Entrevista com Edgard Porto (Transcrição) (Tempo Total – 26:33) Edgard: A idéia [desta entrevista] é a gente comentar dez características da globalização e seus reflexos em Salvador. Meu nome é Edgard Porto, e este evento fez parte de uma nossa participação na mesa redonda Salvador Espaço Urbano, Novos Processos de Globalização no simpósio do Institut Goeth, com o tema “Salvador-Hamburgo, passado e presente da globalização”, realizado em novembro de 2009, em Salvador. O primeiro aspecto que deve ser considerado como uma característica importante é a presença hoje de movimento articulado da economia e seus espaços numa escala mundial. Ou seja, quando você repartir o processo de produção, você flexibilizou o processo de produção, você ampliou a possibilidade de que parte de mercadorias pudessem ser produzidas em distintos lugares do planeta; isso fez com que houvesse necessidade de um processo bastante articulado da produção com a circulação, numa escala mundial, e isso tem tido reflexos importantes na estruturação da produção, na estruturação de regiões e cidades e nas articulações interregionais. Eu diria que, na estruturação produtiva, nós passamos de um modelo fordista, que os estudiosos pensam e comentam (e há um consenso muito grande sobre isso) pra uma produção mais flexível. Ou seja, é uma produção que ocorre de forma menos centralizada - espacialmente e setorialmente. Ela ocorre a partir de terceirização de processos; ela ocorre não mais dividindo muito claramente o momento da produção com o momento da circulação da mercadoria. E as coisas parecem acontecer como se o tempo ou espaço da produção e da circulação acontecesse ao mesmo tempo. Ou seja, é como se uma mercadoria, o produto final, pudesse ir acontecendo no próprio processo de circulação, em dados momentos, em dados espaços e territórios da circulação. Do ponto de vista de estrutura de regiões e cidades, há uma alteração muito grande. As cidades passaram a ser mais heterogêneas, porque parte de cada uma dessas cidades, parte de cada uma dessas regiões, pode ter uma inserção diferenciada nesse processo numa escala mundial; e parte dela pode crescer mais, ser uma articulação com outras partes de outras cidades, se expandir e ficar de forma mais diferenciada (ou aparentemente de forma mais diferenciada) na sua estrutura dentro da grande metrópole, por exemplo. 1 Isso tem uma repercussão, um resultado lógico, que é o fato de que os fluxos internos de uma metrópole, por exemplo, são fluxos que passam a ser menos convergentes internamente, ou seja, tem partes da cidade que tem maior possibilidade com outras partes de outras cidades muito distante, muito mais do que com partes de dentro da própria cidade. Isso reflete no processo de planejamento e faz com que seja muito difícil, hoje, você controlar esse processo numa escala metropolitana, porque você depende de interação, de compreensões e de articulações econômicas de uma metrópole ou parte dessas metrópoles com outras partes do mundo. Isso parece ter acontecido em Salvador desde a década de 70, e aí precisa de uma explicação. Os ciclos de desenvolvimento, eles se entrelaçam, eles vão começando diferentemente em várias partes do planeta; principalmente esse processo de globalização e o que parece ter acontecido em Salvador, na década de 70 e 80, já pode ter sido reflexo desse processo de globalização em função dos setores da economia que se instalaram aqui nessa região serem setores globalizados. Então, nós já temos aqui, desde a década de 70 e 80, sinais de alteração de metrópole, tal como aconteceram em outras metrópoles de grande porte e de outros países. Os sinais a que eu me refiro são aqueles que fizeram com que a metrópole se descentralizasse de forma muito intensa, criasse algumas áreas com grande possibilidade de desenvolvimento comercial; em contraposição com áreas de periferia com menor incidência de mão-de-obra mais qualificada, de menor incidência de infra-estrutura; e isso construiu uma metrópole que tem característica muito próxima das metrópoles que hoje são consideradas metrópoles globalizadas. Ou seja, são metrópoles diferenciadas internamente. O segundo ponto que está relacionado a esse primeiro, e passa a ser quase que um detalhamento, é o importante fato de as indústrias se descentralizarem, principalmente as indústrias de transformação mais intensiva em mão-de-obra e os serviços mais intensivos em conhecimento se reconcentrarem. O que significa dizer isso pra uma cidade como Salvador? Significa dizer que as indústrias, com essas características de intensividade em mão-de-obra, elas saem dos países, das metrópoles, das proximidades das metrópoles mais importantes, e tenha de avim pra América Latina, pra parte da Ásia e pra África, e Salvador recebe alguma dessas indústrias. Em compensação, os serviços intensivos em conhecimento, eles estão reagrupados nas maiores metrópoles do mundo, a exemplo de Londres, Paris, e cidades como 2 São Paulo. Mas esta reconcentração de serviço, ela tem uma certa hierarquia. Da mesma forma que Salvador passou a reconcentrar alguns serviços de unidades industriais e de serviços do interior do estado, São Paulo absorveu parte desse serviço que antes era localizado em Salvador e assim sucessivamente sendo as grandes cidades, as grandes metrópoles mundiais, aquelas que têm a maior capacidade de absorção desse serviço. O outro aspecto que devemos considerar (que seria o terceiro) é que, por decorrência disso, as metrópoles, as grandes metrópoles e as cidades de uma maneira geral, comandam o processo via esse serviço. Ou seja, mais do que tudo, mais do que antes, do que o processo anterior, as cidades hoje têm uma capacidade muito grande de absorver esse serviço ligado a conhecimento. A tendência de urbanização no mundo é quase que homogênea, com maior aceleração em alguns locais e menos em outro, mas essa concentração de serviço é explicada pela presença, nas grandes metrópoles, de mão-de-obra muito qualificada, mão-de-obra que tem uma compreensão dos processos em escala mundial, que orientam a execução de estratégias, tem capacidade de comandar os processos administrativos financeiros numa escala global e podem se servir de informações on-line e também de dar resposta a propostas on-line para todos os cantos do mundo. Então, esse é um reforço (diferentemente da pendência do ciclo anterior) a que as cidades foram induzidas, depois da revolução industrial, principalmente pela presença do setor industrial nas proximidades da sua cidade, que fez com que os processos migratórios aumentassem de forma intensiva e que isso ocorreu até o início dessa nova fase. Aqui na Bahia, na metrópole baiana, ou digamos nas metrópoles brasileiras, nós podemos ter um resultado disso a partir da identificação de que o rendimento dos ocupados no trabalho de serviço, por exemplo, na região de Salvador, na região de São Paulo, na região de Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife, todos os rendimentos aumentaram no setor de serviço, e eles reduziram relativamente no setor industrial. No caso do PIB municipal de Salvador, também é possível a gente encontrar indicadores que mostram evolução nessa área, quando entre 2002 e 2006, o setor de serviço teve uma participação crescente, passando de 80,59% do PIB municipal, pra 85,27% no período. Um outro ponto, o quarto ponto que nós achamos importante, é o reforço nas funções de redes de cidades [0:12:10.7]. Tudo isso passa a ser acrescentado, essas necessidades de relação dessas redes de cidades, mas não são as cidades inteiras que relacionam: são modos de cada cidade que fazem com que essas articulações comerciais, as articulações de serviço, as articulações de informação e de conhecimento, elas sejam necessária para controlar, pra administrar e induzir esse processo de produção e de circulação quase que ao mesmo tempo em que acontece, numa escala global. 3 Sobre esse aspecto, nós podemos compreender também o trabalho realizado recentemente pra cinco metrópoles brasileiras. Há uma hierarquia muito clara dessa rede (essa rede não é homogênea), e se nós utilizarmos os dados desses trabalhos pra cinco regiões no Brasil, nós podemos ver que dentro do Brasil tem uma rede de metrópole; mas essa rede tem uma hierarquia muito clara. São Paulo concentra a maioria dos fluxos, concentra esses serviços mais qualificados, tem uma rede mais ampla; e, em segundo lugar, podem ser identificadas as metrópoles como Belo Horizonte e Porto Alegre; e, em terceiro lugar, as metrópoles nordestinas, ou seja, Salvador e Recife. Cada conjunto desse, hierarquizado, traz funções e traz repercussões diferenciadas em função do seu papel regional. Então, isso explica, por exemplo, a presença mais forte de camadas de baixa renda nas metrópoles nordestinas em função desse complexo de negócios, essa rede ser mais limitada, essa rede ser de menor porte, isso ajudado evidentemente pelo passivo, pela histórica ocupação da pobreza na região do nordeste do Brasil nos últimos dois séculos. O ponto cinco, podemos também considerar que são os serviços se localizarem de forma diferenciada do ponto de vista espacial. Também os serviços não podem ser considerados para todas as metrópoles em que existem diferenciações. Ou seja, os estudos mostram que os serviços ligados à área de produção tendem a concentrar, e os serviços distributivos, aqueles ligados a áreas mais de circulação, tendem a descentralizar no Brasil. Os serviços produtivos, evidentemente por estarem mais próximos das áreas de maior indicadores de produção. E distribuição, a necessidade de você obter uma logística pra todas as grandes metrópoles brasileiras. Então, esses serviços ligados à produção, eles são concentrados nas metrópoles mais importantes, no caso São Paulo, Belo Horizonte e Rio Grande do Sul; e, em menor quantidade, na região nordestina. E os serviços sociais e os serviços públicos são aqueles que têm tido um maior grau de descentralização para todas as metrópoles brasileiras, mas com maior ênfase pras metrópoles do nordeste, centro-oeste e norte do Brasil. Portanto, é uma presença do estado relativamente maior no caso de Salvador e uma economia menor, relativamente a outras metrópoles brasileiras. No ponto seis, podemos considerar como aquele que diz que as metrópoles em cidades se fragmentam e se associam espacialmente, criando a sensação de regiões e cidades ou cidades regiões. Esse aspecto, ele diz respeito ao fato de que (como nós salientamos antes) partes das cidades assume maior importância, assume maior capacidade de inserção numa escala global. Essas partes, elas passam a ser diferenciadas e têm maior capacidade de polarização interna. Isso faz com que cada uma delas tenha um papel diferente, e elas assumam uma localização espacial distinta. Não há uma homogeneidade das metrópoles das cidades, elas passam a criar espaços que vão crescendo, mas de forma parcialmente descontínua. Então, é possível você ter 4 uma metrópole que dê uma sensação de um conjunto de cidades agrupadas, como se fosse uma conturbação de cidades. Esse é um caráter do ponto de vista de estrutura da metrópole, que tem sido sentida por estudiosos, principalmente na maioria das cidades ibero-americanas. O item sete também é um detalhamento de tudo isso que nós estamos falando, que é o fato de que as metrópoles se tornam menos reconhecíveis. Ou seja, a pergunta é: “Até onde vai uma metrópole?” Isso está relacionado com o que comentamos antes, ou seja, a esse sentimento de um crescimento com vazios, um crescimento descontínuo. A facilidade de meios de comunicação, a internet, a informática, os meios de transporte mais avançados; tudo isso faz com que haja uma possibilidade de deslocamento espacial de atividades que são unidas por esses meios, pela virtualidade, e unidas de forma on-line. E isso dá uma dificuldade muito grande de você dizer onde começa e onde termina uma metrópole. No caso de Salvador, é muito claro esse processo, e nós podemos perguntar se a Praia do Forte, por exemplo, está dentro da metrópole. Ou não está? Se Feira de Santana já pode ser considerada uma parte de um bi-pólo metropolitano. Se Candeias... Enfim, quais as partes dessa região que constituem uma metrópole. Isso cria uma dificuldade muito grande, e essa dificuldade traz repercussões importantes pro processo de planejamento, porque eles não possibilitam uma articulação política adequada para que você pense o conjunto da metrópole. O ponto oito se refere ao fato de que as metrópoles que são policentros economicamente, com vastas manchas de pobreza e ilhas de desenvolvimento. Tudo está ligado a alguns pontos que comentamos antes, ou seja, está ligado ao fato de alguns espaços metropolitanos terem maior inserção internacional e de outros espaços periféricos, principalmente serem marginalizados no processo de inserção a essa globalização em função das características da mão-de-obra, da qualificação da mão-de-obra e do fato de que o próprio capitalismo cria diferenciações sociais, ele cria diferenciações espaciais, não é possível absorver o conjunto. Essa diferenciação cria ilhas de desenvolvimento que a gente pode perceber claramente em Salvador, tanto do ponto de vista habitacional, com os conjuntos de novas habitações de nova renda média alta, com centenas ao longo da Paralela, em conjunto fechado acontecendo na proximidade do Horto, do Itaigara; investimentos novos que são tratados quase como um bairro inteiro, como Bela Vista, na Rótula do Abacaxi, que tem escola, trabalho e habitação no mesmo lugar. E isso também convivendo com vastas áreas de pobreza, com péssimas condições de vida ao longo das zonas suburbanas e do miolo da cidade. Essas são cidades, metrópoles diferenciadas e que têm tráfegos comuns nas metrópoles de toda região da América do Sul e América Central. Mas isso já acontece, está começando também a acontecer de forma mais intensa nos países desenvolvidos, nos Estados Unidos e na Europa. 5 No item nove, nós podemos comentar o fato de que o chassi é concentrado economicamente e disperso espacialmente. O que significa isso? O chassi é uma expressão, é um conceito desenvolvido por mim, pelo colega Admilson Carvalho. Nós entendemos que, na sociedade capitalista, existem espaços e setores que estão mais carregados de fluxos, que são mais carregados de investimentos de capital, que são mais carregados de mercadoria; estão, mais ou menos, carregados de pessoas com alta capacidade de interferir no processo. O que se quer dizer com isso é que, nesta nova fase, esse chassi é mais enxuto espacialmente, acontece mais concentrado espacialmente, mais verticalizado espacialmente; mas ele também acontece disperso espacialmente. Ele pode acontecer, digamos, tal como nós comentamos antes, ele pode acontecer criando a sensação de um conjunto de chassi, um conjunto de cidade. E, como último item, que é uma repercussão de tudo isso que a gente comentou antes, o item dez, e era importante a gente comentar sobre a complexidade na formulação de política metropolitana, de uma visão nacional, mundial e de localidade estratégia. Com essa complexidade do processo produtivo, com essa demanda diferenciada por espaço dentro de uma mesma metrópole, com essa diferenciação interna com zonas de grande capacidade de desenvolvimento, ilhas, fantasia metropolitana, com grandes manchas de pobreza, com o fato de que tivemos recentemente um processo também de privatização dos serviços públicos, com o fato de que a estrutura política não acompanha esses processos, ou seja; a votação, a representação política, não tem recorte espacial interno, há uma grande dificuldade de formulação para o espaço metropolitano. Ali, mais um aspecto é a própria indefinição de onde começa e de onde termina a metrópole, quem participa dessa metrópole. Todo esse conjunto de fatores faz com que a administração numa escala metropolitana seja também despedaçada, não seja vista no seu conjunto. Ela é fragmentada, e essa fragmentação favorece os grandes negócios; ela favorece que o processo continue atuando pra que o chassi seja mais concentrado e disperso; concentrado economicamente e disperso espacialmente, pra que essas cidades sejam fragmentadas, pra que haja uma diferenciação significativa do ponto de vista social. [Fim] 6