Programa de Formação Magis III 2ª. Etapa: Eclesiologia Lumen gentium A transição necessária - Antônio José de Almeida - Nome: Cristiane Cassol Vendrúscolo Narcizo Profissão: administradora - CVX Brasil - “O Concílio está sempre à nossa frente.” C. M. MARTINI INTRODUÇÃO O Concílio Vaticano II foi o primeiro concílio a tratar da Igreja como tal, seguindo o desejo do Papa João XXIII, que se distinguisse entre a essência da Igreja e seu revestimento histórico e cultural, necessariamente transitório, a fim de que se promovesse um salto à frente da Igreja toda, aproximando-a às necessidades dos tempos como exigia o tempo moderno. Em três anos foram produzidos dezesseis documentos, organizáveis em torno da Constituição dogmática sobre a Igreja (Lumen gentium) e da Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje (Gaudium et spes). Observa-se duas hermenêuticas do Concílio: “uma (que) se funda unilateralmente nas novas instâncias, fruto da maioria conciliar, outra (que) se funda unilateralmente sobre aquelas afirmações que, por iniciativa da maioria, foram tomadas dos esquemas preparatórios e refletem a teologia pré conciliar.” (H.J.-POTTMEYER, “Una nuova fase della ricezione del Vaticano II. Vent'anni di ermeneutica del Concílio”, in: G. ALBERIGO (ed.), L'ecclesiologia del Vaticano II: dinamismi e prospettive, EDB, Bologna, 1981, p. 54). Tratava-se de instaurar um processo de aggiornamento, para uma nova expressão da autoconsciência da Igreja e um novo dinamismo da presença da Igreja no mundo contemporâneo, distanciando da autocompreensão da Igreja elaborada pela Contra Reforma e pela Neo Escolástica. Este processo baseava-se em três fatores: a autocompreensão da Igreja herdada da Escritura e dos Santos Padres; a atenção aos “sinais dos tempos”, ao presente, ao mundo de hoje, aos pobres; e a unidade dos cristãos e da humanidade. Essa nova configuração teológica e histórica da Igreja do Novo Testamento e da Patrística, possibilitaria à Igreja cumprir a sua missão num mundo em que ela se situava como um corpo completamente estranho. “Com a proclamação da história como 'mestra da vida' e com o reconhecimento da historicidade da expressão da fé e da teologia, que pronunciou no seu Discurso de Abertura do Concílio, João XXIII deu o passo decisivo, que os padres conciliares seguiram rejeitando os esquemas já preparados, que queriam fixar a compreensão neo escolástica da Igreja.” (p.17) O Vaticano II pretendeu ser um concílio de reforma com finalidade pastoral, visando a uma renovação da Igreja mediante uma concentração no núcleo da mensagem cristã. DIZEM QUE SOU UM PAPA DE TRANSIÇÃO... Roncalli observa a necessidade inadiável que a época atual exigia de se traduzir o Evangelho para o mundo de hoje, como nas grandes encruzilhadas do passado, e não apenas guardá-lo, mas dar um salto à frente, se lançando com entusiasmo e sem medo à obra que a época reclama. A melhor caracterização do Vaticano II é a de Concílio de transição, pois queria afrouxar os frontes e chegar a uma abertura. A obra de João XXIII e do Concílio – prosseguido por Paulo VI – foi justamente possibilitar a difícil, mas necessária transição de uma figura histórica de Igreja e de sua respectiva eclesiologia, para uma nova figura histórica, a ser construída com as melhores contribuições que os movimentos de renovação colocavam em sua mão, usando mais o remédio da misericórdia que o remédio da severidade, mostrando mais o valor de seu ensinamento e não renovando condenações. Segundo J. FRISQUE, as coisas são conduzidas de modo a impedir que as renovações – tão necessárias – deslanchassem na Igreja, como se a consciência histórica que ela tem da própria missão já não se adaptasse à urgência das modernas situações. O fosso entre a Igreja e o mundo moderno parecia intransponível. A Igreja permanecia uma Igreja de “cristandade”; o diálogo com o mundo moderno – apesar das tentativas parciais – não se entabulava. Os últimos anos do pontificado de Pio XII são bem um símbolo deste paradoxo: “nunca um papa se interessou tanto pelos problemas humanos como ele, mas, por meio dele, é sempre a Igreja de ontem que se dirige ao homem de hoje”. (“L'ecclesiologia nel XX secolo”, in: Bilancio della Teologia del XX secolo, vol. 3, Roma, 1972, p. 226) A Igreja necessitava de um concílio, e nele as melhores forças da Igreja encontrariam o seu fórum natural; um concílio que não romperia com a grande Tradição, mas que significaria uma mudança profunda em relação ao sistema constantiniano, ao clima contra-reformístico e ao encapsulamento a um tempo defensivo e agressivo que ela vivia diante da cultura moderna. TRANSIÇÃO DE UMA LINGUAGEM CONCEITUAL E JURÍDICA A UMA LINGUAGEM IMAGÉTICA No pontificado de de Pio XII já se observava um movimento que não podia ficar alheio à poderosa onda de renovação eclesiológica que avança desde os fins da Primeira Guerra Mundial. A Constituição dogmática Lumen gentium sobre a Igreja vem nos sinalizar uma Igreja “estandarte elevado entre as nações”, servindo a todos como ponto de encontro. Ela, enquanto depositária, guardiã e intérprete das Escrituras, distribui esta luz que, única, dá um sentido inteligível à nossa vida e à nossa história. “A luz do mundo, na verdade, é Cristo, não a Igreja; a Igreja não tem luz própria, tão- somente reflete aquela que recebe de Cristo (...)” (p.51) TRANSIÇÃO DE UMA IGREJA VOLTADA PARA SI A UMA IGREJA VOLTADA PARA CRISTO A Igreja muitas vezes equiparou-se a Cristo e ao Reino de Deus, dando pouca atenção ao caráter ainda peregrino de sua existência, e agindo como se fosse uma grandeza estática neste mundo cambiante, com muita resistência a se deixar tocar pelo movimento dos tempos, e tornando-se muito o centro e muito pouco uma seta indicando o único centro, o Cristo. A partir da percepção por parte dos padres conciliares de que a Igreja, em diversas ocasiões, coloca o centro em si mesma, faz com que ela seja então reconduzida à humilde condição de “serva do Senhor”, e o centro para o qual tudo converge é, portanto, Cristo. A reintegração do mistério da Igreja no contexto geral da história da salvação é uma das linhas fundamentais da Lumen gentium. Longe de ser o termo final do desígnio salvífico, a Igreja é somente um sinal e instrumento a serviço de Cristo. TRANSIÇÃO DE UMA IGREJA AUTOFINALIZADA A UMA IGREJA REINOCÊNTRICA Jesus deu início à Igreja justamente fazendo uma coisa diferente de fundar a Igreja, quer dizer, falando do Reino de Deus. Jesus anunciou o Reino de Deus, e não a Igreja. A Igreja é diferente do Reino, porém nasce e vive do vigor e da interpelação do Reino, como seu sinal, germe, início. Este tipo de relação não coloca a Igreja numa posição de domínio, mas de serviço; nem de posse, mas de busca; muito menos de sossego, mas de tensão. TRANSIÇÃO DE UMA IGREJA SOCIETAS INAEQUALIS A UMA IGREJA “POVO DE DEUS” Aqui, o Vaticano II vai deixar uma de suas marcas registradas. A noção de povo de Deus vai ocupar o lugar que, na eclesiologia anterior, era indevidamente ocupado pela noção de “sociedade desigual”... e vai muito além. Alargando a questão de membris Ecclesiae, o Concílio assume o esquema dos “círculos concêntricos” para descrever os vários graus de comunhão: a) fiéis católicos; b) cristãos não católicos; c) não-cristãos. Aborda, enfim, o caráter missionário da Igreja, na espera do seu termo escatológico. TRANSIÇÃO DE UMA IGREJA SOCIETAS PERFECTA A UMA IGREJA SACRAMENTUM UNITATIS A expressão societas perfecta assumia conotações morais e ideológicas, veiculando uma imagem de Igreja sem erros nem pecados, de qualquer forma, não necessitava de conversão e reforma. A Igreja, porém, não funda mais a sua liberdade em algum direito divino ou num acordo jurídico com os Estados, numa luta entre os poderes religioso e civil, mas na dignidade do ser humano e na liberdade de consciência e crença, que ela compartilha com todos os seres humanos e todos os grupos religiosos. O Concílio sabe que a Igreja é diferente do mundo e tem uma missão singular no mundo, que a vida cristã tem suas exigências próprias e irrenunciáveis, mas formula um programa de uma Igreja no mundo atual, que não é mais o da Cristandade. Para Paulo VI, “não se salva o mundo de fora; é preciso, como o Verbo de Deus que se fez homem, assimilar, numa certa medida, as formas de vida daqueles aos quais se pretende levar a mensagem do Cristo; sem reivindicar privilégios que distanciam, sem manter a barreira de uma linguagem incompreensível, é preciso compartilhar os usos comuns, desde que sejam humanos e honestos, especialmente os dos mais pequenos... É preciso fazer-se irmãos dos homens...” (p.89) No Concílio a Igreja procura-se a si mesma, ela tenta definir-se melhor, compreender o que ela mesma é. Após vinte séculos de história, a Igreja parece submersa pela civilização profana, como que ausente do mundo atual. Ela sente então a necessidade de se recolher, de se purificar, de se refazer, para poder retomar com mais energia seu próprio caminho... Ao mesmo tempo, procura o mundo, tenta entrar em contato com esta sociedade, trava o diálogo com o mundo, lendo as necessidades da sociedade onde opera, observando as carências, as aspirações, os sofrimentos, as esperanças que estão no coração do homem. (G.B.MONTINI, Discorsi al Clero 1957-1963, Milano, 1963, pp. 7880) Uma Igreja que vive toda inteira para os seres humanos, entre os seres humanos, pelos seres humanos, não menos que para Cristo, por Cristo, em Cristo, é uma Igreja sacramento de salvação. Esta destinação para além da Igreja, isto é, em favor dos seres humanos, comporta um dar e receber, um aprofundamento da própria mensagem graças ao outro. A Igreja, autocompreendendo-se como sacramento salutis, não se dissolve na história, mas tem uma responsabilidade histórica, que não lhe é acidental, mas essencial, uma Igreja no itinerário dos homens. DE UMA IGREJA IN STATU GLORIAE A UMA IGREJA IN ITINERE HISTÓRICO Internamente, a Igreja deveria ser apresentada como mistério da vida de Deus entre os fiéis; externamente, como serviço ao mundo. As questões do Concílio passaram a organizar-se em torno de dois pontos: o que é a Igreja, e o que faz a Igreja. A Igreja é hostilizada por muitos por causa do modo como se apresenta. Por isso, é desejável que “a doutrina da Igreja... mostre a Igreja embebida de espírito evangélico, isto é, espírito aberto e realmente católico; espírito missionário; espírito de humilde dedicação e serviço”. (G. HUYGHE, in: Acta synodalia I IV, pp. 195-196; cf. Y. M.-J. CONGAR, Igreja pobre e serva, Logos, Lisboa, 1964, pp. 131-133) O Concílio devia ressaltar mais o aspecto místico do que o lado institucional da Igreja. O aparato institucional deve estar subordinado ao anúncio do Evangelho e à comunhão de vida em Cristo. A TRANSIÇÃO DE UMA IGREJA COMPROMETIDA COM O PODER A UMA IGREJA SOLIDÁRIA COM OS POBRES A um mês do início dos trabalhos conciliares, João XXIII colocava o tema da Igreja dos pobres. E em sintonia com o Concílio, Paulo VI, na abertura da segunda sessão, enfatizava a necessidade de o Concílio “lançar uma ponte na direção do mundo contemporâneo”, movido “pelo amor; pelo amor que pensa nos outros bem antes que a si, podendo o mundo estar certo de que “a Igreja olha para ele com profunda compreensão, com sincera admiração e com o puro propósito não de conquistá-lo, mas de valorizá-lo; não de condená-lo, mas de confortá-lo e salvá-lo.” (PAULO VI, Discorso di Paolo VI in apertura del secondo periodo del Concilio, in: EV, 135*) Oscar Romero, lembra que devemos esclarecer, desde o princípio, que a fé cristã e a atividade da Igreja sempre tiveram repercussões sócio-políticas. Associando-se a um ou outro grupo social, os cristãos e as cristãs sempre exerceram influência no esquema sóciopolítico do mundo em que viveram. A essência da Igreja repousa em sua missão de serviço ao mundo, salvar o mundo em sua totalidade e dentro da história, aqui e agora. A Igreja existe para agir em solidariedade com 'as esperanças e as alegrias, com as angústias e as tristezas' dos homens e das mulheres. (em seu discurso na Universidade de Lovaina, por ocasião da entrega do título de Doutor honoris causa, 2.2.1980). A TRANSIÇÃO DE UMA IGREJA “ARCA DA SALVAÇÃO” A UMA IGREJA “SACRAMENTO DE SALVAÇÃO” Desde os primórdios, o cristianismo manifestou a pretensão de ser o lugar definitivo e normativo – portanto, necessário – para quem quisesse encontrar resposta para sua procura de salvação. Tanto os que viveram antes de Cristo, quanto os que não conheceram a Igreja, podem salvar-se, mas sempre e somente por meio de Jesus Cristo. Ainda que Deus queira salvar a todos, nem todos se salvam: a salvação é um dom que Deus prodigaliza a quem ele elege em Cristo. Assim, todos os eleitos e salvos desde o início constituem a Ecclesia ab Abel, cujos limites só Deus conhece. A solução não pode não se fundamentar na liberdade do ser humano, ao mesmo tempo em que uma eleição que exclui a priori alguns da salvação mostrar-se-ia em contraste com a fé cristã, segundo a qual Cristo morreu por todos. Enquanto a teologia mantém aberta a possibilidade de uma salvação universal, o magistério insiste noutra coisa: chamar a atenção para a função única da Igreja verdadeira – a Católica romana – em relação à salvação escatológica. As grandes descobertas não só revelavam um Novo Mundo, mas inauguravam o fim do horizonte eurocêntrico e, portanto, da maneira de compreender a responsabilidade dos seres humanos em relação à salvação. O dilema apresentava-se cada vez mais cerrado: como conciliar a vontade salvífica universal de Deus e sua necessária relação com a única e verdadeira Igreja? Era necessário evitar dois riscos: o de restringir a graça exclusivamente à Igreja; o de dissolver a Igreja, identificando-a com a graça e destituindoa de visibilidade. O Concílio mantém a afirmação da necessidade da Igreja para a salvação (LG 14), mas percebe-se, em seus ensinamentos, uma nova orientação: a superação da rígida identificação entre Igreja católica e mistério da Igreja; a admissão que também as Igrejas e as comunidades eclesiais não católicas são instrumentos de salvação para seus membros; o reconhecimento das religiões não-cristãs; a afirmação que, tendo Cristo morrido por todos, O Espírito Santo dá a todos a possibilidade de entrar em contato com o mistério pascal. Em LG 9 não há a afirmação da necessidade da Igreja, mas ressalta-se sua função universal e, desta maneira, dá a entender que, se não fosse a Igreja, não haveria na história aquele sinal e instrumento da unidade, qualificada como salvadora. O horizonte aqui não é apenas escatológico, mas a meta para a qual a humanidade se vê encaminhada, ou seja, a unidade. O NECESSÁRIO NEXO ENTRE A CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA LUMEN GENTIUM E A CONSTITUIÇÃO PASTORAL GAUDIUM ET SPES Entre a Lumen gentium e a Gaudium et spes não há oposição, mas complementaridade. Elas apresentam os dois eixos nos quais toda a obra conciliar está organizada: 'de Ecclesia ad intra – de Ecclesia ad extra', ou, nas palavras de Paulo VI, 'O que é a Igreja? O que a Igreja faz?'. Na primeira parte, a Igreja desenvolve sua doutrina sobre o homem, o mundo no qual o homem está inserido e sobre suas relações com os homens. Na segunda parte, considera mais atentamente alguns aspectos da vida de hoje e da sociedade humana e, de modo especial, as questões e os problemas que atualmente parecem ser os mais urgentes. Na concepção da Igreja como “sacramento universal de salvação” encontra-se o nexo profundo entre a Constituição dogmática Lumen gentium sobre a Igreja e a Constituição pastoral Gaudium et spes sobre a Igreja no mundo de hoje, uma vez que o sacramento é a própria história da salvação enquanto manifestação eficaz do desígnio salvífico universal de Deus. CONCLUSÃO Entre traduções, traições e interpretações, um concílio pode levar séculos até ser incorporado na vida da Igreja. É necessário lançar sempre de novo a semente do Concílio no solo invernal da Igreja. L.-J. SUENENS diz que estamos a caminho do Vaticano III, o qual “terá de reconhecer e fortalecer o que o Vaticano II continha apenas em germes, em virtualidades, em riquezas futuras.” Quando se fala em Vaticano III, é de se perguntar o que realmente se almeja: Prosseguir o que o Vaticano II deixou de inconcluso? Ouvir o clamor do povo de Deus, especialmente dos pobres, e responder no Espírito Santo aos desafios atuais, que o Vaticano II evidentemente não podia conhecer? Trabalhar com a hipótese de que o Vaticano II é a origem de todos os males – ou de quase todos – e que um prudente recuo seria a melhor estratégia para se avançar para “águas mais profundas”? Ainda é hora – e ainda há tempo – de nos convencermos de que o Concílio está sempre à frente de nós. Resenha feita a partir do livro: ALMEIDA, Antônio José de. Lumen gentium – A transição necessária. Paulus, São Paulo, 2005.