Uma variação no Ensino & Pesquisa em Psicopatologia Fundamental
proposta de Curso sobre Teoria das Ideologias,1
Gisálio Cerqueira Filho
- primeira crítica e comentários No segundo semestre de 2003 organizamos e dirigimos um curso optativo para alunos de
graduação da Universidade Federal Fluminense (UFF) intitulado "Teoria das Ideologias". A
ementa contemplava conceitos básicos nos campos da Teoria Política, com ênfase no
conceito de ideologia e depsicopatologia fundamental (Pierre Fédida), destacando-se a
relação entre pathos, psicopatologia, poder, cultura, violência. Os alunos foram convidados a
discutir os temas e autores abordados: a proposta do curso oferecia a possibilidade dos
estudantes experimentarem as convergências entre ciência política, história e psicanálise.
Entre os autores estrangeiros, destacamos ainda Sigmund Freud, Jacques Lacan, Pierre
Legendre, Carlo Ginzburg,2 Carl Schorske , Eugenio Raul Zaffaroni, Slavoj Zizek, Eric
Santner. Entre os brasileiros, o foco foi no pensamento do sociólogo e psicanalista Manoel
Berlinck, além daquele representado por Gizlene Neder e pelo professor responsável pelas
aulas e seminários.
Recentemente foi abordada a relação entre o geral e o fundamental (particular) na
psicopatologia fundamental.3
Nosso interesse estava também vinculado ao mapeamento de algumas psicopatologias
contemporâneas como: a vanglória de mandar (autoritarismo tomista),4 individualismo
fóbico, um recorrente pessimismo agostiniano com acento de melancolia,5 um certo mal
estar na contemporaneidade pós-moderna; depressão, insônia, síndrome medo na cidade6 e
inveja na páxis social.7
O curso foi ministrado para 42 alunos, matriculados nos cursos de Ciências Sociais e História
na UFF. Todos e todas do Grande Rio, bem distribuídos pela cidade de Niterói e Baixada
Fluminense, o interior do Estado do Rio e a cidade do Rio de Janeiro propriamente dita. O
horário oferecido foi das 18 às 20 horas, duas noites por semana, e a freqüência muito boa.
Houve ainda uma distribuição bem equilibrada por diferença de gênero, embora não tivesse
ocorrido uma tal preocupação por ocasião da matrícula. Como avaliação foram solicitados
dois tipos de trabalhos: a) um "mini-dicionário" de no máximo cinqüenta conceitos
relevantes (verbetes de livre escolha e bem desenvolvidos), para cada grupo de até três
alunos. b) uma avaliação do curso e uma auto-avaliação do desempenho do estudante
realizados em sala de aula. Ao final, se o aluno assim desejasse poderia externar sugestões
e, eventualmente, dar-se uma nota de zero a dez.
A partir de então, deixamos os dados referidos "dormindo" por cerca de três anos e
retomamos no início de 2007 a sua leitura e interpretação. Este breve ensaio sugere, pois,
uma primeira abordagem e interpretação dos dados colhidos.
Realizamos agora a análise dos dados obtidos visando à divulgação da experiência. Estamos
trabalhando atualmente com um novo grupo de alunos (cerca de 40 alunos; dos quais 37
são de ciências sociais e história, 2 de psicologia, 1 de medicina) e submetendo tais dados à
apreciação crítica. Os novos estudantes estão sendo estimulados a interagir com as
conclusões preliminares e observações realizadas em fins de 2003. Estamos apresentando os
resultados deste levantamento também para discussão no Laboratório de Psicanálise,
Psicossomática e Psicopatologia Fundamental da Universidade Federal Fluminense (LP3FUFF), bem como na Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental
(AUPPF).
VERBETES
Foram produzidos 978 verbetes, em média 42 verbetes por trabalho entregue ao professor;
para um total de 23.
Dos 23 trabalhos (“mini-dicionários”) entregues, 10 foram individuais, 7 realizados em
duplas e 6 realizados por trios de alunos.
Produzidos em 2003 pelos estudantes, estes verbetes foram abordados e estudados neste
ano de 2007 numa perspectiva renovada e sempre com acompanhamento bibliográfico e
supervisão do professor.
LISTAGEM
(em número absoluto – aqueles em número maior que 5 citações de um total de 23)
Insuficiência imunológica psíquica
Fantasia (imaginário)
Autonomia
Ideologia
Aparelhos de Estado
Simbólico
Individualismo fóbico
Individualismo possessivo
Self-service normativo
Comunidade
17
16
16
13
12
12
12
10
11
10
Realidade
Real
Alienação
Liberalismo
Ideologia do favor
Tomismo
Desejo
Sujeito-rei
Sujeito-suporte
Sintoma
Sinthomen
Representação
Estrutura social
Ilusão
Função parental
09
08
08
08
08
08
07
07
07
06
06
06
06
06
06
Fetiche
Absolutismo afetivo
Autoritarismo
Aparência
Inconsciente
Individualismo
Multiculturalismo
Revolução
Sociedade
Vulnerabilidade
Pater
06
06
05
05
05
05
05
05
05
05
05
Total
36
(relações comunitárias)
(clientelismo)
(do Estado)
(relações societárias)
(psíquica)
verbetes
Selecionados os verbetes com maior citação, produzimos uma pequena agregação e um
diagrama de interpretação (anexo) visando uma proposta teórica implícita para cursos de
Teoria das Ideologias, a partir dos trabalhos realizados.
No que concerne às avaliações individuais e às auto-avaliações podemos preliminarmente
destacar:
1-Um interesse muito grande pela interface das ciências sociais com a psicanálise e a
psicopatologia fundamental acompanhado; todavia, de enorme desconhecimento. No início
do curso houve um estranhamento que, aos poucos, foii cedendo a uma visão mais flexível
dos paradigmas nas ciências humanas e sociais.
2-Uma certa surpresa com a dinâmica do curso, uma vez que este visou sempre a inscrição
da vivência pessoal de cada um, e de toda a turma, no contexto social ampliado. Entenda-se
por contexto social ampliado as práticas e instituições que contemplam, sobretudo a família,
as relações afetivas e amorosas, a vizinhança, o bairro, a cidade, a formação social.
3-Uma das avaliações chegou a nomear de “metamorfose ambulante” a pedagogia utilizada
no curso, ressaltando haver sempre uma dose de imprevisto. Entende-se aqui por imprevisto
o fundamental da psicopatologia fundamental; aquilo que é contingente, singular e específico
na articulação com aquilo que é mais geral. Registre-se então uma permanente tensão entre
o geral e o particular na psicopatologia fundamental.
4-Uma recorrente reclamação das condições próprias para dedicação ao curso, limites de
horário, falta de tempo, etc. Parecia haver uma contradição básica entre as motivações
básicas que o curso despertava no aluno e as tradições do ensino universitário. Estas
observações implicam um repensar sobre a pedagogia universitária e a tradição do
exclusivismo tanto das aulas expositivas quanto de seminários apresentados pelos
estudantes.
É muito pedagógico um certo balanceamento das várias formas didáticas disponíveis: aulas
propriamente ditas, discussões dirigidas, trabalhos de grupo em aula, seminários, palestras
com conferencistas externos, etc.
5-A abertura do curso como uma janela para outras disciplinas e interesses, até então
desconhecidos por muitos alunos.
6-Uma acentuada ênfase nos conceitos de insuficiência imunológica psíquica e também
naqueles referidos ao self-service normativo, aosujeito-rei, individualismo (possessivo
e fóbico); ambos remetendo àvulnerabilidade psíquica.8
ANEXO
Multiculturalismo
Autonomia
Revolução
Aparência
Fetiche
Realidade
Sujeito-Rei
Sujeito-SuporteFunção
Parental
Ilusão
Alienação
Liberalismo X
Favor
Tomismo
Desejo
Inconsciente
ideologia ideologia ideologia ideologia ideologia ideologia
INSUFICIÊNCIA
R/S/I AI/AE
AI/AE
R/S/I
IMUNOLÓGICA PSIQUICA
ideologia ideologia ideologia ideologia ideologia ideologia
Comunidade
Sociedade
sintoma / sinthomen
(relações omunitárias)
(relações ocietárias)
individualismo
possessivo
Absolutismo
afetivo
Autoritarismo
selfservice normativo
Vulnerabilidade
Psíquica
Referências:
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. In: Discursos Sediciosos. Rio de
Janeiro: Revan, 2002.
_____. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 2000.
BERLINCK, Manoel Tosta. Psicopatologia Fundamental. São Paulo: Escuta, 2000.
CARDOSO, Lúcio. Salgueiro. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1935.
CERQUEIRA FILHO, Gisálio. Édipo e excesso: reflexões sobre Lei e Política. Porto Alegre:
Sérgio Fabris, 2002.
_____. Autoritarismo afetivo: a Prússia como sentimento. São Paulo: Escuta, 2005.
_____. Psicopatologia Fundamental e Cultura in II Congresso Internacional e VIII Congresso
Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, Belém, PA, Setembro de 2006.
_____. e NEDER, Gizlene. Criminologia e Poder Político: sobre Direitos, História e Ideologia.
Rio de Janeiro. Lúmen Júris. 2006.
_____, _____. Emoção e Política: (a) ventura e imaginação sociológica para o século XXI.
Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997.
_____. e NEDER, Marcelo Cerqueira. Vulnerabilidade psíquica e poder: sobre Arthur
Schnitzler. In: II Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e VIII Congresso
Brasileiro de Psicopatologia Fundamental. Belém, PA, Setembro de 2006.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
_____. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1984.
_____. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: PUC, 1979.
HULSMAN, Louk. Penas Perdidas. Rio de Janeiro: Luam, 1993.
MALAGUTTI, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003
NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 2000.
_____. Discurso jurídico e ordem burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995.
_____. Violência & Cidadania. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994.
QUINET, Antônio. Um olhar a mais: ver e ser visto na Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar,
2002.
SCHWARZ, Roberto. O sentido histórico da crueldade em Machado de Assis. São Paulo:
1987.
SERRA Carlos Henrique Aguiar. História das idéias jurídico-penais no Brasil: 1937-1964.
Niterói. UFF, Tese de doutorado, 1997.
_____. e BALDI, Cynthia. Controle, vigilância e punição: contradições e permanências na
sociedade contemporânea, In: XIII CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 29 de maio a
1 de junho de 2007, UFPE, Recife (PE).
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
__________________________
1
Agradecemos a participação à época (2003) dos estudantes de graduaçãoCarlos
Serrano, Danielle Páscoa Barbosa, Felipe Conti, Luis Fabiano de Freitas, Nathalia de
Mattos Faria, bolsistas da UFF e também aMarcelo Neder Cerqueira (IFCS) e Vinicius
Neder (ECO), ambos alunos da UFRJ e bolsistas do LCP/ UFF pela participação, em distintos
momentos, no Projeto “Vulnerabilidade Psíquica, Poder e Teoria Política”. A nossa gratidão
ainda ao mestrando Thiago Quintella de Mattos e à doutorandaAna Patrícia Thedin
Corrêa. Em 2007, todos já estão devidamente titulados e atuando no mercado de trabalho.
2
Carlo Ginzburg (Universidade de Bolonha e UCLA) esteve na “Escola de Niterói” (UFF) em
2006 e coordenou um seminário intitulado “Medo, Reverência e Terror: reler Hobbes hoje”.
3
Este último tema foi alvo de uma conferência de Manoel Tosta Berlinck realizada aos 15 de
junho de 2007 no Laboratório de Psicopatologia Fundamental, Psicanálise e Psicossomática
da UFF, Niterói., dentro dos preparativos para o III Congresso Internacional e IX Congresso
Brasileiro de Psicopatologia Fundamental a realizar-se na UFF, em Niterói, em setembro de
2008.
4
Gisálio Cerqueira Filho, “Autoritarismo Afetivo: a Prússia como sentimento”, Ed. Escuta,
São Paulo, 2005.
5
Neste tema estamos associados, Gizlene Neder, Nilo Batista, Vera Malagutti e eu próprio no
projeto integrado de pesquisa “Cultura Jurídica, Cultura Religiosa no iluminismo penal no
Brasil (1830-1940) desenvolvido no Laboratório Cidade e Poder (UFF) e no Instituto Carioca
de Criminologia (ICC).
6
Vera Malagutti, “O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história”, Editora
Revan, Rio de Janeiro, 2003
7
Gisálio Cerqueira Filho, “Édipo e excesso”, Sergio Fabris Editor, Porto Alegre, 2002,
especialmente Parte II, item 6
8
Esse conceito, de nossa autoria, vem sendo trabalhado ultimamente por Carlos Henrique
Aguiar Serra. Ver “Controle, vigilância e punição: contradições e permanências na sociedade
contempoânea”, XIII CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 29 de maio a 1 de junho
de 2007, UFPE, Recife (PE), em co-autoria com Cynthia Baldi.
Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho - Cientista político, Doutor em Ciências Humanas (USP) e Professor Titular de Sociologia. Docente e
pesquisador na “Escola de Niterói” (UFF). Publicou recentemente “Ecos de Strindberg: dor e medo na clínica psicanalítica em
extensão”, in Revista PSICOLOGIA CLÍNICA, v. 18.1, Rio de Janeiro: PUC-RIO, 2006; Ver ainda em co-autoria com Gizlene Neder,
“Criminologia e Poder Político: sobre Direitos, História e Ideologia”, Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2006 e “Idéias Jurídicas
e Autoridade na Família”, Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2007. É Membro da AUPPF e pesquisador sênior no Laboratório de Psicopatologia
Fundamental, Psicanálise e Psicossomática (LP3F) da Universidade Federal Fluminense (UFF).
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