Uma vida de peso Mikaël Ollivier Tradução Maria Luiza X. de A. Borges Temas Adolescência; Construção da identidade; Obesidade; Guia de leitura para o professor Superação das dificuldades Série Vermelha nº 13 2008996274981 160 páginas O livro Comer em excesso pode ser uma doença de fato? Quando o adolescente Benjamin descobre que não é simplesmente gordo, mas que pode vir a ter sérios problemas de saúde por conta de seu peso excessivo, ele tem de lidar com mais uma situação difícil. Não bastassem a separação dos pais, a vergonha nas aulas de educação física e as dificuldades nos relacionamentos, seu maior desafio será cuidar de seu corpo e desistir do que mais gosta de fazer: comer, muito. E tudo parece complicar-se quando uma nova decepção o faz desistir do regime e das esperanças. Prazer, refúgio e prisão: como lidar com a compulsão pela comida? A história de Ben, seu amor pela comida e a descoberta de questões fundamentais para o amadurecimento, vivenciadas certamente por todos nós, fazem deste livro uma obra inesquecível, feita para ser “devorada” e, certamente, muitas vezes relida. O autor Mikaël Ollivier nasceu na França, em 1968. Embora tenha optado por ser músico ao sair do colégio, mudou de idéia e formou-se em uma escola de cinema francesa. Fez estágios em grandes estúdios cinematográficos, trabalhou com produção de documentários e séries na televisão. Sua paixão por literatura sempre foi grande e, após diversos contatos com editores, publicou seu primeiro romance para jovens em 2000. Uma vida de peso ganhou diversos prêmios importantes – assim como muitos de seus livros – e foi adaptado para tornar-se minissérie. Uma vida de peso Mergulhando na temática narrador em primeira pessoa Ben conta sua própria história quase como se estivesse registrando em um diário o que lhe acontece de significativo. No entanto, há uma distância temporal que garante que sua narrativa seja o relato de uma experiência que ele quer compartilhar com todos, obesos ou não, e cujo final já conhece. Esse modo de contar uma história é típico da narração em primeira pessoa – sendo que o narrador não precisa necessariamente, como Benjamin, ter uma distância temporal dos fatos narrados. Pela perspectiva de um jovem perspicaz que sente os efeitos da discriminação e suas próprias dificuldades internas e externas, assim como o modo pelo qual a sociedade e a família lidam mal com isso, o narrador luta para manter o bom humor e compartilhar, com os leitores, a difícil experiência de sua transformação. bretanha Uma das regiões da França, distingue-se pelo belo litoral (a região de Armor). Ocupada pelo povo celta, que enfrentou a dominação dos romanos (como se mostra ficcionalmente nas histórias em quadrinhos de Asterix), a Bretanha é uma das regiões em que se preservaram tradições celtas, de mitologia bastante Mikaël Ollivier Interpretando o texto Leveza e obesidade É difícil não se encantar de imediato com a história de Ben: o modo como o protagonista a conta logo envolve o leitor e o faz perceber que este é um livro para a vida toda. Ao bater o olho no título, de imediato podemos perceber que um grave problema – poucas vezes claramente falado aos adolescentes com seriedade – será tratado aqui com leveza, inteligência e bom humor. A obesidade de Benjamin Poiret, garoto de quinze anos, torna sua vida algo difícil de carregar. A história desse adolescente, tal como é contada, permite um passo decisivo para que, com a literatura, algumas importantes questões psicológicas sejam trabalhadas com os alunos, sem que se fechem os olhos para a exclusão de que são vítimas todos aqueles que não se enquadram nos padrões de beleza veiculados pela mídia. Permite, também, que distúrbios alimentares sejam discutidos e se alerte para os riscos que a obesidade mórbida traz para a saúde. O delicado tema da obesidade – que circula, entre risos e estereótipos, nos corredores e que raramente chega à sala de aula, pelo medo de expor alguns alunos – encontra aqui arguta realização narrativa. Em três grandes blocos – correspondentes aos três trimestres decisivos da vida de Benjamin Poiret – um novo jovem surge, e o “parto” não é tão simples. Nove meses dão nascimento simbólico a um novo adolescente. Narrador em primeira pessoa, o protagonista conta a história de um ângulo muito próximo e sincero: como tentou driblar a verdade e esconder de si mesmo que seu prazer por comida e, principalmente, o excesso de alimento que ingeria poderiam ser patológicos e agravavamse a cada frustração. Benjamin tentou enfrentar a dieta e várias vezes desistiu, desejou emagrecer rapidamente para conquistar Claire, a colega de classe por quem se apaixonou, e, diante de mais uma frustração, passou por um período depressivo. A cada dificuldade, comia mais e mais e mais. rica. O começo: Benjamin precisa despedir-se de si mesmo Asterix é o divertido protagonista de Tudo se inicia quando, como é de rotina nas escolas francesas, os alunos são submetidos a uma detalhada avaliação física. uma série de histórias em quadrinhos de muito sucesso, escritas e ilustradas por René Goscinny e Albert Uderzo, que mostra o cotidiano de uma *Os destaques remetem ao item Mergulhando na temática. Uma vida de peso aldeia de gauleses e de seus habitantes (cada um com uma característica engraçada) na época do Império Romano. O primeiro álbum foi lançado em 1961 e, até 2005, foram feitos 31. No Brasil, eles são publicados pela editora Record. obesidade mórbida e outros distúrbios alimentares A sociedade contemporânea preocupa-se cada vez mais com os distúrbios alimentares, entre os quais se encontram a obesidade mórbida, a bulimia e a anorexia. Quanto à obesidade mórbida, além de trazer problemas psicológicos, está relacionada a riscos de saúde física, como diabetes, doenças cardíacas, infarto e problemas pulmonares. Por diminuir a qualidade e a expectativa de vida, é considerada doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Entre as causas da obesidade há fatores de origem genética, mas os hábitos alimentares são decisivos. Além disso, problemas psicológicos podem gerar como sintoma a compulsão pela comida, o que, por sua vez, cria um verdadeiro círculo vicioso: come-se demais para fugir dos problemas, o que traz mais peso e culpa, dos quais se tenta fugir comendo mais. O sedentarismo da vida moderna, bem como medicamentos, pode causar ou contribuir para a obesidade. O apelo das comidas prontas, os lanches gordurosos em fast-foods são, hoje, um dos principais fatores de estímulo à obesidade. Para o tratamento, as opiniões médicas se dividem: é preciso acompanhamento psicológico, Mikaël Ollivier O jovem Benjamin tem sonhos grandes. O que mais deseja na vida é aliar prazer a prazer: assim, como adora comer, pensa em ter um restaurante, quando crescer mais, e estabelecer-se na Bretanha, distrito francês famoso por seu litoral. Mas o exame físico o alerta: em dois anos ele engordou 22 quilos e a enfermeira lhe diz que ele está se aproximando de índices graves de obesidade. O problema, porém, se resolve, para Benjamin, com mais comida! Isso já parece indicar como, além da tendência genética a engordar, o distúrbio alimentar se agrava devido a problemas psicológicos, enredando o garoto num círculo vicioso. Como resolver o problema? Que tal fugindo dele? É o que faz Benjamin ao esconder da mãe a carta que a enfermeira havia escrito, alertando para os problemas do distúrbio alimentar de que o garoto está sofrendo. Complicações médicas? Imagine! Mas Benjamin – perspicaz e inteligente como é – intui que está fugindo de si mesmo. Lembra-se de quando a robustez deixou de ser um atributo que o tornava superior aos outros garotos e de que, a partir dos doze anos, os apelidos começaram a incomodá-lo. Na adolescência, que há pouco iniciara, tudo se complica: como seguir a moda se ela parece feita apenas para os magros? Como vestir short para as aulas de educação física? Como ter desempenho atlético quando as gorduras a mais o impedem de chegar aos scores mínimos para rapazes? As saídas, além da comida, são o isolamento e a busca de companheiros igualmente discriminados. O amigo, Éric, é seu oposto: altíssimo para a idade e magro demais. O novo apelido, ao menos, os reúne: afinal, o Gordo e o Magro são um par – e a discriminação passa a doer menos. Se não tem como passar despercebido devido a seu corpo, Benjamin tenta expor-se o mínimo possível: estuda apenas o suficiente para não chamar a atenção, não vai a festas, evita freqüentar a piscina. Enquanto isso, tenta elaborar sua dificuldade: por que não se reconhece socialmente que comer em excesso é quase um vício? Por que todos acham que quem come muito o faz por simples falta de vontade de emagrecer? Por que ninguém percebe o sofrimento de um gordo? Mas a adolescência não espera respostas. No centro de seus dilemas, surge a repentina paixão por Claire, a bela colega de classe. Ao encontrá-la na piscina, dá-se conta do tamanho do problema: nunca ela olhará para um gordo. Volta para casa, come muito, mas entrega à mãe, como quem nada quer, a carta que a enfermeira havia escrito para seus pais. Uma vida de peso Mikaël Ollivier O passo-a-passo da transformação dietas, exercícios, mas, em alguns casos, tem-se realizado a chamada “cirurgia bariátrica”, isto é, a cirurgia que diminui o reservatório gástrico e/ou a absorção intestinal. Essa cirurgia tem um risco altíssimo e envolve problemas que vão desde a depressão até o suicídio. E só um percentual mínimo consegue manter o efeito esperado alguns anos depois. Apesar disso, é muito comum no Brasil, ao contrário dos países mais desenvolvidos, onde só é realizada em casos gravíssimos, nos quais a vida do paciente está em risco iminente por conta da obesidade mórbida. Os tratamentos à base de medicamentos têm tantos efeitos colaterais que cada vez menos eles são prescritos por profissionais responsáveis e, quando o fazem, há rigoroso controle. Portanto, a maneira mais segura e eficiente de emagrecer é mudar os hábitos alimentares e praticar exercícios regularmente. Tudo acontece antes das festas de Natal. Benjamin adia o projeto de emagrecer. Afinal, as festas de fim de ano são mesmo um convite aos abusos à mesa. Mas não quer nem pode escapar. Sophie, a nova mulher de seu pai, indica à família um médico especialista em obesidade, que alia o tratamento convencional, à base de dietas, à acupuntura. O jovem suburbano vai a Paris, a um consultório sofisticado, e recebe a notícia de que, desde a avaliação física, engordou mais quatro quilos. Percebe que terá de dar conta da situação por ele mesmo, já que o Dr. Dubosc não é adepto de tratamentos com remédios para emagrecer. O médico lhe recomenda que anote rigorosamente tudo o que comer em uma caderneta, para que ele perceba seus hábitos mais objetivamente e que depois possa discuti-los com o médico. Para iniciar o regime, ele se dá o presente de, dias antes, comer muito. Os rápidos resultados da dieta o animam, mesmo que os colegas da escola o ridicularizem ao vê-lo fazendo regime. A solidariedade de Claire, uma das poucas a apoiá-lo, encoraja-o ainda mais. Vencer, a cada dia, a sensação de fome traz a Benjamin um sentimento de conquista: a luta tem um inimigo e é gostoso sair vitorioso. Mas, ao final da terceira semana, tudo se complica, pois a sensação de fome o abandona (afinal, ele reeducara seus hábitos alimentares) e ele não precisa mais vencê-la. Instala-se, então, o tédio. Num final de semana com o pai e Sophie, permite-se voltar às sobremesas, depois aos fartos cafés da manhã, depois, depois... Recomeça a mentir para si mesmo: deixa de anotar o que comeu, deixa de se pesar, recomeça com os chocolates. Ao ganhar um quilo em poucos dias, o sentimento de derrota o deprime. Mas um telefonema de Claire o anima: será que ela também gosta dele? Ao ir até a casa da garota e ser tão bem recebido, ao trocarem olhares, a esperança se abre. Feriados, porém, trazem a separação dos amigos. Benjamin vai passar alguns dias com o pai e Sophie na casa da avó. A avó faz muitos doces e comidas e não colabora em nada para a dieta do neto. Só quando seu tio Alain chega e defende Benjamin, acusando a mãe de empanturrá-lo, é que o problema explode. Tio Alain, alterado, conta a última que a obesidade lhe causou: seu pedido de empréstimo imobiliário fora recusado porque o banco considerava arriscado realizar negócios com obesos, tratados como doentes. Uma vida de peso Mikaël Ollivier Diante da problemática situação, a saída do garoto é comer mais. Ao voltar ao médico, que constata o aumento de peso e as mentiras de Ben na caderneta, o menino quase desiste de vez. Nunca entenderão a dificuldade de um obeso? Mas um cartão-postal de Claire o anima novamente: ela parece gostar mesmo dele. Ao rever a amiga, porém, decepciona-se. Ela parece fugir dele... E então Ben come ainda mais. E resolve agir: compra flores vermelhas para a garota e manda entregá-las, com uma declaração de amor arrebatadora. Arrepende-se logo... Então, come para ficar mais calmo! No dia seguinte, recebe uma carta de Claire, em que ela lhe diz que é apenas sua amiga. A infelicidade de Ben é total. O fundo do poço e o novo Ben No capítulo que abre o terceiro trimestre do relato de Ben, nós o vemos diante de um psicólogo. Ele conta como os problemas se acumularam depois da carta de Claire. Se ele já tivera infelicidades, nada se comparava ao que vivia então: empanturrava-se, não conseguia mais estudar, faltava às provas e depois às aulas, falsificava a assinatura da mãe nos bilhetes da escola, sentia-se culpado, tornava-se agressivo e comia e comia mais. Até com Éric brigara. Quando a mãe lhe conta que foi chamada ao colégio, Ben lembra-se da fala de seu tio Alain: quando pensamos que chegamos ao ponto máximo, descobrimos que sempre é possível engordar mais. Com seus 98 quilos e 700 gramas, Ben vê Claire com outro garoto. Isso culmina com o processo que o leva à sala do psicólogo. O profissional lhe diz algo que o toca profundamente: se o garoto tem razão em considerar que, no futuro, os problemas parecerão banais, o que está fazendo para garantir tal futuro? Benjamin começa, então, a perceber que está se separando definitivamente da infância, para entrar no mundo adulto. Numa viagem, conta a Sophie sobre a declaração de amor e as flores para Claire. Ela o ajuda, mostrando como Ben exagerou. Aconselha-o a refazer as relações com a menina, tornando-se seu amigo. Por iniciativa de Éric, também retoma a amizade. Ben começa a viver uma adolescência sem medo dos outros, começa a conhecer a si mesmo: organiza um jantar em sua casa, vai a festas. Numa delas, ele e Claire se beijam. Será verdade que, como Ben afirma, “o único regime que funciona é o amor”? Uma vida de peso Mikaël Ollivier Dialogando com os alunos Antes da leitura Uma vida de peso se concentra nas dificuldades enfrentadas por um adolescente diagnosticado como obeso. O tema é relevante pelo fato de os distúrbios alimentares estarem presentes no cotidiano de nossa época, principalmente casos de bulimia, anorexia e, também, obesidade mórbida, embora muitas vezes não sejam tratados com a seriedade – e sinceridade – que deveriam. Para introduzir o interesse pelo tema, sem ferir suscetibilidades, pode-se iniciar o trabalho deste livro em conjunto com o professor de biologia (ou ciências, no caso de alunos do ensino fundamental). A proposta de pesquisar os distúrbios alimentares freqüentes na sociedade contemporânea – sem que inicialmente seja preciso citar os nomes das doenças – certamente levará ao interesse pela questão. A pesquisa pode indicar que distúrbios são esses e também investigar suas causas físicas, psicológicas e culturais. Outra possibilidade é propor uma pesquisa sobre os hábitos alimentares dos jovens na sociedade contemporânea, começando pelos próprios alunos: que tipo de comida eles gostam de comer? Quantas calorias ingerem por dia? Quanto seria o ideal? Durante a leitura Muitas das referências de Benjamin Poiret estão inteiramente ligadas à vida na França: lugares, comidas, séries escolares, atividades culturais. Por isso, seria interessante realizar um trabalho interdisciplinar com geografia e história, que permita aos leitores compreender algumas dessas referências e se interessar por aprofundar seu conhecimento sobre o assunto. Como Benjamin passa férias na Bretanha, região em que ainda são fortes as tradições celtas, e como ele é leitor da série Asterix, seria interessante que, nas aulas de artes e de história, se trabalhasse algum dos volumes da série, estudando a cultura celta, a invasão romana e a persistência de alguns traços dessa cultura na culinária, por exemplo. O resultado desse trabalho – além de apresentar aos alunos uma série divertidíssima – poderia ser o de criar um enredo similar ao de Asterix, em que Ben aparecesse como um dos personagens da história. Depois da leitura Ao final da leitura, é importante criar um ambiente de livre discussão, para que os alunos emitam suas opiniões. Nesse caso, o professor pode orientar mais decisivamente a formulação das Uma vida de peso Mikaël Ollivier primeiras impressões sobre o livro, pedindo à classe que se manifeste sobre estas questões: • O livro pelo livro: os alunos gostaram da narrativa? Por quê? Refletir sobre a justificativa das respostas. Ressaltar as qualidades literárias da obra, a sensibilidade e as emoções que a leitura provocou em cada um. • O que o livro ensinou sobre a obesidade e suas causas? • As dificuldades de Ben com relação à sociabilidade são justificáveis? • Os padrões de beleza são históricos? Quais são os que pre- dominam na contemporaneidade e que efeito produzem em cada um de nós? As questões permitem que o tema seja trabalhado objetivamente, para que os alunos percebam que a mídia estimula um padrão de beleza que rege as relações entre as pessoas. Além disso, pode-se pensar em realidades como as de pessoas que estão acima do que seria seu peso ideal e vivem muito bem com isso (saudavelmente, inclusive) e outras que têm sua vida afetada negativamente pela obsessão por regimes. Elaboração do guia Ivone Daré Rabello, professora-doutora do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP-SP; preparação Rodrigo Villela; revisão Márcia Menin e Carla Mello Moreira