ISSN 2176-6983
USO SOCIAL DA ÁGUA NO P1MC: CONQUISTAS E CONFLITOS
NA ELABORAÇÃO DE NOVAS TERRITORIALIDADES
NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO
Luzineide Dourado Carvalho
Drª em Geografia (UFS/NPGEO)
UNEB/DCH III/NEPEC-SAB
[email protected]
Eixo Temático 4: Conflitos de uso e gestão de recursos hídricos no litoral brasileiro
Resumo
O estudo sobre os processos de ressignificação e reapropriação social da natureza semiárida
pela ‘Convivência com o Semiárido Brasileiro’ considera que os recursos naturais, em especial, a
água, faz-se como sustento material das populações rurais tradicionais ou não, e também como base
imaterial da cultura e dos valores identitários associados aos territórios de vida e trabalho dos
sertanejos/caatingueiros. Analisa-se o P1MC como um Programa de base articuladora e mobilizadora,
que promove novas cotidianeidades e territorialidades, em especial, para as mulheres. Entretanto, ele
se desenvolve diante de um campo transitório e conflituoso, uma vez que há diferentes sentidos de
desenvolvimento territorial. Tem-se de um lado, os sertanejos na luta em defesa de seus territórios e
dos suportes para sua sobrevivência, material e simbólica no mundo; e, de outro, o avanço da
capitalização da natureza pelos novos agenciamentos e demandas sobre a água e a Caatinga.
Palavras-chave: Convivência; uso social da água; territorialidade.
Introdução
A complexidade da relação sociedade e natureza orientou o estudo sobre o processo de
ressignificação e reapropriação social da natureza semiárida, desenvolvido entre os anos de 2006 a
2010 em forma de Tese de Doutorado (CARVALHO, 2010). Tal estudo tentou compreender o sentido
da ‘Convivência’ e os processos de articulação e mobilização dos diferentes sujeitos, instituições, falas
e perspectivas para gerar outro/novo olhar sobre a natureza e o território Semiárido. Avaliou a abertura
construtivista de conceber a natureza semiárida como uma natureza-processo, cuja seca enquanto parte
da própria característica climática dos ambientes semiáridos, não deve ser combatida.
O percurso teórico-metodológico apoiou-se na abordagem geográfica cultural-humanística para
compreender a elaboração de outra/nova percepção e relação com a natureza e o Semiárido,
apreendido como um território simbólico-cultural, complexo e multidimensional. Aqui, apresentam-se
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as reflexões acerca da Diretriz para a Segurança Hídrica, tendo como âncora o P1MC, cujo processo de
gestão participativa pela sociedade civil tem por vistas à democratização do acesso e do uso social da
água pelas famílias rurais do Semiárido. As considerações sobre este Programa avalia que o mesmo
vem criando novas cotidianeidades e novas territorialidades no Semiárido.
Água e território no semiárido brasileiro: uma relação de territorialidade e de
contradições
A maneira interativa e de convivência com os regimes de signos, códigos e alternâncias da
natureza marca a relação do sertanejo com as condições de viver e sobreviver em um vasto território
configurado pela irregularidade de chuvas. Ser absorvido na mundaneidade semiárida é lidar com os
ciclos dessa natureza regulada entre o “tempo do verde”, que é o período das chuvas e o “tempo da
seca”, das prolongadas estiagens.
O sertanejo aprende desde cedo a lidar com esse ciclo natural, e nele viver “entre o excesso e a
escassez da água a produção de processos subjetivos” (DE MARCO, 2003, p. 10). Ou seja, viver a
escassez ou o excesso é a condição da existência no sertão semiárido e nessa temporalidade organizar a
vida neste ambiente. O ritmo da presença/ausência da água regula todas as atividades: doméstica,
pecuária, plantio, políticas, culturais, etc. Deste modo, os processos subjetivos vão se constituindo de
forma diferente entre os dois pólos: seco e verde. O tempo verde marca-se de novembro a março,
quando as chuvas são mais presentes e, muitas vezes, intensas, mas não quer dizer contínuas. Alguma
alteração na natureza (um canto de pássaro, uma trovoada em determinado lugar, um vento etc.) tudo é
acompanhado pelo sertanejo, que logo pressente os sinais de que haverá ou não as chuvas.
Como um elemento raro, a água aparece como vontade da natureza. No sentido católico, é a
‘vontade de Deus’. O fim da escassez pode ser conseguido por promessas e romarias, também realizar
rituais para prever os anos bons e anos ruins, apegando-se com Santa Luzia (13 de dezembro) e São
José (19 de março), os santos que definem se haverá ou não ano bom de chuva (CARVALHO, 2010).
A disposição da rede hidrográfica, com a maior presença de rios
intermitentes e uma
diversidade de fontes temporárias: barreiros, lajedos e lagoas. Também as construídas: Cacimbas,
cacimbões, açudes, tanques e poços artesianos, e mais recentemente, as cisternas de placas que captam
água nas calhas dos telhados das casas. A água adentra como um elemento repleto de significação para
a elaboração da territorialidade sertaneja, uma vez que, por si mesma, é um elemento que carrega toda
uma simbologia que regula o universo material e imaterial das populações em todo mundo. Afirma
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Cunha (2000, p.15) que as associações significantes com as águas recebem significados múltiplos
pelas sociedades, produzindo imagens e simbologias associadas às águas salgadas ou doces: “A água
mais do que um elemento da vida, ela evoca sob múltiplos aspectos, materiais e imaginários a vida”.
Os significados vividos entre homem, natureza e cultura, podem ser traduzidos nas palavras de
Bonnemaison (2002, p.103) “é uma relação secreta e emocional que liga os homens à sua terra e, ao
mesmo movimento, funda sua identidade cultural”. Entretanto, a presença da seca deu à natureza
semiárida a conotação de natureza hostil. As secas têm sido comunicadas, apresentadas e representadas
por meio de dizibilidades e de visibilidades, como diz Albuquerque Jr. (1999), de forma estereotipada,
negativa e pejorativa de dizer e de apresentar o território, a natureza e as gentes do sertão semiárido.
Uma vez apresentada como ‘catástrofe’, a seca tem gerado retóricas de fatalidade climática,
cujas intervenções do Estado reordenaram o território Semiárido com ênfase nas ações de correção
hídrica denominada de ‘política de combate à seca’. Essa política, mesmo com todo o desgaste dos
insucessos, descontinuidades e desperdícios de recursos dos planos, projetos e programas estatais, com
propósitos de ‘solucionar o problema regional nordestino’ (MENEZES, 1999), chegou até o final do
século XX. Entretanto, a transição para o século XXI trouxe novas questões e novos atores sociais para
a produção e organização desse território: Novos agenciamentos e arranjos produtivos, nova fase de
intervenção estatal, criando formas de inserção desse território à economia globalizada. Também a
emergência da força articuladora e mobilizadora da sociedade civil, surgindo como uma ‘nova
institucionalidade’ e direcionando as ações para um projeto autônomo de desenvolvimento.
Os nós tecidos para construir a proposta da ‘convivência com o semiárido brasileiro’
O Semiárido Brasileiro do século XXI ainda é demarcado pela forte exclusão social, mas, por
outro lado, por um crescente posicionamento crítico e propositivo da sociedade civil. A experiência
das lutas contra a pobreza, as injustiças sociais e as formas de ação e intervenção estatal
descontextualizadas promove desde final dos anos de 1980 um papel pró-ativo desse segmento social,
pressionando a democratização e o controle social dos programas de desenvolvimento.
Nos fins dos anos de 1980 para os de 1990 o fortalecimento da articulação política da sociedade
civil vai desencadear a criação de importantes redes, como a Articulação no Semiárido Brasileiro
(ASA). Em 1999 dá-se sua criação, aglutinando ONGs, Igreja Católica, Sindicatos Rurais, e muitas
outras organizações e movimentos sociais em torno da proposta da ‘Convivência com o Semiárido’.
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Essa proposta pode ser compreendida como uma idéia-projeto1 pois seu arcabouço teórico-prático
direciona-se para a instituição de um projeto de identidade calcado em políticas públicas de inclusão
social, de equidade, controle social e prudência com os recursos naturais do Semiárido.
A articulação e mobilização da ‘Convivência’ passaram a ser em redes sociais, ASA, RESAB2
e outras, passaram a dar as bases para a inflexão política da ideia-projeto, atuando na escala territorial
Semiárido Brasileiro3, uma cartografia definida pela UNCCD em conjunto com o MMA/SRH para as
Áreas Susceptíveis à Desertificação4(ASD). As organizações sociais que compõem essas duas grandes
redes apontam a necessidade de projetos contextualizados, ou seja, projetos que sejam o Semiárido o
contexto referencial para pensar e agir sobre o ambiente no qual os sujeitos se inserem, comprendem
sua existência e nele produz a vida, a cultura e as simbologias/representações no mundo. As redes
sociais atuam nas relações de reciprocidade, de autodeterminação e de valorização das comunidades,
fortalecendo as organizações sociais que territorializam a ideia-projeto, na base local e com as
coletividades aí constituídas.
A diretriz para a segurança hídrica: uma busca pela democratização do uso social da
água no semiárido brasileiro
As Diretrizes e Linhas de Ação da ‘Convivência’ são um conjunto de propostas voltadas para
gerar a sustentabilidade nos diferentes setores da vida e de se criar outra/nova racionalidade de
desenvolvimento para o Semiárido Brasileiro. São propostas de ações voltadas para a água, terra,
produção, educação e uma série de outras demandas. Tais Diretrizes instrumentalizam politicamente a
‘Convivência’ com vistas a fortalecer as relações humanas e interinstitucionais, criar e/ou ampliar os
mecanismos de controle social e gerar uma maior dinâmica das redes com os atores externos, entre
outras. O fundamento é garantir à sociedade civil sua participação em todas as instâncias de discussão
1
Morin (2005, p.411) ressalta que algumas ideias têm forte repercussão, pois provocam de forma inesperada, uma mutação
ideológica, tal é sua capacidade de introduzir no patrimônio cultural de uma sociedade, um dispositivo ideogerador que
gera uma mudança em cadeia para um todo. Portanto, uma idéia que tem a força de reorganizar, de maneira nova, algo
estabelecido, e modificar “todo um aspecto do ser fenomenal da sociedade”.
2
Rede de Educação do Semiárido Brasileiro. Fundada em 2000, Juazeiro, Bahia. Articula a Educação Contextualizada para
a Convivência com o Semiárido Brasileiro.
3
Semiárido Brasileiro é a cartografia compreendida pelo Programa Nacional de Combate à Desertificação (PAN-Brasil),
lançado em 2005 pela Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente (BRASIL, 2004). De acordo com
esse Programa (baseado na Convenção Mundial de Combate à Desertificação), se inserem como Semiárido as áreas
semiáridas, sub-úmidas secas e do entorno dos estados do Nordeste, norte de Minas Gerais e noroeste do Espírito Santo.
4
Áreas Susceptíveis à Desertificação (ASD) são áreas que se verificam processos de seca, degradação dos solos e
desertificação, combinados e motivados por ações naturais e antrópicas.
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e elaboração e, por essa perspectiva, criar e fortalecer o controle social sobre todas as questões que
direta e indiretamente afetam a vida das populações e o meio ambiente Semiárido.
No que tange à Reforma Hídrica, parte-se do pressuposto ético que a água é uma necessidade
básica de todos os seres vivos: “É um direito fundamental da pessoa humana” (ASABRASIL, 2005a).
As ações para a democratização da água têm como propósitos o abastecimento da população urbana e
rural, o aproveitamento sustentável de todas as águas superficiais e subterrâneas, o reuso da água, a
captação da água de chuva, dentre outras.
A ASA considera que somente através de um programa de aproveitamento racional das águas
disponíveis possa oferecer segurança hídrica à população do Semiárido. Segundo os padrões
internacionais definidos pela OMS/ONU, a segurança hídrica biológica é de 2 litros/pessoa/dia de água
potável, a segurança hídrica doméstica de 40 litros/pessoa/dia; e a segurança hídrica econômica de
1.000 metros3 pessoa/ano (ASABRASIL, 2005a). Desse modo, a reforma hídrica fundamenta-se na
intenção de garantir a água como direito básico de todos os seres vivos e um direito fundamental da
pessoa humana, cobrando como obrigação do Estado oferecer água de qualidade para todos os seus
cidadãos. Como explicita a cartilha Caminhos para a ‘Convivência’:
Embora esse direito esteja reconhecido em lei e documentos oficiais, especialmente
nos documentos e nas conclusões da II e da III Conferencia Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional, ao lado das declarações de quase todas as conferências
estaduais, é preciso reconhecer que ainda estamos longe de garantir este direito a todas
as pessoas. Milhares e milhares de famílias, de modo especial no Semiárido, não tem
acesso a água para consumo humano nem para a produção, enquanto outros
segmentos da população a desperdiçam e a poluem (ASABRASIL, 2009b, p.07).
Diegues (2009) avalia que as mudanças ocorridas no Brasil, nos últimos quinze anos, em
relação à governança da água são expressões do fortalecimento do espaço público e de abertura da
gestão pública à participação da sociedade civil. Surgem práticas participativas inovadoras, mas
dotadas de contradição em sua institucionalização, que marcam rupturas com a dinâmica predominante
na gestão pública, e especificamente, na gestão ambiental. Essas práticas abrem espaços de
participação sociopolítica e influenciam qualitativamente na transformação do estado atual da gestão
de recursos hídricos no país.
A Lei 9.433/1997 deu à política hídrica brasileira um aspecto abrangente, envolvendo a
sociedade civil em processos consultivos e decisórios na gestão da água. Esta orientação corresponde a
uma tendência internacional estimulada pelos graves problemas na qualidade e quantidade da água
disponível no planeta, ocasionados pela forma em que até agora foram geridos os recursos hídricos
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(DIEGUES, 2009).
Ao longo da história política do Brasil/Nordeste, a água foi usada como símbolo da
manipulação eleitoreira. Sua oferta diretamente associado a um modelo de desenvolvimento
excludente e desvinculado de desenvolvimento rural integrado e sustentável e das reais necessidades
da grande parcela de sua população, caracterizada por agricultores familiares. A opção pelas águas das
chuvas, pela ASA, como fonte disponível e acessível, parte de uma contextualização das características
das bacias hidrográficas do Semiárido, e da consideração de que os grupos humanos se assentam, em
grande parcela, no meio rural e vivem da agropecuária tradicional.
Democratizar o acesso e uso da água direciona-se ideologicamente à desconstrução da
apropriação sócio-política desse recurso, bem como superar um quadro de iniquidade social ainda
vigente: A parcela da população mais afetada é a faixa de 0 a 17 anos; 42,12% da população não tem
rede geral e esse percentual aumenta no meio rural para 75% da população, sem acesso direto à água,
pois não tem poço ou nascente na propriedade (GOMES FILHO, 2003).
Esse panorama apresenta que há uma dependência muito forte das águas das chuvas pelas
populações rurais, o que evidencia quanto esse recurso natural se inscreve como orientador da
dinâmica da organização e produção desse território. A população sertaneja aprendeu a aproveitar o
leito arenoso dos rios intermitentes, onde a água ainda está guardada por baixo das areias de seu leito
seco, e a utiliza para fins domésticos dando suporte para culturas de vazantes. Ab’Saber (1999, p. 88)
salienta que no sertão “marca uma tradição simbólica ao longo das ribeiras secas onde se vêem
meninos tangendo jegues carregados de pipotes d’água retirada de poços cavados no leito dos rios”.
O programa de formação e mobilização social para convivência com o semiárido: um
milhão de cisternas rurais (P1MC)
A cisterna, segundo Zanirato (2009), é um instrumento técnico histórico de armazenamento de
água doce e tem sido muito utilizado no passado pelos Governos Coloniais e Imperiais do Brasil, como
parte do sistema de captação de águas de cidades, tais como, São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador dos
séculos XVIII e XIX. Mas, ela não foi dimensionada para atender as populações de pequenas cidades e
do meio rural, especialmente as mais interioranas e difusas do país. Ao contrário, as políticas hídricas
estatais centraram-se em grandes açudes e grandes barragens.
Os primeiros esboços do P1MC surgiram em janeiro de 2000, formalizado pelo convênio entre
a ASA e o MMA para a “construção de 500 cisternas e a elaboração das bases metodológicas do
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Programa com todos os seus componentes” (ASABRASIL, 2010a, p.03). Formou-se o GT Cisternas5
que desenhou a gestão e execução do P1MC, e em 2001, o acordo entre o MMA/SRH e ASA,
articulou as ações de combate à desertificação com o programa de cisternas. O P1MC passa a ser um
percurso da ASA para ações de
mobilização comunitária, reeditando o
mutirão, uma prática
tradicional de cooperação entre os agricultores familiares; forte investimento na capacitação técnica,
ofertando cursos de manejo com a água da cisterna e fortalecer o controle da sociedade civil nas ações
sustentáveis para o conjunto de municípios e centenas de comunidades rurais dos Estados do
Semiárido.
A dinâmica do Programa ao longo de uma década, 2000-2010, gerou um saldo positivo de
294.393 famílias mobilizadas em suas comunidades, 11.335 pedreiros (as) capacitados (as) entre
instrutores e executores e um amplo processo de reuniões, encontros e seminários envolvendo
agricultores e agriculturas, organizações sociais do Terceiro Setor e Organizações Governamentais e
internacionais parceiras (ASABRASIL, 2010a).
As cisternas, a partir do P1MC, foram redimensionadas para um modelo que possibilitasse
todas as organizações articuladas na ASA empreendessem uma metodologia de mobilização e
participação comunitária. As cisternas passaram a ter uma capacidade de armazenamento de 16 mil
litros de água por um período de oito meses, uma família de 5 a 6 pessoas, exclusivamente para se
beber e cozinhar. Com um sistema de captação das águas das chuvas a partir das calhas instaladas no
telhado da casa, de 40 m² no mínimo, uma família passou a ter uma mínima segurança hídrica no
tempo seco.
As famílias são capacitadas para manterem as cisternas limpas, fechadas e uso exclusivo de um
vasilhame para evitar a contaminação e manter a água com qualidade para o consumo humano. Ao ser
selecionada e cadastrada, a família passa pelo curso de Gerenciamento de Recursos Hídricos (GRH),
ofertado pelas organizações executoras do P1MC. Nesse curso, as famílias aprendem a cuidar das
cisternas e adquirem conhecimentos sobre a dinâmica do clima semiárido, sobre a Caatinga, uso e
cuidados de outras fontes d’água, tais como, os barreiros, cacimbas etc.
O Programa se desenvolve diante de uma metodologia participativa, cujo processo de
articulação e de mobilização das comunidades e das organizações garante a continuidade e sucesso do
P1MC. Em março de 2010, foram 624 reuniões microrregionais envolvendo 19.553 participantes;
5
O GT Cistenas foi composto pelas Organizações Diaconia (PE), MOC (BA), CETRA (CE), FETAPE (PE), UNICEF, ASPTA (PB), CAATINGA (PE), CÀRITAS (Regional NE II), Fundação Esquel (DF), Pastoral da Criança, PATAC (PB),
SOSE/CPT (BA) (ASABRASIL, 2010a).
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273.104 famílias capacitadas; 6.397 comissões municipais também capacitadas, além de
multiplicadores em GRH, gerentes administrativos, construtores de bombas manuais etc.
(ASABRASIL, 2010a).
A gestão do P1MC vai desde a escala local, com as organizações de base, até a escala nacional,
com a atuação da Coordenação Executiva da ASA. Em todas as instâncias dá-se o sentido de:
Mobilizar é animar pessoas a trabalharem juntas por uma meta comum. Para isso, elas
têm de estar convencidas de que a meta vai vantagens para elas. Quanto mais
convencidas estiverem, mais forte será a mobilização. Quanto mais unidas forem,
maior será a garantida de atingirem as metas. Para mobilizar pessoas e organizações, a
gente tem que conhecê-las. Tem de saber como as pessoas vivem, como as
organizações funcionam, quem são os seus responsáveis etc. E é preciso ter um plano
bem montado para motivá-las a atuar pelo objetivo comum, na hora certa, e da melhor
maneira possível (ASABRASIL, 2005b, p.07).
O panorama de mobilização social que a ASA promove de forma complexa para executar e
gerenciar o P1MC traduz ações políticas que se aproximam do que Ribeiro (2009, p.118) avalia sobre
uma nova cultura de controle social no Brasil em relação aos recursos hídricos:
A mobilização social é uma variável complexa. Ela pode ocorrer de modo eventual,
para um tema especifico, e gerar desmobilização após a conquista da causa. E pode
ser permanente, voltada às demandas cotidianas que devem ser traduzidas em ações
políticas para formar uma cultura de participação nas decisões.
Os dados do P1MC apresentaram, até março de 2010, o total de 288.439 cisternas construídas
nos onze Estados do Semiárido Brasileiro (ASABRASIL, 2010d). Destacam-se os estados da Bahia e
de Pernambuco, cada um já atingiu mais de 50 mil cisternas construídas. Avalia-se que a
territorialização desse Programa em todos os estados do Semiárido Brasileiro conotam as cisternas
como um símbolo da ‘Convivência’, marcando a presença dessa idéia-projeto pelas centenas de
municípios e comunidades rurais, difusas e esquecidas das ações efetivas contra a pobreza e a exclusão
social.
As novas territorialidades, suas conquistas e conflitos
A água tem sido apropriada por expressões conotativas potenciais de comunicar a natureza
semiárida: Imagens de TV, de cinema e dos livros didáticos, sempre apresentam a mulher com lata
d’água na cabeça, a terra rachada, os barreiros secos, as carcaças de boi etc. Imagens que mostram as
desigualdades, mas servem, antes, para manter a externalidade e dominação diante dessa natureza.
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Algumas mudanças já são perceptíveis na cotidianeidade das famílias rurais com a presença da
cisterna na suas vidas, de ordem material e subjetiva, em especial, em relação à vida da mulher
sertaneja, que segundo cálculos das ONGs regionais, em media são 10 anos de sua vida a ir buscar
água para a casa e a família.
Carvalho (2010) avaliou que as mulheres têm sido impactadas positivamente, pois as cisternas
as libertam de uma tarefa árdua para suas vidas, e com tempo mais livre, dedicam-se à aprendizagem
de outras tarefas, a se inserirem em atividades sócio-produtivas comunitárias, bem como, se
qualificarem, participarem de intercâmbios de trocas de conhecimentos, tornarem-se lideres
comunitárias etc. Na vida dos homens, também se retratam algumas mudanças, pois eles adquirem
novas profissões no rural, como exemplo, tornar-se um pedreiro executor ou capacitador do P1MC. No
geral, as cisternas mudam a vida de toda família, que passa a desenvolver atividades de ampliação de
renda em projetos sócio-produtivos agregando o valor social aos produtos territorializados
beneficiados por essas famílias.
Outras mudanças podem ser destacadas, tais como, a elaboração da cultura da convivência para
a relação interativa natureza e cultura pelos processos educativos contextualizados, cujos cursos
reapresentam a natureza semiárida ao sujeito. Desse processo educativo, contextual, abrem-se as
possibilidades para emergir outra/nova linguagem de mundo, e no qual, o sujeito pode perceber e
reconhecer sua existência; a idéia do ‘bom uso’ da natureza, cujas orientações são para o uso
ecocentrado dos recursos naturais, ou seja, com respeito aos limites dos recursos naturais sem levá-los
à exaustão; a articulação do saber popular com o saber sistematizado/técnico/acadêmico, criando novas
oportunidades para que os sujeitos aprendam/reaprendam a lidar com a capacidade de desenvolver
novas habilidades, pelo uso e manejo das tecnologias sociais e de organizar a comunidade a partir das
demandas e potencialidades.
As cisternas também vão elaborando a ‘cultura da convivência’, expressa na lógica ‘do
guardar’ a água. Como retrata um trecho da música “Água de Chuva” (MALVEZZI, 2008): “Colher a
água, reter a água, guardar a água quando a chuva cai do céu. Guardar em casa, também no chão e ter a
água se vier à precisão”. Ou seja, novos comportamentos, novas cotidianeidades e novas
territorialidades em construção. A água da chuva, agora, disposta ao lado das casas é uma água
valorizada pelo sertanejo: Uma água abençoada e guardada para beber.
Certo que o P1MC ainda não equacionou as demandas de água potável para as populações
rurais do Semiárido, mas se coloca como um Programa que atua diretamente na situação de
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necessidade e vulnerabilidade dessas populações, que não se caracteriza como uma ação pontual e
emergencial, mas uma ação transformadora e desencadeante de novas demandas e movimentos para
que o acesso e o uso democrático da água passem a ser postos em prática como políticas públicas
contextuais.
No entanto, o P1MC se desenvolve dentro de um campo conflituoso, pois há em processo
diferentes modelos de desenvolvimento para o Semiárido. A água, a terra e o uso social da
biodiversidade da Caatinga, mais do que nunca, são territórios de disputa pela apropriação capitalista.
Tais embates colocam os sertanejos em posição de luta em defesa desses territórios, considerados
pelos mesmos como suportes para sua produção material e simbólico-cultural no mundo
(CARVALHO, 2010). Como exemplo, o que acontece nas com as comunidades rurais tradicionais e
não tradicionais dos municípios pernambucanos (Orocó, Santa Maria da Boa Vista, Lagoa Grande e
Petrolina) e de Curaçá e de Juazeiro, na Bahia, que estão sendo ameaçadas pelos projetos de barragens
de Riacho Seco e de Pedra Branca. Essas obras poderão atingir cerca de 20 mil pessoas, em sua
maioria, camponeses, sem-terra, indígenas, quilombolas, pescadores e ribeirinhos. Uma população que
vive em grande parte, há décadas, às margens do rio São Francisco, mas sem acesso à água encanada e
às outras infraestruturas adequadas. As comunidades se organizam-se em estratégias de resistência
voltadas para o enfrentamento das construções dessas barragens, na busca de garantir seus direitos às
terras e à própria água (ASABRASIL, 2010c).
A democratização do acesso e uso da água tem sido uma das maiores lutas dos movimentos
sociais, consolidando a linha de ação da reforma hídrica da ‘Convivência’ com um componente
diferencial dentro do contexto de governança das águas no Brasil, pois a sociedade civil, o Terceiro
Setor em rede, conquistou sua presença no controle social da captação da água das chuvas em todas as
etapas do P1MC: ela propõe, articula, mobiliza, executa e gerencia todo o Programa. Mas enquanto
Programa ele é dependente do interesse das gestões públicas manterem ou não seu apoio. Tal aspecto
repercute na atual gestão federal, ao cancelar seu apoio à ASA para a continuidade do P1MC,
repassando para a responsabilidade das gestões públicas estaduais a construção das cisternas. Isso
coloca em dúvida todo o processo de articulação e mobilização em rede proposta pelo Programa.
Fecha-se aqui com a reflexão de Porto-Gonçalves (2006), quando este afirma que a natureza
deve ser pensada como território, uma vez que, pela mesma, a sociedade inscreve todas as suas
contradições implicadas no processo de apropriação por meio das relações sociais e de poder.
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