Especial
Diário de uma dona-de-casa
desesperada
Construiu ou está construindo?
Console-se com o relato de agonia e êxtase de
quem acompanhou tijolo por tijolo a própria obra
Naiara Magalhães
Lailson Santos
Fátima, entre o marido, Luiz, e os filhos, Ana Luiza e João Pedro:
queridos, acabei a casa
Há dois anos e meio, a mineira Fátima Alcântara tomou uma decisão corajosa: cuidar
pessoalmente da construção de cada um dos 605 metros quadrados da sua nova casa, num
condomínio em São Carlos, no interior de São Paulo. A experiência de mais de vinte anos como
administradora de empresas (Legalmente só um engenheiro ou arquiteto pode executar
uma obra; e por falar nisso, algum deles deve ter assinado a execução da obra ...onde
esse profissional esteve???). ajudou-a a controlar os 400 000 reais investidos na obra, mas
nada no mundo poderia prepará-la para os infindáveis problemas que esse tipo de tarefa implica
(ahhh, poderia sim...um profissional experiente ou 5 anos de faculdade do curso certo
poderia!!!). Tudo colocou a paciência de Fátima à prova, desde os percalços da mão-de-obra
até o espantoso desperdício obrigatório – ela contabilizou 1 450 reais no aluguel de 29
caçambas para retirar restos de azulejo, piso, madeira e terra (talvez esse desperdício
obrigatório que ela chama, nós chamamos de perda ... e isso é totalmente previsível). Não
foram poucas as vezes em que saiu do canteiro de obras, parou o carro no meio do caminho e
chorou. A contragosto, o marido, Luiz, professor universitário, fez viagens solitárias porque ela
não arredava o pé da construção. "Se eu me afastasse, a obra emperraria" (onde andava
mesmo o profissional que assinou essa execução? Ou será que a obra dessa senhora
estava ilegal?), diz – quem já passou pela experiência sabe exatamente do que ela está
falando. Recém-instalada na nova casa, com o caos da mudança superado, Luiz e os filhos,
Ana Luiza e João Pedro, gostando de tudo, ela já entrou na fase de aproveitar o que é bom e
deixar no passado as lembranças ruins – sim, exatamente como na metáfora da maternidade.
Mas fica um roteiro da empreitada para, pelo menos, lembrar aos que enfrentam agruras
similares que eles não estão sozinhos:
Fotos Arquivo pessoal
• FEVEREIRO DE 2005
Comecei a elaborar o projeto da casa com o
arquiteto. Uma das primeiras coisas que ele me
perguntou foi: "De que estilo de casa você gosta?".
Eu só falava coisas que não significavam nada,
como "Quero uma casa clássica, mas ao mesmo
tempo moderna". Para conseguir definir o que eu
queria, comecei a andar pela cidade olhando para
cima e pensando: "Gosto do estilo dessa casa? E
daquele?". Também li muitas revistas de arquitetura.
• JULHO DE 2005
Depois de cinco meses fazendo e refazendo o projeto, o desenho da casa ficou pronto. Nas dez
versões que o arquiteto apresentou, a única coisa que não mudou de lugar foi a porta de
entrada. Aprovado o planejamento, o terreno foi limpo para a obra começar. Meu marido, que é
físico, checou se o terreno ficava dentro da área de proteção do pára-raios do condomínio. Acho
que ninguém além dele prestou atenção nisso. Também foi dele a decisão de comprar forno de
pizza em forma de iglu – pelas leis da física, é mínima a probabilidade de retorno da fumaça.
• AGOSTO DE 2005
No dia em que a obra começou, fui lá depois do almoço achando que já ia encontrar alguma
coisa sendo erguida (...pura falta de orientação profissional. O engenheiro ou arquiteto
poderia ter feito um planejamento físico, no MS Project ou qualquer outra ferramenta que
mostrasse exatamente o que seria feito neste dia depois do almoço...). O que vi foi um
terreno todo escavado, destruído, com pessoas cobertas de lama dos pés à cabeça. Não
reconheci o funcionário com quem tinha conversado um dia antes (ela acertou o serviço com
o funcionário, mas não acham que deveria ter acertado com o engenheiro? Os meus
clientes não falam com funcionários! Cada um no seu papel, e a obra anda muito bem, e
todos saem satisfeitos!). Não imaginava que no mundo moderno ainda existisse uma coisa
tão rudimentar. Não fotografei essa parte. Acho que quis esquecer.
• Tinham me avisado que eu precisaria comprar caminhões e caminhões de terra para nivelar o
terreno. Ao ver a quantidade enorme de terra sendo retirada dos buracos, pensei: "Pronto, não
preciso mais gastar com isso". Engano meu: aquela terra "não dá liga" (palavras do empreiteiro)
(nas minhas obras, quem explica os “porquês” é o engenheiro, e com planejamento
prévio). Tive vontade de chorar vendo os caminhões levar aquilo tudo embora e voltar trazendo
terra nova para pôr no lugar. Essa primeira fase é só dinheiro indo para debaixo da terra. O
pessoal da obra achava tudo muito natural. A louca ali era eu, que ficava questionando o
processo.
• NOVEMBRO DE 2005
Começaram a erguer as paredes. Essa fase é ótima, porque é muito rápida, e eu já podia
visualizar a casa – uma coisa é o projeto mostrar que vou ter uma cozinha de 5 por 8 metros,
outra é entrar nela. Cheguei até a pensar: "Nossa, vou morar na casa nova antes do que
imaginava". Doce ilusão...
• DEZEMBRO DE 2005
Optamos por contratar um empreiteiro para cada fase da obra, para não correr o risco de ter de
agüentar até o final uma equipe com a qual tivéssemos problemas. Levantadas as paredes e
feita a cobertura da casa, chegou um novo grupo para cuidar do encanamento e da parte
elétrica. Foi um pesadelo. Todo dia me davam uma lista de material para comprar e devolviam
uma sacola de coisas para trocar (se ela contratasse um engenheiro ou arquiteto, esse
profissional poderia fornecer um orçamento e uma lista de compras. Problema
resolvido!). Eu chegava à construção e os via perdidos, com as peças na mão, sem saber o
que fazer. Até que um dia eu e o Luiz fomos à obra lá pelas 3 da tarde e falamos: "Pára tudo!
Está todo mundo dispensado". Pedi ajuda a ele porque não me senti segura de enfrentar isso
sozinha.
• FEVEREIRO DE 2006
A obra ficou parada quarenta dias, até ser contratada outra equipe.
Eles fizeram basicamente o seguinte: pegaram minhas paredes
novinhas, prontas para receber massa fina e tinta, e estraçalharam
tudo para pôr o encanamento e a parte elétrica. Tudo normal, para
eles. Para mim, é a coisa mais insensata do mundo. (tudo bem que
alguns sistemas da nossa construção é rudimentar mesmo, mas
rasgar uma alvenaria rebocada não é procedimento rudimentar,
mas sim grosseira falta de planejamento!!! Além disso, um
profissional poderia orientar essa cliente a usar uma alvenaria
estrutural, ou um dry wall se ela realmente e definitivamente não
quisesse o processo de rasgar a alvenaria).
• JULHO DE 2006
Hora de instalar portas e janelas. O batente de uma das portas, que
custou 450 reais, trincou assim que foi colocado. Eu fiquei num fogo
cruzado: o fornecedor dizia que o instalador usou o prego errado. O
instalador falava que a madeira estava verde. Gastei muita conversa
para convencer o fornecedor a não me cobrar outro batente e
contratei outra pessoa para colocá-lo. No meio da confusão, meu
marido teve um congresso na Espanha, onde já moramos, e insistiu
para eu ir com ele. Ficaríamos na casa de amigos. Mas, se eu
saísse, tudo ia parar. Ele achou que eu mudaria de idéia na última
hora. Não mudei e ele, chateado, teve de ir sozinho.
• OUTUBRO DE 2006
A parte mais gostosa começou: colocar os pisos e azulejos que passei meses escolhendo. Acho
que pesquisei acabamentos desde o início da obra. Quando cansava de comprar só tijolo,
cimento e ferro, eu me recompensava olhando revestimentos bonitos. Juntei tantas amostras
que depois as doei para uma loja de São Carlos construir um mostruário. (engraçado... meses
escolhendo um piso... e quanto tempo durou a fase de projeto mesmo? Por acaso foi
gasto algum tempo com o planejamento? A propósito, será que foram feitos os projetos
de Engenharia, como elétrico, estrutural, hidro-sanitário?)
• DEZEMBRO DE 2006
Descobrimos que a famosa porta de entrada, intocada no projeto inteiro, teria de ser modificada.
Ela não tinha nenhuma proteção e, com as chuvas do fim do ano, começou a entrar água dentro
de casa. Pusemos uma cobertura de ferro que ficou linda, sem cara de emenda e combinando
com as janelas brancas.
• FIM DE ANO
Sempre viajamos antes do Natal e voltamos depois do réveillon. Dessa vez, fui para Minas no
dia 29, comemorei a virada com a família lá e voltei correndo a São Carlos porque, na última
vez em que me ausentei, ninguém apareceu para trabalhar. Depois que começou a construção,
tive de controlar muito mais os gastos. Como vivia cansada e sem paciência, a convivência
familiar também foi afetada. (executar uma obra é mais um TRABALHO do dia-a-dia para
um engenheiro e um arquiteto; e um PROBLEMA DE CONVIVÊNCIA FAMILIAR para um
leigo). Meu filho passou a me pedir coisas assim: "Será que no orçamento da obra cabe um
tênis novo?".
• JANEIRO DE 2007
Começou a ser construído o meu xodó na casa: uma escada
bem mineira, de pedra São Tomé com ladrilhos. Outra novela.
O fornecedor me mandou pedras de alturas diferentes. Como
se sobe e desce uma escada com piso assim? Foi um custo
convencê-lo a selecionar peças iguais – "Peça selecionada, só
para exportação", argumentava. Mandei a esse fornecedor
uma foto da escada quase pronta e ele ficou maravilhado.
Disse que a pedra dele nunca tinha servido para fazer uma
coisa tão bonita.
• JUNHO DE 2007
A sensação de estar prestes a me mudar é boa. Estou muito
satisfeita com o resultado. Mas uma coisa é certa: depois dessa experiência, nem casa de
cachorro eu construo mais. (Finalmente a cliente chegou a uma conclusão correta. Ela não
quer e nem deve construir mais nada sozinha. Além de estar gastando dinheiro e criando
problemas familiares, ela também estará exercendo ilegalmente a nossa profissão).
Mãos à obra
Conselhos de quem passou por uma construção, saiu relativamente incólume e ainda ficou
amiga dos comerciantes locais
("Se quiser um desconto, diga que foi indicação da dona Fátima"):
• Não pague a mão-de-obra na quinta-feira. Na sexta, a tia de um morre, o filho do outro tem
de ir ao médico e ninguém aparece para trabalhar. Acerto de honorários, só no fim da sextafeira. (um profissional poderia dar um conselho mais acertado como, por exemplo,
pagar por empreitada).
• Fique freguesa fiel, e os fornecedores vão responder à altura, mesmo que você só precise
de 200 tijolinhos para construir o balcão da churrasqueira.
• Por mais que construa uma casa para morar, não deixe de pensar nela comercialmente.
Considerando uma possível venda futura, fizemos todos os quartos com banheiro, um
escritório grande que pode virar dormitório e uma área externa capaz de acomodar mais
vagas de garagem.
• Não se iluda pensando que tem controle total da obra. Em algum momento (ou em muitos),
o cronograma vai atrasar por causa da chuva, da falta de um produto ou porque você
demitiu toda a mão-de-obra de uma vez.
• Guarde num depósito 20% dos pisos e azulejos. Dá um trabalho enorme encontrar peças
fora de linha para consertar defeitos (que sempre vão existir).
Apenas uma dúvida remanescente de uma Engenheira que luta pela valorização da
nossa classe:
Se eu decidir me medicar sozinha, sem consultar um médico;
Tomar remédio errado;
Ter sintomas colaterais do remédio errado que tomei;
Reclamar do farmacêutico que acha tudo "muito normal" (como diz a
reportagem);
Ter que gastar o dobro com os remédios certos para o problema
original, e ainda com os remédios para o problema colateral que eu
mesma criei...
...Depois de tudo isso, será que vão publicar minha reportagem na VEJA intitulada
“Diário de uma Engenheira desesperada” ???....
CAROLINE ANTUNES BUCCIANO
Engenheira Civil
[email protected]
Fonte: http://veja.abril.uol.com.br/190907/p_076.shtml
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