ENTREVISTA ERMÍNIA MARICATO
BOOM IMOBILIÁRIO:
BOM PARA QUEM?
Fotos Beatriz Filgueira/Idec
Nos últimos anos, o setor imobiliário brasileiro ganhou os holofotes: o número de
novos empreendimentos explodiu, as vendas bateram recorde e, em 2013, pela primeira vez,
o crédito para a compra de imóveis superou o crédito pessoal no país, segundo dados do
Banco Central (BC). Contudo, o boom de novas construções veio acompanhado de aumento
vertiginoso dos preços: nos últimos cinco anos, o valor médio dos imóveis residenciais subiu
121%, de acordo com levantamento do BC, que considera 11 regiões metropolitanas do país.
Na esteira dessa valorização, o preço dos aluguéis também disparou.
Assim, embora muita gente esteja comprando, outras estão sofrendo os efeitos negativos
dessa aceleração: parte da classe média está sendo expulsa dos bairros bem localizados, e a
população de baixa renda levada para regiões cada vez mais periféricas. Essa é a análise da
urbanista Ermínia Maricato, professora aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Ermínia também foi secretária-executiva do Ministério das Cidades entre
2002 e 2005 e secretária de Habitação e Desenvolvimento
Urbano do município de São Paulo entre 1989 e 1992, no
governo Luiza Erundina. Confira a seguir a entrevista.
Idec: O preço dos imóveis no Brasil não para de
subir. Os governos podem ou devem intervir de
alguma forma para frear esse aumento?
ERMÍNIA MARICATO: À luz da legislação brasileira, seria possível, sim, combater a especulação e o encarecimento dos imóveis. Segundo a
Constituição, o direito de propriedade está subordinado à sua função social. No entanto, na realidade, a aplicação da lei e as relações sociais se dão
como se o direito de propriedade fosse absoluto e
o direito à moradia, relativo.
Hoje, há uma quantidade enorme de imóveis
ociosos e, ao mesmo tempo, uma parte da população está em moradias irregulares. No município de São Paulo, praticamente um quinto da
população vive nessa condição; nas capitais do
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ENTREVISTA ERMÍNIA MARICATO
Norte e do Nordeste esse número é
muito maior. Não é simples [resolver o problema], porém, em outros
países, principalmente na Europa,
não há essa desigualdade como
aqui, pois há leis que restringem
a especulação. Em Paris [França],
por exemplo, um apartamento não
pode ficar vazio por mais de um
ano, se não o proprietário é taxado.
Aqui no Brasil, o patrimonialismo é
tão forte que não se consegue aplicar nem mesmo o IPTU [Imposto
Predial e Territorial Urbano] progressivo, previsto em lei.
Idec: Por que os preços estão su-
bindo tanto?
EM: Porque o imóvel se valoriza
muito não só a partir do que é feito
dentro dele, mas do que acontece
no entorno. A localização é a mercadoria, mais importante do que a
habitação em si. A mesma casa em
um bairro nobre de São Paulo e no
Jardim Ângela [bairro da periferia da capital paulista] teria preços
muito diferentes.
O proprietário ganha sem fazer
nada: se a prefeitura investe, se tira
uma favela ao lado do imóvel, ele
ganha. Ou seja, tem gente que se
apropria de uma renda extraordinária pela valorização imobiliária,
enquanto isso aumenta o custo de
vida na cidade e encarece os custos para o Poder Público também.
O aumento do preço dos imóveis
dificulta para as prefeituras construírem creches, escolas e fazerem
obras viárias, porque a desapropriação fica muito mais cara. Esse boom imobiliário é profunda-
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mente pernicioso para a política
pública urbana.
Idec: O programa “Minha Casa, Minha
Vida”, lançado em 2009 pelo governo federal, tem conseguido cumprir
Idec: Em sua opinião, estamos viven-
o papel de ampliar o acesso à casa
do uma bolha imobiliária?
própria à população de baixa renda?
Não é uma bolha. A situação aqui é muito diferente da dos
Estados Unidos, onde o capital
financeiro pegou como refém o circuito imobiliário. Lá, os imóveis
passaram a fazer parte de “papéis
fictícios”, descolando os preços
do quanto eles realmente valiam.
Então, quando iam ser cobrados, as
pessoas não conseguiam pagar. No
Brasil, o que está acontecendo é um
boom, com a incorporação da classe
média no mercado, principalmente
da população entre seis e dez salários mínimos.
Ele ampliou para a classe
média. Para a baixa renda – a população abaixo de cinco salários mínimos, e principalmente a de zero a
três [salários], em que se concentra
o déficit habitacional – continua
como sempre: ocupações irregulares, compra de lotes ilegais e autoconstrução da moradia. O governo
tem colocado muito dinheiro de
subsídio, mas não está resolvendo
o problema de quem mais precisa
porque o preço aumentou muito.
Além disso, diante do crescimento do número de imóveis para
a classe média, os mais pobres estão
sendo jogados para áreas ainda mais
periféricas das cidades. Há pesquisas
recentes que mostram que o boom
imobiliário está promovendo uma
nova fronteira de ocupação irregular
das áreas de proteção de mananciais.
E quem está irregular não tem direitos; essa é a condição que a sociedade brasileira coloca aos mais pobres.
EM:
Idec: Essa elevação do valor dos
imóveis contribui para a elitização de alguns bairros? Quais são as
suas consequências?
Totalmente. As pessoas de
classe média que estão procurando imóveis para alugar estão sendo
expulsas dos bairros melhores; as
favelas das regiões centrais estão
sendo expulsas.
EM:
EM:
Idec: O Estatuto da Cidade, lei fede-
ral de 2001, incorporou a criação de
Zonas Especiais de Interesse Social
(zeis), áreas demarcadas para habitação popular. Esse recurso tem sido
bem utilizado pelos municípios?
As zeis são uma boa medida
quando aplicadas. A sua ideia é
assegurar moradia social em áreas
bem localizadas. Elas não resolvem
o problema, mas ajudam. Porém,
dá para contar nos dedos quantas
EM:
foram aplicadas com o espírito de
combater a desigualdade urbana e a
periferização. Para pegar um exemplo concreto, o plano diretor de São
Paulo de 2002 previa diversas áreas
para zeis, em lugares bons da cidade. Contudo, essa previsão foi burlada com um decreto do ex-prefeito
Gilberto Kassab, que considerou o
teto de 16 salários mínimos para
algumas dessas áreas. Esse valor,
para um país como Brasil, mesmo
em uma cidade como São Paulo,
pega a minoria da minoria, não tem
nada de baixa renda.
Idec: Uma das propostas do Plano
Diretor da capital paulista é a criação
da chamada “cota de solidariedade”,
que prevê que empreendimentos de
grande porte doem terrenos para a
implantação de habitação de inte-
“O BOOM IMOBILIÁRIO
É PROFUNDAMENTE
PERNICIOSO PARA A
POLÍTICA PÚBLICA URBANA”
EM: Na verdade, o principal objetivo é barrar a ocupação de moradias feitas para uma faixa de renda
por outra faixa. A aposta é que ter
apenas uma vaga de garagem ou
só um banheiro no imóvel afasta o
interesse das classes mais altas e de
quem quer especular. Acho que [a
medida] pode ter alguma eficácia. A
ideia é desestimular o uso de carro
também, colocando essas moradias
próximas aos corredores de ônibus.
resse social. Qual é a sua opinião
unanimidade entre os urbanistas
do mundo todo que esse modelo
é insustentável do ponto de vista
ambiental. Nos EUA, para comprar
um pão é preciso pegar o carro.
O modelo abstrato que os urbanistas apoiam atualmente é o da
“cidade compacta”, que é aquela em
que tudo está próximo: as pessoas
moram relativamente próximo ao
trabalho, ao estudo, à unidade de
saúde, à padaria etc., enquanto as
bordas da cidade são liberadas para
áreas verdes, de lazer e de agricultura. Aqui [no Brasil], nós temos o que
é pior da cidade compacta – ilhas de
calor, congestionamento etc. – e o
pior da cidade estendida, que é uma
periferia sem infraestrutura.
Idec: Nos últimos anos, temos visto
seguidas tragédias causadas por
enchentes e desabamentos em várias
sobre a medida?
Idec: Todos os dias, os paulistanos
cidades do país. Em geral, culpa-se a
EM: A cota de solidariedade é
importante. Também não resolveria
o problema, mas o minimizaria. O
difícil é que ela seja aplicada, pois a
especulação imobiliária no Brasil é
muito violenta e domina totalmente
as câmaras municipais. Os donos
dos empreendimentos não querem
habitação social no mesmo terreno
porque o desvaloriza: o preço do
imóvel fica mais baixo porque todo
mundo vai falar que terá um “conjuntinho” de baixa renda ao lado.
gastam, em média, duas horas e
“falta de planejamento urbano” e as
42 minutos para se locomover na
moradias irregulares pelo problema.
cidade. Essa média é elevada pelos
São eles os culpados?
usuários de transporte público que
A mídia brasileira, de um
modo geral, é cínica. Sempre se diz
que é “falta de planejamento”. Mas
não é por falta de planos. Todas as
cidades brasileiras com mais de 20
mil habitantes têm Plano Diretor, e
todos os planos falam em combater
a desigualdade urbana. Não é por
falta de lei ou de planejamento que
as nossas cidades são como são.
É pela desigualdade social, é pelo
patrimonialismo, é pela especulação
imobiliária ligada a financiamento de campanha [eleitoral]. Não é
preciso fazer mais planos, mas sim
aplicar os que já existem.
Idec: Outra proposta do Plano Diretor
de São Paulo é limitar o número de
vagas de garagem em prédios residenciais e comerciais. É uma boa ideia
para desestimular o uso do carro?
moram em áreas afastadas da cidade. É possível resolver o problema da
mobilidade urbana sem aproximar as
moradias das ofertas de emprego?
EM: É possível, mas é caro. Para
ter uma rede que alcance toda a
extensão da região metropolitana
com qualidade, o custo é estratosférico. Nos Estados Unidos, isso
foi feito: o modelo vigente nos últimos 60 anos foi o de extensão por
meio dos subúrbios. As cidades
são estendidas horizontalmente,
com gigantescas vias, e todo mundo
tem automóvel. Contudo, hoje é
EM:
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