1a aula, 15-03-2007 Funções suaves e Variedades Os objectos de estudo da Topologia Diferencial são as variedades e as aplicações suaves, onde suave significa ”ser de classe C ∞ ”. As variedades consideradas são subconjuntos de espaços euclideanos Rn ”localmente difeomorfos” a outros espaços euclideanos Rk de dimensões k ≤ n. Usaremos o termo mapa como sinónimo de aplicação. Dados conjuntos X ⊂ U ⊆ Rn , e uma aplicação f : X → Rm , chama-se extensão de f a U a qualquer aplicação f˜ : U → Rm tal que f˜(x) = f (x) para todo x ∈ X. Dados X ⊆ Rn e Y ⊆ Rm , dizemos que uma aplicação f : X → Y é suave sse para cada p ∈ X existir um aberto U ⊆ Rn contendo p, e uma extensão de classe C ∞ de f : X ∩ U → Rm a U . A composição de aplicações suaves é suave, simplesmente porque as funções de classe C ∞ gozam desta mesma propriedade. Veja o exercı́cio 1-2. Quando f : X → Y é suave, bijectiva, e f −1 : Y → X é também suave, dizemos que f é um difeomorfismo. Dois conjuntos X ⊆ Rn e Y ⊆ Rm dizem-se difeomorfos sse existir um difeomorfismo f : X → Y entre X e Y . Para enfatuar a diferença com o conceito local introduzido a seguir diremos com o mesmo sentido que os conjuntos X e Y são globalmente difeomorfos. A relação ”ser difeomorfo a” é uma relação de equivalência porque a composição de difeomorfismos é um difeomorfismo. Sejam p ∈ X ⊆ Rn e q ∈ Y ⊆ Rm . Vamos escrever φ : (X, p) → (Y, q) para significar que φ : X → Y é uma aplicação tal que φ(p) = q. Uma aplicação suave φ : (X, p) → (Y, q) tal que para certas vizinhanças abertas U de p em Rn , e V de q em Rm , se tenha que φ : X ∩ U → Y ∩ V é um difeomorfismo, diz-se um difeomorfismo local. Escrevemos φ : (X, p) ' (Y, q) para dizer que φ é um difeomorfismo local de (X, p) em (Y, q). Dizemos que o par (X, p) é localmente difeomorfo a (Y, q) se existir um difeomorfismo local φ : (X, p) ' (Y, q). Finalmente, escrevemos (X, p) ' (Y, q) para significar que (X, p) e (Y, q) são localmente difeomorfos. A composição de difeomorfismos (locais) é um difeomorfismo (local). Logo, a relação ”ser localmente difeomorfo a” é uma relação de equivalência entre os pares (X, p) com p ∈ X ⊆ Rn . Definição Chama-se variedade a um conjunto localmente difeomorfo a um espaço euclideano. Mais precisamente, um conjunto X ⊆ Rn diz-se uma variedade sse para cada p ∈ X existir, para algum inteiro k ∈ N, um difeomorfismo local φ : (X, p) ' Rk , 0 . Sejam X uma variedade, U um aberto do espaço ambiente Rn , e V um aberto de um espaço euclideano Rk . Os difeomorfismos φ : X ∩U → V dizem-se cartas de X. Os difeomorfismos no sentido inverso, φ : V → X ∩ U , dizem-se parametrizações de X. Chama-se atlas duma variedade X a umaSfamı́lia de cartas de X, {φi : Ui → Vi }i∈I , cujos domı́nios cubram X, i.e., X ⊂ i∈I Ui . 1 2 Proposição Se X é uma variedade e p ∈ X então existe um único inteiro k ∈ N k tal que (X, p) ' R , 0 . Este inteiro diz-se a dimensão local de X em p e escrevese k = dim (X, p). A aplicação x 7→ dim (X, x) é localmente constante. Se X é conexa então esta aplicação tem um valor constante, que se chama a dimensão de X, e se denota por dim (X). Prova: Por definição de variedade, se p ∈ X, existe um difeomorfismo local φ : (X, p) ' 0 k R , 0. Havendo outro difeomorfismo local ψ : (X, p) ' Rk , 0 , tem-se ψ ◦ φ−1 : 0 0 Rk , 0 ' Rk , 0 , o que implica que D(ψ ◦ φ−1 )0 : Rk → Rk seja um isomorfismo entre espaços vectoriais. Logo k = k 0 . Se φ é um difeomorfismo local, φ : (X, p) ' k k R , 0, então, para todo x suficientemente próximo de p, φ : (X, x) ' R , φ(x) ' Rk , 0 , o que mostra que x 7→ dim (X, x) é uma função localmente constante em X. Usaremos a notação X n sempre que quisermos indicar explicitamente a dimensão n duma variedade X. Um vector u ∈ Rn diz-se tangente a uma variedade X ⊆ Rn no ponto p sse para alguma parametrização local φ : Rk , 0 ' (X, p), e algum vector u1 ∈ Rk , se tem u = Dφ0 (u1 ). Dizemos que o vector u1 é o representante de u na carta local φ−1 : (X, p) ' Rk , 0 . É claro que o representante de u nesta carta é único, porque k Dφ0 é um isomorfismo. Dada uma outra parametrização localk ψ : R , 0 ' (X, p), −1 k a composição de difeomorfismos locais ψ ◦ φ : R , 0 ' R , 0 transforma as coordenadas associadas à carta φ−1 nas coordenadas associadas à carta ψ −1 . O mapa ψ −1 ◦ φ é chamado de mudança de coordenadas. Topologia Diferencial 3 O representante de u na nova carta local ψ −1 é u2 = D(ψ −1 ◦ φ)0 (u1 ), uma vez que esta relação é equivalente a Dψ0 (u2 ) = Dφ0 (u1 ). Definição Denota-se por Tp X o conjunto dos vectores tangentes a X no ponto p. As considerações anteriores mostram que cada vector tangente tem um e um só representante em cada carta local definida numa vizinhança de p. Isto prova que: Proposição Seja X ⊆ Rn uma variedade com dimensão dim(X) k= k. k Para cada parametrização local φ : R , 0 ' (X, p), Tp X = Dφ0 (R ). Em particular, Tp X é um subespaço vectorial de Rn com dimensão k. Seja f : X → Y uma aplicação suave entre variedades X e Y . Vamos escrever f : (X, p) → (Y, q) para significar que f (p) = q. Dadas parametrizações locais φ : Rk , 0 ' (X, p) e ψ : (Rm , 0) ' (Y, q) vamos dizer que f˜ = ψ −1 ◦ f ◦ φ : Rk , 0 → (Rm , 0) é o representante de f nas cartas locais φ−1 : (X, p) ' Rk , 0 e ψ −1 : (Y, q) ' (Rm , 0). Note que a definição de f˜ implica a comutatividade do seguinte diagrama. f (X, x p) −→ (Y,xq) φ ψ ˜ f Rk , 0 −→ (Rm , 0) 4 Definição A derivada da aplicação f : (X, p) → (Y, q) no ponto p é o mapa linear Dfp : Tp X → Tq Y tal que Dfp (v) = v 0 se existirem vectores u ∈ Rk e u0 ∈ Rm que representem os vectores v e v 0 nas cartas φ−1 : (X, p) ' Rk , 0 e ψ −1 : (Y, q) ' (Rm , 0), respectivamente, tais que Df˜0 (u) = u0 , onde f˜ = ψ −1 ◦ f ◦ φ é o representante de f nas cartas φ−1 e ψ −1 . Note que a definição da derivada Dfp torna comutativo o diagrama seguinte Dfp TpxX −→ Tx qY Dφ0 Dψ0 Rk Df˜0 −→ Rm É agora necessário verificar que a derivada Dfp não depende do representante ˜ f escolhido. Proposição A definição da derivada Dfp : Tp X → Tq Y é independente da escolha das cartas locais em (X, p) e (Y, q). Prova: Consideremos duas parametrizações locais, φi : Rk , 0 ' (X, p) e ψi : (Rm , 0) ' Topologia Diferencial 5 (Y, q) uma para cada i = 1, 2. Consideremos o representante f˜i de f nas cartas φ−1 e ψi−1 , f˜i = ψi−1 ◦ f ◦ φi . Isto significa que o seguinte diagrama é comutativo. i f˜2 k R , 0 −→ (Rm , 0) φ2 y yψ2 f . (X, x p) −→ (Y,xq) φ1 ψ1 f˜1 Rk , 0 −→ (Rm , 0) Consideremos os mapas de mudança de coordenadas φ2 1 = φ−1 2 ◦ φ1 e ψ2 1 = −1 ψ2 ◦ ψ1 . Das relações acima obtemos a comutatividade do diagrama f˜2 k Rx , 0 −→ (Rm x, 0) φ2 1 ψ2 1 ˜ f1 Rk , 0 −→ (Rm , 0) que mostra que dois representantes u1 e u2 do mesmo vector u ∈ Tp X nas cartas ˜ locais φ−1 e φ−1 1 2 , são respectivamente transformados pelas derivadas D(f1 )0 e D(f˜2 )0 em dois representantes v1 e v2 do mesmo vector v = Dfp (u) ∈ Tq Y nas cartas locais ψ1−1 e ψ2−1 . Teorema (Regra da Cadeia) Dados f : (X, p) → (Y, q) e g : (Y, q) → (Z, r), mapas suaves entre variedades D(g ◦ f )p = Dgq ◦ Dfp . Prova: Resulta da definição de derivada, e desta mesma regra para funções suaves com domı́nios abertos em espaços euclideanos. Gráficos de Funções Vamos dizer que um subconjunto X do espaço euclideano Rn é o gráfico de uma função quando a relação (x1 , . . . , xn ) ∈ X define implicitamente algumas das variáveis xi em função das restantes. Para precisar este conceito necessitamos de alguma notação. Dado um conjunto de ı́ndices I = {i1 , . . . , ik }, onde 1 ≤ i1 < . . . < ik ≤ n, e dado um vector x = (x1 , . . . , xn ) ∈ Rn , designamos por xI = (xi1 , . . . , xik ) ∈ Rk o vector com as componentes associadas a ı́ndices em I, e por I c o complementar de I em {1, . . . , n}. Dizemos que um conjunto X ⊆ Rn é o gráfico de uma função do tipo I ⊂ {1, . . . , n}, com |I| = k, se existir um aberto U ⊆ Rn−k , e uma função ϕ : U 7→ Rk tais que X = { (x1 , . . . , xn ) ∈ Rn : xI c ∈ U e xI = ϕ(xI c ) } Proposição Se X é o gráfico duma função suave de tipo I com |I| = k, então X é uma variedade de dimensão n − k. Prova: Seja X = { (x1 , . . . , xn ) ∈ Rn : xI c ∈ U e xI = ϕ(xI c ) } o gráfico da função suave 6 ϕ : U ⊆ Rn−k 7→ Rk de tipo I. A aplicação Φ : Rn → Rn−k × Rk , Φ(x) = (xI c , xI ) é um isomorfismo. Definindo f : U → X, f (x) = Φ−1 (x, ϕ(x)), e g : Rn → Rn−k , g(x) = xI c , tem-se f ◦ g|X = idX e g|X ◦ f = idU . Logo f : U → X é um difeomorfismo global do aberto U ⊆ Rn−k sobre X, o que prova que X é uma variedade de dimensão n − k. Dada uma matriz A de dimensão m×n, e um conjunto de ı́ndices I ⊂ {1, . . . , n} com |I| = k, designamos por AI a matriz m × k formada pelas k colunas da matriz A com ı́ndices em I. Com esta notação, dada uma matriz A com dimensão m × n, é válida a seguinte relação para todo o x ∈ Rn , A · x = AI · x I + AI c · x I c . Por exemplo, se I = {1, 3} e A = reduz-se a 1 1 2 , então a decomposição acima 0 1 2 x1 x1 1 1 1 2 1 2 x2 = [x2 ] + x3 1 0 1 2 0 2 x 3 {z } | {z } | | {z } A AI AI c Em qualquer matriz A de dimensão k×n o número máximo de linhas linearmente independentes é igual ao número máximo de colunas linearmente independentes. Este número diz-se a caracterı́stica da matriz A, e é denotado por rank(A). É claro que rank(A) ≤ min{k, n}. Uma matriz, quadrada ou rectangular, diz-se singular se rank(A) < min{k, n}. Caso contrário, se rank(A) = min{k, n}, diz-se não singular. Uma matriz quadrada A, de dimensão n × n, é não singular se e somente se rank(A) = n, o que equivale a dizer que det(A) 6= 0. Qualquer sistema de k ≤ n equações em n incógnitas pode escrever-se na forma A · x = b para certas matrizes A e b, A de dimensão k × n, e b de dimensão k × 1. Eliminando as equações redundantes podemos sempre supor que todas as equações são linearmente independentes. Isto equivale a dizer que rank(A) = k, ou seja que a matriz A é não singular. Proposição Seja A uma matriz de dimensão k × n, com rank(A) = k. Então o sub-espaço afim X = { x ∈ Rn : A · x = b } é o gráfico duma função afim de tipo I, para algum conjunto de ı́ndices I ⊆ {1, . . . , n} com |I| = k. Prova: Como rank(A) = k, existem k colunas linearmente independentes, ou seja existe um conjunto I ⊆ {1, . . . , n}, com |I| = k, tal que det(AI ) 6= 0. Como A·x=b ⇔ ⇔ ⇔ A I · x I + AI c · x I c = b AI · xI = −AI c · xI c + b xI = (AI )−1 (−AI c · xI c + b) isto prova que X é o gráfico da função afim de tipo I, ϕ(x) = (AI )−1 (−AI c · x + b). Por exemplo, o sub-espaço afim definido pelo sistema de equações x1 x1 + x2 + 2 x3 = 0 1 1 2 0 x2 = ⇔ x2 + 2 x3 = 1 0 1 2 1 x3 Topologia Diferencial 1 2 é o gráfico duma função afim de tipo {1, 3}, porque 0 2 1 2 = 0. tipo {2, 3}, porque 1 2 7 = 2 6= 0, mas não de