Revista ABBA Volume II – ano 1999 N1 Discurso de Chiara Lubich aos políticos e empresários Brasília, 7 de maio de 1998 Em 7 de maio de 1998, Chiara Lubich apresentou — através de Ginetta Calliari, uma das suas primeiras companheiras — a um grupo de parlamentares e empresários, reunidos num dos auditórios do Congresso Nacional, em Brasília, a história e as linhas de ação do Movimento dos Focolares, especialmente em seu aspecto social da Economia de Comunhão e no aspecto político, “por uma política renovada”. Reproduzimos, aqui, na íntegra o texto de seu discurso. Abba. São Paulo, v. 2, n. 1, 1999. pp. 76-83. Excelentíssimo Senhor Vice-Presidente da República, dr. Marco Maciel; Exelentíssimos Senhores Deputados e autoridades políticas; Senhores empresários: Antes de mais nada, agradeço a possibilidade que me foi dada de dirigir-lhes algumas palavras sobre importantes aspectos da ampla realidade religiosa e social que traz o nome de Movimento dos Focolares, e que aqui eu represento. Esta Obra, na verdade, pode ser vista sob diferentes pontos de vista: desde o espiritual até o apostólico, do caritativo ou social ao ecumênico, do inter-religioso ao cultural e outros. Detenho-me, aqui, sobre dois aspectos que se desenvolveram mais recentemente: o aspecto político e o social, de modo especial, a Economia de Comunhão na liberdade. Esses dois aspectos, como os outros, floresceram, no que diz respeito a realizações concretas, a partir de um determinado húmus. Para poder explicar-lhes melhor, é necessária uma premissa que explicite o que é este húmus, este Movimento. O Movimento dos Focolares nasceu no âmbito da Igreja Católica, em Trento (Itália), há mais de cinqüenta anos. Seu estilo de vida, seu espírito é genuinamente evangélico. Seu húmus, portanto, está embebido da Palavra de Deus. Um conhecido clérigo anglicano, Bernard Pawley, já falecido, ao conhecer o Movimento, assim o definiu: “Um jorro de água viva que brotou do Evangelho”. E o conhecido Roger Schutz, de Taizé, da Igreja Reformada, via-o como uma “página aberta do Evangelho”. Na verdade, a alma do Movimento dos Focolares apóia-se sobre algumas frases do Evangelho, descobertas à luz de um carisma especial como novas, únicas, universais e possíveis de ser postas em prática; entrelaçadas umas nas outras, de maneira a formar a linha de sustentação de uma nova espiritualidade: a Espiritualidade da Unidade, que é, ao mesmo tempo, pessoal e comunitária. Essas palavras, muito sinteticamente, são: • Escolher Deus, que é Amor, como ideal da própria vida; • amá-lo, fazendo a sua vontade, que está contida nas palavras do Evangelho, principalmente as que dizem respeito ao amor pelo próximo; • amar-se mutuamente como Jesus nos ensinou; • amar a cruz porque, sem saber sofrer, não há verdadeiro amor; • realizar a unidade invocada por Jesus ao Pai; • procurar ter sempre entre nós a presença de Cristo, visto que ele disse: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18,20). Esse é o húmus no qual nascem e se formam todas as pessoas do Movimento, inclusive as que se dedicam a atividades políticas e sociais. Sem esse húmus, os objetivos a que nos propomos são dificilmente realizáveis. Ao passo que, tendo como base uma vivência evangélica, podem ser alcançados com facilidade. O papa João Paulo II assim se expressou: “Não há renovação, inclusive social, que não comece pela contemplação. O encontro com Deus […] introduz nas dobras da história uma força misteriosa que toca os corações, induzindo-os […] à renovação e […] tornando-se uma força histórica de transformação das estruturas sociais”1. Vejamos o aspecto político. Desde o início do Movimento, chamava especialmente nossa atenção o mundo da política, tão fundamental para a vida de um povo e para os destinos da humanidade. Ele atraía-nos porque era preciso sustentar espiritualmente os membros do Movimento que dele participavam, muitas vezes em postos de responsabilidade. Atraía-nos também porque víamos que era um mundo que tinha e que tem imensa necessidade de Deus. Igino Giordani, uma pessoa rica de experiências culturais, políticas e eclesiais, cofundador do Movimento, dizia: “Se todos têm necessidade de santidade, os políticos necessitam dela duplamente”. De fato, ele vislumbrava na política, de um lado, uma maravilhosa possibilidade de amor social, mas, de outro, também o reino das divisões, da luta, das grandes tentações. Nos últimos tempos, entre os nossos que estão empenhados na política, em meio a um desorientamento crescente, surgiram algumas perguntas: é possível buscar a unidade, partindo de posições tão diferentes? Como se pode ir além da divisão em tantos partidos, de forma a trabalhar verdadeiramente para o bem comum, para o bem de todo um povo? 1 João Paulo II, Vincere le paure per una nuova stagione di crescita della nazione italiana, no III Congresso da Igreja na Itália. L‘Osservatore Romano, 24. nov. 1995, p. 5. Essas perguntas me foram feitas por um grupo de políticos, há dois anos, em 1996, em Nápoles, Itália. E lá surgiu uma idéia: ter consciência, cada vez mais profunda, do dom que Deus nos deu, através do Movimento, e pôr em prática o que o próprio Movimento propôs, como base de tudo, o amor recíproco entre todos, a fim de realizar a unidade. Viver, portanto, antes de mais nada, como verdadeiros cristãos. E, depois, ter consciência de estar comprometido com um partido. Consolidar, portanto, sempre e cada vez mais, a unidade entre aqueles que estão empenhados na política, naturalmente não no sentido de formar um outro único partido, mas, mantendo-se fiéis às próprias escolhas, ajudar-se, fortalecidos por essa unidade, a tomar posições comuns a fim de salvaguardar os valores do homem, que têm, enfim, todos eles, as suas raízes no cristianismo. Nasceu naquele dia, e parece-nos uma inspiração de Deus, o assim chamado “Movimento da Unidade”, como ramificação do Movimento dos Focolares. E, visto que dele também participam pessoas não-cristãs e sem uma fé religiosa, o empenho inicial, para eles, estava assim definido: em primeiro lugar, ser pessoas que acreditam nos valores profundos e eternos do homem, depois, agir cada um no seu próprio lado. Desde aquele ainda recente encontro em Nápoles, a realidade do Movimento da Unidade começou a desenvolver-se rapidamente, em toda a Itália. Representam no momento cerca de duzentas pessoas com cargos eletivos, que vão desde os conselhos municipais2 até o Parlamento nacional, que estão nos partidos majoritários ou de oposição, e mais umas quinhentas pessoas que atuam em todos os partidos. A ação dessas pessoas nesses dois anos nos mostra que é possível visar à unidade na diversidade. Seguimos o método sugerido pelo Evangelho: amar o outro, dar espaço ao outro, predispor-se à escuta, ao diálogo autêntico, livre de preconceitos, desinteressado. Acolher e compreender as razões do outro, viver a diversidade como uma riqueza, orientar-se segundo os valores comuns para enfrentar os problemas concretos, no plano legislativo e no plano administrativo. E tudo isso, sempre com uma opção preferencial: a atenção privilegiada pelos pobres, pelos marginalizados, pelos imigrantes, pelas periferias urbanas. Além do mais, a unidade vivida entre nós, que está subjacente a tudo isso, deve ser levada também, como fermento, para os próprios partidos, entre os vários partidos e na vida pública. A atuação, entre outras coisas, se dá naquilo que chamamos de “pacto político”, que significa manter viva a relação entre os eleitos e os cidadãos, em constante diálogo de informação, de estímulo, de controle. O Movimento da Unidade está começando a nascer em toda a Europa, nas Filipinas, como também na Argentina e aqui no Brasil, e já está dando seus primeiros frutos de crescimento político. Podemos mencionar alguns exemplos, ainda que modestos, mas significativos, se considerarmos o pouco tempo de vida do Movimento da Unidade. Na Itália, temos um 2 Na Itália, por vigorar o sistema parlamentarista, a administração pública é feita através de um conselho municipal, tendo como presidente um membro do conselho (o síndico). exemplo de participação de jovens: dois jovens sicilianos estavam, nas últimas eleições regionais, fazendo campanha eleitoral para dois candidatos de partidos diferentes. Contactavam-se diariamente à meia-noite, para se ajudarem um ao outro a solucionar os problemas não resolvidos durante o dia e para se encorajarem na decisão de cultivar, no próprio lado político, o espírito de compreensão para com o outro. Ainda na Itália, um grupo que representa diversas regiões e diferentes partidos está concluindo um estudo para contribuir com a reforma da Constituição italiana. No Parlamento nacional italiano, dois deputados de partidos diferentes envolveram colegas de várias tendências políticas para apresentar um projeto de lei sobre o polêmico problema da fecundação clinicamente assistida. Na República Tcheca, um político, ex-ministro da Agricultura, secretário de um partido, depois de uma crise política, foi encarregado de compor o governo; e com a sua mediação foi possível estabelecer um governo que preparasse o País, sem traumas, para novas eleições. Nas Filipinas, a experiência mais significativa é o empenho de se fazer das eleições, tanto administrativas como representativas, uma ocasião de crescimento civil. Por isso, embora pertencendo a partidos diferentes, juntos, preparam os cidadãos mais pobres e menos favorecidos culturalmente para fazerem escolhas o mais possível conscientes e não massificadas. De fato, existem muitos de nós empenhados em política, de diferentes partidos, em muitos países. Gostaria agora de fazer uma observação. É a primeira vez que estou falando do Movimento da Unidade a políticos não-italianos. E, talvez, um outro momento importante esteja para acontecer, isto é, que a unidade entre políticos de partidos diferentes se estenda a políticos de diferentes países, de forma que possam caminhar com um só coração — em unidade — para o bem não apenas do próprio povo, mas também para o bem do conjunto dos povos de todo o Planeta, cultivando todos um especial cuidado para com os bolsões de pobreza e as áreas de guerra, ambos trágicas feridas da grande família humana, que, pelo contrário, deve formar o único povo de Deus. Já no ano de 1959, num vale das Dolomitas, no norte da Itália, ecoara, entre os membros do Movimento dos Focolares, esta mensagem: “Chegou o momento de amar a pátria dos outros como a nossa”, com a “esperança de que o Senhor […] remova as barreiras entre os povos, fechados que estão em suas próprias cascas, e faça correr um fluxo ininterrupto de amor entre uma terra e outra, uma torrente de bens espirituais e materiais”3. No ano passado, falando na sede da ONU, expressei o desejo da “necessidade de reler o sentido da reciprocidade: […] uma reciprocidade em condições de levar cada protagonista da vida nacional e internacional a viver o outro, suas necessidades, suas capacidades, não somente nas emergências, mas a partilhar cada dia a existência dele”. Essa poderia ser exatamente a função desse Movimento da Unidade, entre políticos das várias nações: trabalhar nas relações entre os povos e nos organismos mundiais, testemunhar o novo sentido da reciprocidade e comunicá-lo a todos os responsáveis, a 3 Cf. LUBICH C., Fragmentos. Em Escritos Espirituais. V. 1. São Paulo : Cidade Nova, 1998, pp. 222-224. fim de envolvê-los no caminho cada vez mais real e concreto para aquele mundo mais unido indicado pelos “sinais dos tempos”. Consideremos agora o aspecto social. Seguindo as linhas da vida evangélica acima citadas, desde o início do Movimento, sempre aconteceu a comunhão dos bens entre aqueles que viviam esse espírito. Na Obra de Maria, existem aqueles que atuam essa comunhão de modo completo: são as focolarinas e os focolarinos consagrados, que deixam no focolare todo seu salário; que entregam todo seu eventual capital e bens imóveis, em testamento, em favor dos pobres, principalmente, através das atividades formativas, apostólicas, caritativas e sociais do Movimento. Os outros membros do Movimento partilham o que têm de supérfluo. E a atividade social do Movimento se exprime em obras concretas. Estas não são programadas, mas nascem espontaneamente do coração de seus membros, educados para o amor. Não têm fim em si mesmas, mas querem ser testemunho do amor para que se realize, entre muitos, a unidade, objetivo do Movimento. Existem cerca de setecentas e cinqüenta obras de relativa importância. Há no Brasil, conhecida em todo o mundo, pelo nosso Movimento, a obra chamada “Magnificat” no Estado do Maranhão; temos a ação de promoção humana na Ilha de Santa Teresinha, em Recife, além de escolas de formação social em nível nacional. É também típica de nosso Movimento, a assim chamada “Economia de Comunhão na liberdade”. Ela nasceu aqui no Brasil. O Movimento, que está presente neste país desde 1958, difundiu-se por todas as partes, atraindo pessoas de todas categorias sociais. De alguns anos para cá, porém, apesar da comunhão dos bens, dei-me conta de que, devido ao crescimento do Movimento (somos cerca de duzentas mil pessoas), não conseguíamos satisfazer nem mesmo as mais urgentes necessidades de nossos membros. Pareceu-me, então, que Deus chamasse nosso Movimento a realizar uma comunhão de bens mais ampla. Apesar de não ser douta em problemas econômicos, pensei que deveríamos encontrar novas fontes de recursos e, para isso, criar empresas. A gestão dessas empresas deveria ser assumida por pessoas competentes, em condições de fazê-las funcionar eficazmente e obter lucros. Estes lucros — e aqui está a novidade — deveriam ser colocados em comum. Uma parte deles seria aplicada para os mesmos objetivos da primeira comunidade cristã: ajudar aqueles que passam por necessidades, dar-lhes condições para viver, até que encontrem um trabalho. Outra parte dos lucros certamente seria para incrementar a empresa. E enfim, uma outra parte seria destinada a desenvolver estruturas para a formação de “homens novos”, isto é, pessoas animadas pelo amor cristão, aptas à chamada “cultura da partilha, do dar”. Além disso, em nossas cidadezinhas de testemunho (temos umas vinte no mundo, das quais três no Brasil), ao lado das escolas de formação, das casas para famílias, da igreja, deveria nascer um verdadeiro setor industrial. As cidadezinhas transformar-se-iam assim em “cidades-piloto” modernas, verdadeiro esboço de sociedade na qual se vive o Evangelho. A idéia foi recebida com entusiasmo não somente no Brasil e na América Latina, mas também na Europa e em diversas partes do mundo. Muitas empresas nasceram e muitas outras se “transformaram”, segundo os padrões da Economia de Comunhão. É este um modo de agir na economia que — mesmo em atuação no âmbito do sistema econômico vigente — vai na direção oposta aos critérios fundamentais da economia, tal como é hoje concebida. Propõe-se aos empresários uma nova linha de condução da empresa, concretizando assim atitudes que se inspiram em nossa espiritualidade. É necessário colocar no centro o homem e as relações interpessoais, evitando assim comportamentos contrários ao amor evangélico, e a valorização dos funcionários, através de seu envolvimento na gestão. Naturalmente, tudo isso requer um processo contínuo de formação das pessoas. Além disso, na gestão, deve ser respeitada a ética nas relações com clientes, fornecedores, administração pública; portanto, a legalidade se faz necessária. Deve ser dedicada uma atenção especial ao ambiente de trabalho e ao respeito pela natureza. Deve ser favorecida a colaboração com outras realidades industriais e sociais etc. Não se pode esquecer de deixar espaço à intervenção de Deus, também na atuação econômica concreta: uma receita econômica inesperada, uma genial solução técnica, a idéia de um novo produto de sucesso… A este projeto já aderiram seiscentas e vinte duas empresas e cento e vinte e cinco atividades de vários tipos. Economistas, sociólogos, filósofos estão aprofundando essa nova idéia que está se revelando como uma nova filosofia econômica. Segundo um estudioso de fama internacional dos problemas de ética e economia, o atual conceito do liberalindividualismo, em que o centro é o mercado, entendido como único meio para alcançar os fins que a sociedade se põe, gera situações das quais estamos sofrendo as conseqüências, e, portanto, experiências como as de Economia de Comunhão são importantes porque hoje se tem necessidade de uma cultura da reciprocidade. Este é um breve panorama da Economia de Comunhão. Excelentíssimo Senhor Vice-Presidente da República, dr. Marco Maciel, Excelentíssimos Deputados e autoridades políticas, Senhores empresários. Daquilo que eu disse, espero que tenham intuído alguma coisa de dois desses aspectos que têm apenas poucos anos de vida. O Movimento dos Focolares, obra religiosa e social, com a ajuda de Deus, tem — como eu já disse — muitos outros aspectos mais desenvolvidos em outros campos, presentes também neste grande e maravilhoso país. Quem sabe, um dia, possam conhecer toda a sua realidade. Pelo momento, agradeço a todos pela paciência e pela atenção que me dispensaram.