Kay Rala Xanana Gusmão
Amanhã em Timor Lorosa’e
A VIDA ESTÁ CHEIA DE CIRCUNSTÂNCIAS, esperadas, desesperadas às vezes e mesmo inesperadas, que podem tocar profundamente nas pessoas. Sejam puros acasos, sejam
imprevistos, fatalidades ou como se queira chamar, existe também um factor de
sortilégio que cada ser humano recebe como experiência, mesmo nas durezas do
sobreviver.
Hoje, moro em Balibar, produto ocasional de uma dessas encomendas prazenteiras da sorte, após dois anos à procura de um tecto que me acolhesse a mim e à
família, sempre na tentativa de evitar mais problemas, aos que eu entendia por obrigação assumir. E Balibar tem um significado especial para mim.
E, daqui, desfruta-se uma visão sobre Díli. Em Díli, acompanhava-me sempre
uma sensação difícil, a de pequenez humana em confronto com a grandiosidade da
intervenção que se está a pedir. Daqui, ganha-se uma sensação menos dogmática e
adquire-se um estado de espírito diferente, porque permite uma liberdade ao pensamento e se aceitam divagações. A sensação de que se está fora do processo, porque
se está fora de Díli, porque se está a ver Díli de fora. Dá para chamar de volta as
memórias, dá para pensar mais para dentro e dá para olhar largamente até onde o
escurecer de azul-cinzento permite ver as franjas das colinas sobranceiras à capital.
Foi de Balibar que, em Dezembro de 1975, assisti aos primeiros dias da invasão
e ao início do penoso recuo das populações para as montanhas, debaixo de intensos bombardeamentos. Foi também aqui em Balibar que me refugiei nas minhas
andanças de clandestinidade em 1991 e 1992.
Díli ´59, Díli ´75, Díli ´92, Díli ´99, Díli 2001 passam na minha retina, numa
longa-metragem histórica.
Daqui, de Balibar, o mar tem outro tamanho e Ataúro é maior e mais belo, colocando-se entre o chão e o céu.
Ataúro aparece fascinante, no alvorecer límpido de cada manhã, mas afunda-se
na neblina de cada entardecer, e que só raios nocturnos do tempo das chuvas projectam suas curvas montanhosas, em cujas encostas a população vive o seu drama
diário. Até quando, é a pergunta que se desenha nas nuvens brancas que circundam
os seus picos.
Negócios Estrangeiros . N.º 3 Fevereiro de 2002
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E ponho-me a mirá-lo, na sua solidão. E o tempo nega-se a andar, por instantes... E vejo pontinhos brancos a sobressaírem do azul que marca a distância da
vista até Ataúro. Um Resort Island, à qual um estatuto especial e uma autonomia de
gestão proporcionaram umas condições belíssimas de turismo para prestar homenagem à alva areia das suas praias do norte. Veleiros de todas as cores, saídos da baía
de Díli, rasgam o mar em sinuosidades acrobáticas fazendo sulcos graciosos em direcção à ilha das lagostas.
A população da ilha aumentou, a taxa de analfabetismo é quase inexistente, reduzida à velha geração. A malária foi proibida de entrar nas casas, alinhadas em lindos bairros com jardins e escolas. No hospital local, a tuberculose foi reduzida, a
mortalidade infantil superada. Fechei os olhos para buscar a noite. Pirilampos dançavam realçando a estrutura geográfica da ilha e lembrei-me de ter visto coisa semelhante, vinte anos atrás, em 2001. Ah!, eram as luzes que ornavam os mastros da
Central, o floating hotel tailandês, atracado em Díli, e que não cumpriu o compromisso de preservar o meio ambiente e de fazer um jardim na praia à sua frente.
Abri os olhos... Afinal a Central continua ali, sujando o mar... à frente de uma
cidade prenhe de mosquitos, desalinhada e sem ventilação, com sórdidas ruelas de
porcos e galinhas, jardins guardados por vacas a acenar aos carros de segunda-mão,
que dão movimento ao barulho das estreitas ruas, onde se situam mercados e supermercados de artigos caríssimos, rotulados com USDollar. Mas isso não era há vinte
anos atrás? O que é que eu estou a ver de diferente?
A primeira boa impressão foi o reparar que havia uma meia-dúzia de grandes
parques verdes, quais bolas de oxigénio, onde as pessoas, em famílias, iam buscar
descanso ao espírito. A segunda alegria foi ver bairros alinhados e limpos, cheios de
bonitos jardins-de-infância, numa cidade bem ordenada em centros de comércio,
sociais, de governo, científicos e culturais. Praias agradáveis e atraentes, e dois bons
complexos desportivos onde a juventude aprende a moldar o carácter e a competir
com seriedade.
Mas a maior impressão foi a pequenez da população de Díli, uma população
trabalhadeira e solidária, como resultado da expansão de outras cidades do interior,
pelo esforço equilibrado de industrialização e pela colocação estratégica de institutos superiores pelo país.
É este o Díli de 2020? E porque não? Com colinas verdes a convidar ao retiro e
ao amor à natureza. Pensar assim, é evitar a ilusão de uma segunda Singapura e pensar assim é combinar todas as potencialidades, naturais e humanas, com o objecti-
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vo único e simples de servir o Homem, a pessoa, o povo timorense, engrandecendo a Pátria, conquistada com o sangue de centenas de milhares de seus filhos.
O passado já foi passado, e desde que algumas vezes se tenha que rebuscá-lo,
isso deve ser apenas para se continuar a ter na mente a necessidade de honrá-lo, a
necessidade de sempre reconhecer que não foi uma pessoa, nem um só grupo que
fez que a história fosse como foi, a fim de se valorizar condignamente os sacrifícios
por que todos passaram até à verdadeira solução do problema em 30 de Agosto de
1999.
Até aqui, o processo de construção de um Estado democrático tem, mais ou
menos, correspondido às expectativas gerais em termos de estabilidade, tolerância e
determinação comum de contribuir de uma maneira ou de outra. O mais importante sucesso deste período de transição, lado a lado com uma missão da ONU, foi
o facto de se ter dado aos timorenses tempo suficiente para cada um reflectir, ponderar e apaziguar as mentes, permitindo assim que se encaminhasse o processo da
maneira como foi feita.
Mas não basta este grande esforço no estabelecimento das instituições que irão
assegurar as bases jurídico-políticas da soberania, como o primeiro país do novo
milénio.
Percorri o país de lés-a-lés por mais de uma vez, desde Outubro de 1999 a
Julho de 2001. Do início doloroso, em que se tinha que depender praticamente das
ajudas humanitárias, e que ultrapassava o júbilo pela vitória conquistada, à percepção realista de todo o povo do seu próprio empenho, como sempre, para sobreviver.
E as grandes preocupações do povo, em todo o lado, eram já orientadas em três
linhas mestras. Todos estavam exigindo uma atenção especial para se garantir não só
maior e melhor produtividade de bens, mas a sua circulação, um esforço especial
para uma assistência médica acessível a todos e o estabelecimento de escolas para as
suas crianças.
Foi importantíssimo para mim conhecer a capacidade do povo de ler os seus
próprios problemas. Actualíssimos, simples, com rasgos de futuro.
E é o futuro que importa, pela solução gradual e ininterrupta dos problemas do
presente. Com mais de metade da população abaixo dos vinte anos de idade e mais
de 40% abaixo dos catorze, a independência só terá valor se a soubermos cuidar
com programas dirigidos a tirar o povo da miséria em que se encontra e a orientar
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E isto tudo é para ser dirigido, desde uma sociedade civil forte e democrática à
estabilidade de uma governação profissional e transparente. Há muito que fazer, mas
há muito mais para se aprender. E o mais importante é o aprender a sermos nós mesmos!
E Timor Lorosa’e continuará a ser... o país... onde “o sol em nascendo vê primeiro”!NE
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