press article Público / Mil Folhas, 7. Decembro 2002, Arquitectura Berlim text: Ricardo Carvalho photos: Andrea Kroth Uma casa é uma casa é uma casa O escritório Abcarius & Burns construiu um edifício que interroga o que é publico e privado dentro de uma casa. Arquitectura feita em Berlim, mas sobretudo experimentacao genérica sobre o habitar contemporaneo. Quando a dupla de arquitectos Jean-Marc Abcarius e Christopher Burns se propos a um concurso para um hotel (e escola de hotelaria) numa pequena cidade alema, procurou inverter aquilo que é tido como a hierarquia entre espaco público e privado neste tipo de programas. O projekto tinha como centro a cozinha, disponível a todos os olhares e atravessamentos a partir do átrio, e um novo conceito de quarto. Os duches, em vido translúcido e opalino, foram colocados junto às fachadas exteriores, funcionando como involucro e filtrando a luz para o interior do quarto, activando um dispositivo espacial ambíguo, sobre ver e ser visto. Reflectiase sobretudo sobre a determinacao ou indeterminacao funcional destes espacos, procurando novos sentidos e relacoes entre eles. Embora tenham ganho o concurso nunca construiram o edifício. Contudo, transportaram algumas destas reflexoes para um edificio de habitacao recentemente construído em Berlim, cidade onde vivem e trabalham desde o inicio da decada de noventa. Depois do advento da modernidade, com as vanguardas na senda da reprodutibilidade da célula habitacional mínima, carregada de messianismo social, a dimensao simbólica da casa esvaise. No final dos anos 50 Gaston Bachelard, num texto nostálgico e afectado, A Poética do Espaco, chama a casa urbana "buraco convencional", dentro de "caixas sobrepostas". A dimensao poética do habitar para este filósofo nao era compatível com abstraccao da colectividade. No contexto da pós-modernidade, e da globalizacao, caracterizado por uma (quase) total inflexibilidade espacial dos apartamentos produzidos, sujeitos a escravatura programatica em torno do T (0, 1, 2, etc.) regulados mais por quantidades do que qualidades, tem sido produzidas poucas experiencias que integrem e respondam aos dados sociais e culturais da contemporaneidade. Os arquitectos mais interessados na experimentacao referemse esporadicamente à casa burguesa tardo-oitocentista, sempre mais flexível e menos determinada funciolamente. Ou às experiencias dos anos 50, 60 e 70, como "The House of the Future" (uma casa cápsula como um kit) de Alison & Peter Smithson, para citar apenas um. Em causa esteve sempre uma revisao crítica da cultura do habitar. Mas os exemplos construidos nao sao abundantes, e o mercados imobiliário nao reflecte as mutacoes aceleradas da vida social, no que diz respeito ao conceitos de família e de mobilidade. milfolhas 01 press article Veja-se Lisboa e a experiencia no campo da habitacao com a expo 98, completamente irrelevante e especulativa, e num futuro próximo seguramente obsoleta. Ou as experiencias frustradas do programa (habitacao) Europan Jovens Arquitectos, com projectos acabados mas ainda sem obra construída. Mesmo em Berlim, cidade laboratório agora estagnada pelo abrandamento de velocidade das grandes corporacoes, destacam-se apenas as obras de Abcarius & Burns e do escritorio POPP, por oposicao ao conservadorismo dos projectos de Renzo Piano ou Hans Kollhof. O edifício de Joachimstraße, no bairro Mitte, constituti (e concentra em si) uma longa historia de aproximacao ao problema da habitacao nas cidades contemporaneas. Durante quatro anos, entre 1997 e 2001, a dupla encarregou-se de todas as fases do projecto. Entenderam nao recorrer a intermediários durante o processo. Adquiriam o terreno, encontaram compradores para os apartamentos, disponíveis para a dimensao de radicalidade que propunham, realizaram o projecto e fiscalizaram a obra. O resultado foi um edifício de grande rigor conceptual e constructivo; edifício-crítica à banalidade vigente nos apartamentos correntemente construidos, numa cidade em estaleiro contínuo desde a queda do muro. A resposta de Abcarius & Burns consiste num edifício de habitacao colectiva, que contem seis células, ou apartamentos, numa loja no piso térreo, bem como um pátio (ou logradouro) passivel de ser utilizado por todos os habitantes. Os apartamentos sao todos diferentes, no sentido de reflectir a especificidade de cada morador, que foi pretexto para ensaiar algumas solucoes limite no que diz respeito a dualidade público / privado. As duas fachadas sao constituidas por filtros translúcidos, compostos por paineis movíveis com laminas, guardas e portas de correr em vidro com caixilhos de aluminio. Materiais "banais", de utilizacao corrente, que esvaziam os topos das casas de materia opaca, possibilitando vários de níveis de transparencia. Sao casas que "vem e sao vistas" num sentido voyerista, mas tambem casas que nao conhecem uma nocao clara de limite relativamente a rua. Beatriz Colomina num artigo intitulado "Double Exposure" (revista Prototypo no. 6 Dezembro 2001) referia-se às enormes janelas nas casas de Frank Lloyd Wright, Mies van der Rohe ou Richard Neutra (que) enquadravam as mais espectaculares vistas de paisagem, enquanto as janelas panoramicas nas casas dos promotores imobilários haveriam de "olhar para fora para o que quer que estivesse la fora" (...) "A janela panoramica tornou-se um outro ecran de identificacao, uma forma de espelho". Precisamente como Abcarius & Burns referem "gestos muito simples como abrir fechar, correr um painel, acender uma luz, que tornam o edificio um organismo vivo". Destacariamos tres apartamentos. O primeiro e aquele onde o quarto foi transformado num "mobile" capaz de se descolar dentro de casa. A proprietaria, residente em Berlim apenas alguns meses por ano, solicitou que o seu pequeno apartamento fosse passível de se divido e alugado parcialmente. A resposta consistiu numa casa metamorfoseavel atraves de paineis e da sua relacao com o "quarto movel", peca de madeira pintada de branco com rodas, que incorpora arrumos, e que convoca diferentes hierarquias dentro casa, conforme a sua presenca ou ausencia. A cozinha foi construida como uma „parede“ porque a sua utilizacao e sazonal, e o "quarto movel" ai se pode instalar. milfoilhas 02 press article Noutro apartamento o duche, caixa de vidro opalino, foi colocado na sala. É a casa de um dos arquitectos que tomou o objecto como caixa de luz e como lugar de banho, compactando tambem a cozinha numa parede e fixando uma mesa ao pavimento, que é uma bancada de trabalho ou de cozinha. Tal como no apartamento do lado nao existem portas, apenas um plano que divide a "sala" do "quarto", sendo que esta designacao adquire contornos vagos no sentido em que cada espaco, pode receber a utilizacao desejada. Na terceira casa o lugar do lavatorio está visualmente exposto à rua, e o duche recebe luz natural atraves de um plano de vidro, visualmente disponivel desde al rua (à altura do terceiro piso). Duche e lavatório estao separados da sala apenas por um painel, que e o remate visual de uma bancada de cozinha em madeira, onde esta tambem uma televisao (encerrada no mobiliario) orientada ao lugar do sofa. Em todas as casas os pavimentos (em madeira ou em pedra calcaria branca) nao variam, tal como o plano do tecto nao varia - é sempre branco. Da mesma forma os acabamentos estao totalmente sistematizados assentes numa repetibilidade standart. A estrutura do edifício em betao armado passa para o interior das casas, aparente, nas paredes limite do lote, reforcando o plano do tecto e do pavimento. A reducao dos elementos ao mínimo - técnica e ao nível da expressao- pode ser confundido com neutralidade. Mas os autores alertam "a neutralidade nao nos interessa, interessa-nos a contencao expressiva para a valorizacao das actividades dentro das casas". Reducao expressiva, é certo, mas sobretudo suporte da transformabilidade ao serem habitadas. milfolhas 03