados, bem como a produção
científica [...] na atualidade” (BRASIL, 2004, p. 12). Ignorando tais temas, as Orientações
Curriculares da SME-RJ, estranhamente, sugere a discussão de trechos da Lei 11645/2008
como uma atividade a ser desenvolvida com os estudantes do oitavo ano do ensino
fundamental.
As pesquisas apontam que o conteúdo da disciplina escolar Biologia traz em si uma
busca histórica de aproximação com a área acadêmica das Ciências Biológicas
(MARANDINO et al., 2009). Essa busca é menos nítida na disciplina escolar Ciências, que
além do seu caráter de “iniciação” aos estudos científicos, não encontra correspondência
direta na academia, devido envolver diferentes áreas do conhecimento. Entretanto, ambas
mantém-se dando ênfase à formação científica desatreladas dos contextos sociais nos quais se
encontram os diferentes alunos das inúmeras realidades brasileiras.
Deixar de expor no escopo dos currículos dessas disciplinas questões étnico-raciais
significa, em parte, o não reconhecimento das condições objetivas de vida dos alunos, bem
como o contexto histórico o qual os mesmos estão inseridos.
Apesar de se constituir em tema ainda pouco explorado no campo de Educação em
Ciências, é possível encontrar na literatura específica algumas contribuições para o
enfrentamento desta questão no ensino das disciplinas do campo. No trabalho de Verrangia e
Silva (2010), por exemplo, é possível encontrar diferentes aspectos e relações que podem ser
feitas entre os conhecimentos e a evolução da ciência e as relações étnico-raciais a fim de
incorporar no conteúdo da disciplina Ciências a valorização de cientistas, descobertas e
inovações com origem diferente da europeia. Espera-se que os elaboradores de propostas
curriculares nas diferentes redes sejam capazes de incorporar tais temas nos documentos que
elaboram, apontando, desta forma, alguns caminhos a serem seguidos pelos professores em
suas práticas cotidianas.
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Considerações Finais
O parecer CNE/CP 003/2004 apresenta importantes encaminhamentos para auxiliar na
construção de currículos das diferentes disciplinas escolares para que contemplem a educação
das relações étnico-raciais.
Ter reconhecida a Lei Nº 10.639/03 e o parecer CNE/CP 003/2004 por parte das
secretarias de educação potencializa a discussão sobre a temática em questão, subsidia e
viabiliza a construção de currículos que, no lugar de ações individuais, sirva de base para
estruturação de diferentes propostas de políticas curriculares.
É preciso que não só as disciplinas citadas no corpo da Lei Nº 10.639/03 (Educação
Artística, Literatura e História), assumam o compromisso de rever sua base epistemológica de
construção de currículo, pois esse fato não exime as demais disciplinas do compromisso
social de reverter o paradigma cultural eurocentrado vigente. Somente assim superaremos a
falsa ideia de democracia racial no país e enfim teremos uma sociedade de fato democrática,
de modo que a luta pelo reconhecimento e garantia às diferenças não diga respeito apenas aos
negros, mas ao conjunto da sociedade.
Contudo, tais mudanças estruturais não se darão naturalmente e nem excluída de
conflitos de diferentes ordens. Ao contrário, a superação do paradigma epistemológico atual
para
a
construção
de
currículos
requererá
inúmeras
disputas,
reivindicações
e
desenvolvimentos de políticas públicas para esse fim. A menção, ainda que de forma tortuosa,
da legislação referente ao tema no documento curricular de Ciências da SME-RJ nos dá uma
ideia desta disputa. Também nos faz supor que o tema foi lembrado por algum dos
formuladores do documento, porém, por motivos que cabem ser melhor investigados, acabou
por aparecer de uma forma que pouco contribui para o enfrentamente da questão na prática
dos professores.
Referências
APPLE, M. Ideologia e currículo. São Paulo: Brasiliense, 1982.
BRASIL, Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciaia e para o ensino de História e Cultura Afri-brasileira e Africana. Brasília: junho, 2005.
BRASIL. Lei N° 10.639, de 09 de Janeiro de 2003. Estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura
Afro-Barsileira.
Brasília,
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1910
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
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