A MICROPOLÍTICA DO PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE - REVENDO ALGUNS CONCEITOS
MICRO-POLITICS OF WORK IN THE PUBLIC HEALTH SECTOR,
REVIEWING CONCEPTS
LA MICROPOLITICA DEL PROCESO DE TRABAJO EN
SALUD: MIRANDO OTROS CONCEPTOS
Deborah Carvalho Malta
Emerson Elias Merhy
*
**
RESUMO
O artigo recupera alguns autores clássicos enfocando o tema do trabalho, sua importância na vida do homem, a sua intencionalidade e a sua
criatividade. A seguir faz uma reflexão sobre o processo de trabalho em saúde e a intervenção na sua micropolítica buscando um novo fazer em saúde,
em defesa da vida.
Palavras Chave: Saúde Coletiva; Trabalho – Tendências
O
intencionalidade, a sua capacidade criativa. Ainda, segundo
Marx (1):
artigo a seguir procura fazer uma reflexão sobre o
processo de trabalho em saúde e a importância de intervir na
micropolítica buscando um novo fazer em saúde. Visando uma
melhor compreensão recuperaremos alguns conceitos de
autores clássicos visando a introdução do tema.
"uma aranha desempenha operações que se parecem com a
de um tecelão, e a abelha envergonha muitos arquitetos na
construção de seu cortiço. Mas o que distingue o pior arquiteto
da melhor das abelhas é o que o arquiteto figura na mente sua
construção antes de transforma-la em realidade. No fim do
processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes
O trabalho ocupa lugar central em qualquer sociedade.
idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma
Para Marx (1): "o trabalho é um processo consciente por meio do
apenas o material sobre o qual opera, ele imprime ao material o
qual o homem se apropria da natureza para transformar seus
projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a
materiais em elementos úteis para sua vida." (...) No trabalho
lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem que
interagem, segundo Marx, o homem e a natureza, e o homem
subordinar sua vontade".
"com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu
intercâmbio material com a natureza".
O que importa no trabalho humano não é a semelhança
Duas idéias delimitam ainda o conceito do trabalho
humano, que são a energia e a transformação. Algo que havia
antes se transforma em outro algo, através da aplicação de
com os outros animais, mas as diferenças essenciais que o
energia
distinguem como diametralmente oposto, ou seja, a sua
trabalho (que contém as potencialidades do produto) em um
*
**
Médica, Doutora em Saúde Coletiva (Administração e Planejamento),
Professora Adjunta da Escola de Enfermagem/UFMG.
Médico, Doutor em Saúde Pública, Professor Livre Docente do
Departamento de Medicina Preventiva e Social da FCM/UNICAMP.
(2)
. Esse processo de transformação do objeto de
Endereço para correspondência:
Escola de Enfermagem da UFMG
Av. Alfredo Balena, 190 5º andar - Santa Efigênia
30130-100 - Belo Horizonte - Minas Gerais
E-mail: [email protected]
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A MICROPOLÍTICA DO PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE - REVENDO ALGUNS CONCEITOS
dado produto, é mediado por um gasto de energia necessária
trabalhador no que se refere ao processo de trabalho e
à sua transformação (3).
seus resultados (6).
Os elementos componentes do processo de trabalho,
O trabalho em saúde constitui-se em ação complexa,
de acordo com Marx (1):, são: a atividade adequada a um fim,
envolvendo articulação de diferentes processos, no qual cada
isto é o próprio trabalho; a matéria a que se aplica o trabalho, o
profissional com sua ação parcelar possui objeto próprio,
objeto de trabalho e os meios de trabalho, o instrumental de
saberes e instrumentos específicos (5).
trabalho. Segundo Marx (1), "o meio de trabalho é uma coisa ou
um complexo de coisas que o trabalhador insere entre si
mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para dirigir sua
atividade sobre esse objeto."
As diferentes forma de organização do trabalho, uma
breve revisão
instrumentos
Ao analisar o processo de trabalho é preciso avaliar a
correspondem às forma materiais e não materiais que
forma de organização da sociedade, as relações humanas, os
possibilitam a apreensão do objeto e constituem os saberes
determinantes econômicos. Braverman (7), discute que a divisão
específicos (epidemiológico, clínica, educação em saúde,
social do trabalho existe desde que o homem começou a viver
dentre outros), insumos, técnicas de ação (medidas de
em sociedades. Já nas sociedades primitivas ocorria essa
profilaxia, planejamento, avaliação e controle), equipamentos
divisão. "A divisão social do trabalho é aparentemente inerente
(radioimagem, laboratórios) e toda a tecnologia disponível,
característica do ser humano", seria então a divisão do trabalho
voltada para o atendimentos das necessidades em saúde (3):
em ofícios inerente ao ser humano. A divisão social do trabalho
No
trabalho
em
saúde,
estes
O processo de trabalho em saúde difere do consumo
de serviços em geral basicamente porque, no setor saúde, o
usuário não se porta como um consumidor comum diante da
mercadoria; pois está desprovido de conhecimentos técnicos e
não detém informações necessárias para a tomada de decisão
sobre o que irá consumir. Outras especificidades se colocam no
processo de trabalho em saúde, com a sua finalidade, ou seja,
a ação terapêutica, de cuidado, tendo como objeto o indivíduo
ou grupos, doentes sadios ou expostos a riscos; os meios de
trabalho correspondem aos saberes, instrumentos e como
produto final a própria ação de assistência à saúde, produzida
e consumida concomitante
(4,5)
.
Por outro lado, o processo compartilha características
comuns com outros setores da economia, por estar marcado
por uma direcionalidade técnica e envolver o uso de
instrumentos e força de trabalho. Em relação à incorporação
tecnológica, tem ocorrido outro diferencial no setor saúde, que
divide a sociedade entre ocupações, cada qual apropriada a
certo ramo de produção.
Com o surgimento da manufatura e da indústria
ocorreu outro fenômeno, ou, o parcelamento do trabalho, a
divisão manufatureira do trabalho. O produto para ser produzido
passou a ser decomposto em numerosas operações
executadas por diferentes trabalhadores, assim temos a divisão
técnica do trabalho. Segundo Braverman(7) a divisão social do
trabalho subdivide a sociedade, a divisão parcelada do trabalho
subdivide o homem"
Segundo Braverman(7) a gerência científica, significa um
empenho no sentido de aplicar os métodos da ciência aos
problemas complexos e crescentes do controle do trabalho nas
empresas capitalistas em rápida expansão. Economistas
clássicos debruçaram-se sobre os problemas da organização
do trabalho no seio das relações capitalistas de produção.
Frederick Taylor destacou-se no fim século XIX, por sistematizar
princípios que modelaram as empresas capitalistas modernas.
é a incorporação de tecnologia avançada sem a redução dos
Taylor ocupava-se dos fundamentos da organização do
postos de trabalho, diferentemente dos demais setores da
processo de trabalho e do controle sobre eles. Através de
economia (6).
estudos pormenorizados de tempos e movimentos exercidos
Outra particularidade do trabalho em saúde é que a
pelos operários para executarem as tarefas necessárias à
direcionalidade técnica tem natureza coletiva. Trata-se de um
produção, concluiu que era necessário separar o processo de
processo que envolve a atuação de um conjunto de categorias
planejamento da execução, transferindo o pensar para o
e indivíduos que compartilham recursos técnicos e cognitivos,
administrador e, parcelando, fragmentando em etapas, o
portanto a produção depende do trabalho coletivo. Cabe
trabalho operário, retirando-lhe o conhecimento global do
ressaltar a centralidade do trabalho médico, sua prática é o
processo produtivo. Através desses princípios Taylor imprimiu
núcleo do qual derivam outros trabalhos. Garantir a articulação
ao trabalho rapidez, maior produtividade e maior extração de
dos diversos profissionais na prestação da assistência é um
mais valia, resultando em alienação dos trabalhadores(7).
grande desafio ao se repensar o processo de trabalho em
saúde (4).
Dando segmento a esta estruturação do trabalho, Ford,
criou a "esteira rolante" em 1914. Através da esteira eram
Outras características do trabalho em saúde estão
transportados os carros, na medida que passavam, com
diretamente ligadas à fragmentação dos atos, e à alienação do
paradas periódicas os homens iam executando operações
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A MICROPOLÍTICA DO PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE - REVENDO ALGUNS CONCEITOS
simples. Esse modelo resultou na mudança da organização do
Qualidade CCQ, na CTQ - Total Quality Control, no
trabalho, no aceleramento da produção, no controle da
Gerenciamento de Diretrizes e a Administração por objetivos.
gerência em todas as etapas do trabalho e no achatamento do
Todas essas propostas avançaram no sentido de repensar a
salário dos operários. O modelo fordista foi incorporado em
administração capitalista, seja por estimular a participação, a
larga escala pela indústria automobilística e pela indústria em
criatividade, estimular a adoção da visão estratégica da alta
geral
.
(7,8,9)
direção, a participação nos lucros, controle do processo, a
O trabalho parcelar e fragmentado reduz a ação operária
cogestão (como determinação do capital-trabalho, ou gestão
a um conjunto repetitivo de atividades, que é chamado por
partilhada entre atores distintos) e autogestão (gestão
Antunes(8) de "desantroporfização do trabalho", onde o homem
dos envolvidos)
passa a ser apenas o apêndice de uma máquina ferramenta, que
garanta ao capital maior extração do sobretrabalho.
Esse modelo de produção taylorismo/fordismo foi
(10)
.
Existem divergências quanto à aplicação dos princípios
da Teoria Geral da Administração no setor público. Autores
como Paulo Roberto Mota, citado por Cecílio
(10)
, discutem que
hegemônico durante quase todo o século XX, sendo somente
os mesmos não se aplicariam ao setor público, pelo fato de não
entre o final dos anos 60 e início dos anos 70 que esse padrão
se pautar pela estratégia de crescimento baseada na
produtivo, começou a dar sinais de esgotamento(8,9).
competição, não ser administrado pelos critérios de mercado, e
A crise recessiva capitalista dos anos 70 força uma nova
reestruturação produtiva do capitalismo, objetivando a redução de
custos, aumento da produtividade e da taxa de lucros. O novo
modelo que se estrutura opera uma nova forma de gestão da
empresa e abre para processos de subjetivação dos
trabalhadores. O novo modelo, chamado de Toytismo ou
Ohnismo (por ter sido idealizado por Taichi Ohno) se inspira nas
mudanças do processo de trabalho desenvolvidas na Toyota, no
Japão pós guerra e que rapidamente se propagaram pelo país e
outras partes dos planetas. As principais características desse
novo modelo seriam: produção visando atende um mercado
consumidor mais exigente, portanto mais individualizado,
diferenciando-se da produção em série do taylorismo/fordismo;
fundamenta-se no trabalho em equipe, com multivariedade de
funções, rompendo o caráter parcelar típico do fordismo;
processo produtivo mais flexível, permitindo ao operário operar
várias máquinas; melhor aproveitamento da produção, princípio
just in time, reposição rápida de peças e estoques; estrutura das
empresas horizontalizada, reduzindo gerências intermediárias;
organização de círculos de controle de qualidade, onde grupos de
trabalhadores são estimulados a discutir seu desempenho e
estímulos. Além disso, o toyotismo adotou o emprego vitalício(8,9).
Franco destaca a importância do toyotismo na ênfase
(9)
no trabalho coletivo como um dos pilares de reorganização do
pelo processo decisório não se basear na mesma racionalidade
das empresas privadas, autonomia, competitividade.
Max Weber discute ainda o modelo burocrático
adotado nas organizações públicas, legitimando o tratamento
frio e impessoal, o apego às regras e a inflexibilidade, o
autoritarismo, a resistência às mudanças
(11)
.
Já outros autores defendem a modernização do setor
público que passaria pela maior democratização, criação de
condições efetivas na participação dos trabalhadores e da
população no processo decisório, a descentralização, à
introdução de mecanismos de planejamento, da análise
institucional e da mudança do processo de trabalho em saúde.
O Planejamento pensado a partir da racionalidade comunicativa
do agir comunicativo de Habermas é uma abordagem que vai
de encontro à busca da adesão dos trabalhadores e dos
usuários ao projeto da Reforma Sanitária, repensando a
administração pública e introduzindo novos elementos na sua
gestão cotidiana)
superado
(10)
. O modelo burocrático tem que ser
repensando
os
"recursos
humanos"
das
organizações públicas, seja pela participação, democratização
da gerência, do processo decisório, incluindo os trabalhadores
como sujeito na formulação de diretrizes, indivíduos antes
considerados objetos da ação gerencial
.
(10,12,13)
processo de trabalho, associado à valorização do conhecimento
múltiplo, em contraste ao conhecimento parcelar do fordismo.
A micropolítica do trabalho em saúde
Nesse modelo o trabalho vivo sofre uma captura menor do que no
modelo taylorismo/fordismo, ele se impõe para atender ao novo
A discussão sobre processo de trabalho em saúde, se
formato do mercado consumidor. Paradoxalmente a este
se pretende operar mudanças no modo de trabalhar na área,
processo, houve uma maciça incorporação de novas tecnologias,
passa necessariamente pela abordagem dos aspectos da
uma grande substituição de trabalho vivo por trabalho morto nos
micropolítica do trabalho em saúde, visando publicizar o espaço
processo produtivos, além disso manteve-se o objetivo de
e buscar novos sentidos e formatos.
aumentar o ritmo de trabalho e a conseqüente produtividade.
Vale ressaltar dois conceitos importantes: "trabalho
Esses pressupostos foram amplamente praticados e
vivo" - refere-se ao trabalho em ato, o trabalho criador; o
difundidos na formulação da Administração capitalista, e
"trabalho morto" - refere-se a todos os produtos-meios
resultaram em outras variantes como os Círculos de Controle de
(ferramentas, matérias primas) que são resultados de um
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A MICROPOLÍTICA DO PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE - REVENDO ALGUNS CONCEITOS
trabalho humano anterior e o homem os utiliza para realizar um
de força, a do usuário, também atua de forma instituinte na
dado trabalho.
busca de sua "autonomia". O espaço intercessor é o lugar que
Quando o "trabalho vivo" é capturado, de tal forma que
revela estas disputas das distintas forças instituintes; entretanto
o homem não consegue exercer nenhuma ação de forma
um dado processo instituído pode capturar ou ser invadido por
autônoma, ele se torna "trabalho morto". Isto ocorre, por
estas forças. Mesmo que o processo instituído abafe este
exemplo, numa linha de montagem, onde o capitalista controla
movimento, as forças instituintes estarão sempre gerando
a tal ponto o autogoverno do trabalhador, que estrutura o
ruídos em seu interior
(14, 15)
.
trabalho, definindo previamente todas as características do
Outra noção na micropolítica do trabalho em saúde é a do
produto final. Assim, o trabalho vivo é capturado e
"ruído". Este conceito parte da idéia de que, cotidianamente,
domesticado)
(13)
.
ocorrem processos silenciosos nas relações entre os agentes
Existem claras diferenciações no trabalho em saúde, no
institucionais até o momento em que esta lógica funcional é
que se refere à autonomia do "trabalho vivo", que é bem ampla
rompida. A ruptura desta lógica normalmente é entendida como
se comparada com outros setores da economia. Um operário
uma disfunção, um desvio do normal, estes "ruídos", entretanto,
numa fábrica tem o seu processo de autonomia controlado,
devem ser percebidos como processos instituintes que abrem
pois previamente se decide o produto do seu trabalho. Já no
possibilidades de interrogação sobre o modo instituído e
setor saúde, mesmo que o "trabalho vivo" seja "capturado"
mostram distintos modos de caminhar. Cumpre conseguir
pelas tecnologias mais estruturadas, descritas anteriormente
captar e entender estes ruídos
.
(14, 15)
(duras e leve-duras), ou se estiver também submetido ao
Os movimentos instituintes operam como movimentos de
controle empresarial, no encontro entre o usuário e o
mudanças, ensaiando "rupturas" com as "capturas" do trabalho
consumidor dá-se o "espaço intercessor" com possibilidades
vivo. Entretanto, este movimento tem aparecido em momentos
de mudanças, de atos criativos. É extremamente difícil capturar
sociais bem especiais, quando ocorre a aparição de "atores
o trabalho vivo em ato na saúde. Este espaço é sempre
sociais" novos e organizados com capacidade de confrontação
conflituoso,
com o processo instituído
existindo
desdobramentos)
diversas
possibilidades
de
.
(13,14,15)
Segundo Merhy
(14, 15)
.
Uma intervenção institucional que vise provocar mudanças
, no encontro de sujeitos criam-se
no processo de trabalho em saúde é sempre complexa.
espaços de relações, ocorrem interseções entre os dois, ou
Quando analisamos um Centro de Saúde, o conjunto de
seja, este encontro não é uma simples somatória de um com
autogovernos em operação e o jogo de interesses organizados
um outro, mas sim o resultado de um processo singular pelo
como forças sociais tornam a situação altamente complexa.
encontro dos dois em um único momento. Assim também, no
Assim, num processo de mudança, não basta possuir uma
encontro do trabalhador de saúde com o usuário, estabelece-
receita para a ação, deve-se dispor, além de várias e novas
se entre eles um espaço intercessor que sempre ocorrerá em
ações instrumentais, de capacidade de problematizar cabeças
seus encontros e em ato. Este momento, o da produção e
e interesses, sempre questionando situações que podem gerar
consumo dos atos de saúde, é um momento especial, portador
processo de liberação do trabalho vivo, enfim das forças
de forças "instituintes". Nos modelos de assistência
instituintes e criadoras. O processo de trabalho em sua
predominantes hoje, nas relações produzidas nos serviços de
micropolítica encontra-se num cenário de disputa entre forças
saúde, os espaços intercessores são preenchidos pela "voz" do
instituídas, fixadas pelo trabalho morto, e outras que operam no
trabalhador e pela "mudez" do usuário. Esta relação em saúde
trabalho vivo em ato, que se encontram nos processos
deveria ser não desta forma, "objetal", mas do tipo "interseção-
imaginários e desejantes. Esta criatividade permanente do
partilhada", ou seja, onde aconteçam interações. Assim, se ela
trabalhador em ação deve ser explorada na dimensão pública e
ocorrer baseada na "mudez" e no "autoritarismo", haverá perda
coletiva para que sejam reinventados novos processos de
quanto ao mútuo processo instituinte.
trabalho, ou mesmo para abri-los em novas dimensões não
(14)
Neste encontro, o "agente produtor" porta conhecimentos,
pensadas. Atuar nestes processos significa buscar novas
equipamentos, tecnologias, enquanto o "agente consumidor"
possibilidades, isto se torna possível na medida em que a
expressa também seus conhecimentos e representações. Estes
escuta dos ruídos do cotidiano ocorre. Assim possibilita abrir
agentes são ambos portadores de necessidades que, por sua
linhas de fuga do instituído. Caberia ao gestor desenvolver a
vez, são definidas em processos sociais e históricos. Todo o
capacidade de "escutar" estes ruídos, construindo um
processo de trabalho é atravessado por lógicas diferentes, que
processo de busca de entendimento, possibilitando a invenção
se apresentam como necessidades em disputa, como forças
de novas missões institucionais e novos sentidos para o
instituintes nas suas instituições. A presença de uma linha de
processo de trabalho
.
(14, 15)
força médico-hegemônica, que se coloque positivamente, atua
Outra questão a ser discutida no processo de trabalho
como instituinte no processo de trabalho em ato. A outra linha
em saúde é a produção da alienação. A organização parcelar do
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A MICROPOLÍTICA DO PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE - REVENDO ALGUNS CONCEITOS
trabalho, a fixação do profissional em determinada etapa de um
conhecimentos e ações de competência de cada profissional ou
certo projeto terapêutico e a repetição mecânica de atos parcelares
especialidade. Por "campo" entende-se saberes, competências e
produzem alienação. Segundo Campos (16), se o trabalhador não se
responsabilidades
sente sujeito ativo no processo de reabilitação, ele perderá contato
especialidades. Através do trabalho em equipe, o "campo de
com elementos que potencialmente estimulam sua criatividade,
competência" tende a se alargar, através das trocas de saberes.
não se responsabilizando pelo objetivo final da sua intervenção.
Assim preserva-se maior autonomia profissional e das equipes.
Para reverter este quadro, deve-se aproximar o trabalhador do
Preserva-se o exercício de "núcleos" específicos, próprios da
resultado do seu trabalho, valorizar o seu orgulho profissional pelo
intervenção de cada profissional, além de alargar os "campos"
esforço singular de cada caso. É fundamental abrir espaço para a
comuns, melhorando a qualidade da assistência, permitindo
liberdade criadora, para a autonomia profissional, bem como para
respostas mais abrangentes por parte dos profissionais.
a reinvenção de novas maneiras cotidianas de operar a instituição
confluentes
as
várias
profissões
ou
Além disto, cabe definir a responsabilidade nominal de
cada profissional, por cada caso, não se diluindo a responsabilidade
ou o seu local de trabalho.
Para assegurar a qualidade em saúde, faz-se necessário
combinar a autonomia profissional com certo grau de definição de
pela equipe, operacionalizando-se assim o conceito de vínculo,
através da adscrição individual da clientela (17).
responsabilidade dos trabalhadores com os usuários, assim como
Desta forma o processo de trabalho, enquanto
o estabelecimento de um pacto em torno de um projeto coletivo. A
micropolítica, pode ser o lugar estratégico da mudança, pautando-
recuperação da prática clínica assentada no "vínculo", ou
se não pelo modelo médico-hegemônico, mas pela ética do
responsabilização com o usuário, é a forma de combinar autonomia
compromisso com a vida, com uma postura acolhedora,
e responsabilidade profissional.
estabelecendo vínculos, buscando a resolutividade e a criação de
A crescente especialização dos médicos e demais
autonomia dos usuários.
profissionais da saúde vem diminuindo a capacidade de resolver os
problemas e aumentando a alienação desses profissionais em
relação ao resultado e à prática. Uma vez que cada especialista se
Novas perspectivas do trabalho em saúde
encarrega de uma parte da intervenção, em tese ninguém pode ser
A reorganização do processo de trabalho passa pela
responsabilizado pelo resultado do tratamento. Este modelo se
qualificação da força trabalho dos profissionais, integração dos
aplica também no cotidiano da Saúde Pública. Com isto tem
profissionais na assistência, resgatando o sentido do trabalho
ocorrido uma progressiva perda da eficácia das práticas clínicas,
multiprofissional e qualificando o produto final ofertado.
diminuindo a capacidade de cada profissional resolver problemas.
Outro passo fundamental consiste na ampliação de
As áreas básicas tendem a funcionar cada vez mais como
espaços democráticos de discussão e de decisão, visando ampliar
"triadoras", avaliando riscos e encaminhando para outros. Isto
os espaços de escuta, de trocas e decisões coletivas. Dessa forma
implica mais e mais especialistas envolvidos, mais apoio
investe-se na “criação do sujeito coletivo”, que representa uma força
diagnóstico, maior custo e maior imposição de sofrimento e
impulsionadora que critica as forças paralisantes da instituição,
restrições aos pacientes. As "receitas" para este problema têm sido
mobiliza as forças instituintes que tendem a transformar as
a retomada dos generalistas e a constituição das equipes
instituições, desencadeando um intenso movimento de forças
multiprofissionais, como se as equipes compensassem a
criativas, mobilizando energias e propostas inovadoras
desresponsabilização e a fragmentação que a especialização
movimento visa criar novos formatos do trabalho em saúde, que
excessiva tem criado e legitimado (17).
devem se pautar pela necessidade de responder ao sofrimento dos
. Esse
(18)
, é necessário construir caminhos
usuários, buscando articular novas forma de prestação de
para sair das polaridades representadas de um lado, pela
assistência que possa lhes dar proteção ou resolução dos seus
especialização excessiva, geradora de verticalidade na organização
problemas. Certamente isso implica em implantar serviços
dos
acolhedores, que possam se organizar para responder os
Segundo Campos
processos
de
(17)
trabalho
em
saúde
com
profundo
desentrosamento das equipes; de outro, por uma completa
problemas dos usuários.
horizontalização, igualando-se artificialmente todos os profissionais
Para que os modelos de assistência possam romper essa
sem se ater às especificidades de cada profissão. Haveria que se
situação devem se referenciar nos pressupostos de garantia do
combinar graus de polivalência com certo nível necessário e
acesso e acolhimento aos usuários, responsabilização/ vínculo,
inevitável de especialização.
integralidade na assistência, democratização (participação de
Entram aí dois conceitos fundamentais: "núcleo" e "campo"
de competência e responsabilidade. Por "núcleo" entende-se o
trabalhadores e usuários na gestão), gestão pública e adequação à
realidade local.
conjunto de saberes e responsabilidades específicos a cada
Ao formular uma proposta de modelo assistencial para o
profissão ou especialidade. Marca assim os elementos de
SUS deve-se buscar respostas para o enfrentamento dos atuais
singularidade que definem cada profissional ou especialista,
problemas de saúde e que também dêem conta dos problemas
- Rev. Min. Enf., 7(1):61-66, jan./jul., 2003
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A MICROPOLÍTICA DO PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE - REVENDO ALGUNS CONCEITOS
SMM. (org.). O trabalho de enfermagem. São Paulo. Cortez, 1997.
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(19)
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9.
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aponta alguns
aspectos que um modelo tecnoassistencial deveria conter: a)
garantir a universalidade, a integralidade e a equidade; b) a atenção
a grupos populacionais específicos (idosos, adolescentes e outros);
c) atenção a doenças crônicas, tendo em vista os custos crescentes
e a incorporação tecnológica; e d) metodologias e tecnologias de
educação e promoção de hábitos e comportamentos saudáveis,
entre outros.
Na continuidade de imprimir os desafios de construir um
sistema de saúde universal, equânime e de qualidade, deve-se
persistir na aposta de buscar alternativas diversas, referenciadas
nesses princípios. Entendendo que a saúde é um território de
práticas em permanente estruturação, onde é possível experimentar
uma infinidade de fazeres, não existindo apenas um formato único
possível. Por se representar um território tenso e aberto, sempre
podem emergir novos processos instituintes que podem ser a chave
para a permanente reforma do próprio campo de práticas, o que
constitui em si desafios constantes para qualquer paradigma a ser
adotado.
Summary
This article examines the subject of "work" from the perspective of
renowned authors. It focuses on the importance of work for human
life, its purpose and its capacity to generate creativity. The article also
elaborates on the dynamics of work in public health (the reach into
the micro-politics of the Public Health sector) and on the search for a
new approach that prioritizes the care and defense of life.
Key-words: Collective Health; Work – Tendencies
Resumen
El presente artículo recupera la visión de algunos autores clásicos
que enfocan el tema del trabajo, su intención y su creatividad.
Después reflexiona sobre el proceso de trabajo en salud y su
intervención en la micropolítica buscando un nuevo hacer en
salud en defensa de la vida.
Palabras clave: Salud Colectiva; Trabajo – Tendencias
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