CRÔNICAS E CONTROVÉRSIAS
SAUSSURE E O CURSO DE LINGUÍSTICA GERAL:
UMA RELAÇÃO DE NUNCA ACABAR1
Maria Iraci Sousa Costa2
O Curso de Linguística Geral, as notas dos alunos, os escritos de
Saussure e muitas discussões
O Curso de Linguística Geral (CLG), obra sobre a qual se edificou,
diretamente ou não, toda a linguística moderna (Benveniste, 1989), é
uma obra póstuma organizada por Albert Sechehaye e Charles Bally, a
partir de três cursos ministrados por Saussure na Universidade de Genebra. Tais cursos foram ministrados ao longo de três anos (1906-1907;
1908-1909; 1910-1911), por ocasião da substituição de Joseph Wertheimer. As ideias do mestre genebrino ressoaram como um contraponto
aos estudos linguísticos realizados na época, pois “Saussure recusava
quase tudo o que se fazia no seu tempo. Ele achava que as noções correntes não tinham base, que tudo repousava sobre pressupostos não verificados, e sobretudo que o lingüista não sabia o que fazia” (Benveniste,
1989, p.14).
Tendo em vista a importância de tais questionamentos apontados
por Saussure nos cursos e o impacto que suas reflexões poderiam ter
para os estudos da linguagem (sobre os quais o mestre nada publicou), após a morte de Saussure, em 1913, Albert Sechehaye e Charles Bally tomaram a iniciativa de organizar uma publicação com os
ensinamentos de Saussure. Entretanto, o que Saussure havia deixado
sobre os cursos eram apenas algumas notas manuscritas esparsas,
que, segundo Bally e Sechehaye, eram insuficientes para a publicação de um livro. Além disso, os idealizadores do projeto não haviam
assistido integralmente aos cursos ministrados pelo mestre, e todo
o material de que eles dispunham para a organização eram notas
manuscritas de outros alunos que haviam assistido ao curso e que,
na sua maior parte, não eram linguistas. Nesse sentido, os editores
afirmam que: “era mister, para cada curso, e para cada pormenor do
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curso, comparando todas as versões, chegar até o pensamento do
qual tínhamos apenas ecos, por vezes discordantes” (CLG, Prefácio
à primeira edição, p.2). Considerando essas e outras dificuldades, o
objetivo dos editores era: “tentar uma reconstituição, uma síntese,
com base no terceiro curso, utilizando todos os materiais de que dispúnhamos, inclusive as notas pessoais de Saussure. Tratava-se, pois,
de uma recriação” (Ibid., p.3).
Posteriormente, o CLG sofreu duras críticas desencadeadas após
Robert Godel publicar, a partir de 1941, em números sucessivos dos
“Cahiers Ferdinand de Saussure”, outras fontes do CLG que não foram consultadas pelos editores, além de anotações inéditas de Saussure que começaram a ser divulgadas nos “Cahiers” a partir de 1954.
Em 1957, Robert Godel publica o livro “Les sources manuscrites du
Cours de linguistique générale” (As fontes manuscritas do Curso de
Linguística Geral), que confrontava o CLG com as anotações dos
alunos, mostrando que as fontes consultadas pelos editores e a forma
de reconstrução dos cursos ministrados não se correspondiam entre
si, e o CLG não correspondia a nenhuma delas. Bouquet e Engler
(2012) questionam o rótulo “fontes” atribuído por Godel ao corpus
recenseado se uma grande parte desses documentos não serviu de
fonte para a elaboração do texto editado por Bally e Sechehaye.
Mais tardiamente, em 1996, oito décadas após a publicação do
CLG, foram encontrados os manuscritos de Saussure em um anexo
de sua residência e também um livro ainda não concluído, “Da dupla
essência da linguagem”3, revelado em 2002, nos “Écrits de Linguistique Générale” (Escritos de Linguística Geral), organizado por Simon
Bouquet e Rudolf Engler. A partir do estudo das notas saussurianas,
estudiosos como Simon Bouquet insistiram sobre o ponto de que a
tese defendida no CLG não corresponderia à tese de Saussure. No
que diz respeito ao arbitrário do signo, por exemplo, Simon Bouquet
(2004) afirma com veemência que os editores não só criaram enunciados que não têm registro em nenhuma das fontes manuscritas
como também tais enunciados se contrapõem às ideias de Saussure.
Um dos pontos mais discutidos desde a publicação do CLG, que
acompanha o desdobramento das discussões com a publicação das
notas dos alunos e também das notas saussurianas, é a temática do
arbitrário do signo. Trata-se de uma discussão que remonta às primeiras reflexões sobre a linguagem e que continua a instigar divergências entre aqueles que se aventuram a estudar esse objeto tão fugidio que a Linguística tomou para si como seu objeto de estudo, a
língua.
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“O princípio da arbitrariedade do signo não é contestado por ninguém” (CLG, p. 82)
A maior parte das críticas ao CLG é direcionada ao princípio da arbitrariedade do signo, sobre o qual se afirma, curiosamente, que não há
contestações, o que, segundo Arrivé (2010), é essencialmente exato na
época de Saussure. No entanto, segundo esse mesmo autor, essa afirmação implica o esquecimento de opiniões contrárias que, em muitos
momentos da história da reflexão sobre a linguagem, foram formuladas
sobre o arbitrário do signo. Essa questão da arbitrariedade é um dos aspectos da teoria de Saussure que mais gera debate e continua sendo um
ponto de divergência entre os estudiosos. O ponto de discórdia está no
exemplo escolhido para ilustrar o princípio da arbitrariedade do signo.
As discussões em torno desse exemplo apontam para o fato de que ele
estaria em flagrante contradição com a definição de signo, isto é, esse
exemplo estaria apontando para uma concepção de língua enquanto
nomenclatura, rejeitada por Saussure, e que acabaria implicando deslocamento da relação arbitrária entre o significado e o significante para a
relação entre o signo e o referente.
Quem vai dar início a esse debate é Benveniste, referido por vários
estudiosos como um dos primeiros a questionar o princípio da arbitrariedade. Segundo Normand (2009), Benveniste
corrige a formulação do CLG, julgada confusa, afirmando que
o arbitrário, ao contrário do que parece dizer o CLG, é somente
entre o signo e a realidade exterior à língua, uma vez que a relação
entre o significante e o significado é, por sua vez, ‘necessária’ aos
olhos do locutor (Normand, 2009, p.146-147).
Essa crítica encontra-se no texto “Natureza do signo linguístico”, escrito em 1939, onde Benveniste defende que o laço que une o significado e o significante não é arbitrário, pois entre esses dois elementos
constitutivos do signo linguístico existe uma relação necessária, tendo
em vista que um não pode ser evocado sem o outro. Juntos, o significado e o significante formam um, garantindo a unidade estrutural do
signo linguístico. Para Benveniste (Ibid.), o exemplo usado no CLG não
demonstra a arbitrariedade entre os dois elementos constituintes do signo, mas aponta para uma relação arbitrária entre o signo e a realidade,
isto é, “o que é arbitrário é que um signo, mas não outro, se aplica a
um determinado elemento da realidade, mas não a outro” (Benveniste,
1995 [1988], p.56). Nesse sentido, segundo Benveniste, afirmar que a
relação entre significado e significante é arbitrária, porque, em línguas
diferentes, existem palavras diferentes para designar um mesmo objeto,
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implica deslocamento da relação da arbitrariedade entre significado e
significante, para uma relação do signo com algo que lhe é exterior, que
é o objeto. Desse modo, é o referente que se mantém, enquanto o signo
varia de uma língua para outra, por exemplo, quando um francês diz
mer (mar) e um inglês diz sea, eles estão se referindo a uma mesma
realidade. Portanto, para Benveniste, “o arbitrário só existe aqui em relação com o fenômeno ou objeto material e não intervém na constituição
do próprio signo” (Benveniste, 1995 [1988], p.57), ou seja, o arbitrário
não está no signo em si, mas na relação do signo com a realidade. No
entanto, a negação da arbitrariedade do signo não diminui o mérito de
Saussure, pois segundo Benveniste:
O mérito dessa análise não é diminuído em nada, mas ao contrário muito reforçado se se especifica melhor a relação à qual se
aplica. Não é entre o significante e o significado que a relação ao
mesmo tempo se modifica e permanece imutável, é entre o signo
e o objeto; e, em outras palavras, a motivação objetiva da designação, submetida como tal, à ação de diversos fatores históricos.
O que Saussure demonstra permanece verdadeiro, mas a respeito
da significação, não do signo (Ibid., p.58).
Benveniste aponta a flagrante contradição entre a definição de língua sustentada por Saussure e o exemplo usado para ilustrar o caráter
arbitrário do signo, mostrando que esse exemplo remete justamente a
uma concepção de língua que Saussure recusa. O exemplo leva a uma
concepção de língua enquanto nomenclatura, que associa as palavras
às coisas, opondo-se à definição de língua enquanto sistema de signos,
sustentada no CLG.
Para Simon Bouquet (2004), que valoriza as fontes manuscritas em
detrimento do que coloca o CLG, Benveniste é induzido a formular críticas não fundamentadas, em razão de seu desconhecimento dos textos
originais, e, por isso, ele “se perde no percurso traiçoeiro do Cours, não
atinge a teoria saussuriana” (Ibid., p.237). No texto “Benveniste et la représentation du sens: de l’arbitraire du signe à l’objet extra-linguistique”,
publicado em 1997 e dedicado exclusivamente à crítica que Benveniste
faz a Saussure, Bouquet defende que a reflexão de Benveniste é tão inconsistente quanto o texto dos editores e se propõe a “ilustrar como a
crítica de Saussure por Benveniste se constrói sobre o plano de uma
perspectiva enganosa. Esta perspectiva enganosa é aquela do Curso de
Linguística Geral (doravante CLG)”4 (Bouquet, 1997, p.107).
Além disso, Bouquet (Id.) argumenta que “o texto de Bally e Sechehaye tornou opaco o texto saussuriano e alimentou discussões in110
termináveis sobre a questão do arbitrário, que começaram em 1916 e
duraram meio século” (Id., 2004, p.237). Segundo Bouquet (1997), ao
referir esse exemplo, Saussure estava tematizando, de forma estrita, a
respeito da teoria do valor linguístico, uma vez que essa noção ainda
não havia sido desenvolvida junto a seus alunos. Nesse sentido, Saussure
estava ciente das possíveis complicações desse exemplo e, ao contrário
do que aparece no Cours, o exemplo polêmico foi usado somente para
ilustrar o princípio da arbitrariedade do significante, isto é, ilustrar a
tese convencionalista da arbitrariedade, e, para isso, uma concepção
ingênua de língua como nomenclatura era perfeitamente suficiente
(Ibid.). Desse modo, o autor atribui à ingenuidade voluntária do exemplo ao fato de que a teoria do valor ainda não havia sido desenvolvida,
o que fez com que o princípio da arbitrariedade do significante fosse
dado, inicialmente, como evidente para, posteriormente, ser retomado
e desconstruído. O que, para Bouquet (Ibid.), pode ter “enganado” Benveniste é a formulação do CLG que ele cita no início de seu artigo: “A
ligação entre o significante e o significado é arbitrária ou simplesmente
o signo lingüístico é arbitrário”, a qual, segundo Bouquet (Ibid.), não
se baseia em nenhuma das notas dos alunos. Bouquet (Ibid.) questiona
Benveniste pelo fato de que, mesmo conhecendo as condições de elaboração do CLG, ele insiste em se dirigir a Saussure como autor do CLG.
Isso, ainda hoje, é dado como uma evidência que se cristalizou, embora
nunca tenha sido omitida a forma como o CLG foi elaborado. Bouquet,
a partir dos textos originais de Saussure, os quais se chegou a acreditar
que talvez nunca fossem encontrados ou talvez nem existissem, vem
tentando insistentemente desassociar o CLG das ideias de Saussure.
No entanto, nem todos que tiveram conhecimento dos textos originais saussurianos partilham do mesmo posicionamento de Bouquet e
tampouco acreditam que a crítica de Benveniste seja infundada. Arrivé
(2010), por exemplo, assume uma postura oposta a de Bouquet (Id.),
sendo que, para ele, pouco importam “as invectivas contra os editores
de 1916, [ou] as lamentações a respeito de outros projetos de edição”
(Arrivé, 2010, p.23). Para esse autor, o CLG, em relação a Saussure, seria
“o que são os Evangelhos apócrifos em relação à Verdade revelada” (op.
cit.)5.
Quanto à polêmica em torno do princípio da arbitrariedade, Arrivé
(Ibid.) considera que o exemplo dado no CLG é fiel à formulação inicial:
“a ideia de ‘mar’ não está ligada por relação alguma interior à sequência
de sons m-a-r que lhe serve de significante” (CLG, p.81)6. Se não existe
uma relação natural entre a ideia de “mar” e a sequência de sons “m-a-r”,
pressupõe-se que o significado “mar” poderia estar associado a outro
significante existente na língua, mas qual seria, se a noção de valor im111
plica oposição entre os signos da língua? Desse modo, essa relação arbitrária entre o significado e o significante só poderia ser percebida a partir da comparação entre línguas diferentes. E assim, Saussure continua:
como prova: temos as diferenças entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes: o significado da palavra francesa
boeuf (‘boi’) tem por significante b-ö-f de um lado da fronteira
franco-germânica, e o-k-s (Ochs) do outro. (CLG, p.82).
Segundo Arrivé (Ibid.), é nesse ponto em que há um deslizamento
do raciocínio saussuriano, pois, ao estabelecer uma relação entre línguas
diferentes, pressupõe-se que o significado de “boeuf ” seja exatamente
idêntico ao de “Ochs”, o que se contrapõe às posições anteriormente
defendidas: “se ele descartou a concepção de língua como ‘nomenclatura’, foi exatamente porque ela ‘supõe ideias prévias, preexistentes às
palavras” (Ibid., p.61). Dessa forma, para Arrivé (Ibid.), a crítica de Benveniste não é infundada, pois, de fato, houve um equívoco por parte de
Saussure e é, nesse sentido, que Arrivé (Ibid.) afirma que não
espanta nem um pouco ver Bouquet – que ignora Pichon e não se
dá ao trabalho de citar nem Benveniste nem a proposição saussuriana que ele critica – afirmar com segurança (1997, 290) que
‘Benveniste está em falta com a teoria saussuriana’. É evidente que
Saussure deslizou do significado para o referente, recaindo com
isso, talvez sem perceber, na concepção, anteriormente descartada, da língua como nomenclatura (p.64).
Além disso, em nota, Arrivé (Ibid.) destaca que a citação usada por
Benveniste não encontra correspondente no CLG. Sobre a crítica de
Benveniste, Arrivé (Ibid.) faz uma única ressalva quanto à relação necessária entre o significado e o significante defendida por Benveniste.
Para Arrivé (Ibid.), a análise realizada por Benveniste é incontestável,
o que pode ser discutível é em que medida essa demonstração sustenta
a tese da relação necessária entre significado e significante, porque, na
visão de Arrivé (Ibid.), a análise de Benveniste é neutra em relação à
questão do arbitrário ou da necessidade. Sendo assim, se, por um lado,
Saussure não consegue demonstrar o princípio da arbitrariedade do signo, por outro, Benveniste também não consegue demonstrar a relação
necessária entre significado e significante.
Roman Jakobson, que foi um dos primeiros a citar Saussure em outra
língua que não o francês (Gadet, 2000), também vai entrar nessa discussão sobre a arbitrariedade do signo, no texto “À procura da essência
112
da linguagem”. Diferentemente dos autores já citados, Jakobson (1969)
não discute se o signo linguístico é ou não arbitrário, suas críticas são
direcionadas à pretensão de novidade da interpretação saussuriana sobre o signo linguístico. Sempre com uma postura crítica em relação às
dicotomias saussurianas, Jakobson (Ibid.) também vai colocar em causa a originalidade das noções cardinais e dos princípios introduzidos
por Saussure (Gadet, 2000). Para Jakobson (Ibid.), o grande legado de
Saussure não poderia ser o princípio da arbitrariedade do signo, pois
essa concepção, inclusive a terminologia adotada por Saussure, remonta
à doutrina dos estóicos, que data de aproximadamente dois mil anos
atrás. Dessa forma, Jakobson (Ibid.) procura mostrar que o princípio da
arbitrariedade constitui um problema recorrente nos estudos da linguagem desde a Antiguidade, sendo que Saussure é apenas mais um que se
dedica ao estudo da conexão entre som e significado. Dentre os autores que trabalharam com uma doutrina similar a de Saussure no século XIX, Jakobson (Ibid.) aponta Humboldt, cujos trabalhos apontavam
para a conexão apenas aparente entre o som e o significado, e também
destaca Whitney (1867, 1874), que, por sua vez, definia a língua como
um sistema de signos arbitrários e convencionais, doutrina essa que, inclusive, vai ser retomada no CLG e passa a ocupar um lugar importante
na teoria saussuriana. Em se tratando de originalidade, para Jakobson,
“o pensador mais inventivo e universal foi provavelmente Charles Sanders Peirce” (Ibid., p.99), uma vez que
As notas de Semiótica que Pierce pôs no papel ao longo de meio
século possuem significação de importância histórica, e se elas
não tivessem permanecido inéditas, na sua maior parte, até 1930
e anos seguintes, ou se pelo menos, suas obras publicadas tivessem sido conhecidas dos lingüistas, suas pesquisas teriam, sem
dúvida, exercido influência única no desenvolvimento internacional da teoria lingüística (Ibid., p.100)
Assim, o princípio da arbitrariedade do signo proposto por Saussure é questionado sob dois aspectos, quanto à originalidade e quanto à
natureza do signo linguístico. No entanto, tanto a questão do arbitrário
assim como outras questões a ela relacionadas estão ainda mais longe
de serem resolvidas com a descoberta dos manuscritos de Saussure em
1996, quando se revela que as “passagens do Cours que tratam do ‘arbitrário do signo’ [...] servem a enunciados inteiramente criados por Bally
e Sechehaye: nenhuma proposição correspondente sobre o arbitrário
figura nas fontes” (Bouquet, 2004, p.232).
113
Considerações finais
O CLG continua suscitando discussões polêmicas, seja pelas contradições do Cours em si, seja pelas discordâncias entre as anotações dos
alunos, ou ainda pelo distanciamento do CLG em relação aos escritos
saussurianos originais. Sobre esses pontos, muitos estudiosos vêm tomando diferentes posições, a saber, ou considera-se o CLG como uma
farsa, na medida em que os editores teriam atribuído a autoria do CLG
a Saussure sem que, no entanto, o CLG tenha uma única afirmação que
esteja de acordo com as notas manuscritas do mestre, ou, ainda, prefere-se uma posição que defende a autoria do CLG como de Saussure e
propõe um olhar para as próprias contradições do Cours, independentemente da sua coerência com os escritos saussurianos originais. Haveria
ainda uma terceira posição, a que consideraria os escritos originais na
medida em que eles poderiam apontar para uma melhor compreensão
do CLG em si, sem desautorizá-lo.
Apesar de o legado de Saussure ser apenas uma aproximação de seu
pensamento, as suas reflexões foram muito profícuas e continuam a despertar debates e discussões na contemporaneidade. Se a língua é um
objeto inatingível e a questão da arbitrariedade continua sendo tema
de discussões intermináveis, não há como negar a importância da contribuição de Saussure não só para a Linguística, mas também para as
ciências humanas. Nesse sentido, procuramos orientar nosso trabalho,
mobilizando essas discussões sem, no entanto, tomar partido de uma ou
de outra, pois entendemos que a essência do pensamento saussuriano
continua sendo um enigma, uma vez que se trata de uma reflexão que
não chegou a ser concluída. Não nos preocupamos em saber qual desses estudiosos está com a verdade, até mesmo porque os linguistas não
se ocupam da verdade, interessa-nos apenas a riqueza da profundidade
do empreendimento saussuriano e a repercussão de seus estudos ainda
hoje. Assim, entendemos que o linguista aprendeu a conviver com o
desconforto e a inquietação provocados pela natureza fugidia do objeto
da Linguística e o que move as constantes reflexões sobre a linguagem
é essa questão mal resolvida entre a Linguística e seu objeto, discussão
essa que remonta sempre a Saussure.
Notas
1 Esse texto foi escrito inicialmente para avaliação da disciplina “Seminário Avançado
em Saussure”, do Curso de Mestrado em Letras – Estudos Linguísticos (UFSM), durante
o primeiro semestre de 2010, disciplina essa ministrada pela Professora Dr. Amanda
Eloina Scherer. Agradeço à Professora Dr. Amanda Scherer, não só pela orientação e
pelas importantes contribuições para a escritura desse texto, mas também pelo incentivo para levar adiante o desafio de estudar Saussure, esse grande linguista cujas reflexões
nunca cessam.
114
2 Acadêmica do segundo semestre do Curso de Doutorado em Letras – Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Santa Maria – Santa Maria (RS-Brasil); E-mail: [email protected]. Bolsista CAPES. Orientanda da Professora Dr. Amanda Eloina
Scherer.
3 Na verdade, trata-se de um texto que “continua a ser, como dizer isso?, um rascunho,
desde que se retire do termo rascunho toda e qualquer conotação pejorativa” (Arrivé,
2010, p.45). Esses documentos foram encontrados também em 1996 e agrupados por
Bouquet e Engler “sob o título de ‘Da essência dupla linguagem’, eles provêm, em sua
grande maioria de um grande envelope que contém maços de folhas da mesma natureza e do mesmo formato, sendo que várias delas trazem a menção: ‘Da dupla essência
da linguagem’, ‘Dupla essência’ ou ‘Essência dupla (da linguagem)’”. (Bouquet e Engler,
2002, p.16)
4 “illustrer comment la critique de Saussure par Benveniste se construit sur fond d’une
perspective en trompe-l’oeil. Cette perspective en trompe-oeil, c’est celle du Cours de
linguistique générale (ci-après CLG)” (Bouquet, 1997, p.107)”.
5 Isaac Salum faz uma analogia semelhante no prefácio do CLG onde ele afirma que
“Saussure - como Sócrates e Jesus - é recebido de ‘segunda mão’” (CLG, Prefácio à edição
brasileira, p. XVI).
6 Estamos considerando aqui a 27ª edição brasileira do CLG. Cabe ressaltar, uma vez
que a edição que Arrivé cita traz a palavra “irmã” como exemplo no lugar de “mar”.
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Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial.
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Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2006.
116
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