Uma vida de contradições Entrevista com Kornel Mundruczó Entrevista de Tom Mustroph publicada no Die Tageszeitung (6 março 2014) O seu atual espetáculo Dementia é sobre pessoas que perderam a memória e, consequentemente, a sua identidade, que padecem dela, que se dão às vezes também por isso por felizes, mas que procuram o suicídio como saída. Quão forte é uma metáfora sobre a atual Hungria? E o suicídio é, na verdade, a única saída? Claro que tem muito que ver com a Hungria. Mas também é um melodrama e um jogo de transformação. Desempenhamos o papel de idosos, mas somos jovens. Gosto desses paradoxos. A ideia surgiu a partir de uma história na minha família. Uma mulher idosa com demência não foi capaz de reconhecer novamente os seus filhos. Quando um dos filhos se sentou ao piano e tocou operetas que esta mulher ouvia e cantava de bom grado, a memória voltou parcialmente. Queria recrear este momento. Mas também entra o suicídio e a questão das pessoas inúteis. Na nossa sociedade, é-se rapidamente considerado inútil, o que também se aplica a um grupo livre. Entretanto, Dementia já foi apresentado em algumas cidades. Qual foi a reação do público? Em que medida se sobrepuseram os debates estéticos aos debates sobre a situação política na Hungria? Na Hungria, a peça foi muito bem aceite pelo público. As nossas reflexões sobre a sociedade ― politicamente muito incorretas por carecerem de orientação política e por não serem de direita ou de esquerda ―, tiveram uma resposta positiva. Segundo a nossa experiência, a liberdade e a independência são categorias muito importantes para o público. Tínhamos dúvidas a este respeito. Houve por exemplo alguma influência crítica ou tentativa de censura? No geral, as condições pioraram. O apoio financeiro está em declínio. Por outro lado, alguns diretores de teatro com vínculo permanente gostariam de fazer parte de um movimento independente. Apoiamnos, pelo menos em termos ideológicos, porque é importante que haja posições independentes na Hungria. Sem ajuda externa, o nosso grupo livre, o Proton Theatre, não poderia existir. É paradoxal e doloroso para nós, porque também temos uma posição bastante crítica em relação à União Europeia. Quando era jovem, a União Europeia parecia-me ser um paraíso. Isso agora mudou. De onde vem essa deceção? Pertencemos à geração "Zero". Não temos realmente más memórias do comunismo, porque mal o testemunhámos. Tinha 13 anos quando se deu a transformação. A Hungria era considerada uma “barraca divertida” do Socialismo. Quando se deram depois as mudanças democráticas, desejei durante dez anos que a Hungria fizesse parte da Europa. Mas tal não aconteceu. Embora tenhamos de facto um tipo de democracia, é uma democracia controlada, como a de Putin. A maioria das críticas feitas à sociedade húngara está correta quanto ao conteúdo. Lamentavelmente, apenas se critica e nada se faz para proteger a democracia. Nem mesmo a União Europeia toma ações. Em meu ver, os próprios húngaros ainda não conseguiram viver a democracia nem mesmo interiorizá-la na última década e, portanto, não conseguem viver com a sua liberdade. Sente-se cada vez menos liberdade e as distâncias entre o Leste o Ocidente intensificam-se. Deseja que a União Europeia interfira no país como na Ucrânia? Dificilmente se acredita no que se está a passar lá. É um alerta ainda maior do que a Grécia. Tanto para nós como para a União Europeia. Não podemos no entanto comparar nem a Grécia nem a Hungria com a Ucrânia, uma vez que estes dois países fazem parte da União Europeia, e a Ucrânia não. A pressão de Putin é extremamente forte. Lembra-me a Hungria em 1956 e Praga em 1968. Aguardo com expetativa a reação tanto da União Europeia como também dos Estados Unidos. Prevalece então um clima de medo na Hungria quando chegam notícias da Ucrânia? Sim, sem dúvida. O nosso governo afima que a Hungria não deve ser uma colónia da União Europeia. Mas acho que ninguém quer ser uma colónia da Rússia de Putin. Provavelmente, muitos assim o achavam até se saber recentemente que Orbán e Putin haviam chegado a um acordo relativamente à construção de dois novos reatores na central nuclear húngara de Paks. Abandona-se Hungria ou fica-se? Também se interroga sobre essa questão? Sim, definitivamente. No entanto, esta questão só é relevante para quem tem essa oportunidade. É uma decisão muito difícil. Mas para quem já vive num gueto no seu próprio país, então já se vive de qualquer maneira no estrangeiro. Partir inteiramente é sempre difícil, porque também se corta com as suas raízes. Então fica por causa das suas raízes? É preciso entender as diferenças. Não consigo viver sem as minhas raízes, por isso tenho de viver aqui em Budapeste. Não tenho nenhuma resposta clara. É uma vida de contradições permanentes. É conhecido por recorrer frequentemente à violência nas suas peças e também nos seus filmes. Por vezes a violência parece ser a única forma possível de comunicação para os protagonistas. Porquê tomar esta decisão? Isso deve-se às histórias. Quando se quer contar a verdade, não se pode ignorar a violência. Não estilizo. Se alguém se sente provocado, diz mais sobre a pessoa do que sobre a peça. Notei que sempre que aparece na indústria do teatro aparece como "encenador húngaro", portanto como alguém de quem se espera que, com o seu trabalho, também diga algo sobre o país em que vive, ao passo que na indústria cinematográfica é visto principalmente como um artista e isto mesmo fora do contexto da Hungria. Creio que é porque os filmes são atemporais. Se se é concreto demais, fica-se mais tarde numa posição desconfortável. Quem sabe daqui a 20 anos o que aqui se passou? Mas no teatro acontece o inverso. Se alguém é atemporal em palco, não afeta. É preciso comunicar com o público sobre questões ctuais.