1 A linguagem e a escrita Jorge Bacelar* Texto de Apoio para a Disciplina de Artes Gráficas | Licenciatura em Ciências da Comunicação “As letras são signos de sons, (...) não são imagens nem representações”, escreveu Eric Gill no seu Essay on Typography1. Será esta frase ainda verdadeira? As manifestações da presença dos seres humanos ao longo da história são artefactos, na medida em que não coincidem com os produtos naturais de que todos os seres vivos beneficiam. Os artefactos constituem a marca remanescente da nossa evolução como animais sociais ao longo das épocas. O termo artefacto refere-se, literalmente, a objectos feitos com arte. Expressão e finalidade de uma manualidade orientada para um fim específico que, no entanto, acaba por ostentar uma dupla natureza: extensão protética do nosso corpo e manifestação da expressão humana. As extensões do corpo humano2 incluem as primeiras pedras e paus utilizados para facilitar uma tarefa, assim como as estruturas arquitectónicas, naturais ou construídas, com a finalidade de abrigar e proteger os corpos, originando no seu interior o embrião da vida social, fundação da civilização e da existência sob normas colectivas. A expressão humana constitui igualmente uma extensão das ideias, desejos, conceitos, necessidades de comunicação e de memorizar. Talvez seja a razão da ornamentação dos objectos – um significado expressivo/funcional acrescentado aos elementos apropriados à natureza, uma adição feita pelo homem ao mundo natural, uma projecção do seu espírito para alcançar e corporizar um significado? Sem forma, os artefactos simplesmente não existem; um punhado de barro apanhado do chão torna-se um recipiente quando o homem lhe dá forma, ao transformar o disforme num artefacto com significado. Através dos actos de modelação e, posteriormente, de ornamentação, esta forma distingue a matéria do seu estado natural. A matéria bruta tem de ser ornamentada, tem de receber uma forma mais ou menos complexa de modo a tornar-se um artefacto e, subsequentemente, fazer parte da herança humana de história e ambiente construído. Finalmente, uma grande parte da história dos nossos artefactos reflecte as mudanças nas relações técnicas entre os actos de ornamentação e os suportes onde são produzidos (ferramentas e media).3 Do pictograma ao alfabeto A história da Letra e, na sua dimensão mais ampla, da Escrita, revela o percurso do homem primordial, que conseguiu pensar, tentando explicar e compreender o mundo, para dele se apropriar. Para reter e fixar as coisas fugidias em seu redor, da sua memória, da sua experiência e da sua imaginação; para deter e reter todas essas coisas num espaço e num tempo imediatos. Ignorando, de início, a permanência para além do seu tempo de vida, 1 - Eric Gill, An essay in typography [1936] Lund Humphries Publishers, London:1993 p.23 - Este conceito de ‘extensão’ provém de McLuhan, em especial de ‘The Gutenberg Galaxy’. 3 - Se considerarmos, por exemplo, as semelhanças e as diferenças existentes entre gravar, traçar, escrever, desenhar, pintar, imprimir e o uso de cinzel, estilete, pincel, carvão, giz, aguarela, aparo, lápis, rotulador, jacto de tinta, laser, off-set sobre pedra, argila, cera, madeira, reboco, gesso, linho, vellum, pergaminho, papel, plástico, folha de flandres, etc., poderemos antever a imensidade de relações e variações técnicas apenas nos domínios do registo gráfico. 2 2 viria a verificar a perenidade das marcas e a sua envergadura cultural ulterior, permitindolhe de algum modo passar adiante, sobreviver.4 É o imenso processo de socialização; de repartir com os seus contemporâneos o que o homo sapiens vê, o que sabe e o que pensa. É um processo de comunicação com os outros – a comunicação como génese da comunidade – graças ao qual o seu legado se estende aos homens que lhe viriam a suceder. Este empenho do primata em exprimir-se implicou um portentoso esforço de abstracção que se traduziu na fixação material de fragmentos das suas percepções e experiências sobre um suporte físico duradouro. A grande revolução humana foi a realização e o estabelecimento dos códigos de comunicação, gravando no tempo as percepções, as experiências e as ideias. E poder, na sua ausência, referi-las. O homem pode assim invocar coisas ausentes – longínquas no espaço, passadas e futuras – sem necessitar que essas coisas ocorram agora e aqui. Esta revolução, que fez transmissível de uns para os outros o visto, o feito e o pensado, foi sem qualquer dúvida um dos factos mais importantes para o progresso da sociedade humana relativamente às demais espécies animais. O homem pode assim fazer presentes coisas ausentes aos olhos e à memória, para agir com elas, sobre elas, e comunicá-las aos outros homens. Mas para que tudo isto fosse possível, o primata teve antes de tudo de libertar as suas patas dianteiras. Passar de quadrúpede a bípede. Erguer-se. A libertação das mãos. Com a libertação das mãos e o seu gradual desenvolvimento como instrumentos operacionais, o sapiens aprenderia a isolar e distinguir os objectos e os corpos, a reconhecer pelo tacto a textura das coisas, o seu peso e as suas qualidades. A consciência do tacto e a funcionalidade progressiva das suas mãos – a destreza manual – transformariam o habitat humano, que deixou de ser um lugar simplesmente habitável para ser um mundo operacional e, por isso, modificável. Um mundo de materiais e coisas distintas, transportáveis, manipuláveis pelo próprio homem, que as transformaria em objectos úteis ao seu modo de vida, servindo-se deles em função da sua sobrevivência e da construção do seu desenvolvimento. O traço. Nascimento da expressão gráfica. O homo sapiens apercebeu-se paulatinamente que o seu corpo era uma matriz, através por exemplo, da projecção da própria sombra, da pegada surgida pelo contacto dos seus pés com o barro, que a marcação era um efeito de transferência produzido pela pressão, peso ou simples contacto de um corpo sobre outro. De certo modo, descobriu as imagens. Descobriria também que raspando uma pedra ou um objecto duro sobre uma superfície deixava um sinal, um traço ou um relevo, muitas vezes pigmentado. Como este traço, pela surpresa da sua aparição casual assim como pela cor, adquiria uma presença especial. E que, do mesmo modo que a impressão duma marca por pressão ou incisão, estes traços podiam deixar de ser fruto do acaso, ou seja, podiam ser provocados e desenvolvidos em signos intencionais. Nalgum momento o homem pré-histórico contornaria o perfil da sua mão ou da sua própria sombra projectada, para imobilizá-la e conservá-la. Surge aqui o desprendimento do traço, libertando-se da sua matriz, quando a mão ou a sombra já tivessem desaparecido. Desta forma o homem descobriu o traço. O traço como resultado do seu gesto e da sua vontade. Tinha nascido o embrião da expressão gráfica. 4 - cfr Eurico Figueiredo, Angústia ecológica e o futuro, Gradiva, Lisboa:1993 3 Exemplos iniciais deste processo seriam as pinturas e gravuras rupestres (do latim rupes, para indicar que se encontram gravadas em paredes rochosas). Estas imagens poderão talvez contar histórias, factos ou propiciar acções futuras sobre a caça ou a fecundidade. Daqui as suas hipotéticas funções mágicas, exorcizadoras ou invocatórias, bem como dos rituais de que seriam objecto. Operando sobre as imagens do real, o homem operava indirectamente sobre o real. Efectivamente, a imagem era – e continua a sê-lo – mágica. Não só a figuração imitativa era objecto das pinturas pré-históricas (pictogramas), mas havia também lugar para a representação de signos simbólicos ou mágicos, formas que ocultavam na sua simplicidade poderes estranhos. “Exemplos deste género de notação simbólica são os petróglifos (pedras planas de formato reduzido) do paleolítico superior, que apresentam traços cujas formas abreviadas sugerem signos de alguma escrita mas, que se supõe teriam funções sinalizadores, mnemónicas ou simbólicas.”5 Estes signos constituem, talvez, as primeiras manifestações de uma geometria inata, marcada pela rudeza de uma gestualidade gráfica incipiente, mas onde se pressente também uma notável capacidade de abstracção. Os petróglifos ou desenhos pintados sobre pedras, apresentam em geral formas de cruzes, círculos, signos antropomórficos e zoomórficos geometrizados, isto é, esquematizados. Haverá, pois, uma relação de causa-efeito entre o animal erguido sobre as suas patas traseiras, a libertação da mão e o desenho ou a notação gráfica como memória artificial. Todas as civilizações primitivas utilizaram destas memórias, constituindo verdadeiros sistemas para a notação e manipulação de uma imensidade de conceitos.6 O Homo Sapiens transcreveu nos seus alvores o que tinha visto, em formas figurativas, as quais testemunham a existência de uma destreza manual crescente, pela depuração formal e imitação gráfica do movimento. A pictografia ou representação naturalista/figurativa do mundo visível impregnaria profundamente a evolução até às formas de escrita ideográfica ou logográfica, as quais só surgiram quando a notação gráfica se libertou da figuração herdada dos pictogramas. “De qualquer modo, com a pictografia e os ideogramas teve lugar o ‘nascimento da arte’, a qual se desenvolveria com a pintura, a escultura e as artes plásticas. Desde então, as artes iconográficas e a cultura literária precedente da escrita alfabética bifurcar-se-iam para sempre.”7 Ou talvez não, como será referido mais adiante: as correntes contemporâneas do design gráfico, embora teoricamente ainda estejam pouco estruturadas e programaticamente débeis e confusas, procuram de um modo intuitivo conciliar e fazer convergir essas linhas, numa perspectiva holística da comunicação. 5 - Joan Costa, La Letra, in Enciclopedia del Diseño, Gérard Blanchard (org.), Ed. CEAC, Barcelona:1988, p.12 6 - cfr. Julia Kristeva, A História da Linguagem,[1969] Edições 70, Lisboa:1988, pp.37-45 7 - Joan Costa, op.cit., p.17 4 Do figurativo à representação conceptual e verbal Se existe uma relação directa entre o primata erguido sobre as suas patas traseiras, a libertação da mão e o desenho, existirá necessariamente uma relação entre tudo isso e o desenvolvimento intelectual do sapiens. De igual modo se desenvolveria, como consequência do bipedismo do primata erguido, uma caixa de ressonância buco-faríngea que emergiu com a verticalidade da coluna vertebral e da cabeça, propiciando a emissão de sons articulados.8 O sapiens fala. Nasce a expressão oral e com ela desenvolve-se simultaneamente a capacidade conceptual e de abstracção mental. Assim, a representação do discurso visual do mundo, por meio do registo pictográfico passaria a tentar representar o conceptual – o pensado e o imaginado – e mais tarde, o verbal: o nomeado. Do pictograma passar-se-ia ao ideograma, e daí ao logograma para chegar ao fonograma donde finalmente emerge a nossa escrita alfabética. Se o pictograma é um desenho esquematizado dos acontecimentos, das coisas visíveis e tangíveis, o ideograma é um desenho das coisas mentais, dos conceitos e das ideias – podendo-se situar aqui o nascimento gráfico do símbolo – num esforço para representar qualidades, sentimentos, bem como das construções e invenções da actividade criativa. O Homem utiliza, para exprimir tudo isso, palavras – depois de aprender a emitir sons elementares e de os articular –, palavras que assumiram nele a força do símbolo (uma força mágica de que ainda sobrevivem algumas práticas de magia oral, bruxaria, exorcismos com palavras secretas e mágicas). A palavra é uma realidade audível, uma entidade dotada do poder de actualizar a memória, como fazem os pictogramas aos olhos, as coisas ausentes tornadas presentes e, por tal, mentalmente manejáveis. O homem quis perpetuar em signos gráficos esse mundo mental-verbal, desenvolvendo os códigos logográficos e ideográficos, representando, respectivamente palavras e ideias. Se na escrita ideográfica cada signo representa um conceito ou uma noção, na escrita logográfica cada signo representa uma palavra, a mesma com que é designado, estabelecendo-se assim lentamente a associação entre a coisa designada e a palavra que a designa. Com este processo passar-se-ia a um nível superior de precisão, pois se uma cena de caça ou um petróglifo poderiam suscitar comentários e explicações suplementares sobre o seu significado, o logograma e o ideograma obrigam à sua nomeação com uma palavra precisa ou um breve enunciado verbal. Deste modo o signo torna-se cada vez mais monosémico na medida em que é cada vez mais codificado e menos espontâneo, até ao exemplo final das letras do alfabeto, que são absolutamente monosémicas.9 Contudo, as formas de notação ideográfica e logográfica continuavam a ser marcadas pela sua origem pictográfica, pois tratava-se de formas abstractizadas ou geometrizadas mas com referências figurativas: a palavra ‘homem’ seria representada por um logograma vertical, a palavra ‘mulher’ por um triângulo cortado verticalmente; duas flechas poderiam significar ‘batalha’ ou ‘caça’. A evolução do código pictográfico a logográfico e ideográfico e, mais tarde a código fonético foi lenta e complexa, mas irreversível. Este percurso evolutivo demonstra claramente a influência do mundo visual e perceptivo no primeiro estádio; do interesse introspectivo para os modos de pensar e imaginar, num período seguinte; depois, do esforço para perpetuar graficamente a palavra e, finalmente, da voz que a articula. Pode-se 8 cfr. Edgar Morin, O Paradigma perdido - a natureza humana, Pub. Europa-América, Mem Martins:1975, especialmente pp.63-78 9 - Roland Posner, Balance of Complexity and Hierarchy of Precision: Two principles of economy in the notation of Language and Music, Semiotic Theory and Practice - 1984, Walter de Gruyter & Co., Berlin, New York:1988 pp. 909-19 5 discernir aqui o itinerário que parte do mundo visual, concluindo-se num mundo conceptual e oral. E, paralelamente, o itinerário gráfico que traça a diminuição da figuração imitativa até à forma abstracta convencional. Emergência da letra na comunicação gráfica "Verba volant, scripta manent". A palavra escrita impôs assim a sua supremacia sobre o mundo puramente visual, ou sobre o que era tangível e imaginável, pois que tudo, mesmo o mais subtil, abstracto e invisível, pode ser nomeado. Por intermédio da palavra escrita tentar-se-ia transcrever já não só as coisas físicas envolventes (pictografia), ou as noções e conceitos (ideografia), ou ainda as palavras empregues no discurso (logografia), mas sim a própria matéria física da fala: a linguagem fonética, traduzida visualmente em fonogramas. Esta frase latina teria, no entanto, uma intencionalidade oposta àquela que aqui se infere: as palavras escritas destinavam-se a ser pronunciadas, nomeadas, em voz alta, visto que os signos traziam em si implícito, como se da sua alma se tratasse, um som particular. Assim, Verba volant, Scripta manent, – que acabou por significar nos nossos dias, “o que é dito perde-se no vento, o que está escrito, permanece” – usar-se-ia para transmitir exactamente o oposto: “louva a palavra dita em voz alta, que tem asas e pode voar, em contraste com a palavra silenciosa na página, que nela permanece imóvel, morta”. Deparando-se com um texto escrito, o leitor tinha o dever de dar voz às letras silenciosas, scripta, e assim permitir-lhes tornarem-se verba, palavras faladas, espírito. As línguas primordiais da Bíblia, o aramaico e o hebreu, não diferenciavam o acto de ler do acto de falar, designando ambos através da mesma palavra.10 A escrita fonética começou de acordo com a forma natural da pronúncia: decompondo a palavra em sílabas segundo os movimentos da glote. Daí surgiram as escritas silábicas. Roman Gubern sintetiza que a “passagem revolucionária do pictograma ao fonograma se produziu pela invenção da acrofonia, convenção que atribuía o valor fonético de cada signo ao primeiro som do seu nome”11. Com efeito, os hebreus e os fenícios foram os primeiros a abandonar os símbolos picto-ideográficos para o alfabeto fonético. A escrita fenícia tinha uma estrutura silábica adaptada da gramática das línguas semíticas. Os primeiros a criar um verdadeiro alfabeto foram os gregos. No início do 1º milénio a.C., adoptaram a escrita silábica dos fenícios, reinterpretando certos signos com o fim de os adaptar às exigências da sua língua indoeuropeia. Pode-se considerar como exemplo do processo a primeira letra do alfabeto fenício (pronunciada aleph, em grego alpha, em latim a).12 A economia do signo ou o triunfo da escrita alfabética. Por que razão a escrita alfabética, depois de se desviar, ao longo seu processo genético, do pictograma e do ideograma, como os hieróglifos - formas todas elas icónicas - se 10 crf. Alberto Manguel, Uma história da leitura, Ed. Presença, Lisboa:1988, p.57 - citado por Joan Costa, op.cit, p. 28 12 - César A Castillo, Comunicação e informação antes da impressão, in Alejandro P. Quintero, Historia da Imprensa, Planeta Editora, Lisboa:1996, pp. 14-16 11 6 separaria inclusive das formas de representação linguística, como os logogramas e os signos silábicos? Roland Posner, estudando os motivos que levaram as escritas alfabéticas a imporem-se como sistemas de notação dominantes ao longo dos três últimos milénios, concluiu que o factor prevalecente teria sido não uma maior facilidade de representação dos sons ou da matéria fonética, mas sim uma maior economia de signos13. Tal como o demonstrou a história do cálculo, o desenvolvimento dos sistemas de notação caracterizase pela tendência em optimizar a relação entre esforço de aprendizagem e esforço de execução. Quando o homem sentiu necessidade de fixar enunciados verbais com precisão, teve de desenvolver uma escrita específica. Não poderia utilizar uma notação pictográfica - que não é escrita propriamente dita - porque representa figurativamente objectos e cenas visuais; nem uma escrita ideográfica, que utiliza signos de origem pictográfica para representar ideias e sentimentos, e não palavras; era necessário dispor de um sistema de escrita baseada nos sons orais: os fonogramas. Entre estas escritas fonográficas, Posner constatou que a notação fonética mais natural não é um código alfabético, que implica grandes dificuldades na aprendizagem dos segmentos fonéticos subsilábicos, dificuldades que apenas poderão ser superadas com vários anos de aprendizagem escolar. “Isto nada tem de estranho se considerarmos que os segmentos fonéticos representados pelas letras não são em geral reconhecidos acusticamente como segmentos físicos do fluxo fonético, nem isolados como partes integrantes da percepção auditiva.”14 Apesar desta dificuldade na aprendizagem do sistema alfabético, este acabou por se impor sobre o sistema silábico, mesmo sendo este muito mais fácil de aprender. “Pode-se observar no mundo inteiro que as crianças cortam ritmicamente, sem qualquer dificuldade, as suas frases em coro, segmentando-as em cadeias silábicas (...) [há ainda poucos anos, as crianças aprendiam as tabuadas aritméticas silabando os seus termos, complementando com uma música peculiar, que possuía características mnemónicas, impregnando a sua mente com a informação assim re-produzida. Mas, apesar de requererem um menor esforço de aprendizagem,] não são as escritas silábicas que predominam nos nossos dias, mas as escritas alfabéticas. Este tipo de notação não se detém na sílaba, mas vai mais além: decompõe cada sílaba numa sequência de segmentos fonéticos mais pequenos, fazendo corresponder a cada segmento uma configuração gráfica peculiar: uma letra.”15 Na pesquisa das razões que levaram à imposição da escrita alfabética sobre a escrita silábica, mais fácil de aprender, Posner tece estas considerações: “(...) as escritas logográficas, como a chinesa, exigem um esforço considerável de aprendizagem, mas permitem uma comunicação que poupa tempo. Em Chinês moderno utiliza-se um léxico de 6000 a 8000 signos; um texto muito elaborado conterá até 10000, um dicionário oficial de 1716, inventariava 13 - Posner, op.cit. p. 909 - Posner, op.cit, p. 910 15 - Posner, op.cit. p. 912 14 7 50000. No entanto, um texto chinês é muito curto, já que cada palavra não exige senão um único signo... As escritas silábicas, por seu lado funcionam com um inventário de 1000 signos de base. Nas línguas de estrutura silábica simples, como o Japonês, este número reduz-se a menos de 100. A esta diminuição do esforço de aprendizagem corresponde, contudo, um aumento do esforço de execução, já que cada palavra deve, em geral, ser representada por um signo complexo constituído por vários signos de base... Nas escritas alfabéticas, a recodificação das sílabas em séries de letras reduz o número de signos de base a 30 ou menos. E, no entanto, a dimensão das palavras escritas é maior. [E acrescenta, como contraponto ilustrativo, que] (...) o ponto extremo da redução do número de signos de base conseguiu-se com o código Morse, que utiliza apenas 3 signos (traço, ponto, espaço). Mas, por isso, a dimensão dos textos multiplica-se, e a sua velocidade de produção e recepção (rapidez de escrita e de leitura) diminuem na mesma proporção” concluindo que a escrita alfabética ganhou continuamente terreno às suas alternativas mais antigas nos últimos três mil anos. “É, pois, a maior economia no uso da escrita alfabética a responsável pelo seu crescente êxito após a sua introdução nos povos semíticos”16. A estas considerações pertinentes sobre a economia dos signos haveria que acrescentar a observação feita previamente sobre a maior precisão sémica dos sistemas de notação alfabéticos. As imagens podem ser descritas com palavras, o que pressupõe a interpretação pessoal de signos ambíguos (caso de muitos pictogramas e dos petróglifos da pré-história), o que implica um alto grau de polissemia que é próprio da representação figurativa. Por outro lado, os logogramas e os ideogramas, ao basearem-se nas palavras – que são mais monosémicas que as imagens – adquiriram uma maior precisão semântica, tornando mais aptos estes modos de notação para fixar e transmitir ideias graficamente irrepresentáveis. A escrita silábica possuía uma maior monossemia que a notação pictográfica, se bem que uma sílaba pudesse ser um fragmento de uma palavra, ou ela própria uma palavra. Portanto, a maior monossemia do signo alfabético torna-o mais eficaz na construção semântica e oferece maiores possibilidades combinatórias. Por conseguinte, a codificação em signos foneticamente irredutíveis torna-os mais utilizáveis do que se se tratasse de estruturas silábicas mais complexas. Assim, este nível estrutural mínimo e a monossemia do signo que daí advém, é outro factor que incidiu na supremacia da escrita alfabética sobre a silábica e as suas antecessoras. A redução progressiva de todas as formas de expressão verbal possíveis a uma trintena de signos, manifesta o impressionante esforço de abstracção realizado pelo homem, e que é comparável às abstracções realizadas para simplificar ao máximo possível a notação musical, numérica e de outros sistemas diferentes de signos.17 Justapondo ainda uma outra tese à motivação económica, entraremos nos territórios da política e da estratégia militar, ilustrados pela mitologia. O mito de Cadmos, fundador de Tebas, tal como é referido por McLuhan18, apresenta simbolicamente os efeitos da linearidade e uniformidade dos signos do alfabeto: Cadmos, tendo semeado os dentes de um dragão que matou, viu emergirem do solo homens armados, que se colocaram sob o seu comando. O alfabeto significa poder, autoridade e controlo de estruturas militares à 16 - Posner, op.cit. p. 914 - Posner, op. cit., p. 914; também António Fidalgo, A economia e a eficácia dos signos, Universidade da Beira Interior, Covilhã:1999, especialmente as pp.8-10 18 - Marshall McLuhan, The Gutenberg Galaxy, University of Toronto Press, Toronto:1995, p.50 e Understanding Media, pp. 82-83 17 8 distância. Combinado com o papiro, o alfabeto transbordou das burocracias religiosas e do monopólio de sabedoria e poder que residia nos templos. Ao contrário das escritas préalfabéticas que, com os seus inúmeros signos eram difíceis de dominar, o alfabeto podia ser aprendido em alguns dias. A perícia tão duramente adquirida para a incisão de incontáveis e secretos sinais em superfícies tão árduas como a pedra ou a argila, garantia de prestígio e ascendente para a casta dos escribas e dos sacerdotes, rapidamente perdeu importância com a transferência da escrita alfabética para o leve e transportável papiro, assistindo-se deste modo à passagem do poder dos templos para os militares. Também isto está implícito no mito de Cadmos e nos dentes do dragão, incluindo a queda das cidadesestado, a ascensão de impérios e de burocracias militares. “(...) qualquer sociedade na posse do alfabeto pode traduzir as culturas adjacentes para o seu modo alfabético. Mas este é um processo de sentido único: nenhuma cultura não-alfabética tem hipótese de domínio sobre uma cultura alfabética, pois o alfabeto não pode ser assimilado. Pode apenas liquidar ou ser eliminado. (…) Não será portanto estranho que povos como os Gregos ou os Romanos, que adoptaram o alfabeto, tivessem evoluído na direcção da conquista e da organização e governo à distância (…)”19 Continuando, McLuhan refere ainda a dimensão simbólica dos dentes como veículos de força e poder. As linguagens estão repletas de referências à preensão, poder devorador e precisão dos dentes. A imagem das letras como agentes de uma ordem precisa, eficaz e agressiva, encontra sem dificuldade um paralelo nos dentes do dragão, claramente identificáveis no seu ordenamento linear. As letras não se reduzem à semelhança visual com os dentes, pois a tendência de deitar o dente aos territórios e civilizações vizinhas é comum e frequente na história do homem... Mas a metáfora não se esgota aqui: os dentes têm igualmente implicações simbólicas nos domínios da gastronomia e da digestão que, a par da escrita e da leitura, fazem surgir muitos discursos comuns. Os escritores falam de cozinhar histórias, dar picante a uma cena, trabalhar os ingredientes de um conto de modo a que este fique mergulhado em sangue ou a escorrer mel, confeccionando assim nacos de vida condimentados com alusões nas quais o leitor pode cravar o dente. Também os leitores adoptaram o discurso gastronómico, ao saborearem um livro, de nele encontrarem alimento, de devorar um texto de uma assentada, de vomitar um discurso, ruminar uma frase, enrolar a língua nas palavras de um poema, banquetear-se com literatura erótica, fazer um festim de ficção científica ou policial, uma indigestão de textos de economia política... “Alguns livros são para saborear, outros para engolir de uma assentada, e alguns, poucos, para mastigar e digerir.” 20 * 19 20 Universidade da Beira Interior - McLuhan, M., The Gutenberg Galaxy, p.50 (trad. minha) Francis Bacon, Of Studies, in The Essayes of Counsels, 1625, cf. Manguel, A., op.cit., p.180