Artigo de opinião (autor: Lúcio Neto Amado) A Geração “Bisneiros” Torna-se por vezes, suspeito, falar-se de geração, entendida como acto ou efeito de alternância devido ao facto dessa designação suscitar, quase sempre, motivos de comparação, pouco pacífico, por um lado e salutar por outro lado. Regra geral, atribui-se aos indivíduos de uma determinada geração, um tempo de vida que é suposto um Homem viver, desde o período de gestação, ao período de nascimento, passando à fase consagrada ao crescimento, até que ele “encomenda” a alma ao Criador. Estas diversas etapas da vida que correspondem, grosso modo, à infância, à adolescência, à vida adulta, ao envelhecimento e à morte, constituem a passagem efémera que cada um de nós traz para mundu sé mintxila1. Naturalmente que nem todos os indivíduos conseguem chegar aos 90 anos de idade. Atingir os 100 anos é uma proeza de muito poucos. Em princípio, tudo isso tem a ver com os princípios que regem os índices e os pressupostos que têm a ver com a esperança de vida que é suposto haver em cada país. Falar de geração pressupõe sempre a existência em todas as sociedades, sem excepção, de uma geração, escalonada como se segue, de acordo com o nosso ponto de vista [logo discutível]: - mais velha (a dos nossos avós) conotada, geralmente – (in)justamente(?) – como conservadora e retrógrada, por excelência; - outra a seguir (a dos nossos pais) vista como, disciplinadora, rígida, e altamente conservadora; - outra ainda (que é a nossa) considerada mais arejada e actual, ou seja aquela que supostamente se libertou de tabus e outros estigmas comportamentais e sociais; - finalmente a última (a dos nossos filhos e netos) que é aquela que, pretensiosamente, tenta defender valores contrários aos dos seus pais. São vanguardistas quanto baste, são irreverentes e não «curtem» quase nada daquilo que os kotas dizem. Esses kotas que fazem questão de azucrinar-lhes, constantemente a cabeça, com princípios e regras do tempo, por eles considerado do homem primitivo. O que caracteriza, em certa medida, toda essa panóplia de fases geracionais é, em princípio o conflito. Daí falar-se em conflitos de gerações, sempre que haja problemas, aparentemente, insanáveis, entre indivíduos de uma e de outra geração. Um conflito que, como tudo na vida, tem aspectos positivos e aspectos negativos, aspectos bons e aspectos menos bons. 1 Mundu sé mintxila é uma expressão da língua nacional forro, que significa, na língua portuguesa, este mundo da mentira [tradução à letra]. Em São Tomé e Príncipe, utiliza-se, habitualmente, esta expressão como forma de distinguir o mundo dos vivos, do mundo dos… mortos. O mundo dos vivos está, grosso modo, associado, à falsidade, à mentira, ao ódio e a outras formas adjectivadas do «mal». Contrariamente ao mundo desconhecido dos mortos, que é suposto ser um local, onde impera, a verdade, a pureza, e é, geralmente associado ao «paraíso». Esta é uma crença popular, antiga burilada entre a religiosidade cristã e outra(s) cultivada(s) pelos autóctones. 1 Os positivos são mais que muitos. Logo a partida, salta à vista, a orientação educacional, transmitida no seio familiar, nesses (poucos) kintés espalhados pelo designado país «real». A conduta, a moral, o sentido de responsabilidade, o civismo, a solidariedade, o respeito pelos mais velhos, etc., etc., são transmitidos e incutidos paulatinamente, aos indivíduos, como forma de um tirocínio para integrar a sociedade. A escola e o sistema educativo complementam essa aprendizagem da geração do futuro. Um futuro que – de acordo com os parâmetros estabelecidos – se quer são e equilibrado, em todos os sentidos. Ela [a escola] é acompanhada nesse percurso por um grupo de pressupostos dos quais sobressaem, o comportamento positivo de uma franja considerada de cidadãos; um grupo de indivíduos que funcionem como modelos e exemplos a seguir; a postura e o carácter, entre outros. Os aspectos negativos são atitudes que revelam comportamentos conotados como desviantes, ou seja, os indivíduos adoptam atitudes que os identificam como nãoalinhados. Assumem e vivem constantemente a “provocar” os preceitos préestabelecidos na sociedade. Esses preceitos passam, desde logo, por práticas pouco recomendáveis, como por exemplo, insultar outros cidadãos, o uso sistemático de procedimentos entendidos como anti-sociais, a adopção de comportamentos considerados de risco, como o uso excessivo do álcool e de temperos [leia-se substâncias associadas a estupefacientes]. Os aspectos bons passam pelo equilíbrio que deve existir na passagem do “testemunho” de uma geração para a outra. A da chamada velha guarda para a outra que, imediatamente se lhe segue. Os aspectos menos bons giram à volta dessa conflitualidade latente em quase todas as sociedades, em que os mais jovens entendem, que detém, supostamente, as rédeas de uma sociedade que se quer moderna, e os da velha guarda julgam que são os donos e senhores de toda a verdade. Aprende-se sempre… até morrer! Esta expressão ou frase que os nossos antepassados utilizavam no seu quotidiano espelha de facto essa aprendizagem, feita ao longo da vida do Homem. Nenhum de nós pode, em momento algum, arvorar-se no sacrossanto princípio, de que «sabemos tudo», logo, não precisamos de aprender mais nada. Indo de encontro a esse aforismo popular – aprende-se sempre… até morrer – é de salientar que numa das línguas nacionais são-tomenses, o forro, costuma-se dizer que mundu sé sa xikola, migu muê, a ka xina, bila xina, migu muê2. No kinté, esse grande e esplendoroso espaço onde continua a residir parte da nossa memória colectiva, ainda se ouve este tipo de recomendações. A resistência ainda é feita embora, timidamente, ao poder incomensurável da televisão, com as suas telenovelas demolidoras, com os seus filmes intencionais; das rádios com as suas músicas, consumidas de uma forma exacerbada por um número significativo de cidadãos. 2 Mundu sé sa xikola, migu muê, a ka xina, bila xina, migu muê. Tradução livre, este mundo em que nos encontramos é uma autêntica escola, aprendemos sempre… até morrer. 2 A geração “bisneiros” Antes de mais convém definir o que significa, na nossa opinião, a palavra “bisneiros”, introduzida no falar das gentes são-tomenses. “Bisneiros” surge como um «estrangeirismo» utilizado na nossa língua oficial que é a portuguesa. É, por conseguinte, uma expressão cuja derivação grosseira provem de uma palavra de origem inglesa, business que quer dizer “negócios”. Os “negócios” aqui são muitos e de origem bastante variado. Qual o retracto em adjectivos de um “bisneiro”? Para se fazer o retracto de um “bisneiro” temos que recorrer, eufemisticamente, a uma máquina fotográfica, das antigas, aquela que, no tempo dos nossos pais, fazia fotos a preto e branco; tinha rolos; tinha uma caixa quadrada, onde o operador escondia a cabeça, tapando-a; ela assentava num tripé como suporte e possuía um flash que mais parecia um relâmpago, etc., etc. Isto quer dizer que não é fácil retractar-se com exactidão essa “espécie” que se vê em quase todas as esquinas, becos e quarteirões das duas maiores cidades, fundadas há muitos seculos, ou seja, ainda nos tempos de antanho. Com certeza, que as coisas não são, exactamente iguais numa e noutra cidade, devido as características e funções de cada uma delas. Desde logo, convém referir que a da ilha do Príncipe não tem a mesma dimensão, nem territorial, nem social, nem económica, que a da sua congénere de São Tomé. Mas, no fundo, os problemas são muito semelhantes. Contudo, os procedimentos na cidade capital têm outras nuances, começando, desde logo, pelo poder de compra dos cidadãos, que é diferente; pelas oportunidades que são, obviamente, outras; pelos contactos que são diferentes; pela mentalidade que também difere, naturalmente de pessoa para pessoa, de grupo para grupo. A profissão “bisneiro” devia corresponder, à partida, a de empresário, seguindo à letra a tradução de business, que a língua do mais famoso dramaturgo britânico3 nos oferece. A ideia é justamente essa, tentar estabelecer um padrão dessa nova forma de estar na nossa, mais que permeável e influenciada, sociedade. A figura de “bisneiro” corresponde a de um indivíduo que, em princípio, vive de negócios, de acordo com a sua categorização no estabelecido patamar social em que se encontra inserido. A profissão de “bisneiro” é uma profissão que nas Ilhas, se pode considerar de territórios, de fronteiras, de espaços, de espírito de negócio, de preconceitos, de paisagens, de exaltação, de prazer, mas também de escolhas e de decisões. Esses territórios residem nos locais e nas zonas onde é suposto haver grande volume de negócios. Assim, pode-se entrar em territórios da construção civil, de bebidas, de motos, de táxis, de móveis, de comida, de biscateiro, etc. Os territórios podem funcionar como autênticas ilhas de negócio. 3 Esse famoso e grande dramaturgo que a Grã-Bretanha deu ao mundo chama-se William Shakespeare (1564-1616). 3 Os espaços são delimitados pela capacidade de volume de negócios que o candidato possui. O espírito de negócio retracta a visão e a capacidade que o indivíduo tem para se insinuar em negócios que não são propriamente, do seu «campeonato». O risco constante faz parte desse espírito. Os preconceitos revelam a falta de audácia por parte dos indivíduos. Mesmo que tenham traquejo para ombrear com o “tubarão” [leia-se indivíduos com maior capacidade financeira] deixam-se ficar por sentirem receios (in) justificados. A paisagem tem um pouco a ver com os locais [que podem ser, no continente africano, no Brasil ou na Europa] onde se vai adquirir os produtos de venda. A exaltação passa pela visibilidade social, que o candidato usufrui. O prazer é o maior e o principal motivação, do “bisneiro”. Ele consegue “curtir” a vida durante quase toda a semana, frequentando festas e ambientes afins, quer seja nas discotecas que proliferam por tudo quanto é canto, quer seja em ambientes improvisados. O prazer constitui, também, o calcanhar de Aquiles, da maior parte de “bisneiros” que [seguindo uma velha tradição (?) são-tomense] gastam, quase tudo aquilo, que recebe, em farras, em mulheres e em copos. As escolhas residem nas opções de negócio, pelo qual o candidato a “bisneiro” pretende enveredar. As decisões é que definem o sucesso ou o insucesso do “bisneiro”. Um passo em falso pode, em alguns casos, significar a ruína total do projecto e do volume de negócio. A categorização de “bisneiro” no patamar social Existem várias categorias de “bisneiros”, a saber: a)“Bisneiro” da classe alta. Existem na classe alta, três categorias distintas de “bisneiro” que convivem, no mercado dessa nossa cosmopolita cidade. Os discretos, os ostentadores e os sonhadores. Os discretos são “bisneiros” que parecem encarnar uma dupla personalidade na sociedade. Alguns parecem ser originários de altos cargos do aparelho de Estado e de empresas estrangeiras privadas que operam no país. Têm «prestígio» e uma postura que lhes dá alguma margem de manobra para negociarem tranquilamente sem serem incomodados. Parecem possuir um “gestor” de confiança, que funciona como testa de ferro de todo o seu tranquilo e próspero business. Isto permite-lhes funcionar sem nunca darem a cara. O seu lema principal parece residir no princípio segundo o qual, o segredo é a alma de negócios. Têm um bom nível de vida, auferindo, limpos, entre 2 mil e 4 mil euros mensais. São, no fundo, uma espécie de homens sem rosto, que conseguem, na tranquilidade do seu «lar», controlar e manipular os cordelinhos, sem sobressaltos e a seu bel-prazer. Os ostentadores, por sua vez, são “bisneiros” da classe alta, que se deslocam em carros de grande cilindrada, com vidros fumados, acelerando sempre, ignorando os buracos que existem nas maltratadas estradas, do nosso eixo rodoviário. Esses buracos 4 parecidos com crateras [do nosso contentamento] que surgem nas estradas, nas ruas e nos caminhos de todo o arquipélago, não os assustam. Ele cria, involuntariamente, alguns «postos de trabalho», pondo jovens, preferencialmente do sexo masculino, a lavar e a brilhar as suas máquinas nalgumas zonas da periferia da cidade, nomeadamente no Lucumi, em Santo António e na zona, logo a seguir. O ostentador é um “bisneiro” que circula, à noite, com os máximos acesos e, utiliza, geralmente os faróis de nevoeiro para aclarar e «ver» melhor. Os outros condutores têm que fazer uma grande ginástica pericial de visão nocturna, quando se cruzam com esses conterrâneos, que vivem a democracia, a sua maneira e à dimensão da sua gloriosa máquina “voadora”. Usa roupa de marca, trajando calças de bom corte, camisa de manga punho, sapatos impecáveis. Nas discotecas «finas» e nos outros espaços de diversão, destaca-se sempre, pois faz-se notar, sem se por em bico dos pés. A opulência e a ostentação fazem parte do seu dia-a-dia. Alguns ostentam títulos como aqueles que o artista e cantor Airton Dias identifica no seu último C.D4. Os sonhadores são “bisneiros” da classe alta que vivem e convivem com o sonho de chegarem, um dia ao grande volume de negócios. Têm alguma visibilidade social, mas ninguém lhes dá crédito por falta de firmeza, de agressividade negocial. Frequentam meios «empresariais», usam telemóveis de último modelo, utilizam uma linguagem cuidada e uma agenda para impressionar. Insinuam-se, desesperadamente, mas ninguém lhes liga, importância nenhuma. São uns eternos sonhadores. b) O “bisneiro” da classe intermédia não se assume como tal. Há uma primeira versão [internacional] e uma segunda versão [mais doméstica], ou seja existem duas categorias de “bisneiro”, nessa classe. Eles têm, no entanto, uma coisa em comum, ou seja, ambos, vão fazendo pela vida, como podem. A primeira versão foge dos motoqueiros5 como o diabo da cruz. Ele considera um desprestígio andar e ser visto atrás de uma moto. O seu negócio é vender produtos, cuja origem, são por vezes desconhecidos. Têm, regra geral, «empregados», ou seja, geram, também, alguns «postos de trabalho» e são mais discretos. Alguns desses compatriotas são trabalhadores por conta de outrem – gravitam a volta da função pública, ou de empresas privadas – e fazem este expediente como forma de aumentar os seus parcos rendimentos. Procuram não navegar em “ águas profundas” [ou seja, negócios de grande dimensão] que supostamente pertence aos seus superiores hierárquicos. Procuram fugir sempre da zona tempestuosa e da conflitualidade. 4 O artista em questão faz uma crítica social ao comportamento de uma parte significativa dos nossos compatriotas, citadinos, que se arvoram e ostentam o título de doutor e de engenheiro, sem o serem. Este artista é cáustico e mordaz na abordagem que faz, não poupando esses nossos compatriotas que se fazem passar, em algumas circunstâncias, por aquilo que não são. 5 Motoqueiros são indivíduos cuja “profissão” é de moto táxi. Proliferam como cogumelos em quase todos os recantos das Ilhas. Alguns indivíduos da população, são unânimes e peremptórios a dizer que uma parte destes motoqueiros possui outras profissões, como pedreiro, marceneiro, canalizador… Isto significa, na opinião deles, que os ditos motoqueiros preferem ter uma profissão menos «pesada». Ser braçal traz, em princípio, complicações que mexem com o físico. 5 A vida não lhes corre mal. Safam-se bem, falam bem, sobretudo, quando pretendem impressionar, seja quem for. Fazem esforços para comprar um carrito que é estimado como se fosse um avião a jacto particular. Abastecem o carrito, no lusco-fusco, com a gasolina(?) vendida nesses inseguros(!) “postos” de combustível de bairro. O rádio do carro transmite a música, em altos berros, como forma de impressionar e chamar a atenção. Os da segunda versão são mais exibicionistas e, por vezes, têm a pretensão de concorrer em pés de igualdade com os “bisneiros” da classe acima da sua. Usam geralmente, ao fim de semana, camisolas «partis cornos»6, calções até aos joelhos e chinelos tipo «facilita»7, óculos escuros acima da cabeça [quer seja de noite, quer seja de dia], exibem fio de ouro grosso, mostrando os pelos do peito e trazem, um anel tipo «cachucho», igualmente de ouro. O volume do rádio dos seus carritos fazem lembrar os consertos de música feitos ao ar livre. c) O “bisneiro” da classe baixa é, de todos, o mais malabarista, o mais criativo e com o maior espírito de desenrascanço da praça. O seu modus vivendi tem como lema principal, o imediato. Pertence, provavelmente, à camada menos desfavorecida da sociedade. Grosso modo, é jovem que parece, não ter atingido, ainda, os vinte anos8 de idade e que vive de expedientes e daquilo que lhe aparece na ocasião. Todo o produto seja ele de origem duvidosa ou não, é sempre negociável. Uma parte significativa desses cidadãos costuma a ser, «clientes» assíduos das esquadras da polícia. O seu nível de escolaridade é baixíssimo e não aparenta possuir grande autoestima. Nunca beneficiou de qualquer “programa” que inclua um pacote que contemple a afectividade, seja ela no seio da “família”, da [efémera passagem] escola, no seio de “amigos”, ou outra. Possui, contrariamente às outras categorias, algum sentido de solidariedade e espírito de entre ajuda entre os seus pares9. Veste-se, normalmente, tentando imitar alguns «ídolos» que consome da televisão e alguns estrangeiros que visitam o país. Utiliza indiscriminadamente, tatuagens feitas de traços preocupantemente duvidosos. Os ténis [sapatilha] e as mochilas ostentam as etiquetas originais; usam brincos; as calças andam abaixo da cintura; o corte de cabelo, tem, por vezes uma crista e outros adereços que bebe como ninguém através da televisão e de cartazes oriundos do continente. d) O “bisneiro” silencioso é aquele que, na maior parte das vezes, quase ninguém consegue dar por ele. Movimenta-se no seio das pessoas como se de uma sombra se tratasse. Frequenta, sorrateiramente, os corredores das escolas, usando, por vezes, 6 Camisolas sem mangas do tipo, camisolas que o homem usa no interior, debaixo da camisa. Chinelos que se utilizam em São Tomé e Príncipe, no dia-a-dia por quase toda a camada populacional mais desfavorecida. Daí a designação «facilita». 8 Registe-se que “44% da população africana tem menos de 15 anos; a esperança média de vida em África é de 40 anos.” In África 21, nº. 69, Novembro de 2012. 9 Esta solidariedade parece ir de encontro à síndrome do escravo libertado, de acordo com o ponto de vista de alguns autores sociais. 7 6 uniforme de estudante, e o seu forte é sacar telemóveis, MP3, dinheiro, e bicicletas aos jovens estudantes. Anda quase sempre à caça de computadores portáteis e produtos de venda fácil. Nada, aparentemente o preocupa, a não ser a sua sobrevivência. Vive o dia-a-dia e, se necessário for, vive hora a hora. Tenta safar-se como pode. Não tem residência fixa. Vive aqui e ali… O seu verdadeiro nome, está nos segredos dos deuses e… na Cédula, quando existe. Alguns desses jovens fazem parte do «batalhão» de crianças que não são registadas à nascença. Usa frequentemente pseudónimos. Conhece, como ninguém o nome, as horas e os locais das discotecas de todo o país, quer sejam discotecas móveis, discotecas «clássicas», terraços do «sagode poeira10» e locais de festas particulares. A política e o futebol Curiosamente, estas duas categorias de “bisneiros” [enquadrados nas alíneas c) e d)] são os que aparentam ter uma postura híbrida, ou seja, não são, pasme-se, nem carne nem peixe. Poderiam ter nascidos em São Tomé e Príncipe como noutro local qualquer. Esses concidadãos aparentam, nada ter a ver com o que se passa no país real. Eles pertencem, provavelmente, à uma nova categoria de são-tomenses. Despreocupados, assumindo-se como «cidadãos do mundo», e parece não terem a mesma construção mental dos restantes habitantes, da geração do antes e pósindependência. Eles fazem parte da terceira geração dessa independência proclamada no segundo quartel do século que marcou indelevelmente, a queda do muro de Berlim11 [9 de Novembro de 1989]. A política para eles parece servir, em princípio, só para resolverem os seus problemas do imediato. Este desiderato surge sempre que existam eleições, quer sejam presidenciais, legislativas ou autárquicas, através dos inqualificáveis, fenómenos do «banho» e da «boca de urna». Fogem, aparentemente, das querelas da política e da governação. Mas, no entanto, não é bem assim. Eles estão atentos a todo o género de situações que a sociedade vai experimentando, neste desnorteado esquema geométrico da política do nosso burgo. Não se deve subestimar, em momento algum, esses indivíduos. Em momentos cruciais de eleição, os seus votos parecem desequilibrar a balança da lógica, trocando as voltas, a todo o tipo de sondagem. O sentido dos seus votos parece ser dirigido criteriosamente, de acordo com a sua «convicção» e da leitura que fazem do quotidiano da sua existência, enquanto cidadãos que mantém uma luta titânica pela sobrevivência. 10 «Sagode poeira», em vez de sacode poeira. Esta expressão é tradução do forro sagudji. Data que marca o esboroar dos regimes políticos existentes na Europa de Leste. Foi o claudicar de todo um sistema político, social e económico, consolidado a partir do pós-guerra [1939 – 1945]. 11 7 Cidadãos de corpo inteiro (?) Grande parte dos cidadãos do país, com destaque para os políticos, os governantes e uma certa elite, não sabem quem eles são, como é que pensam, nem como actuam. O futebol parece ser a sua única «religião» e o calendário dos jogos da Champions, a sua Bíblia. Pertencem ao Futebol Clube do Porto ou ao Benfica de Portugal e ao Real Madrid ou ao Barcelona, de Espanha. O Manchester United e Chelsea do campeonato inglês, também os seduzem. Consomem sem pruridos nenhuns, todos os jogos de futebol realizados, sobretudo na Europa, conhecem quase todos os jogadores e treinadores de topo, do velho continente. Com efeito, numa das megamanifestações feitas nas ruas de São Tomé, no ano de 2012, apareceu uma bandeira de grande dimensão do… Futebol Clube do Porto e uma miniatura de bandeira do Benfica. Sintomático e sem comentários! Aparentemente, essas duas bandeiras foram empunhadas por elementos pertencentes ou com fortes ligações, aos “bisneiros”. A política e o futebol parecem ter no seu “entendimento” uma relação pura de vasos comunicantes, tal como aprendemos nos tempos de Liceu, na disciplina de FísicoQuímica. O autismo, não é, contudo o seu entendimento em relação à política. Não poemos perder de vista que toda essa panóplia de cidadãos com uma tendência forte para “bisneiros” convive, tranquilamente, nestas Ilhas, onde uma parte significativa de indivíduos tem menos de 25 anos de idade. A política e a governação A política e a governação, em todo o território de São Tomé e Príncipe, ainda não conseguiram assertar o passo. Continuam a dar aos cidadãos, motivos muito fortes, de desconfiança, que levam à crispação da sociedade. Esta crispação da sociedade funciona como um fenómeno novo que acontece no país, conhecido como «microclimas». Se chove na zona do Riboque, a praia de São Pedro [que dista cerca de 400 metros do Riboque] mantém-se seca, sem uma única gota de chuva. Fenómenos da natureza, originado pela desmesurada ambição do ser humano, principal «predador» do Ambiente. Fundamentalmente, porque “(…) os decisores políticos devem conhecer não apenas os indicadores “objectivos” da vida do país, mas também a forma como os cidadãos experienciam as suas vidas, a vida da comunidade e constroem consensos sobre o que é moral e imoral, aceitável e inaceitável”12. Essa contradição, profunda parece ser um disparatado, paradoxo, que leva alguns cidadãos a discutir o «país», de dedo em riste, a partir de pressupostos que “identifica” outros cidadãos, que têm um pensar diferente, umas vezes como sendo nguê butizadu [“cristãos novos”] e outras vezes como pekadô gintxi [“ateus”]. Temos todos, quer sejamos cidadãos residentes no país, quer sejamos não residentes – agora pomposamente, apelidados de são-tomenses da Diáspora – continuar a 12 Jorge Vala, Psicólogo Social, in REVISTA (Jornal Expresso) 2012. 8 envidar esforços sérios, responsáveis, sem complexos, a fim de podermos deixar aos nossos vindouros um país, estável, com mais justiça, mais tranquilo, mais solidário, sem exclusão [principalmente dos cidadãos portadores de deficiência, dos pobres, dos idosos, das crianças] seja de quem for. 9