Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 219 A actividade matemática e as competências cognitivolinguísticas Carles Lladó e Jaume Jorba (Tradução de Júlia Soares) Modelos de ensino das matemáticas Torna-se difícil descrever de maneira geral os modelos de ensino das matemáticas que, actualmente, se praticam nas nossas escolas. Certamente, cada professor os leva a cabo tomando decisões, naqueles aspectos em que as pode tomar, que não respondem a um tipo perfeitamente definido de opção didáctica. Contudo, pode ser interessante tentar caracterizar dois grandes modelos que cremos, estiveram presentes, e talvez ainda estejam, no ensino das matemáticas durante os últimos vinte e cinco anos. Começar por fazê-lo, facilitar-nos-á o esforço de deixar claro, mais adiante, a partir de que opção apresentamos as nossas reflexões sobre o uso da linguagem no ensino das Matemáticas. A. Pensamos que há uma opção em que o ensino das Matemáticas se fundamenta basicamente na actividade do professor no sentido de “transmitir as noções matemáticas aos alunos”. Esta opção caracteriza-se essencialmente por uma actividade centrada nas explicações do professor e na leitura do manual, com o reforço de um certo número de exercícios de aplicação e com a utilização dos instrumentos clássicos de avaliação dessa “transmissão” (questionários à turma e exames). Esta opção didáctica vem, frequentemente, acompanhada de uma validação das matemáticas como um sistema hipotético-dedutivo e da opinião de que o seu estudo é necessário para aprender a “pensar correctamente” em termos de abstracção e de dedução. Procede-se como se o ensino das Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 220 Matemáticas tivesse de dar como resultado a aprendizagem de um conjunto de “objectos de conhecimento” (números, operações com números, propriedades destes, etc.) que fossem claros em si mesmos, à margem da sua origem e evolução. Recorremos a uma metáfora para descrever esta opção: é como se recolhêssemos um conjunto de fotografias e as mostrássemos aos alunos a fim de que, deste modo, aprendessem matemática. Abstraindo que, muitas vezes se passa por alto que uma fotografia foi tirada por alguém e com uma certa intenção, o certo é que as fotografias em questão são apenas a etapa final de um certo trabalho, o resultado de um determinado processo, de um processo que teve necessariamente uma origem e que seguramente encontrou muitas dificuldades ao longo do seu desenvolvimento. As fotografias nunca podem mostrar aquilo que caracterizou o trabalho realizado, que tipo de trabalho foi feito e como, e sobretudo que motivo havia para dedicar tanto tempo à sua realização. É uma opção que, se bem que possa parecer eficaz do ponto de vista da quantidade de noções que o professor pode “transmitir” no tempo limitado de docência de que dispõe, é de uma eficácia reduzida de outros pontos de vista: funciona sobretudo com as crianças que, muitas vezes, fora da escola, adquiriram competências (sobretudo competências linguísticas), comportamentos e atitudes que lhes permitem tirar proveito de um grande leque de actividades, entre elas as escolares, e em particular as relacionadas com o ensino e a aprendizagem das matemáticas; marginaliza aqueles alunos que não dispõem desses recursos ou aqueles que pertencem a meios socioculturais cujos sistemas de valores dificultam a adaptação ao tipo de actividade que lhes é proposta. Acrescente-se a tudo isto que a estrutura do manual, embora pareça ter a função de prolongar e integrar a acção didáctica do professor, na prática acaba por ter outra: a de ajudá-lo a não “perder o fio” das noções matemáticas que pretende “transmitir” a cada aluno, convertendo-se assim num instrumento para uso do professor mais do que num instrumento de aprendizagem dos alunos. Acresce ainda, que a estrutura do manual lhe permite manter, se bem que Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 221 bastante desvirtuado, o carácter da matemática como sistema hipotéticodedutivo, estabelecendo assim uma continuidade entre a sua actividade actual como professor e o ensino que ele próprio recebeu e através do qual foi seleccionado como professor. O tipo de actividade que se propõe aos alunos é frequentemente uma actividade “de aplicação dos conhecimentos aprendidos”. Na maior parte das vezes, o aluno tem de demonstrar que “possui conhecimentos matemáticos”, mas quase nunca se lhe pede que apresente as razões daquilo que faz, que justifique a opção que tomou para resolver determinado problema ou que interprete os resultados numéricos num determinado contexto. Caso se lhe proponha que demonstre uma proposição matemática, é sempre no sentido de pedir-lhe que repita alguma demonstração conhecida que, se quiser até pode encontrar no manual. Como consequência, o uso da língua é muito pobre, quase nos atreveríamos a dizer que o aluno nunca fala da actividade de matemática que realiza. B. Com o acesso da maioria da população ao ensino secundário, fenómeno que teve lugar no nosso país e em outros, durante os últimos vinte e cinco anos, e que culminou com o prolongamento da escolaridade obrigatória e, sobretudo com as profundas mudanças na maneira de entender a escola, a educação e as disciplinas que também se verificou durante os mesmos anos, tornaram-se mais que evidentes os limites de um modelo de ensino como o que acabámos de descrever. Todavia, em vez de proceder a uma análise crítica para manter alguns dos seus aspectos positivos e superar os negativos, foi ganhando força uma segunda opção didáctica que poderíamos entroncar em outros modelos de ensino anteriores ao mencionado em primeiro lugar, arreigados na opinião de que a matemática deve ter um papel prevalentemente utilitário para a grande maioria da população e que, portanto, o seu estudo é necessário para aprender a dominar certas técnicas matemáticas básicas, contribuindo desta maneira para a preparação e inserção da maioria da população na sociedade em que deverá Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 222 viver e em particular, no mundo do trabalho entendido no mais amplo sentido do termo. Não é uma opção que se possa invalidar atribuindo-lhe um carácter pejorativo. É certo que o ensino das matemáticas partilha com as outras disciplinas a tarefa de transmitir às novas gerações os conhecimentos elaborados ao longo da história, muitos dos quais sofrem um processo de naturalização e acabam por ser de uso comum e inconsciente por parte de todos (pensemos nos sistemas de numeração e na sua vinculação ao uso do sistema monetário ou nos sistemas de medidas, alguns tão importantes como o que é utilizado para medir o tempo). Todavia, enfatizar as técnicas matemáticas básicas oculta, muitas vezes, que todas elas resultaram de um trabalho realizado ao longo da história, trabalho que não só as aperfeiçoou mas que para além disso elaborou bases conceptuais mais amplas para as justificar. Nesta opção didáctica, o professor ou utiliza o manual como fonte de exercícios, prescindindo de outras partes que o mesmo pode conter ou prescinde totalmente dele substituindo-o por listas de exercícios. Embora assente nas técnicas matemáticas e na sua aplicação na resolução de problemas, esta opção contribuiu para deslocar para o aluno parte da actividade que o professor desenvolvia na turma. Acrescente-se a isto que muitas vezes o tipo de actividade do aluno é muito limitado: frequentemente, os problemas são formais e só têm como finalidade a aplicação de certas técnicas sem as justificar. Consequentemente, o que mais se valoriza é o resultado final (numérico ou não, mas que quase sempre só admite duas apreciações: correcto ou incorrecto) pelo que, de modo implícito, se valorizam pouco os procedimentos e as estratégias seguidas pelos alunos para obterem o resultado e consequentemente também o duplo papel do erro no processo social de ensino e aprendizagem: como indicador para o professor do processo seguido pelos alunos e como passo intermédio e necessário para a construção de conhecimentos por parte dos alunos. Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 223 C. Continuando a metáfora anteriormente mencionada, pensamos que as matemáticas não podem ser reduzidas a fotografias, a instantâneos do trabalho realizado por outrem; nem podem sequer ser reduzidas a ampliações obtidas com zoom de uma das suas partes para focalizar a atenção apenas nas técnicas utilizadas. Parece-nos que há que avançar na definição de opções didácticas que, sem deixarem de potenciar a actividade do aluno como actividade central no processo de ensino e aprendizagem, se apoiem na ideia de que as matemáticas são o resultado de uma actividade desenvolvida ao longo da história no sentido de proporcionar instrumentos eficazes de análise do mundo natural, social e económico que nos rodeia; e que, portanto, a finalidade do seu ensino é, em nossa opinião, tornar os alunos capazes de interpretar e de construir modelos matemáticos da realidade através de um tipo de actividade didáctica expressamente delineada que permita explicitar as características daquilo que poderíamos denominar de actividade matemática. Os capítulos seguintes devem ser entendidos nesta perspectiva. Através dela será posto em relevo o interesse pelo uso da língua no ensino da actividade matemática 6.6.2 As Matemáticas como actividade humana: as suas características Do ponto de vista antropológico, em vez de falar das matemáticas (que como substantivo nos remete para algo de que se fala num “determinado lugar”, num “certo momento”, isto é, a fotografia) é mais adequado referir-se a actividade matemática, uma actividade que partilha das mesmas características que qualquer outra actividade humana. De entre essas características podemos assinalar quatro como principais: a) É uma actividade que tem uma finalidade, resolver problemas e campos de problemas, gerados por determinadas necessidades sentidas ao longo da Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 224 história. Para dar alguns exemplos dos problemas que deram lugar a uma actividade matemática importante ao longo da história poderíamos mencionar os da medida do tempo, o da orientação local e o da orientação global sobre a esfera terrestre, os três relacionados entre si e estreitamente vinculados a necessidades de organização social e económica comuns a todas as sociedades. b) É uma actividade que tem um aspecto polifónico, isto é, tal como acontece em qualquer outra actividade humana, não tem sentido considerar uma pessoa levando a cabo, isoladamente, uma actividade matemática. Quando alguém realiza uma actividade matemática, explícita ou implicitamente, tem em conta os outros; quer dizer, aquelas pessoas que, também colectivamente, o precederam, aqueles que partilham com ele num determinado momento a urgência de resolver determinados problemas e aqueles que o seguirão. c) O resultado desta actividade podemos considerar que são modelos de sistemas mais complexos que se identificaram e separaram do âmago da experiência humana. O processo que se segue até chegar a estes modelos pode ser denominado e analisado por um observador como processo de modelização matemática ou de matematização. Os modelos elaborados não devem ser entendidos como uma cópia ou uma reprodução de certas partes da realidade, mas somente como representações abstractas, com identidade própria e que se juntam a essas partes da realidade; isto torna claro que os modelos historicamente elaborados podem tornar-se sistemas geradores de novos problemas, desta vez no interior da mesma actividade matemática, que conduzem, pela sua resolução, à elaboração de novos modelos. d) Por último, como toda a actividade humana, a actividade matemática necessita de elementos mediadores, instrumentos semióticos, em particular o uso da linguagem. Uma característica que ganha importância se, de um modo Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 225 coerente, entendemos também a linguagem como uma das tecnologias simbólicas produzidas pela humanidade para comunicar as técnicas necessárias para levar a cabo as diversas acções, os seus resultados e significado, a previsão de possíveis resultados alternativos, etc. Contudo a actividade matemática também gerou formas de linguagem apropriadas quer para levar a cabo os processos de modelização mencionados que a caracterizam (pensemos na linguagem geométrica ou na álgebra) quer para comunicar os seus resultados e facilitar a sua transmissão. Em especial, há que assinalar a importância da linguagem escrita como apoio visível da actividade matemática, que como tal permite reconstruí-la para ser analisada, criticada, validada, etc. 6.6.3 O ensino da matemática como inserção numa cultura Do ponto de vista que entende as matemáticas como resultado de certas actividades desenvolvidas por pessoas e portanto como fenómeno cultural evolutivo, e da visão sociocultural do conhecimento e da aprendizagem exposta no capítulo 1, entendemos o ensino das matemáticas como um processo de aculturação (utilizando uma noção introduzida por Bishop, 1988) cujo objectivo é que as crianças se apropriem de uma parte específica da sua cultura. O núcleo deste processo há-de ser a própria actividade realizada pelos próprios estudantes no contexto social da escola; uma actividade expressamente delineada pelos professores a fim de que os alunos possam viver as formas da actividade matemática características do nosso contexto sociocultural específico. Este modo de entender o ensino das matemáticas há-de materializar-se em propostas didácticas orientadas para encontrar um equilíbrio entre as necessidades de formação de todas as crianças e a necessidade social de as integrar numa cultura historicamente condicionada evitando a ruptura dos vínculos dos alunos com as raízes da nossa cultura; um ruptura que acabaria por tornar impossível a sua participação na “conversação” de que fala Oakeshott (1962): Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 226 Como membros da civilização humana, somos herdeiros, não de uma pergunta sobre nós próprios e o mundo, nem de um corpo acumulador de informação, mas de uma conversação iniciada no bosque primitivo e alargada e que se tornou cada vez mais articulada ao longo dos séculos. É uma conversação que continua em público e no interior de cada um de nós... A educação, estritamente falando, é uma iniciação na competência e participação nesta conversação na qual aprendemos a reconhecer as vozes, a distinguir as formas correctas de expressão, e através da qual adquirimos hábitos intelectuais e morais apropriados à conversação. E é esta conversação que, finalmente, dá passagem e carácter a toda a actividade humana e a toda a expressão. O motivo principal do ensino da actividade matemática na escola é: estabelecer, através da actividade gerada no contexto social da turma, vínculos com a nossa cultura através desta “conversação” com as obras que são ou foram resultado da actividade matemática desenvolvida ao longo da história e que permanecem abertas a novas necessidades e a novos problemas. Só tendo presente este motivo será possível, em nosso entender, proporcionar às crianças uma experiência da matemática como actividade humana que sempre respondeu e continua a responder à necessidade de resolver certo tipo de problemas; problemas que, historicamente, têm estado sempre presentes na origem dos conceitos e dos procedimentos matemáticos. Deste ponto de vista sociocultural da actividade matemática é possível também responder à necessidade cultural de que os alunos dêem significado aos conteúdos matemáticos que se lhes pretende ensinar. Porque só entroncando esses conteúdos nos problemas ou campos de problemas que estiveram ou estão na sua origem é possível justificar o carácter de “instrumentos de conhecimento” que os conteúdos matemáticos tiveram historicamente. Precisamente o carácter que hão-de ter para todas as crianças no momento do seu primeiro encontro com eles (Douady, 1986). Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 6.6.4 A linguagem na actividade matemática: 227 a sua função comunicativa Dirigiremos agora a atenção para uma das características da actividade matemática: a que afirmava que, como toda a actividade humana, necessita de elementos mediadores, instrumentos semióticos, isto é, signos ou códigos e, em particular, a linguagem, para ser levada a cabo. Como foi justificado mais pormenorizadamente no primeiro capítulo deste livro, em toda a actividade social, a linguagem e as outras formas de representação são imprescindíveis. No caso da actividade matemática, como assinalámos anteriormente, não só se utiliza a linguagem comum mas também se utilizam linguagens que a mesma actividade matemática criou expressamente em função do tipo de problemas que teve de resolver (linguagens gestuais, gráficos, numéricos, geométricos, algébricos, etc.). Neste trabalho, queremos apresentar apenas alguns elementos de reflexão sobre o uso da linguagem comum no ensino da actividade matemática e, em especial, sobre o uso da linguagem escrita, mas queremos destacar também a importância da linguagem oral. A linguagem oral é a que o professor utiliza sobretudo para explicitar a sua intencionalidade e os seus objectivos, para introduzir temas, para provocar e orientar discussões, para relacionar o pensamento com a acção, para pôr em evidência experiências partilhadas, etc. Em suma: para agir como regulador da actividade: pode dirigir, guiar, acompanhar a acção; utilizando a linguagem pode ajudar a explicitar e a tornar consciente o processo que, colectiva ou individualmente, foi realizado, pode analisá-lo e avaliá-lo. E não só a linguagem do professor desempenha esta função, mas também desempenha esta função a linguagem do companheiro quando se trabalha em colaboração ou a própria linguagem do aluno quando a acção é interiorizada. Esta função da linguagem, a que podemos chamar função comunicativa foi amplamente discutida, do ponto de vista geral, no primeiro capítulo deste livro. Em relação com a actividade matemática interessa-nos destacar que, através Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 228 desta função, o professor pode estabelecer o “contrato didáctico” e fazê-lo evoluir (Brousseau, 1986). A actividade matemática que se realiza na aula está regulada por uma série de normas que, tacitamente, sem qualquer acordo prévio expresso, regem em cada momento as obrigações recíprocas dos alunos e do professor no projecto de estudo que realizam em comum. Trata-se de um conjunto de cláusulas que evoluem à medida que o processo didáctico avança e que constituem o denominado “contrato didáctico”. É evidente que, apesar do seu carácter implícito, o “contrato didáctico” veicula-se através das interacções verbais (frequentemente orais mas também escritas) que se estabelecem entre uns e outros. E é também através da actividade matemática mediada pela linguagem que o “contrato didáctico” pode evoluir. De um modo particular, há-de evoluir de modo que permita a aceitação do erro nas aulas de matemática, possibilitando assim que este possa desempenhar o duplo papel já mencionado anteriormente; que valorize os diferentes modelos que as crianças podem ter de um mesmo fenómeno, fruto da sua experiência quotidiana ou as diferentes estratégias de resolução de um problema, favorecendo e tornando possível a sua confrontação e discussão; e que aceite (às vezes durante bastante tempo) “modelos de passagem” ou “estratégias parciais”, fruto da história cognitiva da turma, para atingir um conhecimento científico mais adequado aos fenómenos estudados, fazendo-a viver desta maneira, a necessidade social e cognitiva de estabelecer acordos e negociar significados. Se insistimos com tanta ênfase na noção de “contrato didáctico” é porque sem assegurar algumas cláusulas torna-se impossível explorar a fundo outra função da linguagem: a função cognitiva ou de construção de conhecimento. 6.6.5 A linguagem na actividade matemática: a sua função cognitiva Na actividade matemática, a linguagem desempenha um papel chave através da função de comunicação, mas também através da sua função cognitiva, embora na prática ambas as funções sejam inseparáveis. Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 229 A fundamentação geral da actividade matemática que se pratica na escola constituirá o marco que determina as intenções gerais do professor ao levar a cabo qualquer actividade matemática na aula. Falamos de intenções gerais no sentido de que não estão directamente ligadas a um determinado conhecimento disciplinar objecto de ensino e aprendizagem, e que portanto devem ser partilhadas pelo colectivo de professores que trabalham com o mesmo grupo de alunos. Entre essas intenções encontraríamos a de explicitar o género de discurso próprio da instituição escolar, e em particular o discurso próprio de cada uma das disciplinas. Foi precisamente com a finalidade de fornecer elementos para materializar essa intenção que este livro foi escrito. Falaremos em primeiro lugar dessa intenção e mais adiante de duas intenções mais relacionadas com o ensino da actividade matemática, as quais, é desnecessário dizer, devem ser coerentes com tudo o que foi explicado nos capítulos anteriores. A intenção de explicitar o género de discurso próprio da instituição escolar A instituição escolar adopta, para sistematizar o conhecimento que quer transmitir, um certo género de discurso que se caracteriza por alguns elementos de generalização, tais como os de descontextualização, destemporalização e despersonalização. Um género diferente do discurso próprio de outros âmbitos em que as crianças se movem: só a sua explicitação e a análise das características dos diferentes géneros tornará possível que elas possam controlar o seu uso. É inevitável que o género de discurso próprio da escola esteja caracterizado pelos elementos mencionados: um elemento do saber, matemático ou não, está sempre separado do contexto em que foi construído (como instrumento de conhecimento numa situação problemática particular), do tempo em que foi organizada a sua construção (e assim, frequentemente, a organização lógica substitui a organização cronológica da sua emergência), e da pessoa ou pessoas que o construíram. Características que, como a prática nos revela dia a dia, não Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 230 se apresentam de maneira imediata às crianças, que operam num contexto e num tempo determinado e concreto. Precisamente por isso, os professores (e também os professores de matemática) constroem para eles e com eles o género de discurso próprio da escola, organizando itinerários onde caibam os textos estruturados desta maneira, os quais terá de interpretar conjuntamente com os alunos, ou de os confrontar com textos produzidos pelo professor em situações fortemente contextualizadas. Também organizando discussões (C. Lladó, 1996) nas quais o professor tenha a oportunidade de recorrer intencionalmente à estratégia da paráfrase para retomar os contributos de uma criança e transformá-los seja introduzindo explicitamente quantificadores universais (todos, cada um, para cada...) ou substituindo o conector temporal quando por se... então... hipotético. Nesta explicitação e análise do género de discurso próprio da escola será preciso, em particular, falar de um equilíbrio entre os momentos em que as interacções orais se convertem no centro da actividade de ensino e de aprendizagem e outros em que estas se fazem de forma escrita: um equilíbrio chave no ensino actual, sobretudo no campo da actividade científica e matemática onde nos deparamos com o paradoxo de que as interacções entre o professor e os alunos na aula, são, na maioria das vezes, verbais, enquanto os avanços da ciência e da matemática têm sido conseguidos graças à possibilidade do registo escrito, com as suas especificidades de generalização mencionadas, e também, sobretudo, de transformação. Neste sentido há que reconhecer decididamente as evidências, que se nos manifestam dia a dia, de que não se podem separar as capacidades necessárias para a compreensão de textos escritos, das capacidades necessárias para os produzir. Por isso há que trabalhar as primeiras oferecendo aos alunos modelos adequados (modelos que o professor deve oferecer), e fazê-lo de modo estreitamente relacionado com a produção de textos pelos alunos. E isto, inclusivamente em matérias como a Matemática que tem estado até agora muito afastada destas propostas; isto implica que os professores de Matemática disponham de instrumentos de análise dos textos escritos pelas crianças e de Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 231 recursos para poder melhorá-los, como passagem para a construção de um conhecimento matemático partilhado. Podemos analisar uma sequência didáctica para ilustrar esta intenção. É uma sequência que se inicia no contexto do trabalho que se desenvolve no estudo da unidade “Sol e Terra” com crianças do 7.º ano de escolaridade, uma unidade cujo núcleo é o estudo e modelização matemática do fenómeno das sombras produzidas pelo Sol (Berini e Lladó, 1990). A sequência inicia-se exactamente no momento em que, depois de fazer a observação das sombras de estacas verticais de diferentes alturas ao longo do dia, se observou que num dos leques de sombras obtidos faltava uma. Colocou-se então o seguinte problema: como encontrar o comprimento da que falta? Uma vez lançado o problema à turma (28 rapazes e raparigas) o sombra professor propôs que discutissem possíveis vias de solução. O diálogo seguinte é uma parte da discussão que se realizou na turma (durante 45 minutos aproximadamente). O primeiro aluno que intervém, nesta parte aluno (comparar dois leques de sombras que uma é uma encontrar a retoma uma ideia de um outro obtidos com estacas de diferentes alturas e considerar redução à escala da outra) e propõe uma maneira efectiva de boa e escala. (...) 8. Ruben. Deveríamos medir para encontrar a escala. 9. P (Professor). Como encontraríamos a escala? A ideia do Daniel é muito temos de procurar aproveitá-la. 10. Ruben. Medindo este leque e encontrando uma escala que nos permitisse ir exactamente a estas sombras. 11. P. Concretizemos: Proponho que consideremos a sombra das 10h de um leque e de outro. Como encontrar a escala? 12. Daniel. Sim, consideramos a medida da sombra das 10h daquela [indica o obtido com uma estaca de 80cm de altura] e a medida da sombra das David, dividimos uma pela outra e obtemos a escala, e a 10h do leque grupo do escala... 13. P. Toda a gente entendeu: registamos o comprimento da sombra das 10h daquela estaca e dividimo-la pelo comprimento da sombra da estaca do grupo do David... Daniel podes fazer uma estimativa do resultado dessa divisão? 14. Daniel. Por exemplo 1:5 15. P. Se a divisão dá 5 quer dizer que este leque é 5 vezes menor do que aquele. E a escala será 1:5. (Alguém disse: “Seria demasiado pequena”) Alguém pode dar um resultado mais razoável do que este? Todos têm na sua frente os dois leques. Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 232 16. Ruben. 1:7. (Outro diz: “1:3”) 17 Jessica A: 1:2. 18. P. Tens algum motivo para pensar que é 1:2? 19. Jessica. Sim, porque neste leque a altura da estaca é de 80 cm e no outro é de 40 cm, e aquela é o dobro desta. 20. P. Todos ouviram? O que a Jessica disse é importante. Apresentou uma justificação que está para além das medidas; apresentou uma justificação não medida por medida, mas de outro nível. 21. Mª del Mar A. Sim, porque a estaca é o dobro. [...] Embora nesta discussão se tenha elaborado conjuntamente uma possível estratégia de resolução, como indicámos anteriormente, há que fixar o conhecimento adquirido num registo que permita analisá-lo e se necessário modificá-lo. Com essa finalidade, o professor distribuiu por cada um dos alunos uma cópia da transcrição da discussão e fez-lhes o seguinte pedido: “ Escrever um texto descrevendo, de um modo geral, o procedimento para resolver o seguinte problema: Determinar o comprimento da sombra de uma estaca vertical a uma hora determinada conhecendo o comprimento da sombra de uma outra estaca vertical à mesma hora”. Uma aluna escreveu o texto seguinte: Primeiro via quanto mede a estaca, comparava-o com a outra que é o dobro, e se é o dobro as suas sombras também serão o dobro, veria quanto mede a que é o dobro, às 11.15 horas e dividia-o pela escala de uma e de outra. (Jessica 12 anos) Podemos observar que: a) O conhecimento que este texto evidencia é correcto (e na unidade “Sol e Terra” é o tipo de conhecimento que queremos construir: se uma estaca é um certo número de vezes maior ou menor do que outra, a sua sombra é o mesmo número de vezes maior ou menor que a outra. b) O texto não é geral, como pedia o enunciado da tarefa: neste texto fala-se de uma hora determinada e duas estacas que mantêm uma relação determinada (uma é o dobro da outra). Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 233 c) O texto tem problemas de determinação: 1) Quando diz: “Via quanto mede a que é o dobro”, não explica que se refere ao comprimento da sombra. 2) Quando diz: dividia-o pela escala” é a primeira vez que fala de escala: não explicita de que escala fala nem como obtê-la. 3) Quando diz “ de uma e de outra” já não podemos saber de que é que fala. Outro aluno escreve o texto seguinte: Seguiria os seguintes passos: 1. Observar os dois leques de sombras. 2. Tomaria a altura das estacas e dividia-as uma pela outra. 3. O resultado obtido será a escala. 4. Agora tomaria a medida da sombra que nos falta, no outro leque. 5. E o que nos der temos de o passar a escala. 6. Juntamos a nova linha ao leque onde falta, mas primeiro encontraremos o ângulo para saber para onde deve ir a nova linha. Só faremos tudo isto se as medidas das estacas forem diferentes. (José 12 anos) Podemos verificar que este texto é bastante diferente do anterior não só pelo facto de estar escrito indicando as acções que ordenadamente seriam realizadas mas também porque: a) O texto é geral: em nenhum momento, nem sequer como exemplo, fala de uma hora determinada nem da altura das estacas. b) Há um problema relacionado com a tarefa proposta: o problema apenas faz referência ao modo de calcular o comprimento da sombra e não ao problema que pressupõe o seu desenho. Poderíamos dizer que houve um problema de “compreensão do texto que define a tarefa”, mas o resultado não é negativo. Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 234 c) Também levanta problemas de determinação embora menos graves do que os do texto anterior: 1) quando escreve “dividia-as uma pela outra” deveria ter explicitado que divisão faria, se “ altura da estaca com sombra conhecida pela altura da estaca com sombra desconhecida” ou “ altura da estaca com sombra desconhecida por altura da estaca com sombra conhecida”. 2) Quando escreve “mediria a sombra que nos falta, no outro leque”, escreve uma frase sem sentido (não pode medir-se uma coisa que nos falta) embora queira manifestar um raciocínio correcto: temos de tomar o comprimento da sombra conhecida correspondente à mesma hora da sombra desconhecida da qual queremos conhecer o comprimento. 3) Quando escreve “temos de o passar a escala” certamente referese à medida da sombra e portanto o género do pronome não concorda com o género do nome. Comentámos pormenorizadamente os dois textos para “mostrar” o tipo de análise que em certos momentos se deve fazer das produções dos alunos (e com as quais se descobre a sua riqueza e potencialidades): mas o fundamental é que o primeiro texto não é geral mas o segundo é. Esta diferença fundamental tendo em conta a tarefa proposta, levou o professor a devolver à turma os dois textos (como protótipos do conjunto de textos produzidos por todos os alunos da turma) distribuindo pelos alunos uma cópia de cada um dos textos. Face a eles, pôs em destaque as diferenças entre um e outro, mostrando assim o significado de “texto geral”. Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 235 Para terminar este exemplo, poderia ser interessante resumir a sequência didáctica descrita em três momentos: - Discussão colectiva. Reconstituição da discussão através da leitura da sua transcrição. - Produção individual de um texto geral para resolver um certo tipo de problemas. - Confronto de textos com a finalidade de mostrar o significado de “texto geral”. A intenção de que a actividade matemática apareça como uma construção social É evidente que, em coerência com o que dissemos nos primeiros capítulos, esta há-de ser uma das intenções centrais do ensino da actividade matemática. Que esta característica não seja clara para os alunos implica para o professor a necessidade de trabalhar para a explicitar. Esta intenção pode desenvolver-se através de formas de actuação específicas por parte do professor tais como: - a valorização explícita da actividade colectiva da turma; - o recurso crítico a fontes externas que representem a cultura existente num dado momento; - a reconstrução histórica dos processos de aprendizagem de cada aluno, da turma, e do grupo social de que faz parte. E de modo mais concreto, nas discussões que podem ter lugar na aula, isto pode fazer-se através de estratégias como: - as estratégias de provocar uma discussão, em que o professor reconstitui a história da turma em relação com o tema que se vai discutir; ou as estratégias de relançamento da discussão, em que o professor refere algumas intervenções individuais, destacando mudanças e evoluções de estratégias, Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 236 inserindo-as no processo colectivo, ou - o uso intencional de “nós” para referir conquistas colectivas. Para ilustrar esta segunda intenção queríamos centrar-nos na utilização na sala de aula de fontes externas que representam a cultura existente num dado momento: esta utilização parece ser, de entre outras, uma boa estratégia didáctica para estabelecer vínculos entre a história da turma e a história cultural da ciência e da matemática. As fontes utilizadas em algumas sequências didácticas com crianças de 3.º Ciclo são textos originais de alguns cientistas que consideramos chave na história da ciência e da matemática. A introdução pelo professor de um texto original faz-se em função de introduzir na turma uma”voz” externa. A experiência humana não fala por si mesma, necessita de “vozes” originais que a interpretem; essas “vozes” produzidas numa situação social determinada, são gradualmente reconhecidas pela sociedade e convertem-se numa forma compartilhada de falar da experiência humana. Uma vez introduzidas na turma, as crianças reconhecem-nas como pertencentes a pessoas reais com as quais podem estabelecer um diálogo imaginário através do espaço e do tempo. A partir deste ponto de vista, podem delinear-se propostas didácticas que concretizem a ideia de M. Oakeshott, de participar na “conversação” que nos caracteriza como membros da civilização humana. Um primeiro exemplo de sequência é o que se seguiu no final da unidade “Sol e Terra” já mencionada. Após a modelização de sombras através dos raios solares que chegam paralelamente à Terra e a resolução de diversos problemas utilizando esse modelo, apresentou-se Tales de Mileto a partir de textos originais de Diógenes, Laércio e Plutarco, textos em que se fala de Tales e dos seus trabalhos. A partir daí as crianças procuraram mais informação, que se completou com imagens das pirâmides de Keops nas quais se observam muito bem as sombras que produzem em diferentes horas do dia. A actividade central desta sequência didáctica foi a proposta seguinte: “Imagina que eras Tales de Mileto. Escreve um texto geral parecido ao que Tales de Mileto terá deixado no seu testamento para explicar aos seus discípulos a sua Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 237 importante descoberta. Se quiseres podes ilustrar o teu texto com um desenho.” Uma menina começou assim o seu texto: “Eu, Tales de Mileto, deixo expostas neste manuscrito todas as minhas ideias como matemático [...]” (Anabel, 13 anos) Não vamos analisar agora o texto completo, contudo parece-nos interessante esta introdução pois demonstra até que ponto os alunos podem assumir uma “voz” histórica e escrever um texto “à maneira de...” Outra sequência didáctica que nos parece interessante mencionar é a que faz parte da unidade de “Genética” (Lladó e Boero, 1997). Nesta unidade entra-se em relação com o texto original de Mendel que fala da hibridação de plantas. Num dado momento, após uma leitura de alguns excertos que dão início ao texto de Mendel, pediu-se aos alunos que continuassem o texto: “Neste texto, Mendel acaba dizendo quais vão ser os resultados dos cruzamentos que nos descreveu e que vai realizar. Que pensas que ele vai observar? Que resultados pensas que ele vai obter e que nos relatará no seu texto?” Esta proposta obriga os estudantes a elaborar hipóteses sobre as características físicas das plantas híbridas, hipóteses que poderão ser contrastadas com os resultados observados por Mendel, os quais se encontram na continuação do texto. Através deste tipo de propostas, os alunos explicitam os modelos que utilizaram para interpretar o fenómeno da hereditariedade. Modelos que, materializados num texto escrito se convertem numa “voz” em diálogo com Mendel. Para interpretar as características das plantas híbridas, um aluno escreve: “Eu creio que a nova planta terá um caule como a mãe. Se a planta-mãe tiver um caule curto, creio que a planta-filha terá tendência a herdar mais da mãe do que do pai, e terá um caule curto” (Fausto, 13 anos). “Eu creio que será como plantamãe porque é esta que tem o óvulo” (Jennifer, 13 anos). “Vozes” sobre as quais o professor não pode passar por alto, posto que recuperam uma “voz!” histórica que levantava a hipótese do predomínio de um sexo sobre o outro (Leeuwnhoek, 16731723). É interessante notar que ao situar a proposta no contexto de estudo da obra de Mendel, os alunos vêem-se forçados a escrever textos que começam por “Eu Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 238 creio que...” um indício da sua implicação na actividade que estão levando a cabo. Uma implicação que nasce, em nosso entender, da consciência de que as suas hipóteses se verão contrastadas de maneira imediata com a “voz” de Mendel que continuará “a narrar” as suas experiências. Por outro lado, os alunos devem explicitar os modelos que utilizam, pois em caso contrário, convertem-se em obstáculos para avançar no modelo probabilístico proposto por Mendel para explicar as leis da hereditariedade. Esta sequência didáctica acabou confrontando os alunos com uma situação de codominância. Uma das questões propostas era a seguinte: “Mendel estava convencido das suas ideias, e os resultados dos cruzamentos que fez com a “Bella de noche”confirmavam essa ideia. Se fosses Mendel como interpretarias os resultados obtidos com esses cruzamentos?” A situação “força” os alunos a situarem-se na posição de Mendel e portanto a adoptar a sua teoria. Um aluno escreveu: “Se eu fosse Mendel, explicaria os resultados deste modo e seguindo os seguintes passos: a) Cruzando as primeiras plantas, nascem plantas com flores cor de rosa porque creio que os genes dominantes fazem as cores e produz-se uma mescla. b) Se os dois genes são dominantes, na segunda geração os pais teriam os genes BV e BV, portanto os resultados dariam BB, BV, VB e VV, portanto nestes resultados sairiam outra vez três tipos de plantas” (Javier, 13 anos). Um raciocínio que lhe permite acabar por dar correctamente as percentagens de plantas com flores de cada cor que, aproximadamente, acabariam por aparecer na segunda geração. Como dissemos anteriormente, poderíamos acabar estes exemplos resumindo esta útima sequência didáctica em três momentos “fortes”: - Primeiro encontro com a obra de Mendel através do seu ensaio original. - Antecipação de novos excertos do texto: elaboração de hipóteses pelos alunos. Confronto com os factos observados. Elaboração de modelos que permitam interpretar os factos observados. - Adopção da “voz”de Mendel e, indirectamente, do seu quadro teórico para interpretar uma nova situação relacionada com a hereditariedade. Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 239 A intenção de fazer utilizar a linguagem como instrumento de conhecimento A intenção de fazer utilizar a linguagem como instrumento de conhecimento gera a necessidade de criar situações em que as actividades de modelização e de resolução de problemas levem os alunos a participar no “jogo social de conhecer”: a verbalização escrita ou oral da modelização ou do processo de resolução de um problema permite o seu intercâmbio e o seu confronto, que leva os alunos a argumentar as suas opções e, portanto, a controlar o próprio processo de modelização ou de resolução relacionando os diferentes modelos ou soluções com a situação problemática inicial. A linguagem assume então um papel mediador na interacção social entre os alunos e entre estes e o professor. O pedido sistemático de verbalização por parte do professor favorece nos alunos a construção (por interiorização das interacções sociais já vividas e das imaginadas no futuro) de um “espaço mental” em que se podem mover utilizando uma “linguagem interna” para decidir caminhos de resolução, para avançar argumentos e contra argumentos, para controlar o próprio processo de modelização ou de resolução, para voltar atrás e refazer o caminho ou para mudar de ponto de vista: em suma, podem utilizar a função planificadora da linguagem. Daqui derivam, pois, algumas estratégias do professor: - o pedido sistemático de acompanhar a modelização ou a resolução de problemas com a verbalização do processo seguido; - a realização de comentários individuais críticos à modelização ou resolução de outros; - a proposta sistemática de discussões e a análise retrospectiva dos respectivos protocolos; - a introdução durante as discussões de termos, locuções e “formas de falar” que ajudem os alunos a expressar melhor o seu pensamento; - a explicitação dos momentos de tomada de consciência dos significados Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 240 cristalizados em determinadas palavras e expressões mais complexas. Ilustraremos estas ideias com um texto escrito por uma aluna do 12.º ano. Numa determinada sequência didáctica, depois de estudada a função exponencial (fórmula de uma função exponencial, gráfica de uma função exponencial, características desta gráfica segundo os valores dos parâmetros, crescimento e decrescimento assíntota) foi proposta aos alunos a seguinte tarefa: “Construam um gráfico da função exponencial f(x)=ex, utilizando os eixos de coordenadas graduados com a mesma unidade. Estudar qual a função derivada (isto é aquela função que nos dá os valores da derivada em cada ponto do gráfico) (Nota devem rever nos apontamentos do 11.º ano o que significa a derivada e como pode achar-se graficamente)”. A referida aluna escreveu o texto seguinte e acompanhou-o com o gráfico da função realizado em papel milimétrico: Para obter a função derivada f(x)= ex, há vários métodos: 1. Podemos recorrer às normas de derivação, mas não encontrei nenhuma para este tipo de função: 2. Pode recorrer-se também ao método gráfico que consiste em traçar uma tangente ao ponto a analisar e depois medir os graus para poder operar com a calculadora e achar a tangente. 3. Pode ainda empregar-se o método analítico, cálculo de que também se extrai o valor da derivada, ou o que é o mesmo, o coeficiente angular. Eu utilizarei o método analítico [Em seguida calcula as taxas médias de variação entre dois pontos próximos do ponto onde quer achar a derivada. Isto repete-se em três ou quatro pontos]. Entre estes pontos que escolhi para extrair os valores da função derivada observei que os resultados obtidos tinham os mesmos valores que obtive ao fazer a tabela de f(x)=ex antes de fazer o seu gráfico. Isto significaria que a função f(x)=ex e a sua função derivada f’ são iguais, isto é, os valores do coeficiente angular de f(x)=ex nos diversos pontos do gráfico são os mesmos que obteríamos se nos fixássemos nos mesmos pontos do gráfico f(x)=ex. Pode ser assim porque os pontos onde f’ é positiva a função f é crescente e viceversa. Também se observa que a função derivada não toma nenhum valor 0, e, portanto a função f(x)=ex não tem nenhum máximo nem mínimo. Por isso as duas funções f e f’ são iguais, pois as relações entre as duas concordam. (Noelia, 17 anos) Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 241 Cremos que em certos momentos da actividade matemática se deve dar prioridade à reflexão sobre o próprio trabalho, ao esforço em relacionar métodos diferentes, a relacionar os resultados de diferentes métodos, etc. Só a partir deste trabalho será positivo e terá sentido, delinear a utilização de certos métodos e de certas técnicas por razões “económicas”. O exemplo dado pretende ilustrar que através da linguagem (materializado num texto que tem características de um texto descritivo e também de um texto argumentativo) é possível estabelecer um diálogo com os alunos no sentido de construir determinadas ferramentas matemáticas para a resolução de problemas. Mas o professor não pode limitar-se a incentivar os alunos a explicarem, a expor as suas ideias, a valorizá-las e a devolvê-las à turma: também deve estar presente antes, durante e depois da acção didáctica. Antes, para planificar e preparar o cenário tendo por base uma análise atenta do saber que está em jogo; durante, para estimular a acção, criar e pôr em relevo situações de conflito, sugerir explicitamente o recurso a instrumentos culturais que não podem ser construídos pelos alunos com base na sua experiência; depois, para dar forma ao saber construído e introduzir na memória da turma os novos instrumentos matemáticos, de modo estável. A tarefa do professor pode parecer cada vez mais complexa. Queremos ilustrar no capítulo seguinte como esta complexidade se torna clara no marco das ideias vigotskianas ou da perspectiva sociocultural, desenvolvida no primeiro capítulo, comentando o caso de dois aspectos da actividade matemática que cremos fundamentais: a elaboração e a gestão de hipóteses e a demonstração matemática. 6.6.6 A elaboração e a gestão de hipóteses. A demonstração No processo de modelização matemática de determinados fenómenos ou de resolução de problemas, podemos considerar que os alunos têm de elaborar certas hipóteses para avançar no referido processo. Aqui não utilizamos a palavra hipótese no sentido de uma certa proposição Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 242 no interior de uma lógica hipotético-dedutiva, mas no sentido de um enunciado que comunica, depois de um pedido convenientemente feito (pelo próprio ou por outra pessoa), a imagem de uma realidade possível escolhida de entre uma gama de possibilidades de resposta, e, ao mesmo tempo, acto de pensamento que está por detrás da imaginação e a selecção desta realidade possível (Boero e Ferrero, 1994) Inicialmente, no momento de elaborar hipóteses para avançar no referido processo de modelização o de resolução, muitos alunos produzem textos (orais ou escritos) que se aproximam daquilo que poderíamos qualificar mais de “expressão de uma opinião” do que da “elaboração de uma hipótese” no sentido que indicámos, pois a imagem de uma realidade possível não foi seleccionada numa gama de possibilidades (o aluno exprime “a primeira ideia que tem” como hipótese) nem tão pouco esta realidade possível é acompanhada de qualquer intenção de ser validada frente a outras realidades (e portanto, por detrás dela, não há sequer qualquer proposta de método de validação). Contudo há evidências de que a capacidade de elaborar hipóteses e de as gerir por parte dos alunos aparece ou se desenvolve através do processo de interiorização (no sentido de L. S. Vigotsky) de certas interacções vividas no contexto social da aula. Assim, se os estudantes tiverem a possibilidade de participar num processo de interacção social (delineado pelo professor) com a utilização da linguagem como elemento mediador, em que cada “opinião” expressa necessite de ser argumentada (dado que pode ser contra argumentada pelas “opiniões” e argumentos dos outros) entram numa dinâmica social que comporta, no primeiro momento, tomar consciência do possível leque de possibilidades que uma mesma situação (de modelização ou de resolução) pode comportar. No segundo momento, a comprovar que a “verdade” expressa na sua “opinião” pode estar em contradição com as expostas pelos seus companheiros e portanto são “forçados” a entrar num processo de validação. A “opinião” manifestada no primeiro momento converte-se cada vez mais numa hipótese no sentido que lhe demos. É evidente que o processo de interiorização do jogo social da confrontação, Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 243 num primeiro momento de “opiniões” e mais tarde de hipóteses, é um processo longo, durante o qual e de maneira simultânea haverá que ir construindo também as competências cognitivolinguísticas necessárias para o levar a cabo e, portanto, pondo à disposição dos alunos as ferramentas linguísticas que o acompanham. Se uma hipótese é caracterizada por uma crença ou uma afirmação (escolhida de entre um leque de possibilidades mais ou menos amplo segundo os casos) e de uma justificação (que poderia dar lugar a uma verificação) é claro que os textos, orais ou escritos que os alunos produzirão no momento em que elaboram as hipóteses pertencem à categoria dos textos justificativos ou à dos argumentativos. Do ponto de vista da actividade matemática, a diferença entre um e outro tipo de texto é subtil e frequentemente depende do momento da sequência didáctica em que foram produzidos (isto é, dependem mais de aspectos pragmáticos do que da própria estrutura textual): quando se pretende informar ou defender um ponto de vista perante outras pessoas temos de recorrer à justificação ou à argumentação. No contexto da actividade matemática, a justificação ou a argumentação são actos comunicativos que podem concretizar-se em textos orais ou escritos, com a finalidade de informar o interlocutor acerca do sentido que tem uma crença-afirmação (seja sobre um facto, um procedimento ou um ponto de vista) e dar-lhe elementos para que a aceite como correcta ou ajustada no quadro da situação problemática em que tanto um como outro estão implicados. Esta introdução parece-nos necessária para poder entender melhor os exemplos que queremos apresentar. O primeiro exemplo tem interesse porque ilustra como situações “elementares” num primeiro momento, se convertem no germe de actividades discursivas importantes para os alunos. Com alunos de 11 anos da escola “O Focherini” de Carpi (Itália) estudamos se a sombra de uma pessoa está ou não em proporção com o seu corpo. Isto para os alunos, era um problema porque durante uma observação das Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 244 suas sombras no pátio da escola, uma aluna considerou que as sombras pareciam “desproporcionadas” pois a sombra da cabeça “parecia muito pequena”. Na aula, depois de um certo número de dias de trabalho (discussão do significado de proporcionado e desproporcionado, observações e medições no pátio, redacção de conclusões, confrontação de textos) chegou-se à seguinte formulação: A sombra está em proporção com o corpo porque se a minha cabeça está um certo número de vezes na sua sombra, então o meu tronco está o mesmo número de vezes na sua sombra. Fixemo-nos na estrutura deste conhecimento: a) Crença-afirmação: “A sombra está em proporção com o meu corpo”. b) Justificação: “Se a minha cabeça está um certo número de vezes na sua sombra, então também o meu tronco está o mesmo número de vezes na sua sombra”. O importante é que o enunciado que justifica a crençaafirmação se aproxima da forma de um enunciado matemático (Se....então....). Em contrapartida, noutra turma, para onde se tinha “transportado” o problema, os alunos chegaram à formulação seguinte: A sombra está em proporção porque se a minha cabeça está um certo número de vezes no meu tronco, então a sombra da cabeça também estará o mesmo número de vezes na sombra do tronco. Podemos ver que a crença-afirmação é a mesma, mas não a justificação. O professor decidiu “transportar” para cada turma o texto da outra: podemos interpretar esta decisão pensando que deste modo se criava uma situação nova que “forçava” os alunos a produzir argumentação posto que se Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 245 encontravam na necessidade de confrontar duas justificações do mesmo nível. O outro exemplo que queremos apresentar, também no contexto do estudo das sombras do Sol, mostra a necessidade de encontrar situações suficientemente ricas que facilitem o delineamento de tarefas destinadas a forçar a produção de argumentos que possam, num segundo momento, converter-se elas mesmas em actividades de estudo. Com alunos do 8.º ano que já tinham estudado nos anos anteriores a unidade “Sol e Terra”, trabalharam-se e ampliaram-se os conteúdos da geometria. O problema principal que se colocou derivava da necessidade de representar num plano a situação tridimensional formada por uma série de estacas verticais presas ao solo e pelas suas sombras. No âmbito desta situação formulou-se o exercício seguinte: “Sabemos que, na realidade, os ângulos formados pelas estacas e as suas sombras são todos iguais, a 90º. Pensa porque é que na fotografia os ângulos formados pelas estacas e as suas sombras não são todos iguais”. Juntava-se a esta proposta uma fotografia de uma situação que eles tinham observado directamente no pátio. Podemos ver que o tipo de tarefa forçava a produção de textos que poderíamos considerar argumentativos. Entre os diversos textos encontrámos o seguinte: Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 246 Os ângulos não são vistos todos iguais, mas se eu me situasse noutro lugar os ângulos seriam vistos diferentes, mas algo parecidos, mas também depende de onde está situado o Sol, porque se são três estacas e o Sol estivesse entre a estaca da esquerda e a do meio as sombras seriam vistas de outra maneira, por isso não se vêem sempre iguais os ângulos formados pelas estacas e as sombras (Jessica, 13 anos). Embora esta aluna justifique que os ângulos nunca são vistos iguais, e não que de uma determinada posição os ângulos de estacas diferentes com as suas sombras são diferentes, é um texto em que há indícios de raciocínio pelo absurdo (...Mas se eu...), um raciocínio que neste caso está ligado à experiência de mudar de “ponto de vista” não no sentido metafórico mas no sentido físico da expressão de mudar de posição para ver outra coisa ou outro aspecto do problema. O outro caso, importante para caracterizar a actividade matemática como actividade específica e diferenciada de outras actividades humanas, é o da demonstração matemática. Tanto a necessidade da demonstração (que muitas vezes há-de revelar-se, contrariamente à capacidade de argumentar que a maioria dos alunos possui) como a capacidade de a utilizar para resolver problemas próprios da matemática, podem ser interiorizados a partir da prática da interacção social, na condição de que o diálogo envolva não só os alunos e o professor presentes na turma mas também os representantes da cultura matemática (isto é, o professor e os matemáticos, neste caso através dos seus textos escritos) que são quem determina as regras de aceitação de uma demonstração, com determinado rigor, num momento preciso. Neste caso, o processo de interiorização de Vigotsky não só permite clarificar um problema didáctico complexo (o do ensino da demonstração) mas também que este processo é coerente com a própria história do conceito de demonstração matemática, uma história em que se combinam intimamente as Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 247 motivações internas da matemática com as motivações sociais externas. Pensamos que a prática da demonstração no ensino obrigatório é difícil e que ainda é necessário acumular um grande número de experiências para poder delimitar quais os âmbitos mais produtivos para a levar a cabo. É evidente que há que encontrar esses âmbitos, pois de outro modo podemos levar os alunos a uma actividade matemática “empirista” onde nunca se coloca a necessidade de argumentar e de estruturar os argumentos de um ponto de vista lógico. Mas também é evidente que não estamos a pensar numa reprodução de demonstrações sem sentido como as que frequentemente se encontram nos manuais, que respondem mais a exigências de “apresentação” dos conteúdos do que a pôr em relevo uma característica da actividade matemática. Como continuação da sequência didáctica a que fizemos referência, realizada com alunos de 8.º ano, trabalharam-se alguns resultados sobre igualdade dos ângulos (em particular a igualdade dos ângulos obtidos cortando um feixe de rectas paralelas por outra recta; um resultado que generalizava o modelo dos raios de Sol como feixe de rectas paralelas, que formam com o solo horizontal um mesmo ângulo de incidência). Num dado momento, pediu-se aos alunos que demonstrassem que “Os ângulos de um triângulo medem 180º”. Esta tarefa apareceu como um tipo de trabalho que os pode “forçar” a produzir as “primeiras” demonstrações que podem ser, num segundo momento, como outras vezes, objecto de reflexão e portanto, primeiros modelos de demonstrações matemáticas. Uma aluna escreveu o texto seguinte: Suponhamos que temos um triângulo. Denomino os seus ângulos α β e γ. - Prolonguemos a recta 1 e tracemos uma paralela que seria a recta 2. - O ângulo α seria o mesmo que o oposto ao vértice e o seu correspondente que iria ao lado de β. - Depois tomemos o ângulo γ que seria o mesmo que o oposto ao vértice, e Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 248 tracemos o seu correspondente que iria também ao lado de β e estariam desenhados sobre a recta paralela 2, e como uma recta tem 180º, o desenho dos três ângulos sobre a paralela 2 mediria 180º (Carmen, 13 anos). Verifica-se que esta aluna ordena conhecimentos anteriores de uma forma lógica com a finalidade de obter um resultado que supõe certo (porque se o professor lhe pede isso naquele momento, então deve ser certo, ou porque a minha experiência, guiada ou não, me levou a conhecer esse resultado). O que mostra a potencialidade deste tipo de tarefa é que outra aluna escreveu um texto totalmente diferente: Num triângulo, suponhamos que os seus ângulos são α β e γ. - Traço um paralelogramo dobrando este triângulo. Se anteriormente tínhamos dito que os ângulos de um paralelogramo mediam 360º, a metade é o triângulo que tínhamos e a metade de 360º é 180º (Ana M.ª, 13 anos). Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 249 Estes exemplos mostram que a demonstração matemática supera a função social de manter um ponto de vista ou de convencer um interlocutor através de uma actividade mental que tem valor em si mesma para quem a executa: a finalidade da demonstração, é, frequentemente, sistematizar teoricamente os conhecimentos. Por isso, na demonstração matemática, diferentes afirmações encadeiam-se de maneira lógica no interior da qual as diferentes afirmações têm papéis específicos segundo o lugar que ocupam (axiomas, postulados, teoremas...) 6.6.7 As competências cognitivolinguísticas e a sua pragmática na actividade matemática No ponto 6.3 (correspondente à área da Língua) foi posto em destaque que o processo de comunicação comporta três sistemas de conhecimento interrelacionados: - O sistema de ideação que se refere à representação que se tem do mundo, e portanto ao ponto de vista de quem o interpreta: em suma, ao conjunto de conhecimentos disciplinares. - O sistema textual, que corresponde a formas linguísticas determinadas e que se refere ao modo como se organizam as mensagens entre a lógica e a retórica. - O sistema interpessoal, relacionado com as formas da pragmática que regulam o discurso. Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 250 A aprendizagem de uma língua inclui a aquisição de saberes dos três sistemas. Que um dos sistemas tenha a ver com a visão do mundo torna coerente que coloquemos o papel da linguagem nas situações de ensino e aprendizagem da actividade matemática. Ao longo dos primeiros capítulos deste livro estabeleceram-se relações entre as competências cognitivolinguísticas e as diferentes tipologias textuais. Também foi dito que as tipologias textuais não podem ser consideradas como um aspecto essencial do ensino da Língua e, consequentemente do ensino da actividade matemática, mas são um recurso que devemos pôr à disposição dos alunos para melhorar as competências referidas para que possam apropriar-se das características da actividade matemática próprias da nossa cultura. Nos exemplos apresentados nos capítulos anteriores não pretendemos enfatizar as tipologias textuais, mas sim ilustrar a sua necessidade para melhorar a acção do professor antes, durante e depois da actividade didáctica. Em suma, quisemos explicitar a necessidade de: a) Criar situações comunicativas relevantes. b) Colocar os alunos em situação de produção de textos a partir do início da escolaridade. c) Considerar os textos produzidos pelos alunos como unidades de comunicação e de análise. d) Abordar a análise dos textos a partir do modo como se organizam, a partir das regras da pragmática que regulam a sua utilização e das regras da semântica. Através dos exemplos apresentados, vimos que no âmbito da actividade matemática, certas tarefas levam à produção e análise de textos descritivos (por exemplo na descrição das acções a realizar para resolver determinados problemas) mas estes textos podem considerar-se um primeiro passo de uma continuidade que se liga com os textos explicativos e justificativos. Em contrapartida, outras tarefas podem levar à produção de textos justificativos como primeiro passo de outra continuidade que se une com os textos argumentativos e Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 251 demonstrativos, estes últimos específicos da actividade matemática. Com tudo isto, e de acordo com o contexto sociocultural do ensino e da aprendizagem, cremos que se tem de ter em linha de conta a interacção social entre as pessoas, entre todos os implicados numa determinada situação social de ensino e de aprendizagem. Segundo isto, pode ser interessante apoiar-se nos interlocutores que participam em qualquer situação deste tipo e nos papéis que desempenham, com a intenção de provocar a tomada de consciência da importância da situação didáctica que se cria com a finalidade de “forçar” certas produções dos alunos mais do que a definição exaustiva de objectivos didácticos (García-Debanc, 1994). Voltaremos pois a analisar, de um ponto de vista pragmático, cada uma das competências cognitivolinguísticas já referidas noutros capítulos deste livro: 1. Um interlocutor A dá uma explicação a B quando pretende modificar o estado de conhecimento desta relação com um fenómeno determinado. Os interlocutores A e B compartilham o mesmo fenómeno e as mesmas questões relacionadas com o fenómeno: porquê?, como? O interlocutor A pretende modificar o estado de conhecimento de B pondo em causa as diferentes variáveis do fenómeno, ou relacionando o fenómeno com os discursos e com as formas de representação já elaboradas sobre outros fenómenos. Portanto, em suma, estabelecendo relação entre o mundo das ideias e o fenómeno. A apropriação do discurso e das formas de representação permitirá a B dizer que pode explicar o fenómeno perante a exigência de A de justificação de uma asserção em relação com o fenómeno que se pretende explicar. Em certas situações, o interlocutor B aceita a possibilidade de que A modifique o seu estado de conhecimento, mas amiúde o interlocutor A modifica o seu estado de conhecimento não do fenómeno mas do “conhecimento que B tem do fenómeno”. Deste ponto de vista pragmático podem entender-se os diferentes significados da palavra “explicação”. Assim, não se utiliza da mesma maneira esta Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 252 palavra em situações como as que se verificam nas seguintes frases: “A professora explicou-nos que sentimos o cheiro de um frasco de perfume, de uma ponta da casa até à outra, porque as partículas se movem em todas as direcções”. “O professor pediu-me que explicasse por que é que o êmbolo retrocede”, “Não entendo, pedi a Juan que me explicasse por que é que faz mais calor no Verão do que no Inverno e ele respondeu-me que é porque o Sol está mais perto da Terra”. E ao mesmo tempo, permite-nos entender que não nos referimos ao uso que se faz nas situações que dão lugar a frases como” Exijo uma explicação!” “Por favor, explica-me o filme que viste ontem”. 2. Diremos que um interlocutor A exige a um interlocutor B uma justificação de uma asserção ou de um comportamento dele. Esta exigência é possível dada a posição moral, ética ou de autoridade de A em relação a B. Entendemos que esta é a situação inicial em que se encontram o professor e o aluno, uma situação que o professor se propõe fazer evoluir. Por justificação entendemos tanto a acção que B realiza como o resultado desta acção. Como toda a acção, tem um objectivo: fazer com que A aceite uma asserção ou um comportamento perante a dúvida sobre a asserção ou a rejeição do comportamento. A asserção ou o comportamento objectivo da justificação já foi explicitado ou produzido quando A exigiu e portanto são anteriores à justificação de B. Na actividade matemática é frequente pedir a justificação de um trabalho realizado. Assim por exemplo, pode pedir-se: “Determina o momento em que a população de bactérias estudadas é igual a 2 milhões. Justifica o procedimento seguido”. Fará parte do “contrato didáctico” estabelecido que esta segunda parte da tarefa seja vivida pelos alunos com finalidades de valoração da sua produção e/ou também com outras finalidades tais como avaliar o processo seguido na resolução da tarefa, para além do resultado, ou possibilitar a intervenção e ajuda do professor ao aluno ou aluna num momento posterior. 3. Em contrapartida, diremos que um interlocutor A argumenta com um Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 253 interlocutor B (presente ou não fisicamente) quando A participa numa conversa com B, com o objectivo de fazer comparticipar B no próprio sistema conceptual a fim de que B proceda como A. A deve saber que B não compartilha o mesmo sistema de valores ou o mesmo sistema conceptual ou há-de intuí-lo pela maneira como B actua. No primeiro caso, B explicitou a sua “posição”, no segundo caso, A “deve avançar e prever “a posição” de B. É a consciência que A tem da “oposição” de B que transforma a conversa (com as suas características) em argumentação. A argumentação move-se no mundo das ideias, e consequentemente é possível que a argumentação possa ser caracterizada de modo diferente no interior de cada uma das ciências constituídas. 4. Por último, no interior da Matemática, diremos que um interlocutor A demonstra a um interlocutor B uma asserção quando modifica o estatuto desta em função do lugar que a leva a ocupar dentro de um encadeamento de asserções já aceites segundo as exigências da disciplina. Frequentemente a primeira asserção é explicitada no primeiro momento. Neste caso, B aceita o novo estatuto da asserção apenas por aceitar conjuntamente com A o sistema de exigências socialmente compartilhadas no interior da disciplina. Comentários finais Nos capítulos anteriores quisemos apresentar algumas ideias sobre o uso da linguagem na actividade matemática. Estamos conscientes de que há muitos aspectos a aprofundar muito mais. Por exemplo, não fizemos qualquer comentário acerca da descrição de “objectos” matemáticos: uma competência cognitivolinguística que noutras disciplinas pode ser e há-de ser desenvolvida gradualmente sob muitos pontos de vista e desde muito cedo: a descrição de seres vivos e de fenómenos em Ciências, a descrição de objectos, artefactos e máquinas em Tecnologia e/ou a descrição de personagens e ambientes em Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 254 Língua e Literatura. Em determinado momento referimo-nos à descrição de acções (por exemplo a descrição do procedimento a seguir para resolver um determinado tipo de problemas) mas não desenvolvemos mais a descrição por falta de experiência na aula sobre como trabalhá-la e também porque nos parece que, no interior da actividade matemática terá que adoptar características diferentes e específicas: entre outras, a de estar muito mais vinculada ao âmbito da definição (outra competência cognitivolinguística de que já falámos) e ao âmbito da demonstração. Queríamos por fim, comentar os exemplos apresentados. Optámos por descrever sequências didácticas em vez de exemplos pontuais com a intenção de explicitar a nossa convicção de que o trabalho das competências cognitivolinguísticas no interior da actividade matemática é um trabalho a longo prazo. E que portanto há que encará-lo numa perspectiva recorrente ao longo dos ciclos de escolaridade, procurando constantemente os momentos mais adequados para provocar os saltos qualitativos necessários a fim de que os alunos atinjam, ao longo da escolaridade obrigatória, um bom domínio das referidas competências. Desnecessário é dizer que os textos foram escolhidos de entre um amplo leque de textos produzidos por todos os alunos. Este leque inclui inevitavelmente a diversidade que se encontra nas nossas aulas: mas parece-nos que no nosso modelo de ensino da actividade matemática, esta diversidade não é o “problema principal” da gestão da aula, mas a condição necessária para implicar todos os alunos na aprendizagem desta actividade específica, a actividade matemática. Portanto não queríamos em qualquer caso dar a entender, com os exemplos apresentados, que as propostas didácticas coerentes com as ideias que expusemos possam ser “a solução” para os “nossos problemas como professores” (que frequentemente são mais por falta de “delimitação” do próprio problema do que por falta de “respostas”). Apenas pretendemos “mostrar” que se quer incorporar na sua prática como professor de matemática novos aspectos (no nosso caso, o trabalho das competências cognitivo linguísticas e de modo Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares 255 conjunto com as outras disciplinas que fazem parte do currículo), só poderá fazê-lo se mudar de ponto de vista sobre o modo de pensar e delinear a actividade matemática que propõe aos alunos. LIadó, C. Y Jorba, J. (2000). La actividade matemática y las habilidades cognitivolingüísticas, In Jorba, J., Gómez, I. y Prat. A. Hablar y escribir (pp. 219- 241) Barcelona: Editorial Sintesis. Falar e escrever para aprender – uso da língua em situação de ensino-aprendizagem das áreas curriculares A 256