José Barata-Moura (Universidade de Lisboa) UMA PEQUENA MEDITAÇÃO DA ARTE E DA CULTURA. § 1. Tese/problema. Agradeço aos organizadores desta Jornada o amável convite para vos aborrecer com esta fala1. Se entendi devidamente aquilo que me foi proposto, trata-se de, ao jeito de uma reflexão breve, procurar contribuir para o delineamento de um conjunto de teses, destinadas a serem examinadas e desenvolvidas no marco de um debate subsequente. Dizem -- não sem fundamento -- que os filósofos, mesmo em fase prolongada de aprendizado, têm a propensão, dificilmente refreável, de, a cada passo, ligar esse poderoso dispositivo teorético que dá pelo nome de «complicómetro». De facto, como já Aristóteles observou2, o alinhar de «posições» é indissociável de uma «aporética»: a própria «tese» é um «problema». É perante problemas que as teses surgem; é de dentro de um problema que a tese ganha contornos; é operando a mediação de um problema, com critério e fundamento erstabelecido, que a tese desenrola eventualmente pistas susceptíveis de encaminhar a uma resolução de aquilo que em causa está. Ao contrário do que vulgarmente é admitido, os resultados -- pontos de chegada -- não são em abstracto independentes da problemática, do questionário, do processo, que a eles conduz. Esta é, a traço grosso, a teoria da «tese», e do «problema». Como infelizmente tereis ocasião de constatar, bem mais modesta será a prática que, na confrontação com ela, conseguirei desenvolver. Deixado o precavido alerta aos navegantes, entremos, então, de pronto nesta pequena excursão meditativa da Arte e da Cultura -- na qual à falta do engenho artístico 1 Intervenção inaugural do Colóquio «Abra-se o pano...», promovido pelo Teatro Extremo, realizada em Almada no Forum Romeu Correia, em 28 de Junho de 2011. 2 Cf. ARISTÓTELES, Tópicos, I, 11, 104 b 29-31. 1 se virá a juntar o excesso da filosofância culturalística. Não será uma compensação dos danos; é um agravamento das debilidades. § 2. Trans-gressão. Comecemos por um sucinto enunciado tético, de aparência provocatória. A Arte con-siste num certo trans-gredir. Não necessariamente como infracção patológica de tudo aquilo que se nos apresente como imposto. Não forçadamente como devassa indiscreta dos recônditos do proibido. Não compulsivamente como exploração voyeurista do obsceno, isto é, de aquilo que fora de cena se encontra. A trans-gressão que constitui a actividade artística, que desde o fundo a anima, que no seu desdobrar-se pulsa, prende-se, sim, com um ir além do existente. Pressinto o engatilhar da objecção: cá está a rampa de lançamento do foguetão das artes para a estratosfera! Não. Não é bem assim. Nem é fundamentalmente isso. Até porque a estratosfera também faz parte do universo. «Ir além do existente» não é saltar fora do real; é penetrá-lo nos seus trajectos e nas suas trajectórias. Significa des-cobrir-lhe aquilo que no bojo encerra, que na sua textura carrega, e sondá-lo no leque de possíveis que cada existência adiante de si projecta. A Arte vai além do existente. Na medida em que, para trás, lhe mostra a génese e o processo que até ele conduz. Na medida em que, para dentro, lhe faz vir à luz da consideração os imbricados e contraditórios meandros de que se tece. Na medida em que, para diante, lhe rasga, antecipa, ficciona, sendas de um por vir, de um ser ... de outra maneira. § 3. Negatividade e enriquecimento. A Arte é um ofício do trabalho da negatividade à obra nos estaleiros do real. Mas a trans-gressão do existente, em que a Arte in-siste, não é apenas «negação» da facticidade; é também um enriquecimento positivo da existência. 2 Na paleta mais abrangente das suas diversificadas modalidades e estilos, a Arte - criando, e re-criando -- traz ao real figuras novas: materializando-lhe formas e conteúdos novos. Até porque -- não sendo esse embora o nosso tema de hoje --, na pluralidade dos géneros e das sensibilidades artísticas, «forma» e «conteúdo» guardam entre si uma relação interna de expressividade3. Indo além do existente, a Arte desbrava e esqudrinha, tira partido das dimensões plásticas (dialécticas) do real; e – mais ainda --, para além do prazer da fruição que proporciona, mostra aos olhos, aos ouvidos, à imaginação, como o real é ele próprio um processo complexo em devir de transformação. § 4. No horizonte concreto da criatividade. Dir-me-ão que, com esta abordagem precipitada, estou a afunilar as artes numa estética da criação. O meu propósito, porém, é deliberadamente outro: alargar ao horizonte da criatividade o concreto das manifestações que, no seu movimento interligado, tecem e entretecem o fenómeno artístico em geral. A Arte deposita-se em obras -- cuja natureza polimórfica pode ser também a do «acontecimento». Não há obra sem autoria -- neste campo, a «geração espontânea» tem uma inultrapassável dificuldade em colher, por ausência completa de indústria. Mas não há vivificação da obra sem o concurso, amplo e diversificado, de todo um conjunto de agentes que -- em diferentes patamares, e desempenhando funções diversas -- operam a sua mediação. E também não há vivência de fenómenos artísticos sem recepção, sem público, sem comunidade que, pelos produtos da Arte interpelada, os frua, os tome, os acolha e reconfigure na experiência alargada de um viver. 3 Num quadro dialéctico e concreto de consideração, a forma confere unidade ao múltiplo dos seus conteúdos, do mesmo passo que estes -- na aparência, desgarrados – é no uno que formam que encontram fundamento. Segundo a bela formulação hegeliana: «a forma habita imediatamente na matéria, como sua essência verdadeira e poder configurante» -- «die Form wohnt der Materie, als deren wahrhaftes Wesen und gestaltende Macht, unmittelbar ein.», Georg Wilhelm Friedrich HEGEL, Vorlesungen über die Ästhetik, I, 2, A, 3; Theorie Werkausgabe, red. Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1970, vol. 13, p. 175. 3 Este ponto, esta ponte, faz-nos transitar a uma brevíssima meditação do tópico da Cultura. § 5. Desventuras da cultura. Haverá quem, na Cultura, mais não consiga enxergar do que chatice. Entende-se: há existências sem espessura, afeitas ao baixio ralo de águas nada profundas, para as quais o mais tranquilizador é mesmo apagar das cartas a vastidão do alto mar, e declará-la inexistente. À míngua de capacidade, ou de coragem, para navegar a aventura da decifração, fique-se pela embasbacada reverência à imediatez inculta do cifrão. Não é o mundo que é chato; há é olhares que achatam. Haverá quem imagine que a «Cultura» não passa de excrescência descartável. Entende-se. A sofisticação do ornato é entretenimento próprio de intelectuais ociosos, e como tal deve ser higienicamente tratada: ora enquanto objecto de um discreto gargalhar trocista, ora como manifestação marginal a acantonar em apropriadas casas de tolerância (museus, bibliotecas, teatros, etc.). A espaços, e em momentos privilegiados, a «Cultura» funcionará como uma gaveta empenada aonde se vão rebuscar mal digeridos motivos de envernizamento para lustro de uma circunstancial troca de palavras em sociedade, ou para ocasional enfeite pomposo de discursos dos quais as ideias só não desertaram, porque lá dentro jamais meteram o pé. É a etiquetagem da «Cultura» (presumida) como rótulo de etiqueta (a exibir). Haverá ainda quem tenda a confinar a «Cultura» ao baú das velharias requintadas, ou ao altar imponente da veneração pelos escolhidos. Também se entende. Custou tanto a adquirir essa fazenda, que escasseiam forças e vontade de a fazer frutificar. Permaneça-se, portanto, no aconchego da paróquia, ou nas alturas do campanário: rememorando com deleite pequenas curiosidades raras, fazendo escoar com moderação adivinháveis torrentes de sabença, ritualizando liturgias de um caricato ofício de defuntos em que os celebrantes, apesar da exuberância da gesticulação, é que 4 estão já mortos. Enaltecem e agasalham muito a «Cultura»; mas abafam, abafam, não ventilam. § 6. Da cultura como cultivo. Outra é, porém, a voz da Cultura. Porque é de um outro exercício que nos fala. É a um outro exercício que nos convida. A Natureza humana, na relacionalidade intrínseca da sua condição, é uma natureza cultural. Pelo gesto, que modela; pela palavra, que modula; pelo pensar, que criticamente re-flecte e concebe; pela expressão, que artisticamente, buscando sentidos, põe em comum, comunica. Cultiváveis, os seres humanos são seres de cultura, porque a Cultura -- na mais colorida panóplia das suas instanciações históricas, e na própria contraditoriedade dos resultados a que aporta -- é, desde o fundo, um cultivo de humanidade, de aquele modo do ser que nos corresponde enquanto humanos. Ontologicamente, a Cultura é uma modalidade humanizante do cultivo do ser pelas colectividades no seu devir histórico. Por este, e neste, trabalho do viver -- que a Cultura espelha, interpreta, e em horizonte rasga -- se desempenham em concreto os humanos de aquilo que porventura constitui a sua destinação genuína: inscrever no corpo das realidades em movimento o cunho, a marca, o selo, da sua humanidade. Nos acervos objectivados da Cultura se traduzem, e sedimentam, testemunhos de uma lavrança experienciada do real a que outros -- que nos precederam, ou que à nossa volta estão -- se entregaram. Na Cultura, em permanência palpita uma presença do outro -- que importa fazer falar. Pelo cuidado, e pela valorização, desses patrimónios acumulados passa a descoberta amplificada do mundo e da vida, e a densificação da nossa própria vivência deles. A Cultura, oriunda de uma demorada e paciente dialogia com a historicidade do ser, é um renovado apelo ao empreendimento de diálogos. Inscrevendo-se nessa teia, e nessa cadeia, de uma escritura do real pelas colectividades humanas, a todos desafia também a tarefa -- da qual não estamos dispensados -- de proceder ao aditamento de uma produção cultural própria. 5 A Cultura não se desfaz em objecto de uma mera contemplação de monumentos acabados, remotos e alheios; é incontornavelmente matéria de feitura, actuando-se e prolongando-se. O vector da cultura é sempre o trabalho do possível. De um possível que – transgredindo -- nega o encarceramento imediato nas unilateralidades daquele existente que, formatado, nos é re-presentado, e devolvido, de ordinário, para obediente consumo e generalizada acomodação. Neste sentido, a Cultura di-verte e sub-verte, porque acorda, e faz reverter a um tecido do real que em transformação, e transformável, se encontra. Mas o cultivo em que a Cultura consiste exige trabalho, requer educação4, é perigoso... -- não vá dar «ideias», uma coisa que aos que as não têm, e com elas pouco privam, muito atemoriza..., como é sabido, e, amiúde, desgraçadamente comprovável. O chamado «pensamento único» -- de repetitiva memória, e de monotónica repetência -é unicamente uma maneira de pretender dar cabo do pensar. § 7. Política e políticas culturais. É no horizonte histórico de uma comunidade viva que a Cultura -- escrevendo -se inscreve. Na medida em que o reflecte, e acompanha; na medida, sobretudo, em que o desenha e perspectiva. Nas difíceis conjunturas que atravessamos, é, sem dúvida, imprescindível uma visão cultural da política. Qual o seu objecto? quais os seus sujeitos? Serve para quê? está ao serviço de quem ? -- esses são outros contos, e outras contas, que, fazendo de conta e evitando que sejamos em conta tidos, outros, com tudo isso contando ( mais a descoberto do que a contado), se encarregam de ir fazendo ... 4 Até a educação dos sentidos, que parecem ser aquilo que de mais «espontâneo» há. Como, na esteira de Rousseau (cf. Jean-Jacques ROUSSEAU, Émile, ou de l’éducation, II; Oeuvres Complètes, ed. Bernard Gagnebin e Marcel Raymond, Paris, Éditions Gallimard/Bibliothèque de la Pléiade, 1969, vol. IV, p. 380), Marx não deixa de lembrar, nos Manuscritos de 1844: «A formação dos 5 sentidos é um trabalho de toda a história mundial até aqui.» -- «Die Bildung der 5 Sinne ist eine Arbeit der ganzen bisherigen Weltgeschichte.», Karl MARX, Ökonomisch-philosophische Manuskripte, Heft III, III; Marx-Engels Gesamtausgabe, ed. Günter Heyden e Anatoli Jegorow (MEGA2), Berlin, Dietz Verlag, 1982, vol. I/2, p. 270. E a tarefa nunca se encontra conclusa … 6 No entanto, é indispensável também atentar em, e debater, as políticas culturais -- que não devem perder de vista a política da cultura, isto é, o modo como, comunitariamente, se promove, consolida, e faz frutificar, o seu cultivo. Sobre este ponto, outros mais qualificados se pronunciarão de seguida, e, acerca dele, todos vós sabeis muito mais do que eu. É, pois, tempo de me calar, a fim de colher os benefícios da escuta. Atrevo-me, todavia, a deixar um sumaríssimo apontamento tópico, quase telegráfico. Sem produção, não há Cultura -- tanto em termos espirituais como em termos materiais. Sem disponibilização e acesso, não há circulação de Cultura -- socorrendo-me do vocabulário económico: não há realização de valores culturais. Porventura, no quadro das políticas, o problema de mais difícil abordagem resolutiva é o da promoção de uma generalizada apetência cultural. Não basta fazer -- e fazer bem feito. Não basta pôr ao alcance -- de uma mão que tem que se estender. Não basta franquear as portas pesadas do tabernáculo. É preciso despertar e cultivar o gosto pelo alimento -- que faz crescer, e que ajuda a uma reconfiguração da qualidade do viver. Sem cultura, a vida é irremediavelmente pobre. É todo o campo de uma educação (não apenas escolarizada) para a sensibilidade às artes e à cultura em geral que avança, e que se nos escancara. É toda a maneira como nós ocupamos o espaço e o tempo do nosso ofício do viver -- e com que densidade. É um desafio em aberto que se estende -- nunca de todo definitivamente resolvido, e que a todos con-cita. Perante a demorada magreza dos meus contributos, muito obrigado pela paciência da vossa atenção. Lisboa, Junho de 2011. 7