1 Aspectos Econômicos do Neoliberalismo Cássio Donizete MARQUES1 Resumo O neoliberalismo é sem dúvida uma das afirmações mais presentes na sociedade no final do século XX bem como no início do século XXI. Sendo apresentado como uma doutrina e uma ideologia que influencia a maioria dos aspectos da vida humana, tanto individual como social, entre eles a política econômica. O neoliberalismo é resultado de um longo processo que começa na Idade Moderna com o desenvolvimento do capitalismo e sua base de sustentação liberal. Atualmente, praticamente toda economia mundial se estrutura numa base neoliberal, ou sofre, direta ou indiretamente, influência neoliberal. Este sucinto artigo busca, a partir de uma rápida visão histórica, localizar sua origem, para logo em seguida compreendê-lo melhor na sua relação mercado/Estado. Palavras-chave: neoliberalismo - Estado - economia - capitalismo Um Pouco de História Desde o esgotamento do modelo feudal, vigente durante séculos, no período medieval, e após se passar por um período de transição conhecido como mercantilismo, a sociedade, no fim do século XVIII e início do século XIX, primeiramente no Ocidente e posteriormente no Oriente, vem obedecendo a um novo modelo econômico, o capitalismo, que apresenta como base de sustentação ideológica o liberalismo, retratado na conhecida expressão laissez-faire, através do qual o governo estaria aderindo ao livre jogo de mercado e às suas regras, como critério regulador da economia. De lá para cá, a história tratou de ir moldando a proposta liberal. Diversos estudiosos foram tentando sistematizá-la, alguns dos quais serão aqui mencionados a posteriori. É, pois, na observação da prática econômica dos últimos dois séculos que mais se percebe a presença do pensamento liberal. Outras teorias vieram, com o passar do tempo, se contrapor ao modelo liberal, propondo um modelo de sociedade e de economia alternativo. Entre elas pode-se destacar o marxismo e o keynesianismo, embora esta última mantenha como base o modelo liberal. Porém, assistiu-se no final do século XX a uma derrocada das propostas contrárias ao liberalismo, e a um domínio, quase que absoluto, do mercado como instância reguladora, não só da economia, mas também de diversas outras dimensões da sociedade. Parece que, na 1 Doutor em Educação pela UNICAMP – Campinas/SP, Professor do CEUNSP – Itu/SP 2 dicotomia mercado x Estado, assistiu-se à prevalência do primeiro sobre o último, levando ao fim da estratégia Welfare do Estado burguês. No último quartel do século XX, após o esgotamento do modelo econômico keynesiano na década de 70, o liberalismo assume nova roupagem e passa a ser chamado neoliberalismo. É com ele que vamos nos preocupar, buscando compreendê-lo, enquanto fenômeno ideológico presente mundo afora, ou melhor, como uma das principais concepções alternativas que busca manter a lógica do funcionamento do modelo capitalista. O projeto social-democrata, presente entre as décadas de 50 e 60, levou a uma corrosão das bases de acumulação de capital, devido a uma política de gastos sociais e de pleno emprego. A solução estaria no reestabelecimento da estabilidade monetária, através da contenção de gastos com o bem-estar e o reconhecimento e aceitação da chamada ‘taxa natural de desemprego’. Verifica-se que, alguns países entre eles os EUA e a Inglaterra, encaminharam a sua política econômica de forma a estruturá-la a partir de uma ideologia neoliberal. É certo que a implantação da doutrina neoliberal nunca se deu plenamente, nem no governo Thatcher, nem no governo Reagan, dois de seus maiores defensores e, porque não dizer, seus maiores implementadores. O governo Thatcher foi o responsável por uma série de medidas que na prática, implantaram a doutrina neoliberal como: elevação da taxa de juros, fim do controle dos fluxos financeiros, corte de gastos sociais e muitas outras, tendo como uma das conseqüências o aumento no nível de desemprego. Já nos EUA, foi implantada uma política neoliberal num período ainda marcado pela guerra fria, o que levou a um aumento do déficit público. A própria doutrina neoliberal ainda não se constitui num corpo uniforme de idéias sistematizadas conforme afirma Draibe (...) o neoliberalismo não constitui efetivamente um corpo teórico próprio, original e coerente. Esta ideologia dominante se compõe principalmente de proposições práticas e, no plano conceitual, reproduz o conjunto heterogêneo de conceitos e argumentos, ‘reinventando’ o liberalismo mas introduzindo fórmulas e propostas que são muito mais próximas do conservadorismo político e de um certo darwinismo social, distante pelo menos das vertentes liberais do século XX... muitas das proposições atribuídas ao neoliberalismo não são, efetivamente, monopólio daquela tendência nem tampouco das fontes originais de que parece nutrir-se. (1994, p. 181) Internacionalmente, dois órgãos tem se destacado ao longo dos anos como defensores da política neoliberal: o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Ocorre um 3 avanço dos mercados financeiros internacionais, levando países de tendências socializantes – como França, Grécia e Espanha – a uma aproximação à proposta, colocada em prática, pela Inglaterra e pelos EUA. Enfim, a doutrina neoliberal tem suas raízes na proposta liberal e vem nas duas últimas décadas do século XX, se propagando como aquela que possui condições de organizar tanto a economia como também os demais aspectos da vida humana. Em Busca de uma Conceituação O neoliberalismo veio responder a uma profunda crise pela qual o capitalismo vinha passando, buscando pacificar as lutas por conquistas das classes e negando os princípios de uma economia social-democrática, regulada, exaltando assim um mercado livre. Segundo Anderson A chegada da grande crise (que se deu no início dos anos 70), do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, quando todo o mundo capitalista avançado caiu numa longa e profunda recessão, combinando, pela primeira vez, baixas taxas de crescimento com altas taxas de inflação (...) A partir daí as idéias neoliberais passaram a ganhar terreno. (1995, p. 10) A ideologia neoliberal defende que a ordem social deve caminhar no sentido de estar aberta à operação do próprio mercado, valorizando a liberdade individual, bem como uma política econômica de competitividade e de adequação das estruturas sociais às novas tecnologias, cortando gastos sociais e buscando reduzir a inflação. A estabilidade monetária passa a ser a meta suprema de qualquer governo. Também faz parte do conjunto de políticas neoliberais, a privatização das empresas estatais, sob o argumento de que o Estado deve se eximir ao máximo de sua presença na sociedade e na sua gestão, restando a ele somente aquilo que não for de interesse da iniciativa privada. Questões como educação, segurança e saúde são vistas, pelos neoliberais, como sendo de interesse privado, estando voltadas a uma parcela da sociedade, aquela que possui condições financeiras de acesso a estes serviços, prestados pela iniciativa privada. Adam Smith já afirmava que o papel do Estado na economia devia de ser reduzido, sendo esta confiada à auto-regulação do mercado. O Estado deve limitar-se a facilitar a produção privada, a manter a ordem pública, fazer respeitar a justiça e proteger a propriedade. Smith defende ainda a concorrência entre os privados, num mercado livre, acreditando que os seus interesses naturalmente se harmonizariam em proveito do coletivo. 4 É importante lembrar que no capitalismo não há obrigações sociais desvinculadas daquelas que venham garantir o sucesso do próprio sistema, ou seja, toda medida política e econômica de base mais socializante só é adotada visando atender os próprios interesses do sistema capitalista que, em última instância, são interesses individuais. Com isso, as decisões individuais – não coletivas – são constantes, o que leva, muitas vezes, a um paradoxo, ou seja, a visão individualista extremada, que pode levar à inviabilidade do próprio sistema que a sustenta. A lógica do sistema é centrada no sucesso do indivíduo. Ele se mantém a partir de decisões e interesses individuais que, muitas vezes, acabam não levando em conta o próprio sistema, colocando-o em risco. Esta valorização extrema das decisões individuais é uma das principais características da doutrina neoliberal, defendida tão incisivamente por Hayek. Para manter um sistema econômico em crescimento, deve-se abandonar a visão que defende a existência de finalidades comuns, que levam a sentimentos comuns, e a utopia de uma sociedade igualitária, ou seja, pautada na construção de valores. O neoliberalismo caracteriza-se pela ausência de valores e pela presença de certas ‘regras do jogo’. Regras que não estão amarradas em nenhum código de ética, ou melhor, regras que possuem o seu próprio código de ética. Werner Baer e William Maloney, em seu artigo ‘Neoliberalismo e distribuição de renda na América Latina’, fazem uma síntese dos principais pontos de uma política de conteúdo neoliberal. Nele são destacados os seguintes aspectos: a. O neoliberalismo enfatiza um papel dominante para o mercado e um papel reduzido para o Estado na alocação de recursos; b. Para alcançar um ajuste fiscal e para aumentar a eficiência da economia, uma substancial porção do setor público deveria ser privatizada; c. Liberação total de preços ou, nos setores controlados, promoção de reajustes que possibilitam a obtenção, por parte das firmas, de taxas de retorno positivas; d. Desregulamentação do setor financeiro, liberalizando o fluxo de capital externo; e. Liberalização do comércio, levando ao fim do programa de substituição de importações; f. Incentivos ao investimento externo, buscando compensar o declínio no investimento privado e a diminuição dos recursos fiscais; g. Reforma do sistema de seguridade social, com a criação de fundos de pensão privados competitivos; h. Reforma do mercado de trabalho, buscando diminuir a rigidez das leis trabalhistas, adequando-as ao novo mercado existente. 5 Constata-se, pelas características acima apresentadas, que pensar a política econômica a partir da doutrina neoliberal é diminuir o máximo possível a presença do Estado como regulador político, econômico e social. A tendência é o aumento da desigualdade social, a queda dos salários reais, o aumento do número de desempregados. Enfim, a exclusão de um número cada vez maior de pessoas, de um mercado mais competitivo. A Relação Mercado/Capital A partir da proposta neoliberal, que vem dominando o cenário global nos últimos anos ou mesmo décadas, tem-se verificado uma crescente desigualdade das condições de vida e a exclusão total de milhões de indivíduos do sistema social e econômico. Faz-se necessário perguntar pela presença do governo no encaminhamento de soluções para situações emergenciais, muitas vezes criadas pelo próprio sistema neoliberal. Situações estas com que o neoliberalismo não tem se preocupado, ou pelo menos, não tem demonstrado preocupação. Discutir o papel do governo é rever a relação e a divisão estabelecida entre o público e o privado. Divisão esta que se esboçou na Idade Moderna com a proposta dos jusnaturalistas e que contribuiu para a montagem do sistema capitalista, que foi estruturando a economia com base numa valorização, quase que absoluta do privado. Pode-se dizer que no mundo antigo (egípcio, grego e romano) e, mesmo na Idade Média, o público e o privado estavam entrelaçados, formando um todo, de forma que, ao se pensar determinados encaminhamentos, não se fazia a distinção entre eles. Havia uma comunhão que regia o social, sem a presença do individualismo, típico do sistema capitalista, que leva a uma corrida desenfreada ao consumo e à perda da sensibilidade no trato com o social. O indivíduo, privado e privatizado, passa a viver a sua própria vida, sem levar em consideração o todo social. O setor privado, como o entendemos hoje, é filho do capitalismo e como tal é ele quem vem dominando a economia nos últimos anos, ficando difícil definir qual o papel reservado ao Estado. Thurow faz a seguinte afirmação: Se o Governo não deve ser um proprietário socialista dos meios de produção, nem um provedor de benefícios de bem-estar social, o que deve ser ele? A resposta teórica do capitalismo é que quase não existe necessidade de um governo ou de qualquer outra forma de atividades públicas. Os mercados capitalistas podem prover com eficiência todos os bens e serviços que os seres humanos desejam ou dos quais necessitam, com exceção daqueles poucos itens conhecidos como bens públicos puros (1997, p. 347) 6 É o próprio Lester Thurow (1997, p. 348) quem vai definir, a partir de três características, o que vem a ser um ‘bem público puro’, que é, para ele, o bem: a. Cujo consumo não reduz a quantidade dele disponível. Com isso, não há rivalidade de consumo entre os seres humanos, uma vez que o bem não se esgota; b. Cuja utilização não pode ser impedida. Ele está disponível a todos. Por isso, ele não tem como ser vendido no mercado privado; e c. Pelo qual o indivíduo tende a ocultar o seu interesse, para não ter que arcar com uma parcela maior de seu custo. Com relação aos outros bens, a preferência é manifestada a cada escolha. Localizar um bem público puro parece impossível. Nem mesmo a Segurança Nacional pode ser considerada como tal. Segurança, saúde e educação, são encaminhadas de forma diferente a diferentes grupos. Muitas vezes é uma minoria que tem acesso a um determinado sistema de segurança, a um hospital ou a uma determinada escola. Diante da colocação acima, permanece aberta a pergunta sobre o papel do governo numa economia neoliberal. Pode-se dizer que resta ao governo um papel mais social, ou seja, de busca de uma distribuição de renda mais equitativa, mais justa. Porém, ao fazê-lo, o Estado se encontra com sua legitimidade negada, pois a defesa da propriedade é sagrada para a sobrevivência do sistema capitalista. Como então, distribuir renda de forma mais equitativa, sem entrar em atrito com uma das bases do capitalismo, a defesa da propriedade privada. Por fim, pode-se atribuir ao governo a função de, através de instâncias legais, prevenir e punir o roubo, uma vez que este tem um alto custo e, nenhum sistema econômico sobrevive numa sociedade na qual o roubo prevalece. Porém, a presença do Estado talvez não seja imprescindível, uma vez que já é possível perceber a presença do setor privado nesta função. Hayek (1990), um dos ideólogos responsáveis pelo desenvolvimento do neoliberalismo, reconhece que a sobrevivência do sistema concorrencial necessita de uma proteção jurídica. Esta proteção pode ser de competência do Estado; porém, de forma limitada. Para ele, o Estado tem como função prover uma estrutura para o mercado e os serviços que este não pode fornecer. Com a intervenção do Estado, corre-se o risco de prejudicar a rede de informações do mercado, fazendo com que o mesmo emita sinais enganosos, o que, com certeza prejudicaria, e muito, o bem andamento do sistema. Nesta mesma direção, os Friedman também atribuem ao Estado a função de estabelecer as ‘regras do jogo’ e de arbitrar em sua defesa, quando o mercado por si só não conseguir encaminhar uma solução. São funções do Estado, segundo eles 7 (...) manter a lei e a ordem; definir direitos de propriedade; servir de meio para a mudança dos direitos de propriedade e de outras regras do jogo econômico; julgar disputas sobre a interpretação das regras existentes; promover a competição; fornecer a estrutura de um sistema monetário; procurar evitar a ocorrência de monopólios técnicos; suplementar a caridade pública e a família na proteção do irresponsável, quer se trate de um insano ou de uma criança etc. (1988, p. 39) Enfim, para os neoliberais, não há nenhuma interferência na ordem social mais eficiente do que as operações do próprio mercado. Toda interferência desnecessária acaba limitando a liberdade e torna-se ilegítima. Considerações Finais As afirmações presentes neste sucinto artigo podem dar a entender que o neoliberalismo é uma doutrina ou ideologia que atende plenamente a sociedade contemporânea e que o Estado pode se ausentar da sociedade sem trazer grandes prejuízos. O próprio processo da chamada globalização, que será objeto de estudo no próximo artigo, se apresenta como a mundialização do capital financeiro que tem no neoliberalismo sua base. Porém, as atuais crises que se fazem presentes nos países ditos desenvolvidos e de base neoliberal levantam novamente dúvidas sobre a eficiência deste modelo bem como do papel do Estado na sociedade e de modo especial na condução da economia. Assistimos no final do século XX e início do século XXI o Estado socorrendo financeiramente bancos e empresas privadas, para evitar um prejuízo ainda maior para a economia. Pode-se afirmar, sem medo de errar que, apesar de uma defesa quase unânime do modelo neoliberal, ele tem apresentado suas fraquezas e estas tem demonstrado a necessidade de buscar um novo modelo econômico e social que atenda, de forma mais efetiva, aos novos desafios que se apresentam principalmente em relação a exclusão de milhões de pessoas do próprio sistema. Referências ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Enir; GENTIL, Pablo (org.) O pós-neoliberalismo. RJ: Paz e Terra, 1995 BAER, Werner; MALONEY, Willian. Neoliberalismo e distribuição de renda na América Latina. Revista de Economia Política. v. 17, nº 3, jul/set. de 1997 8 DRAIBE, Sonia Miriam. As políticas sociais do regime militar brasileiro: 1964-84 in SOARES, Gláucio Ary Dillon; D’ARAÚJO, Maria Celina (orgs) 21 anos de regime militar: balanços e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1994. FRIEDMAN, Milton; FRIEDMAN, Rose. Capitalismo de liberdade. SP: Nova Cultural, 1998 HAYEK, Friedrich August von. O caminho da servidão. trad. Anna Maria Capovilla, José Italo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. 5. ed. RJ:: Instituto Liberal, 1990 SMITH, Adam. A riqueza das nações. trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (Os economistas) THUROW, Lester C. O futuro do capitalismo: como as forças econômicas moldam o mundo de amanhã. Trad. Nivaldo Montingelli Jr. 2. ed. RJ: Rocco, 1997