Comunicação TROCA-TROCA ARTE CONTEMPORÂNEA NA VIDA DE UMA PEQUENA CIDADE E O POTENCIAL EDUCACIONAL DE TRÊS FUSCAS GOBIRA, Ailtom Alves1 Palavras-Chave: Artes, Educação, Comunidade TROCA-TROCA O principal objetivo deste ensaio é analisar, do ponto de vista educacional, o objeto de arte contemporânea Troca-Troca, três fuscas remodelados em oficinas da periferia da cidade do Rio de Janeiro, um projeto coordenado pelo artista Jarbas Lopes, bem como analisar o texto Diária de Bardos, escrito quando Jarbas Lopes e outros sete amigos viajavam em três carros do Rio de Janeiro até Curitiba, onde os fuscas foram entregues para uma exposição. Analisar também o relacionamento entre um Museu de Arte Contemporânea, o Inhotim, com a comunidade de Brumadinho, uma pequena cidade do interior do Brasil. O meu primeiro encontro com o trabalho de Jarbas Lopes aconteceu em 2004 durante a exposição coletiva de artistas brasileiros, Gambiarra, que aconteceu na galeria Firstsite Minorities, na cidade de Colchester, interior da Inglaterra. A exposição foi organizada pela galeria Gasworks e apresentada pela primeira vez em solo inglês, em Londres, no outono inglês de 2003. O objetivo da galeria era mostrar um grupo de artistas brasileiros que adotavam, entre si, práticas similares do fazer artístico. 1 Universidade Federal de Ouro Preto “Gambiarra em português refere-se a uma estratégia comum empregada por todos os artistas envolvidos neste projeto, que não vêem esse trabalho simplesmente como uma metodologia de pesquisa, mas também e mais importante, como uma metáfora positiva e poderosa para suas reflexões sobre instituições culturais e a complexidade de suas posições como parte dessas instituições. As decisões tomadas pelos artistas ao usar soluções rápidas, materiais mais baratos e gambiarra estão ligadas a grande desigualdade presente na sociedade brasileira e que afeta seus valores e símbolos.” (GASWORKS. 2003) Lendo atentamente o material distribuído para a exposição me deparei com o Diária de Bardos. O diário é uma descrição poética da viagem de três fuscas que aconteceu em novembro de 2002 e descreve a saída dos três carros da periferia do Rio de Janeiro, onde foram remodelados, até o novo Museu de Arte Contemporânea em Curitiba, no Paraná. A descrição poética da viagem e a idéia de transformar três fuscas em objetos de arte contemporânea mexeram com a minha imaginação. Ao buscar na Internet informações sobre os fuscas descobri que o Inhotim, Centro de Arte Contemporânea, uma nova instituição de arte contemporânea brasileira, havia comprado o Troca-Troca. O Inhotim fica em Brumadinho, uma cidade localizada a sessenta quilômetros de Belo Horizonte em Minas Gerais. ARTE CONTEMPORÂNEA E INTERVENÇÃO NA PAISAGEM DE UMA CIDADE PEQUENA Antes de analisar os fuscas do Troca-troca e o Diária de Bardos, é importante que se faça uma reflexão sobre o local onde os fuscas estão “estacionados”. Primeiramente, é necessário sabermos um pouco sobre o Inhotim, compreendendo assim o porquê uma instituição como esta foi criada em uma cidade pequena, longe dos principais centros econômicos brasileiros, aproximadamente a seiscentos quilômetros do Rio de Janeiro e São Paulo e a quarenta e cinco minutos de carro da capital do estado, Belo Horizonte. A instituição está localizada em uma fazenda e tem em sua coleção um grande número de objetos de arte contemporânea, principalmente de arte brasileira. É um empreendimento de Bernardo Paz, empresário proprietário da companhia mineradora Itaminas, e de acordo com o release distribuído à imprensa em 2003 o Inhotim pode ser considerado a iniciativa mais importante do ponto de vista institucional, desde a criação do MASP em 1947 por Assis Chateaubriand. Nos anos 80 Paz começou a colecionar arte moderna e mais tarde, em 1998, comprou seu primeiro objeto de arte contemporânea, uma instalação do artista brasileiro Tunga. O contato com Tunga durante o processo de criação da instalação mudou sua concepção sobre arte, conseqüentemente Paz vendeu sua coleção de pinturas modernistas e começou a comprar outros objetos de arte e instalações. A aquisição de instalações e outros objetos de arte contemporânea o levou a abrir galerias dentro da sua propriedade, para então, poder guardar sua coleção particular. A casa de campo foi transformada em um centro cultural privado, foram construídas 7 galerias espalhadas por 300.000 metros quadrados e quatro curadores foram convidados a fazer parte da instituição: os brasileiros Ricardo Sardenberg e Rodrigo Moura, o alemão Jochen Volz e o norte-americano Allan Schwartzman que atua como diretor da curadoria da coleção do Inhotim. Em 2004, ano da XXVI Bienal de São Paulo, Bernardo Paz e seu grupo de curadores acharam que seria uma ótima oportunidade para apresentar o Inhotim à imprensa, aos artistas e críticos, mesmo sem o término das obras em partes importantes do museu. O Inhotim tem uma coleção que inclui cerca de 500 trabalhos de artistas brasileiros como Cildo Meireles, Miguel Rio Branco, Tunga, Ernesto Neto, Vik Muniz e Helio Oiticica; e de artistas estrangeiros como Paul McCarthy, Dan Graham, Albert Oehlen, Olafur Eliasson, Franz Ackerman, Zhang Huan e Janet Cardiff. Segundo o diretor do museu, Bernardo Paz, “A arte só faz sentido quando apreciada por todos. Não há razão para restringir o acesso à arte contemporânea a uns poucos colecionadores. Foi esse propósito que norteou a criação do Inhotim”. Algumas perguntas se apresentam diante da declaração de Paz: É importante criar objetos de arte contemporânea que possam ser apreciados por todos? É possível que todos tenham acesso à arte contemporânea? Que tipos de conexões podem ser estabelecidos com a comunidade para que todos os canais possam ser abertos para o diálogo e para que o museu possa se transformar em uma instituição educacional? O museu promove ações que demonstram uma intenção clara de promover o encontro entre o museu e a comunidade. Além de parcerias com escolas e prefeitura de Brumadinho, de projetos de Arte-Educação dentro do Inhotim, foi lançado um esquema de artista em residência que tem como objetivo criar um ambiente onde os artistas possam trabalhar com a comunidade. Em 2004 e 2005 dois artistas norte-americanos, John Ahearn e Rigoberto Torres foram comissionados para desenvolver um trabalho junto à comunidade de Brumadinho; o museu alugou uma sala no terminal de ônibus e os artistas tiraram moldes de todos os tipos de pessoas, incluindo jovens, idosos, homens e mulheres, ricos e pobres. Os artistas também participaram do festival popular afro-brasileiro, Congado, realizado no bairro Inhotim e fizeram moldes dos rostos, mãos e pés dos músicos e dançarinos participantes da festa. O trabalho dos artistas resultou em obras que podem ser apreciadas no museu. Outra decisão importante tomada pela direção do Inhotim foi o apoio à igreja católica na periferia dos jardins onde o museu está localizado. A igreja é importante não só por celebrar missas aos domingos para a comunidade do bairro, mas também por organizar todos os festivais que fazem parte do calendário católico exatamente como antes da construção do museu. TRABALHO COLABORATIVO O Troca-Troca são três carros, descaracterizados pelo artista Jarbas Lopes: mais precisamente, três fuscas “Três carros, com sonorização em rede, plugáveis entre si. Três brinquedos gigantes nas cores, vermelha, amarela e azul. Portas, capot e porta-malas, tudo trocado… Uma beleza…” (Diária de Bardos, 2002). Oito amigos, incluindo Jarbas viajaram do Rio de Janeiro até Curitiba, oitocentos quilômetros de estrada, tendo no meio do trajeto a cidade de São Paulo. Viajaram com Jarbas, Marssares, Ducha, Aimberê, Sergio Torres, Leo barbudo, Jorge Melodia e Luís Andrade. Andrade escreveu parte do diário, a viagem entre o Rio de Janeiro e São Paulo, já na viagem de São Paulo a Curitiba, Jarbas foi o encarregado da escrita. O acordo era viajar com essa nova produção em comboio até o estado do Paraná, onde os carros seriam entregues a alguém do “mercado negro, em uma instituição local…” abrindo o novo museu de arte contemporânea de Curitiba, em novembro de 2002, no Paraná”. (Diária de Bardos, 2002). O Troca-Troca resultou da colaboração de oito pessoas que viajaram juntas, um grupo de mecânicos, um especialista em som de carro e um estofador. É um bom exemplo do trabalho colaborativo, outro aspecto típico da cultura brasileira como aponta Helio Oiticica “Acredito que nossa grande invenção é exatamente na forma de participação ou, melhor que isso, em seu significado, que diferenciamos com o que é proposto na Europa super civilizada ou nos Estados Unidos.” (Oiticica, 2004). No que se refere à arte contemporânea a artista e crítica de arte norte- americana Suzanne Lacy pensa que: “(...) algo mudou em relação à criatividade autônoma e independente para uma nova estrutura de diálogo, que normalmente não é produzida somente por um único indivíduo, mas é o resultado de um processo colaborativo e interdependente. Os artistas abandonaram o velho paradigma e estão repensando o que significa ser artista nos dias atuais, reconstruindo a relação entre o indivíduo e a sociedade, entre o trabalho artístico e o público”. (LACY. 1995). NA ESTRADA A partir das palavras do Diária de Bardos “Vamos aqui, por um momento, deitar (1) de lado as referências possíveis da História”; vou analisar três aspectos do Troca-Troca. Primeiro, a relação entre a arte popular e a arte contemporânea brasileira e depois os aspectos relativos à autoridade representada nos objetos de arte contemporânea e a legalidade dos três fuscas. A escolha dos fuscas por si só mostra uma preferência clara de Jarbas Lopes pelo popular. Outra indicação do popular está presente na trilha sonora que é muito próxima do tipo de música ouvida pela classe trabalhadora brasileira. Os “três carros, interligados pela música” foi um projeto desenvolvido por Marssares, um dos artistas do grupo especializado em música. Foram extraídas algumas palavras do Diário que indicam a preferência pelo popular: “Batucada”, “ O pagode de quintal”, “Samba e percussão”, “Músicas do Cartola”, “Bezerra da Silva”, “Pagode de quintal e música sertaneja no cavaquinho de Jorge Melodia”. Também aparecem no texto referências ao grupo Mundo Livre S/A, um grupo de Recife e a Luís Tati, um músico de São Paulo. Essas referências são bem conhecidas no Brasil, por suas relações com os menos favorecidos da sociedade, às vezes são relacionadas a malandragem e as favelas. É importante ressaltar a citação seguinte quando o grupo estava na periferia de São Paulo: “O dia inteiro na Oficina Pernambuco. O dono, Pernambuco, é pesado, fala alto e tem passado: foi “do bando” e movimento local, teve muito e gastou muito, mas hoje é um “trabalhador”… Fez uma participação vocal no CD que fui gravando na estrada com Marssares … resolveu o problema mecânico”. (Diária de Bardos, 2002). Durante o encontro com Pernambuco, dois aspectos diferentes do trabalho podem ser observados, a colaboração do mecânico e também a colaboração do músico, o “cantor” Pernambuco. A outra característica é o limite entre o legal e ilegal. Pernambuco tem antecedentes criminais e agora é proprietário de uma oficina mecânica. E os carros? Segundo um profissional do Inhotim, os carros estão legalizados com toda a documentação necessária para serem utilizados, entretanto o encontro com a polícia descrito no diário revela que há pelo menos uma suspeita de que nem tudo estava totalmente dentro da lei durante a viagem que fizeram do Rio a Curitiba, não somente a lei restrita a carros, mas também a lei da arte. A POLÍCIA - A AUTORIDADE DA ARTE Quatro encontros com a polícia foram mencionados no diário, o primeiro aconteceu no Rio de Janeiro, entretanto não há menção da conversa com a polícia. “À frente da sala Cecília Meireles, por acaso uma blitz policial”. Os outros encontros aconteceram no estado de São Paulo, o primeiro na capital, na Avenida Paulista, um símbolo do poder econômico global, com bancos de todos os lugares do mundo, Citybank, HSBC, Bank Boston e muitos outros; é também onde fica o MASP, um símbolo da arte moderna no Brasil: “logo outra referência, o prédio do MASP [Museu de Arte de São Paulo], falou e disse, seguimos Avant Gard.” (Diária de Bardos, 2002). A avenida é também um ponto de encontro popular para celebrar o aniversário da cidade, campeonatos de futebol, carnaval, vitórias eleitorais em eleições para prefeito da cidade, governador do estado, eleições presidenciais, etc. Apesar da popularidade, a avenida Paulista não é um lugar onde encontramos muitos fuscas, especialmente fuscas estacionados atrapalhando o trânsito, e quando isso acontece, sejam eles objetos de arte ou não, não há diálogo com as autoridades. “Podem ir ligando os carros e dando o fora! Caso contrário vou pedir reforços e serão todos detidos, os veículos apreendidos e seus documentos presos.” Era uma policial escoltada por dois outros… Me dirigi a ela e disse: “mas, minha querida, é que…” “Querida é uma ova! Mais respeito com a autoridade...” (Diária de Bardos, 2002). Nos outros dois encontros foi possível conversar com os guardas, principalmente no primeiro: “Luzes e sirenes na pista escura. Polícia Rodoviária Federal, encosta rapaziada. Alertas ligados, conversa-se sobre arte e leis na maior gentileza. Você sabe o que é arte contemporânea? Não, nem eu, mas beleza pura todo mundo sabe o que é. Beleza? . Beleza. Tchau e bença.” (Diária de Bardos, 2002). Durante o último encontro eles usaram o discurso artístico para explicar a viagem para a polícia, e depois foram convidados a explicar na delegacia de polícia: “De repente aparece uma patrulha da PM param na frente da oficina e com o dedo o policial faz sinal para que eu me aproxime, querem saber que história é essa, eu lhes disse que a arte mente e se eles quisessem serenganados (2) passassem a ver arte contemporânea. Me convidaram amigavelmente para falar sobre com o delegado da cidade. Achamos melhor não aceitar, serviço pronto, queimamos chão”. (Diária de Bardos, 2002). É interessante perceber que em todos os encontros não há um embate entre os artistas e a polícia, e apesar de algumas ameaças, os policiais não pediram documentos ou alguma prova que pudesse validar o discurso dos artistas. A arte contemporânea precisa de explicações? É clara por si só? Ou os objetos de arte deixaram os policiais surpresos? Se por um lado, há uma surpresa e confusão da polícia e do público em geral em relação à arte contemporânea, por outro, os artistas usam a ambigüidade das mensagens da cultura popular e de forma inteligente como forma de resistência. Eles estão usando o que chamamos no Brasil de malandragem. Como pontuou Roberto DaMatta: “na rua precisamos ser cuidadosos para não violarmos o desconhecido ou as hierarquias desapercebidas. Devemos também ser cuidadosos para não nos afetarmos por aqueles que querem nos enganar ou nos forçar, desde que as leis básicas da rua sejam o enganar, a decepção e a malandragem – a arte brasileira de usar a ambigüidade com uma ferramenta de sobrevivência.” (DAMATTA. 1991) CHIQUE OU POPULAR? A aquisição do Troca-Troca pelo Inhotim mostra a importância dada a artistas que até alguns anos atrás poderiam ser tachados simplesmente como marginais, inconseqüentes ou ingênuos. No entanto, o museu corre alguns riscos, o primeiro de transformar os fuscas em objetos domesticados posicionando-os sob uma grande árvore. Será a árvore da sabedoria? Deixando de ser uma ameaça para o mundo “civilizado” da arte e o das ruas. No início, o fusca era fabricado no Brasil exclusivamente para os ricos, e depois se tornou popular, acessível à classe trabalhadora. O novo modelo do fusca foi desenvolvido para os ricos. Já o fusca velho e popular foi transformado em um objeto de arte por Jarbas Lopes, mas pode também se tornar um objeto chique, admirado somente para um público específico, mas há um outro risco que é o de se tornar uma brincadeira desinteressante para todos. É importante ressaltar, uma vez mais, a responsabilidade social do Inhotim. Qualquer objeto de arte pode ser incorporado e domesticado ou pode ser um objeto vivo que se relaciona com a comunidade em geral, ajudando-nos a entender o ambiente ao redor e a cultura de um povo, não um objeto que traz consigo a verdade, mas um objeto destinado a compartilhar significados e conhecimento. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ANDRADE, O. (1928), Manifesto Antropofágico. In: D. Ades (1989) Art in Latin America. New Haven and London: Yale University Press. BHABHA, H. (1999), The Other Question: The stereotype and Colonial Discourse. In: Evans, J. and Hall, S. (eds) (1999). Visual Culture: The Reader. London: Sage Publications in association with the Open University. BUARQUE, H. (1998), The Law of the Cannibal or How to deal with the idea of “difference” in Brazil at http://acd.ufrj.br/pacc/literaria/heloart.html - visited in October of 2003 INHOTIM. Press release. São Paulo e Rio de Janeiro: Linhas e Laudas Comunicação, 2004. CANCLINI, N. Modernity after Postmodernity. In: G. 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Agradecimentos - Nicholas Addison e Lesley Burgess (Institute of Education – Universidade de Londres), Thiago Gomide e Felipe Taboada (Inhotim), Debora Chobanian e Marlene Peret.