A escrita acossada, o “Artaud” de Queiroz
Gilles Deleuze, no prólogo de seu livro Diferença e Repetição, afirma que há
muitas maneiras de se ler um livro. É possível nele encontrar grandezas e
misérias. Seus pontos fracos e suas inflexões de força podem ser evidenciados
sem muitas dificuldades, porém, talvez, o que torne um livro uma obra seja as
potências que ele libera aos seus leitores.
Este é o caso do livro de André Queiroz: Antonin Artaud, meu próximo.
Queiroz é múltiplo: professor de filosofia em uma pós-graduação em comunicação;
escreveu dois trabalhos acadêmicos de fôlego, sua dissertação de mestrado e sua
tese de doutoramento, ambas acerca do pensamento de Michel Foucault; escreve
romances e contos, alguns deles premiados; além de ensaios sobre cinema e
literatura. Entretanto, é preciso dizer que, fundamentalmente, André é um escritor.
Na acepção mais radical da palavra, isto é, na condição de manipulador de
sentidos, criador de universos sintáticos, inventor de mundos narrativos. Mas nem
por isso divorciado da prática da criação de conceitos, ou exilado do lugar da
crítica e da clínica da reflexão investigativa.
Talvez o que mais nos interesse nos textos de Queiroz seja exatamente sua
capacidade de tergiversar entre a arte e a filosofia, entre o estético e o conceito,
entre a palavra-coisa-expressiva do literário e a palavra-valise-do-sentido do
filosófico. Equalizando o ‘bruto’ e o ‘impuro’ da voz narrativa da literatura e o
‘lapidado’ e o ‘escarificado’ do discurso conceitual da filosofia. Isto sem fazer
escolha excludente, ou sem decidir por voto de fidelidade a um ou outro saber. De
todo modo, não se trata de um lugar de fronteiras entre dois saberes. Trata-se,
exatamente, de misturar duas ou + vozes, dois ou + discursos e duas ou + formas
expressão do pensamento. Criando, assim, uma zona de indiscernibilidade que
exige atenção total do leitor à sua escrita. É preciso ler de um só fôlego os textos
da obra de André Queiroz. Trata-se de uma escrita que acossa, que nos deixa
quase sem fôlego – a bout de souffle – uma escrita acossada.
Antonin Artaud, meu próximo para além da referência imediata ao célebre livro de
Pierre Klossovski - Sade, meu próximo-, apresenta uma rica teia que tece uma
intrincada trama de relações entre escritores e filósofos franceses (o próprio
Artaud, Arthur Rimbaud, Maurice Blanchot e Gilles Deleuze) com escritores e
filósofos brasileiros (Clarice Lispector e Carlos Henrique Escobar). Sem, contudo,
privilegiar um autor específico ou uma obra em particular. Isso porque na
démarche de Queiroz não cabem os procedimentos tipicamente acadêmicos,
consagrados às monografias universitárias, adotados em papers, artigos,
dissertações e teses com finalidade, talvez, em sua grande maioria (perdoe-me,
pois sei que cometo injustiças ao generalizar) de justificar-se às agências de
fomento. O escritor mesmo militando no exercício do magistério em uma
instituição de ensino superior universitário, tanto em nível de graduação quanto
em pós, violenta radicalmente essas formas canônicas dos textos produzidos para
a academia. Isto sem deixar de ser rigoroso e preciso, sem abdicar da paixão da
escrita, que não faz concessões às facilidades hodiernas da coloquialidade, e do
vigor do pensamento independente, que não se dobra a subordinações
intelectuais. O texto de André Queiroz é filho da ousadia, seu pensar é
simultaneamente agônico e terno.
O livro que o leitor tem em mãos apresenta-se, em certo nível de superfície, como
uma coletânea de textos acerca da obra do poeta, escritor, dramaturgo, ator,
encenador, desenhista e livre-pensador Antonin Artaud. Não obstante, não se trata
de uma junção de textos diversos sobre Artaud, mas variações acerca do pensar
artaudiano, procurando com isto pensar com Artaud, não sobre Artaud.
Antonin Artaud, meu próximo é composto de três ensaios, uma narrativa e uma
entrevista. No primeiro dos textos – “Antonin Artaud, ou como fazer funcionar um
corpo sem rastro” – já temos uma idéia precisa do estilo de Queiroz, assim ele
próprio o diz: “Maurice Blanchot em um belo ensaio sobre Antonin Artaud, em seu
livro por vir, afirma algo enigmático acerca daquilo de que se trata quando se
trata de pensar: a impossibilidade mesma de.” A escrita de Queiroz parece
produzir a princípio um certo tipo de estranhamento, mas não é bem do
estranhamento de que aqui se trata. Muito mais que as torções gramaticais que
aparecem já desde o início de seu livro, o que nos importa destacar é, justamente,
o jogo de referências que são dadas desde o título: “Artaud”; “o corpo sem órgãos”
deleuziano (retirado por este do próprio Artaud); ‘a escrita, feito corpo”, que não
deixa rastros. O que nos parece ensejar André é, mais que transgredir a gramática
(esta idéia de transgressão nos parece aqui muito frágil), buscar de modo
incessante um processo de construção da escrita que almeja constituir uma “agramaticalidade” na língua, no caso, o português. Ao modo deleuziano fazer
nascer uma língua menor de dentro do ventre do próprio português. Isto feito a
base de citações, digressões, recomposições sintáticas e idéias ‘roubadas’.
Ficando apenas neste último ponto, diria que esta é uma das mais belas artes: o
roubo de idéias. Um bom ladrão de idéias que saiba fazer suas, idéias alheias
(boas idéias, diga-se de passagem), faz com que este não-crime seja
recompensado: um não-crime perfeito. Idéias roubadas. Idéias artaudianas,
deleuzianas, blanchotianas. Conceitos capturados. Conceitos filosóficos. Imagens
extorquidas. Imagens literárias. A escrita lispectoriana, os textos de Vergílio
Ferreira, os personagens kafkianos que parece espreitar o fazer literário de
Queiroz, assim como, os paroxismos irreverentes de Baudrillard e a virulência
corajosa do pensar de Carlos Henrique Escobar que faz ressoar seu fazer
ensaístico. Não se trata neste primeiro ensaio que abre o livro de discutir o ‘Caso
Artaud’ em seu conhecido embate com o dispositivo psiquiátrico, mas trata-se de
revelar a opressiva presença deste dispositivo por intermédio da própria escrita,
pela maneira como o texto é construído, pelas referências que ele faz notar:
Kafka... K; Clarice... GH; Foucault... O pensamento infame.
O segundo dos ensaios – “A viagem de artaud rimbaud, e o infortúnio de quem
fica” – possui um achado já em seu título (diga-se aqui que os títulos dos textos de
André Queiroz são tão fundamentais quanto todo o texto que dele decorre, são
indissociáveis. Constituem-se como uma chave-de-leitura). Juntar Artaud e
Rimbaud, uni-los pelo próprio nome – Arthur/Artaud, ambos presentes em
Rimbaud. Ligá-los pelo som de seus nomes: Rimbaud/Artaud, fazê-los ressoar.
Exemplar este procedimento da escrita de Queiroz, pois menos do que defender a
aliança Antonin Artaud e Arthur Rimbaud, o que aqui se fez é um processo de
agenciamento entre os escritores tecido pela escrita-aqui-feito-poema-concreto de
André. Nesse texto o que parece estar em jogo é mais do que uma ligação, que
por si só é explicita entre Artaud e Rimbaud. O que aqui surge é uma espécie de
tratado de nomadologia: como viver sendo nômade. Que poderia ser formulado de
outra maneira: como pela escrita podemos construir modos outros de vida. Como
o viajar com e pela palavra pode nos reconfigurar a subjetividade, e com isso,
empreender um modo de vida não-fascista.
No terceiro ensaio é Nietzsche que parece interlocutar Artaud. Mas a interlocução
que se dá de fato é entre André Queiroz e Carlos Henrique Escobar. O ensaio
procura traçar, com seu estilo peculiar de construção a-gramatical a singular
leitura de Escobar do filósofo alemão. Porém, o curioso é que não se trata de
seguir fiel à interpretação de Escobar da obra nietzschiana, mesmo que
evidentemente esta interpretação esteja presente no texto de Queiroz. Trata-se de
fazer Carlos Henrique ‘falar’ através de André. A idéia-força da singularizaçãointerpretativa-Nietzsche proposta por Escobar, o pensar pesado do pensamento,
está presente em todo o livro, mas particularmente neste ensaio aquela ganha
importância maior. Isso porque aqui o filósofo solitário (Friedrich Nietzsche)
encontra o, talvez, mais solitário dos artistas (Antonin Artaud). A loucura, a dor de
existir, a doença, as dores de cabeça, as drogas e a inaptidão para como as
mulheres, estão presentes em ambos e se manifestam na solidão da criação de
suas obras de pensamento: a arte e a filosofia, a filosofia e a arte. Imbricação de
ambas.
Em “antonin artaud, meu próximo...” atingimos o ápice da escrita de André Queiroz
e a síntese do projeto deste livro. Isso porque neste texto (não chamaria de ensaio
e poderia chamá-lo de narrativa, mas com ressalvas) André fala através de
Artaud. O escrito cria uma indiscernibilidade maravilhosa entre o que é de Artaud
e o que é de André. A voz literária (que é narrativa) se confunde com a inflexão
ensaística do escrito, se não na forma, com certeza na expressão de suas idéias.
Neste texto, como em nenhum outro do livro, a escolha das palavras foi primorosa
(e veja que estamos falando de um autor que faz ourivesaria das palavras, como
um verdadeiro escultor de sentido). Por exemplo, a palavra “máscara” que
aparece no texto ganha um sentido forte, pois é da máscara de Artaud que
Queiroz se vale para formular seu dizer. Nesse texto temos então a apresentação
dos quatro encontros primordiais de Artaud, segundo André Queiroz: no primeiro,
Artaud com Deleuze; no segundo, Artaud com Rimbaud; no terceiro, Artaud com
Nietzsche; e, por fim, Artaud com Sade (por intermédio de Klossovski).
O livro se finda com uma entrevista esclarecedora do autor, que pode ser lida
tanto no início quando ao final pelo leitor. Essa entrevista que está colocada como
uma espécie de apêndice dos ensaios e da narrativa, é bem mais que um anexo
esclarecedor que o escritor estaria presenteando seus leitores com discas e
chaves-de-leitura à sua obra. Na verdade, “Eco- E – SILêNCIo” – entrevista a Ney
Ferraz Paiva –, nos dá um testemunho contundente e corajoso de um intelectual
público interessado em discutir não só sua obra, mas também as questões
pertinentes ao seu tempo presente. Como Michel Foucault: ter coragem da
verdade.
Jorge Vasconcellos
Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia
Universidade Gama Filho,
Autor de
Deleuze e o Cinema.
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