Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 CURRÍCULO DE CIÊNCIAS E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: UMA RELAÇÃO EM CONSTRUÇÃO Fabiana Benvenuto (PPG em Ensino de Ciências, Ambiente e Sociedade – UERJ; SEEDUCRJ; SME-RJ;) Ana Cléa Moreira Ayres (Faculdade de Formação de Professores; PPG em Ensino de Ciências, Ambiente e Sociedade – UERJ) Resumo Para reparar os danos causados pelo processo de escravização da população negra no Brasil, diversas políticas públicas foram implementadas ao longo dos anos. Com relação à educação, destacamos a Lei N° 10.639/03, que determina a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e coloca no centro do debate a base de construção curricular das disciplinas escolares. Neste trabalho buscamos confrontar as Orientações Curriculares para a disciplina Ciências da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro e as Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Defendemos que o reconhecimento da Lei Nº 10.639/03 e do parecer CNE/CP 003/04 por parte das secretarias de ensino configura uma ação importante para a promoção das relações étnico-raciais. Palavras chaves: Currículo de Ciências; relações étnico-raciais; diferença; diversidade cultural. Introdução A história predominante indica que em 1500 o território hoje denominado Brasil foi invadido e dominado pelos europeus. Tal dominação consistiu no extermínio de milhares de nativos, nomeados pelos invasores de índios, de diferentes nações. Os que não foram exterminados foram escravizados, catequizados e abusados sexualmente. Situação muito semelhante ocorreu com os negros trazidos do continente africano a fim de consolidar a economia colonial, processo esse que se estendeu por longos anos. E foi assim que a tão exaltada mestiçagem brasileira teve seu início, baseada na dominação e violência. Cento e vinte e seis anos após o fim da escravidão, no Brasil, ainda não é possível observar o reconhecimento da cultura negra como uma das bases estruturais do que hoje se reconhece como sendo a cultura brasileira. A sociedade brasileira ainda é calcada num padrão estético e educacional eurocentrado sem identificar e reconhecer a origem multicultural desse país. Dessa forma, a comunidade negra vive, a partir de 1888, em condições de liberdade formal, mas aprisionada às condições de vida propiciadas pela história. Hoje, os descendentes desse povo ainda comungam das mazelas herdadas de um período histórico em que eram 1899 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 oficialmente apresentados como seres inferiores em relação à população branca. É importante destacar que reconhecer a cultura negra não diz respeito apenas a sua identificação, posto que reconhecer: implica justiça e iguais direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem como a valorização da diversidade daquilo que distingue os negros de outros grupos que compõem a população brasileira [...] requer também que se conheça a sua história e cultura apresentadas, explicadas, buscando-se explicitamente desconstruir o mito da democracia racial na sociedade brasileira [...] requer adoção de políticas educacionais a fim de superar a desigualdade étnico-racial presente na educação escolar brasileira (BRASIL, 2004, p. 3). Apesar da população negra brasileira ainda amargar o dissabor dessa herança, inúmeros direitos sociais foram conquistados ao longo dos anos. Tais conquistas não se deram sem organização, resistência e insistência do movimento negro e do povo negro como um todo. Nesse sentido, em 1951, foi criada a lei que proíbe a discriminação racial no país. No entanto, em função da falta de uma punição rígida, a mesma se mostrou pouco eficiente. Para superar tal falha legal, em 1989, foi sancionada a Lei Nº 7716/89, que define o racismo enquanto crime inafiançável. É inegável a contribuição trazida por tal instrumento legal, entretanto, o mesmo não se faz suficiente para a superação do racismo e discriminação racial no Brasil. Cabe destacar que aqui não utilizaremos o conceito biológico de raça, posto que este se apresenta como superado pela ciência (VERRANGIA e SILVA, 2010). Utilizaremos o conceito social do termo se referindo à construção social que envolve características físicas e culturais (GUIMARÃES, 2003 apud VERRANGIA e SILVA, 2010). Concordamos, então, com Gomes (2003, p. 78), que afirma que “raça é um conceito relevante para pensar os lugares ocupados e a situação dos negros e brancos em nossa sociedade [...] ao não politizarmos a “raça” e a cultura negra caímos fatalmente nas malhas do racismo e no mito da democracia racial”. É curioso constatar o quão presente e enraizado é o mito da democracia racial na sociedade brasileira. Ainda que diversos dados estatísticos sejam apresentados, demonstrando a imensa desigualdade dos padrões de vida entre negros e brancos, o mesmo segue como adjetivo chave do país. Quando comparados os níveis de escolaridade de negros e brancos encontramos uma taxa de analfabetismo de 16,7% e 17,3% das pessoas de cor negra/preta e parda respectivamente, em contraponto a 7,5% das pessoas brancas. A população de 10 anos ou mais de cor negra/preta e parda possui em média 5,5 e 5,2 anos de escolaridade, enquanto que 1900 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 a população de cor branca apresenta em média 7,1 anos (IBGE, 2003 apud SILVA e COELHO, 2013). Dados como esses deixam explícitos a penalização sofrida pelos negros “por meio da exclusão do sistema formal de ensino como também nas outras esferas da vida social” (SILVA e COELHO, 2013, p. 130). Vivemos em um sistema sócioeconômico que tem por base de edificação e sustentação a exaltação das diferenças para a construção de desigualdades. A diferença foi construída não a partir da valoração da individualidade num universo diversificado. Na maioria dos casos a diferença é “a manifestação do poder ou de chegar a ser, de ter possibilidades de ser e de participar dos bens econômicos e sociais” (SACRISTÁN, 2002, p. 14). Para validar a ideia de que alguns tenham e outros não é necessário que se construa e se consolide no imaginário da sociedade justificativas sociais que legitimem as desigualdades em função de tais diferenças. Admitir a existência de diferenças e que essas nos remetem a diversos estereótipos é fundamental para nos aprofundarmos e entendermos a grave situação racial do Brasil. Não reconhecer a construção histórica da imagem que temos do outro não faz avançar o debate da superação do racismo, pois: quando estamos face a face com outra pessoa, é inegável que seu fenótipo, cor da pele, penteado e forma de vestir-se desencadeiam, de nossa parte, julgamentos sobre quem é, o que faz e até o que pensa tal pessoa. Dessa forma, informados por estereótipos, se não estivermos atentos, podemos manifestar, por palavras e gestos, discriminação, desrespeito, desqualificação. Estes julgamentos decorrem de preconceitos. Pessoas negras têm sido vítimas deles. Não poucas vezes se ouve que pessoas “desta raça”, os negros, são feios, sujos, violentos ou preguiçosos. [...] No Brasil, tensas relações étnico-raciais são vividas, principalmente, entre negros e brancos (VERRANGIA e SILVA, 2010, p. 709). A instituição escolar irá se apresentar como fundamental para construção de uma sociedade onde a diferença seja ponte para a interculturalidade. Sendo assim, pode contribuir para o processo de ressignificação da imagem negra de modo a construir representações positivas sobre o negro, sua história, sua cultura, sua corporeidade e sua estética (GOMES, 2003). Estamos de acordo com o pensamento de que não compete somente à escola dar conta da superação do racismo na sociedade. No entanto, concordamos com Verrangia e Silva (2010) quando afirmam que a escola, em função da sua diversidade, é um espaço privilegiado para a promoção das relações étnico-raciais. Mais ainda, a mesma se coloca em posição de destaque para a eliminação das desigualdades e para promover a emancipação dos grupos historicamente discriminados (SILVA e COELHO, 2013). Nesse sentido, dedicar atenção especial à escola é primordial por ser nesse espaço que se desenvolve o processo de transmissão da cultura socialmente produzida e acumulada, inclusive aquela considerada obrigatória para a população infanto- 1901 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 juvenil. Sendo tanto esta obrigatoriedade quanto as próprias condições de acesso e permanência na escola propiciadas, direta ou indiretamente, pelo Estado. (CUNHA, 2009, p. 13). Com base em tais reflexões precisamos descortinar os condicionantes da existência de currículos e práticas docentes que não contemplem a diversidade cultural presente nas escolas, em especial, a diversidade étnico-racial. A escola pública teve seu público alterado em função de diversos processos de ampliação de acesso e permanência na mesma. No entanto, a diversidade decorrente desses processos ainda não é reconhecida e incorporada nas práticas docentes da grande maioria das escolas (MULLER, 2013). É preciso se aprofundar no debate da construção de currículos que garantam tanto a representatividade do público escolar, quanto os quesitos legais para se alcançar uma educação que forme para cidadania. Cabe assim problematizar o papel do ensino de Ciências e Biologia para a formação cidadã plena do indivíduo já que hoje a legislação educacional brasileira reconhece a importância de se trabalhar as relações étnicoraciais nos processos educativos com a finalidade de formação para a cidadania (VERRANGIA e SILVA, 2010). Neste trabalho nos ocupamos de examinar as Orientações Curriculares de Ciências da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME-RJ) cotejando-as com as Diretrizes Nacionais de Educação para as Relações Étnico-Raciais (DCNER). Assim, pretendemos verificar se os princípios presentes nestas Diretrizes foram de alguma forma incorporados pela política curricular municipal para o ensino de Ciências e, desta forma, fornecem subsídios que contribuam na elaboração de ações que promovam a educação das relações étnico-raciais no âmbito desta disciplina. Este estudo corresponde a uma das primeiras etapas de uma dissertação de mestrado que se dedica a investigar a produção curricular de professores de Ciências que se propõem a educar para as relações étnico-raciais. Neste momento, realizamos uma primeira aproximação no nível das políticas curriculares, através da análise dos dois documentos acima mencionados. A seguir, faremos uma breve discussão sobre currículo e diversidade cultual e sobre as implicações curriculares da Lei 10.639/03, seguida das reflexões construídas a partir do que encontramos no documeento da SME-RJ e das preocupações advindas de tais resultados. Currículo e diversidade cultural: alguns apontamentos A igualdade é um dos princípios centrais no ideario da modernidade, desconsiderando qualquer diversidade em nome de uma unidade pretendida (CANDAU, 2009). Esse princípio 1902 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 da modernidade defendia a ideia de “existir um conjunto cristalino de considerações de que todos os membros partilham, podendo ser reivindicadas como verdadeiras e genuínas” (GABRIEL, 2005 apud NUNES, 2011, p. 118). É plausível compreender a dificuldade apresentada pela instituição escolar de pensar currículos que reconheçam a diversidade cultural existente no seu interior por esta ser uma instituição que historicamente embasa suas concepções curriculares numa perspectiva monocultural e homogeneizadora (NUNES, 2011). Esta perspectiva ainda tem grande força nos dias atuais e, por isso, se faz urgente “romper com esta visão e construir práticas educativas em que a questão da diferença e do multiculturalismo se façam cada vez mais presentes” (CANDAU, 2008 apud NUNES, 2011, p. 120). Dessa maneira, o momento atual vivido pela educação pública no país prima por reflexões em torno daquilo que é ensinado e a forma como os conteúdos são apresentados nas escolas. Vivemos em uma sociedade marcada pela pluralidade e esta, por vezes, é renegada e submetida a cultura branca hegemônica. É preciso criar ações para reverter esse quadro e construir currículos que não só reconheçam a existência de outras culturas, que não a hegemônica, mas que parta dessas diferenças para a construção dos mesmos (WALSH, 2005, apud CANDAU, 2009). Através dos debates e pesquisas oriundas do campo do currículo admitimos que este se constitui fruto de inúmeras disputas e embates carregando em si a marca ideológica de determinado grupo e contexto histórico social (APPLE, 1982). Santomé (1995 apud GOMES, 2012), reflete sobre a relação entre currículo e culturas negadas e silenciadas problematizando o lugar ocupado pelas questões étnico-raciais nos currículos. Para o autor: Quando se analisam de maneira atenta os conteúdos que são desenvolvidos de forma explícita na maioria das instituições escolares e aquilo que é enfatizado nas propostas curriculares, chama fortemente a atenção à arrasadora presença das culturas que podemos chamar de hegemônicas. As culturas ou vozes dos grupos sociais minoritários e/ou marginalizados que não dispõem de estruturas importantes de poder continuam ser silenciadas, quando não estereotipadas e deformadas, para anular suas possibilidades de reação (Santomé, 1995, apud Gomes, 2012, p. 104). Partindo desse pensamento cabe indagar como se dá o reconhecimento da diversidade cultural trazida pelo novo público que ocupa de forma mais permanente o espaço escolar e se essa diversidade é referendada em suas práticas curriculares. Para Forquin (1993) parte da cultura social é selecionada para ser transmitida na escola e esta não se faz de forma neutra e imparcial, sendo preciso destacar a face do currículo enquanto veículo de conhecimento, poder e cultura (SILVA e COELHO, 2011) e definir a quem desejamos ou não empoderar. 1903 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 A Lei 10.639/2003: implicações para o currículo Ao longo dos últimos anos inúmeras políticas públicas foram implementadas na tentativa de reconhecimento dessas novas identidades que passaram a ocupar o cenário da escola básica brasileira e a fim de estabelecer uma contra-hegemonia cultural. Nesse sentido, podemos citar a Lei Nº 10.639/2003 que determina a obrigatoriedade da inclusão no currículo dos estabelecimentos de ensino das escolas básicas oficiais, públicas e particulares, a temática da História e Cultura Afro-Brasileira. Esta lei reconhece a importância da apropriação desse conteúdo para a construção da cidadania de todos os brasileiros, uma vez que o Brasil se afirma enquanto um país fruto da miscigenação. No entanto, passados onze anos que esta lei foi sancionada, pouco mudou nos currículos das diferentes disciplinas oferecidas nos diversos estabelecimentos de ensino. Reconhecemos que a escola é uma instituição que comumente oferece resistência às mudanças em função de suas tradições e hierarquias (FORQUIN, 1992). No entanto, não podemos também desconsiderar o fato “da educação escolar brasileira ser herdeira direta do sistema discriminatório da sociedade escravista sob dominação imperial onde mesmo com o fim da escravidão, as marcas do escravismo ainda persistem na escola atual” (CUNHA, 2009, p. 31), o que contribui para colocar a temática das relações étnico-raciais em um patamar inferior nas disputas presentes na elaboração do currículo. Gomes (2012) defende que a Lei Nº 10.639/03, ao alterar a lei maior da educação (Lei Nº 9.394/1996 - LDB), não indica uma adição de conteúdos no currículo escolar e sim uma alteração epistemológica na construção deste. Apenas dessa forma avançaremos na ideia trazida pela constituição federal, de que vivemos em um país construído por várias culturas, e reconheceremos de fato as diversas contribuições trazidas pelos negros africanos à estruturação desse país (SILVA e COELHO, 2013). Essa lei determina a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira em três disciplinas escolares em especial: educação artística, literatura e história brasileira. Isto, no entanto, não anula o debate que deve ser travado no âmbito de todas as disciplinas escolares, sobretudo aquelas como Ciências e Biologia, que ao longo de sua trajetória contribuíram e ainda contribuem de forma direta para o fortalecimento de uma hegemonia cultural branca, já que seus conteúdos são orientados pelas contribuições científicas oriundas de poucos segmentos da população mundial, majoritariamente européia, deixando de expor as contribuições que tiveram origem no continente africano. Além disso, não se pode negar o papel da ciência, em especial da biologia, no fortalecimento de concepções racistas, 1904 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 conhecidas como “racismo científico”, cuja discussão precisa ser incluída nestas disciplinas escolares (VERRANGIA e SILVA, 2010). Orientação Curricular de Ciências da rede municipal do Rio de Janeiro e as DCNER: buscando aproximações Para orientar a aplicação da Lei Nº 10.639/03, em 2004 o Conselho Nacional de Educação aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para uma Educação das Relações Étnico-Raciais (BRASIL, 2004). As DCNER buscam orientar para a construção de currículos que contemplem a educação para as relações étnico-raciais. Assim como o explicitado pelo documento, diretrizes são “dimensões normativas, reguladoras de caminhos, embora não fechadas a que historicamente possam, a partir das determinações iniciais, tomar novos rumos” (BRASIL, 2004, p. 16), destinando-se aos administradores e mantenedores de estabelecimentos de ensino. Este documento deixa explícito que a questão central é a de reformulação de currículos para a superação do racismo e que tal superação só irá ser alcançada a partir e por intermédio de uma educação das relações étnico-raciais onde brancos e negros reconstruam seus valores, suas posturas e seu olhar sobre o outro. Segundo as formulações trazidas pelas diretrizes a busca é para além da identificação das contribuições trazidas pelos negros para a edificação do Brasil, mas, o reconhecimento dessa cultura para que assim as atuais e futuras gerações possam criar um novo campo imagético de si. Nesse sentido, as diretrizes e a lei em questão assim como dito anteriormente, orientam não para adição de conteúdos e sim para uma “mudança nos discursos, raciocínios, lógicas, história e cultura apresentadas, explicitadas, buscando-se especificamente desconstruir o mito da democracia racial na sociedade brasileira” (BRASIL, 2004, p. 3). As DCNER dirigem-se ao conjunto das ações pedagógicas realizadas nas escolas, uma vez que, educar para as relações étnico-raciais exige uma mudança estrutural do currículo e de construção do pensamento de todo o conjunto das disciplinas escolares. Dez anos após a publicação da Lei Nº 10.639/03 e nove das DCNER a SME-RJ publica a edição revisada das Orientações Curriculares para o Ensino Fundamental de todas as áreas do conhecimento. Estas Orientações Curriculares refere-se a todos os bimestres do 4º ao 9º ano do ensino fundamental. Aqui trataremos especificamente do 6º ao 9º ano e da disciplina Ciências (RIO DE JANEIRO, 2013). Considerando estes anos, o documento possui 42 páginas, sem texto 1905 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 introdutório, restringindo-se à apresentar uma listagem de objetivos, conteúdos, habilidades e sugestões de atividades a ser seguida pelos professores. Com relação à organização dos conteúdos e aos objetivos a serem alcançados, o documento não se diferencia da forma tradicional e amplamente conhecida de se organizar os currículos de Ciências, tal como aparece na grande maioria dos livros didáticos. Para cada item que constitui os conteúdos do documento se encontra uma ou mais sugestões de forma de trabalho. Tais sugestões giram em torno de indicação de vídeos, sites e revistas; realização de experimentos; produção de textos; jogos; interpretação de imagens, dentre outros. Considerando os objetivos de ensino e suas sugestões do 6º ao 9º ano, o documento apresenta 83 objetivos e 176 sugestões de atividaes. Foi possível detectar ao longo desses um único objetivo, associado a uma única sugestão que menciona a expressão “étnico-racial” e o uso da Lei Nº 11.645/08, que além de orientar sobre o ensino da temática da história e cultura afro-brasileira inclui o ensino da cultura indígena. Em nenhum outro item do conteúdo aparece qualquer termo que nos remeta a esta questão. A expressão aparece nos objetivos do 4º bimestre do 8º ano referente ao conteúdo “pele”. Assim, o documento apresenta como objetivo neste tema: “reconhecer a pele humana como um sistema multifuncional de fator étnico-racial” e traz como sugestão para o alcance do mesmo a realização de “discussão a respeito dos trechos da Lei 11.645 de 10/08/2008 que orienta sobre a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, conforme indicamos na Figura 1: Fig. 1: Trecho das Orientações Curriculares para o Ensino de Ciências ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA O ENSINO DE CIÊNCIAS – 8º ANO Objetivos Conteúdos Reconhecer a pele humana como sistema multifuncional (estrutural, de excreção, de proteção e de regulação) de fator A pele é um órgão que estabelece a relação do corpo com o meio ambiente étnico cultural. 1° 2º 3º 4º x Sugestões Discussão a respeito da concentração do pigmento melanina na pele, como fator de proteção. Discussão a respeito dos trechos da Lei 11.645 de 10/08/2008 que orienta sobre a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Elaboração de uma cartilha sobre a prevenção do câncer de pele, a partir de material de divulgação publicado pelo INCA. Fonte: SME-RJ, 2013. Esse fato instiga algumas reflexões sobre as razões de um documento oficial de orientação curricular publicado dez anos após o sancionamento de uma lei que define a 1906 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 obrigatoriedade da temática da história e cultura afro-brasileira no currículo mencionar uma única vez a expressão “relações étnico-raciais”. É importante questionar também o quanto o silenciamento dessa temática implica em sua não incorporação no cotidiano das práticas de ensino da disciplina Ciências. Cabe esclarecer que a Lei N°11.645/08 passou a ser utilizada em substituição da Lei Nº 10.639/03, incluindo, além da temática afro-brasileira, a cultura indígena. No entanto, em função da imensa trajetória de lutas travadas pelo movimento negro organizado para a resolução da Lei Nº 10.639/03, esta continua sendo a lei de referência para o ensino da história e cultura afro-brasileira, na maioria das vezes, por simbolizar em si todo o processo de disputa até a sua publicação. Alterar o paradigma cultural racista em que vivemos não é uma tarefa fácil bem como não é tarefa apenas da educação, como já apontamos. Por esta razão a Lei Nº 10.639/03 e o Parecer CNE/CP 003/04 primam por políticas públicas de currículo que materializem o discurso da lei em práticas de ensino concretas para que dessa forma seja garantido o direito a formação plena da cidadania de todos os indivíduos do território brasileiro. Nesse sentido, cabe destacar alguns encaminhamentos das DCNER que foram desconsiderados nas Orientações Curriculares de Ciências elaborada pela SME-RJ. O texto das DCNER, ainda que apóie ações educacionais individuais de combate ao racismo, deixa claro que para que se consiga alterar a mentalidade racista, centrada no padrão cultural europeu, não é possível e aceitável trabalhar de forma improvisada - é necessário ações políticas governamentais que contribuam para a desalienação dos processos pedagógicos. Para superar as ações individuais as DCNER dirigem-se ao conjunto dos profissionais de ensino, entretanto, resvalando a função dos diferentes setores educacionais. Assim, o documento atribui aos administradores e mantenedores de instituições de ensino algumas funções que deverão ser realizadas por estes para que o objetivo da lei seja alcançado. Com isso expõe que, Caberá, aos administradores dos sistemas de ensino e das mantenedoras prover as escolas, seus professores e alunos de material bibliográfico e de outros materiais didáticos, além de acompanhar os trabalhos desenvolvidos, a fim de evitar que questões tão complexas, muito pouco tratadas, tanto na formação inicial como continuada de professores, sejam abordadas de maneira resumida, incompleta, com erro (BRASIL, 2004, p. 9). Mais adiante, as DCNER apontam as responsabilidades dos sistemas de ensino e estabelecimentos que devem garantir, entre outros, “apoio sistemático aos professores para a elaboração de planos, projetos, seleção de conteúdos e métodos de ensino, cujo foco seja História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e a Educação das Relações Étnico-Raciais” 1907 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 (BRASIL, 2004, p. 13). Podemos considerar, então, que ao elaborar um documento de orientação curricular e neste mencionar apenas uma vez esta temática a SME-RJ deixa de cumprir seu papel perante o que preconiza esta legislação. Cabe destacar que as DCNER, ao determinar as formas de inclusão do ensino sobre História e Cultura Africana no currículo, apontam para algumas temáticas que facilmente se articulam com os conteúdos abordados na disciplina Ciências, como, por exemplo, “as contribuições do Egito para a ciência [...]; as tecnologias de agricultura, de beneficiamento de cultivos, de mineração e de edificações trazidas pelos escravizados, bem como a produção científica [...] na atualidade” (BRASIL, 2004, p. 12). Ignorando tais temas, as Orientações Curriculares da SME-RJ, estranhamente, sugere a discussão de trechos da Lei 11645/2008 como uma atividade a ser desenvolvida com os estudantes do oitavo ano do ensino fundamental. As pesquisas apontam que o conteúdo da disciplina escolar Biologia traz em si uma busca histórica de aproximação com a área acadêmica das Ciências Biológicas (MARANDINO et al., 2009). Essa busca é menos nítida na disciplina escolar Ciências, que além do seu caráter de “iniciação” aos estudos científicos, não encontra correspondência direta na academia, devido envolver diferentes áreas do conhecimento. Entretanto, ambas mantém-se dando ênfase à formação científica desatreladas dos contextos sociais nos quais se encontram os diferentes alunos das inúmeras realidades brasileiras. Deixar de expor no escopo dos currículos dessas disciplinas questões étnico-raciais significa, em parte, o não reconhecimento das condições objetivas de vida dos alunos, bem como o contexto histórico o qual os mesmos estão inseridos. Apesar de se constituir em tema ainda pouco explorado no campo de Educação em Ciências, é possível encontrar na literatura específica algumas contribuições para o enfrentamento desta questão no ensino das disciplinas do campo. No trabalho de Verrangia e Silva (2010), por exemplo, é possível encontrar diferentes aspectos e relações que podem ser feitas entre os conhecimentos e a evolução da ciência e as relações étnico-raciais a fim de incorporar no conteúdo da disciplina Ciências a valorização de cientistas, descobertas e inovações com origem diferente da europeia. Espera-se que os elaboradores de propostas curriculares nas diferentes redes sejam capazes de incorporar tais temas nos documentos que elaboram, apontando, desta forma, alguns caminhos a serem seguidos pelos professores em suas práticas cotidianas. 1908 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Considerações Finais O parecer CNE/CP 003/2004 apresenta importantes encaminhamentos para auxiliar na construção de currículos das diferentes disciplinas escolares para que contemplem a educação das relações étnico-raciais. Ter reconhecida a Lei Nº 10.639/03 e o parecer CNE/CP 003/2004 por parte das secretarias de educação potencializa a discussão sobre a temática em questão, subsidia e viabiliza a construção de currículos que, no lugar de ações individuais, sirva de base para estruturação de diferentes propostas de políticas curriculares. É preciso que não só as disciplinas citadas no corpo da Lei Nº 10.639/03 (Educação Artística, Literatura e História), assumam o compromisso de rever sua base epistemológica de construção de currículo, pois esse fato não exime as demais disciplinas do compromisso social de reverter o paradigma cultural eurocentrado vigente. Somente assim superaremos a falsa ideia de democracia racial no país e enfim teremos uma sociedade de fato democrática, de modo que a luta pelo reconhecimento e garantia às diferenças não diga respeito apenas aos negros, mas ao conjunto da sociedade. Contudo, tais mudanças estruturais não se darão naturalmente e nem excluída de conflitos de diferentes ordens. Ao contrário, a superação do paradigma epistemológico atual para a construção de currículos requererá inúmeras disputas, reivindicações e desenvolvimentos de políticas públicas para esse fim. A menção, ainda que de forma tortuosa, da legislação referente ao tema no documento curricular de Ciências da SME-RJ nos dá uma ideia desta disputa. Também nos faz supor que o tema foi lembrado por algum dos formuladores do documento, porém, por motivos que cabem ser melhor investigados, acabou por aparecer de uma forma que pouco contribui para o enfrentamente da questão na prática dos professores. Referências APPLE, M. Ideologia e currículo. São Paulo: Brasiliense, 1982. BRASIL, Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciaia e para o ensino de História e Cultura Afri-brasileira e Africana. Brasília: junho, 2005. BRASIL. Lei N° 10.639, de 09 de Janeiro de 2003. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Barsileira. Brasília, 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. 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