Cazuza, além do mito
Eloá Muniz
O filme conta a trajetória de Cazuza, um poeta inquieto, irreverente,
que através da música questionou a sociedade burguesa pós-revolução de
64, pós-anistia, e que considerava careta toda a forma de discriminação ou
preconceito. Um poeta romântico que cantou o amor não romântico.
Questionava as relações e exigia: Brasil, mostra a tua cara!
Ícone de uma geração amordaçada, gritava ao cantar a liberdade
de ser e de sentir a vida. Ninguém, em sua geração, soube entregar-se com
tanta generosidade à arte de viver e ser feliz.
Herdeiro de um país cuja cultura fora espoliada e represada pelo autoritarismo, gritou
suas angústias, seus amores e seus desejos levando uma legião de jovens ao êxtase, a busca da
felicidade pela liberação do corpo. O corpo como expressão máxima dos desejos: “eu não consigo ser de
ninguém”, respondia.
“Bom de grito” como Léo Jaime o qualificou, cantou sua poesia com alegria contagiante e
provocadora. Saber o que se quer e ir a luta, incitava. “O rock não é uma lagoa”, dizia, “é um rio correndo
para o mar”.
Cazuza foi intenso, exposto e ao mesmo tempo terno e afetivo. Seu canto influenciou uma
geração. Sua poesia exaltando o amor refletia sua concepção da vida onde acreditava havia o certo, o
errado e todo o resto. Todo o resto nutria a sua poesia.
Visceral. Exagerado. Criativo. Transgressor. Vida breve.
Deixou o legado de viver e ser feliz, incondicionalmente. Quando repreendido por Lucinha, sua
mãe, dizia “sou seu filho único, única perfeição”. Sobre as mulheres em geral falava, “as mães têm que
parir os filhos duas vezes, a primeira quando a gente nasce e a segunda quando a gente cresce”.
Com Lucinha foi diferente. Ela pariu Cazuza pela terceira vez quando fundou a Sociedade Viva
Cazuza, e, depois, quando gestou com a escritora e jornalista Regina Echeverria o livro Só as mães são
felizes. Esta obra deu origem ao filme biográfico: nasceu o mito.
A direção ética e primorosa de Sandra Werneck tornou o filme uma das obras mais importantes
desta retomada do cinema brasileiro. Realizou um trabalho de natureza biográfica, com personagens da
história recente da cultura nacional e que estão vivos.
Sandra contou a história sendo fiel ao comportamento e aos preceitos de Cazuza, sem contudo,
deixar de ter cumplicidade às memórias afetivas de Lucinha. Transitou pelos caminhos belamente,
recriando cada cena da trajetória do biografado sem ferir a ética, respeitando cada uma das personagens,
pessoas que tanto o amaram em vida.
Realizar uma película representando uma geração de jovens que se drogava e que pertencia
ao underground da cultura não é uma tarefa fácil. Irreverentes, faziam desse comportamento sua luta.
Queriam chamar a atenção e serem ouvidos.
Acredito que a grandeza desse filme resida na fidelidade e cumplicidade entre as quatro mulheres
que criaram esta história. Lucinha por ter tido que parir seu filho pela terceira vez, mitificando-o. Regina por
ter transformado suas confissões em um belo livro. Sandra por ter realizado uma obra poética com
imagens em movimento. E Marieta Severo pela coragem e o talento ao representar icônicamente uma
mulher - Lucinha - que está viva, ativa e conhecida no Brasil inteiro.
O olhar feminino dessas quatro mulheres sobre a história da sociedade contemporânea mostra
como é possível re-significar aquilo que está posto, sem perder as características éticas, emocionais e
sem preconceitos.
Como Cazuza, a minha geração perdeu seus ídolos de overdose, mas a vida não pára, e a
reconstrução da sociedade da diversidade e do respeito pelo outro continua. Precisamos ainda dizer “que
te amo, te ganhar ou perder, sem engano”, cantava Cazuza.
Cazuza, além do mito, Análise discursiva sobre o filme Cazuza de Sandra Werneck, publicado no Jornal Mulher, Nº 38, p. 16,
junho/2004, Porto Alegre, RS; www.coletiva.net.com.br , (newsletter), em 03/08/2004, Porto Alegre, RS;
www.aplateiaonline.com.br, em 03/08/2004, Porto Alegre, RS; Jornal do Comércio, p. 4, em 05/08/2004.
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