Spinoza, Locke e as discussões acerca da tolerância nos
princípios da Modernidade
Spinoza, Locke and the debate about tolerance in the beginnings of Modernity
Thiago da Silva Paz1 - Universidade Federal de Pernambuco
RESUMO: Neste artigo, tentaremos trazer à tona as peculiaridades do pensamento de John
Locke e Baruch Spinoza acerca do tema da tolerância nos princípios da Modernidade,
especificamente na segunda metade do século XVII e primeira metade do século XVIII,
apontando, quando possível, as semelhanças e os pontos sobre os quais suas teorias da
tolerância estavam em desacordo. Partiremos de uma análise das colocações feitas sobre o
tema por Locke em sua conhecida Carta sobre a Tolerância, em especial suas justificativas
para limitar a tolerância e, depois, faremos um breve contraponto com as ideias de Spinoza
sobre o tema, notadamente o conceito de libertas philosophandi, que articula em seu Tratado
Teológico-Político.
Palavras-chave: Ateísmo, Tolerância, Igreja, Perseguição, Consciência
ABSTRACT: In this article, we will try to bring out the peculiarities of the thought of John
Locke and Baruch Spinoza on the theme of tolerance in the Early Modern period, especially
in the second half of the seventeenth century and the first half of the eighteenth century,
pointing, when possible, the similarities and the points on which their theories were in
disagreement. Depart from an analysis of the points made on the subject by Locke in his
famous A Letter Concerning Toleration, in particular its justifications for limiting tolerance,
and then we will briefly contrast with Spinoza's ideas on the subject, notably his concept of
libertas philosophandi articulated in his Theologico-Political Treatise.
Keywords: Atheism, Church, conscience, persecution, tolerance
Introdução
1
Graduando em História pela UFPE. Orientador: Prof.: Dr. Érico Andrade Marques de Oliveira (UFPE).
Agência financiadora: PIBIC-FACEPE. E-mail: [email protected]
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J
ohn Locke e Baruch Spinoza podem ser considerados os mais notáveis
representantes de duas tradições distintas, no que diz respeito às discussões sobre tolerância;
Locke fazia sua defesa da tolerância de um ponto de vista estritamente teológico,
fundamentado na tradição arminiana 2 com a qual simpatizava e visando sempre à salvação das
almas dos crédulos, enquanto Spinoza abordava o tema do ponto de vista do republicanismo e
tendo por base seu ideal de liberdade filosófica, o libertas philosophandi; essa distinção é
fundamental para entendermos onde as duas visões conflitam.
Locke é considerado, com justiça, um dos precursores das modernas discussões sobre
o tema da tolerância. A primeira e mais famosa de suas Cartas3 sobre o tema – a Epistola de
Tolerantia, escrita quando de sua estada nas Províncias Unidas, mas publicada
anonimamente, em 1689 – é parte do cânone das discussões sobre a tolerância, sua
importância se equivalendo talvez apenas a do igualmente relevante Tratado sobre a
Tolerância, de Voltaire.
Spinoza, por sua vez – ainda que considerado como o maior pensador do racionalismo
cartesiano, tido mesmo como um reformador do pensamento de Descartes (ISRAEL, 2007) –
costuma atrair a atenção mais por suas discussões sobre Deus e a natureza – elaboradas na
Ética, considerada sua obra maior – do que por sua importância para as discussões sobre a
tolerância, que desenvolve em seu Tratado Teológico-Político, publicado, também
anonimamente, em 1670.
2
Refere-se à doutrina de Jacobus Arminius (1560-1609), teólogo reformado das Províncias Unidas e
seus seguidores, os Remonstrantes. O ponto crucial do arminianismo remonstrante reside na afirmação de que a
dignidade humana requer a liberdade perfeita do arbítrio.
3
Locke escreveu uma série de textos sobre a tolerância, sendo o primeiro deles um ensaio intitulado
Essay on Toleration, de 1667, a Epistola de Tolerantia, de 1689, além de outras três cartas, que datam de 1690,
1692 e 1704 respectivamente. A primeira das Cartas é o mais conhecido e também mais discutido de seus textos
sobre o tema. As demais constituem uma polêmica entre o autor e o clérigo anglicano inglês Jonas Proast acerca
de temas teológicos e sobre a possibilidade de o magistrado poder restringir expressões da “falsa religião”.
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Europa: um continente em crise
A segunda metade do século XVII oferece um contexto histórico rico em
transformações culturais, muitas delas provindas do infortúnio e da devastação causada pela
Guerra dos Trinta anos, marcada pela luta impiedosa entre Estados modernos devido às
disputas religiosas e políticas.
Os judeus, que haviam sido expulsos da Península Ibérica, rumaram aos países baixos,
a maior província da República Neerlandesa e conhecida por ser um grande centro de
tolerância no continente, o que permitiu que esses refugiados retomassem suas práticas de
culto; as práticas religiosas desses grupos, no entanto, tinham pouca relevância, uma vez que
eles possuíam influência econômica considerável e de vital importância para o
desenvolvimento da chamada Era de Ouro (GOLDSTEIN, 2009, p. 94-5).
A intelligentsia europeia do século XVII, como um todo, experimentava uma crise
marcada pela retirada da filosofia como disciplina subordinada à teologia; mais que isso,
ambas se tornaram inimigas, e a pessoa do filósofo passou, então, a se afirmar como tal,
deixando de ser só um serviçal da teologia.
O surgimento de novas ideias, como o Cartesianismo, quase sempre referido como a
“Nova Filosofia” e o Libertinismo erudito, contribuiu para a disseminação de posições
contrárias à teologia, o que abriu caminho para o chamado Iluminismo Radical4, tendo essas
novas expressões de pensamento surgido majoritariamente a partir da década de 1680
(ISRAEL, 2001, p. 42).
Mas ainda que se encontrasse em irreversível processo de mutação decorrente das
novas discussões sobre a tolerância religiosa e que tais discussões representassem inegável
avanço em termos de liberdades individuais, ainda persistia, em alguns centros da Europa,
enorme resistência às novas ideias, vistas como uma ameaça à Igreja, uma vez que não havia
4
O termo Iluminismo Radical que aqui utilizamos foi tomado de empréstimo ao historiador inglês Jonathan
Israel, que, em sua obra intitulada Iluminismo Radical: A Filosofia e a Construção da Modernidade, 1650-1750,
o define como um movimento de pensadores radicais, sendo Spinoza o mais destacado entre eles e que se difere
das vertentes tradicionais do pensamento iluminista, como os franceses Rousseau, Voltaire e Montesquieu ou os
ingleses Newton e John Locke, por seu caráter imoderadamente crítico à Teologia e ao poder político que dela se
apropriava, para exercer poder sobre os homens.
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como permitir a tolerância para com outras formas de credo dentro do próprio Cristianismo,
sem que isso implicasse também a necessidade de tolerar manifestações de irreligião e
ateísmo.
Como consequência, na parte final do século XVII e começo do XVIII, era do
entendimento de praticamente todas as autoridades na Europa que ateísmo filosófico,
irreligião e impiedade eram tão perigosas e danosas quanto as perseguições por motivação
religiosa, já que ambas acabavam por minar as bases da sociedade. Dentre essas ideias tidas
como perigosas, as decorrentes do pensamento de Spinoza – e que foram difundidas e
refletidas pelos seus correligionários, os spinozistas – eram, sem dúvida, consideradas as mais
perigosas.
Locke e os limites da tolerância
Em sua primeira Carta sobre a Tolerância, John Locke defende a separação entre o
Estado e a religião como elemento crucial para a tolerância entre os homens, que têm,
naturalmente, interesses e opiniões diversas e não raro conflitantes.
Os argumentos de Locke para a tolerância têm suas bases mais em questões práticas e
psicológicas do que propriamente morais, já que, se considerarmos – como o fez Locke – que
o maior propósito da religião é a salvação da alma e que o cristianismo é o melhor caminho
nessa jornada, daí não se segue que o Estado deve obrigar os cidadãos a se converterem ao
cristianismo, pois, mesmo que tal medida fosse tentada, estaria condenada a fracassar, uma
vez que a força e o poder do Estado é exterior, enquanto que a salvação da alma só pode se
dar no interior, através da conversão sincera. Assim sendo, do argumento de Locke se entende
que “a conversão bem-sucedida à religião verdadeira é o único motivo plausível para a
intolerância religiosa” (GOHRAM, 2011, p. 104). O poder de convencimento sobre o outro,
em matéria de fé, só pode ser feito pelo homem destituído da função de magistrado, com
argumentos, não com ordens; “o poder civil não deve prescrever artigos de fé com a lei civil,
quer se trate de dogmas ou de formas de culto divino” (LOCKE, 1965, p. 92). Vale ressaltar,
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no entanto, que, na época em que Locke produziu seus escritos, prisões, excomunhões e
genocídios eram comumente cometidos, visando ao fortalecimento da uniformidade religiosa,
muito mais através da diminuição que do alargamento da comunidade religiosa.
Nesse sentido, Locke defende, por um lado, que não cabe ao poder civil garantir a uma
religião em particular o direito de reprimir as demais, uma vez que não lhe é permitido
conceder um direito que não tem e, por outro, também não o é permitido aos clérigos, já que
também não o cabe à sua igreja tentar estender sua autoridade eclesiástica a questões civis, ou
“punir por motivos religiosos um homem estranho à sua igreja e à sua fé e prejudica-lo na sua
vida, liberdade ou qualquer parte dos seus bens terrestres” (LOCKE, 1965, p. 100), os bens
civis, cuja função do magistrado é garantir a proteção.
Locke, crédulo numa vertente moderada do protestantismo, argumenta que a tolerância
recíproca entre os cristãos é “o principal critério da verdadeira Igreja” (LOCKE, 1965, p.89),
e cristão verdadeiro é o que busca viver em santidade, preferindo a bondade e a castidade dos
costumes ao orgulho e à vida violenta. Os crentes estavam derramando sangue uns dos outros
por sutilezas doutrinárias, ao passo que os inimigos da religião, os vícios, estavam
prosperando. Segundo ele, aquele que é:
“[...] implacável para com os que não partilham a sua opinião, ao passo que é
indulgente com os pecados e vícios indignos do nome cristão, demonstra
abertamente que, embora tenha sempre na boca a palavra Igreja, procura outro reino
e não o de Deus” (LOCKE, 1965, p. 91).
Esse argumento de Locke também era compartilhado por Pierre Bayle, que tentou
mostrar, em seus comentários sobre a tolerância, que as perseguições religiosas e as tentativas
de se impor uma visão de mundo pela força resultavam apenas na destruição de vidas e da
propriedade, o que as torna intrinsecamente erradas e que, justamente por isso, não poderiam
ser autorizadas por Deus ou pelos clérigos. Bayle era conhecido por ser um eloquente
defensor da tolerância e dos ateus como indivíduos virtuosos, sendo ele mesmo
provavelmente um ateu, mas também era conhecido por ser um grande retórico, o que acaba
tornando suas palavras a esse respeito necessárias de uma crítica mais aprofundada, já que
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parece questionável se elas são de todo sinceras ou apenas um conveniente eco das palavras
de Locke (ISRAEL, 1999, p. 7).
Locke se opunha à perseguição religiosa, por considerar que era melhor correr os
riscos de apostatar, de abandonar a crença, do que nela persistir sem nenhum propósito. Mas
mesmo de um ponto de vista estritamente teológico, a tolerância em Locke se mostra algo
problemática, uma vez que ele não a garante aos católicos, que chamava, de maneira
derrogatória, de “papistas”, adjetivo muito usado pelos opositores da Igreja Católica à época.
Locke expressa seu repúdio pelo catolicismo também de um ponto de vista da manutenção do
Estado. Para ele, o magistrado não deve tolerar nenhum dogma que vise a garantir
exclusividade por parte de um grupo específico em detrimento do resto da sociedade, ou os
que pregam a intolerância com a religião diferente. Além disso, “a igreja em que cada um
passa ipso facto para o serviço e a obediência de outro príncipe” (LOCKE, 1965, p.117) não
merece tolerância, já que, ao assim agir, a igreja toma partido por um estrangeiro, podendo
oferecer risco ao Estado, quando de uma guerra, por exemplo.
O problema de Locke com os católicos agrava-se, quando levamos em consideração
seus argumentos para justificar e limitar a tolerância. É possível identificar três limitações
fundamentais na teoria da tolerância de Locke: a primeira delas diz respeito aos que não estão
vinculados a nenhuma religião organizada no que concerne a assuntos confessionais, e, nesse
grupo, se enquadram os agnósticos, os deístas e os indiferentes (indifferenti) que, ainda que
não sejam explicitamente privados do direito a serem tolerados, permanecem em um “limbo”,
sem que seu status ou liberdade seja garantido; a segunda diz respeito aos católicos, e aqui
reside o problema do posicionamento de Locke, visto que, por uma questão de coerência com
a primeira das limitações para a tolerância, os católicos não se enquadram nela, pois estão
vinculados a uma forma de crença organizada. Assim sendo, não há porque não garantir
tolerância aos católicos, mas Locke se mostra reticente quanto a isso.
“Porque o magistrado, segundo a Carta, não tem que tolerar igrejas que reclamam
uma autoridade que podem causar distúrbios à paz civil e à soberania do Estado,
como o fazem os católicos, que reclamam que o Papa possa dispensá-los de
juramentos de aliança (oaths of allegiance), deponha governantes e os liberem de ter
de manter relações de fé e juramentos com ‘hereges’” (ISRAEL In: GRELL;
POTTER, 2006, p.103-4).
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A posição de Locke quanto aos católicos só é compreensível, quando analisamos o
histórico de violência perpetrada, essencialmente por motivações religiosas, durante a Guerra
dos Trinta Anos, que assolou a Europa na primeira metade do século XVII, mas mesmo isso
não diminui as dificuldades presentes no seu argumento e seu duplo padrão de julgamento.
A terceira das limitações atribuídas por Locke à tolerância diz respeito aos ateus.
Sobre estes, escreve Locke que:
“...os que negam a existência de uma divindade não devem de maneira alguma
tolerar-se. A palavra, o contrato e o juramento de um ateu não podem constituir algo
de estável e de sagrado, pois são os vínculos da sociedade humana, a tal ponto que,
suprimida a crença em Deus, tudo se desmorona. Além disso, ninguém pode
reivindicar, em nome da religião, o privilégio da tolerância, se elimina radicalmente
toda a religião mediante o ateísmo. No tocante às outras opiniões práticas, embora
não estejam livres de todo o erro, se nelas não se tende a assegurar a própria igreja o
domínio ou a impunidade civis, não há motivo para não se tolerarem” (LOCKE,
1965, p.118).
A recusa de Locke em garantir a tolerância aos ateus revela não apenas o quão forte
era a influência da religião sobre ele e seu desejo de manter a coesão social, mas, mais que
isso, o que difere sua posição da de Spinoza. O problema de Locke, nesse sentido, é com a
liberdade de consciência e de pensamento para além das discussões religiosas. A esse
respeito, é pontual o comentário de Raymond Polin, na introdução da Carta, pois, segundo
ele, “é melhor, pensa Locke, não defender a tolerância em nome da consciência e dos seus
direitos, pois, poder-se-ia igualmente, e sem qualquer controlo possível, invocar a mesma
consciência a favor do pior dogmatismo ou do pior fanatismo” (POLIN In: LOCKE, 1965, p.
54).
A posição de Locke com relação aos ateus está em concordância com seus critérios
para delimitar a tolerância, visto que esses não creem em Deus, nem estão vinculados a
nenhuma religião organizada, o que contrasta severamente com as bases teológicas de sua
teoria da tolerância, que supõem que todos os homens possuem uma alma imortal para a qual
devem garantir a salvação.
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Spinoza e a libertas philosophandi
Spinoza pertencia à comunidade sefardista fundada nas Províncias Unidas por antigos
Novos-cristãos que haviam sido forçados a se converter na Espanha e em Portugal no final do
século XV e começo do XVI. Teve, desde cedo, contato com estudiosos do Talmud, além de
pensadores com inclinação mística, de quem tomou conhecimento sobre a Cabala e o
misticismo judaico, e de pensadores mais próximos do racionalismo filosófico. Em
consonância com seus estudos do judaísmo, estudou também os clássicos e a língua latina sob
a tutela de livres-pensadores e humanistas, o que fez com que se tornasse um conhecedor
profundo da obra e do racionalismo de Descartes, além de um adepto de seu método
matemático; tal fator teve consequências decisivas para sua vida, uma vez que seus estudos
polímatas e sua perspicácia intelectual o levaram a questionar as escrituras da religião, o que,
posteriormente, causou sua excomunhão do judaísmo.
Após ser excomungado, Spinoza não buscou outra religião; preferiu afirmar sua fé na
razão e, assim, “optou pelo secularismo numa época em que o conceito ainda nem havia sido
formado” (GOLDSTEIN, 2009, p. 5), agindo dessa maneira pelo princípio da preservação de
sua liberdade de pensar e filosofar.
As reservas que fizeram com que Spinoza, após ter sido excomungado, optasse por
não se afiliar a nenhuma outra religião derivam de sua experiência com a intolerância, ainda
que vivesse em um país reconhecido por sua tolerância religiosa. Talvez mais chocante que
sua própria excomunhão, o tratamento dado a seu correligionário e amigo Adriann Koerbagh
(1632-1669), um filósofo radical que compartilhava de muitas das ideias de Spinoza sobre
metafísica, inclusive sua identificação de Deus com a natureza, foi acusado e condenado por
blasfêmia após a publicação de seu Een Ligt schynende in duystere plaatsen, om te verligten
de voornaamste saaken der Godsgeleerdtheyd en Godsdienst (Uma Luz que brilha na
Escuridão: Esclarecimentos em matéria de Teologia e Religião), escrito em língua vernácula,
uma ousadia que nem Spinoza havia cometido, sob a justificativa de tentar esclarecer não
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apenas as mentes da elite acadêmica, mas também as pessoas comuns (CLITEUR, 2010,
p.22). Além desse caso em particular, havia muitos outros conflitos de natureza religiosa
ainda em andamento nas Províncias Unidas, a maioria deles envolvendo seitas dissidentes do
Protestantismo.
Enquanto a tolerância para John Locke se apresenta sempre relacionada à liberdade de
crença e dando pouca importância à liberdade de pensamento, de consciência e expressão,
Spinoza, ao fazer sua defesa da tolerância, o faz de um ponto de vista essencialmente
antiteológico e pautado pelas liberdades negligenciadas por Locke naquilo que chamou
libertas philosophandi, a liberdade de filosofar, contida no subtítulo de seu “Tratado”,
ignorando qualquer preocupação com a salvação das almas que – segundo o relato de um de
seus discípulos, Jean-Maximilien Lucas – havia declarado a alguns amigos que não acreditava
serem imortais, declaração esta que foi usada contra ele, quando de sua excomunhão
(LUCAS, 2007).
A relevância de Spinoza para as discussões sobre a tolerância no século XVII deve
muito ao seu caráter inovador, uma vez que, segundo Steven Nadler:
“Spinoza foi o primeiro a arguir que a Bíblia não era a palavra literal de Deus, mas
um trabalho literário produzido por humanos; que “religião verdadeira” nada tem a
ver com teologia, cerimônias litúrgicas ou dogmas sectários, mas consiste apenas em
uma simples regra moral: amai ao próximo; e que autoridades eclesiásticas não
deviam desempenhar qualquer função no governo do Estado moderno. Ele também
insistiu que a “divina providência” não é nada além das leis da natureza, que
milagres (entendidos como violações da ordem natural das coisas) são impossíveis e
que a crença neles é apenas a expressão de nossa ignorância sobre as verdadeiras
causas dos fenômenos, e que os profetas do Velho Testamento eram apenas
indivíduos que, ainda que eticamente superiores, possuíam uma imaginação
particularmente vívida” (NADLER, 2009, p.xiii).
O Tratado Teológico-Político é um marco tanto em termos de democracia política
quanto em história de interpretação e crítica das escrituras. Spinoza foi um intransigente
defensor da liberdade de pensamento e buscou, em seus escritos, desacreditar a Bíblia como
padrão de moral e fonte de verdade e de lei pública. Através de seu pioneiro método de
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crítica, buscava mostrar que os ensinamentos da Bíblia eram irrelevantes para um Estado
moderno e plural em sua base intelectual. Sua teoria política, influenciada por Hobbes e
Maquiavel, foi sistematizada como uma nova forma de republicanismo de caráter urbano,
comercial e igualitário, que ele considerava uma forma de contestar as ideias sobre a natureza
da vida social e a função do Estado.
A estratégia usada na obra para estabelecer e fortalecer a tolerância e a liberdade de
pensamento é pautada pela exposição das causas do preconceito religioso, intolerância e
censura intelectual sempre presentes na relação entre religião e política. Sua busca era por
expor os dogmas ensinados pela religião como baseados em noções equivocadas sobre as
próprias escrituras, tentar expor o que considerava uma universal e perigosa ignorância sobre
temas como as profecias, os milagres, a piedade e a natureza dos mandamentos divinos e
como as autoridades haviam se utilizado desses erros para controlar os indivíduos.
As diferenças da teoria da tolerância de Spinoza com relação a de Locke se
manifestam, em princípio, pela sua recusa em tratar do tema da liberdade de crença, pois, em
nenhum dos capítulos do Tratado Teológico-Político, o tema é comentado, tendo o feito, no
entanto, e ainda que brevemente, em seu posterior Tratado Político. Os temas centrais tratados
na obra são a liberdade individual e as instituições eclesiásticas que buscam o tempo todo
reprimir os indivíduos e se impor sobre eles. A mais significativa diferença entre as teorias da
tolerância de Spinoza e Locke reside “precisamente na subordinação da liberdade de crença e
consciência [...] e a ênfase na prevenção da emergência de poderosas hierarquias clericais”
(ISRAEL In: GRELL; POTTER, 2006, p.105). Os temas da liberdade de crença, de expressão
das doutrinas religiosas e da liberdade de organizar igrejas são tratados apenas
marginalmente, enquanto é dado maior foco às questões que envolvem a autoridade
eclesiástica.
Nesse sentido, o conceito de tolerância em Spinoza é parte da ampla tradição de
pensamento político republicano holandês, pautado pelo enfraquecimento do poder do clero
pelo bem da sociedade.
“A tolerância em Locke, alinhada em grande parte com o subsequente pensamento
liberal, envolve inexoravelmente a retirada, o recuo, do Estado da esfera teológica e
eclesiástica, uma vez que a liberdade e autonomia de uma pluralidade de igrejas
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Spinoza, Locke e as discussões acerca da tolerância nos princípios da Modernidade
- 141 tomou forma e reconhecimento. Uma segurança essencial na posição de Spinoza é
impedir quaisquer facções que formam, entre os patrícios governantes, uma
aristocracia ou oligarquia, de se separarem em seitas rivais ou igrejas que apoiam
doutrinas e sacerdócios conflitantes. Porque conflitos teológicos não apenas inflam a
danosa influência de sacerdócios rivais e inflamam as divisões dentro da elite
governante, como também a torna suscetível à “superstição” – o código, em
Spinoza, para subserviência à autoridade clerical e à noções teológicas” (ISRAEL,
1999, p. 13).
O problema com a suscetibilidade à superstição, para Spinoza, reside no fato de que,
uma vez que isso ocorre, abre-se espaço para que as facções rivais encorajem clérigos
ambiciosos a estenderem seus domínios sobre as pessoas, o que pode levá-las a terem violada
a liberdade de expressar suas crenças. Para Spinoza, diferentemente de Locke, a razão de ser
da tolerância não é a busca pela salvação das almas, mas o estabelecimento da liberdade de
pensamento e crença e a liberdade de poder expressá-lo; uma forma de governo que permita
isso não só deve ser almejada, como é preciso que se aja, para que ela seja estabelecida, já que
“um Estado, para ser bom, deve conceder aos indivíduos a mesma liberdade de filosofar que a
fé [...] lhes concede” (ESPINOSA, 2008, p. 305).
Spinoza, no entanto, concordava com Locke que uma crença religiosa sincera não
poderia jamais ser imposta sobre ninguém por forças externas:
“Por maior que seja, pois, o direito que tem os supremos poderes sobre todas as
coisas, e por muito que os consideremos como intérpretes do direito e da piedade,
eles jamais poderão evitar que os homens façam sobre as coisas um juízo que
depende da sua própria maneira de ser ou que estejam possuídos desta ou daquela
paixão” (ESPINOSA, 2008, p.301).
Em sua discussão sobre a liberdade de pensamento, Spinoza baseia sua defesa do
direito individual ao pensamento em sua concepção do poder político e do Estado:
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- 142 “Portanto, se ninguém pode renunciar à sua liberdade de julgar e pensar o que
quiser, e se cada um é senhor de seus próprios pensamentos por superior direito da
natureza, jamais será possível, numa comunidade política, tentar sem resultados
funestos que os homens, apesar de terem opiniões diferentes e até opostas, não
digam nada que não esteja de acordo com aquilo que prescrevem as autoridades”
(ESPINOSA, 2008, p.302).
Spinoza desconsiderava que as doutrinas religiosas possuíssem alguma verdade;
julgava que elas serviam apenas para incitar nas pessoas a caridade, a obediência e o bom
comportamento; dizia ainda que a fé deveria ser medida apenas por esses parâmetros. A
verdade, acreditava, só podia ser alcançada individualmente e filosoficamente, não sendo
possível que fosse expressa em doutrinas teológicas. Nesse sentido, liberdade de pensamento
e de expressão, e não liberdade de crença, compõem o núcleo de sua teoria da tolerância.
Considerações finais
No que concerne ao debate sobre a tolerância, ao focar as atenções de sua abordagem
na liberdade individual de pensamento e não na liberdade de crença religiosa, como o fez
John Locke, Spinoza garante uma abertura intelectual muito mais ampla para a liberdade de
pensar e de expressar o pensamento que as teorias sobre a tolerância então conhecidas, pois a
liberdade de consciência, em especial a consciência religiosa, não inclui necessariamente
acesso irrestrito a todos os argumentos e pontos de vista, em especial os de natureza filosófica
que conflitam com as crenças elementares da religião, seja ela cristã ou não. Spinoza persiste
na ideia de que uma menor liberdade de julgamento levaria a um maior afastamento dos
homens de um Estado pleno e que de fato os pudesse servir, tendo, em contrário, um regime
cada vez mais opressor, o que minaria qualquer garantia de acesso pleno às ideias com as
quais se deparassem. Em último caso, o significado dado por Spinoza ao seu libertas
philosophandi é o direito a debater filosoficamente, e se é preciso retirar do poder, as
estruturas de poder eclesiástico.
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NADLER, Steven. A Book Forged in Hell: Spinoza’s Scandalous Treatise and the Birth of the
Secular Age. Princeton University Press. New Jersey, 2011.
Submetido em: 03/08/2013
Aceito em: 15/12/2013
Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da
Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO IX – Número VIII – Janeiro a Dezembro de 2013
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Thiago da Silva Paz