1 Articulando Gênero e Geração aos Estudos de Saúde e Sexualidade. GT14 Maria Ignez Costa Moreira PUC Minas Palavras-chave: Gênero – Geração – Gravidez. Jovens Avós e Mães Adolescentes Os altos índices de gravidez entre mulheres adolescentes no Brasil nas últimas décadas têm preocupado os profissionais de saúde, de educação e de assistência, bem como, os pais destes jovens. A compreensão desta questão tem desafiado inúmeros pesquisadores, neste artigo serão tratados os sentidos construídos para a gravidez entre adolescentes ao longo de gerações de mulheres a partir das categorias analíticas de geração e a de gênero. Para Attias-Donfut (1998) as transformações dos legados geracionais são solidárias às dos papéis de gênero. A história da família mostra que muitas mudanças foram construídas e compartilhadas coletivamente ao longo do tempo tais como os lugares sociais ocupados pelas mulheres, suas relações com o mundo público do trabalho, as concepções sobre a maternidade e a sexualidade feminina estas mudanças tornaram-se legados passados de geração em geração. Cada geração de mulheres recebeu, interpretou e resignificou tais legados. Além deste ponto de convergência apontado por Attias-Donfut (1988), os conceitos de geração e de gênero comportam um aspecto relacional. Do ponto de vista do primeiro uma geração produz a outra. E esse movimento entre as gerações é dialético, no sentido de que, para afirmar-se, uma geração nega a antecedente e ao mesmo tempo a perpetua. E ainda, se examinarmos cada geração, internamente, veremos que, por não ser monolítica, ela comporta ações e reações; invenções e permanências em um movimento contínuo. Quanto ao conceito gênero a produção teórico-metodológica contemporânea tem enfatizado seu aspecto relacional. Gênero trata das pautas normativas para o comportamento de homens e mulheres e esse comportamento é relacional: não se pode pensar em um dos termos dessa relação sem pensar o outro. Além disto, é importante assinalar que as pautas de gênero masculino e feminino não são bipolares, mas que antes cada um dos gêneros é múltiplo e flexível. Os estudos mais recentes têm apontado sempre no plural as “masculinidades” e as “feminilidades”. O conceito de gênero diz respeito, ainda, às relações de poder desiguais, portanto, de uma ordem de dominação do gênero masculino sobre o gênero feminino, constitutiva da própria ordem social. A superação desta ordem de dominação não está posta na eliminação de um dos termos, mas na transformação de cada um deles. 2 A gravidez de mulheres adolescentes na sociedade contemporânea é uma experiência cotidiana que revela que os legados geracionais sobre a maternidade e o lugar social das mulheres são transmitidos de geração em geração, e que suportam interpretações múltiplas que são, em parte transformados, e em parte conservados. Estes processos alteram os processos de construção das identidades de gênero. Attias-Donfut, (1991; 1998) no seu trabalho de revisão da literatura que trata das teorias de geração, cita Ferrari, G. (1874). Italiano radicado na França, G. Ferrari admite que uma geração dura mais ou menos trinta anos. Esse seria o período de tempo necessário para a afirmação das mudanças, não só políticas, mas também filosóficas, científicas, literárias, artísticas, que se desenvolvem em um mesmo momento histórico. G. Ferrari defende a proposição de que é preciso um tempo de quatro gerações para avaliar o processo e o grau de profundidade das mudanças sociais. Ele considera que a primeira geração é a dos precursores, seguida de uma geração revolucionária, que contesta a primeira; esta é sucedida de outra, reacionária, que promove uma certa volta aos valores da primeira geração e, por outro lado, esforça-se por conservar os valores estabelecidos, o que significa uma resistência à mudança tanto pela tentativa de retornar ao passado quanto a de impedir as inovações o que é compreendido como reações ao novo. Finalmente, essa geração é substituída por outra chamada de resolutiva, que teria como tarefa resolver os impasses, ou seja, promover a síntese dos legados recebidos e mais, produzir soluções inovadoras. O dialogo com esse modelo permite pensar as passagens dos legados geracionais quanto às significações da gravidez na adolescência, bem como analisar o movimento para conservar e transformar tais legados. Nem a conservação nem a transformação acontecem de forma linear e talvez a imagem de uma espiral seja mais adequada para representar esse movimento. E, por isso, no movimento que cada geração descreve encontraremos traços que a tornam revolucionária e outros que, ao contrário, fazem dela uma geração reacionária. Dependendo do momento histórico, os traços revolucionários poderão predominar sobre os traços reacionários ou vice-versa. Mas, de qualquer forma, ambos estarão presentes em alguma medida. E ainda, cada geração a seu modo é precursora das inovações que a geração seguinte realizará. E ainda, a geração resolutiva, ao produzir a síntese dos legados das três gerações antecessoras, engendrará também soluções inovadoras. A própria síntese é uma atividade de criação, portanto precursora. Para a realização da pesquisai sobre as mães-adolescentes e as jovens-avós foram entrevistadas mulheres de cinco famílias todas residentes em Belo Horizonte (MG). As jovens-avós tinham entre 35 e 49 anos, e o grau de escolaridade variou do ensino fundamental incompleto à 3 formação pós-graduada. As adolescentes engravidaram com idades entre 14 e 18 anos. As mulheres da primeira geração tornaram-se bisavós entre 54 e 58 anos. As bisavós entrevistadas foram identificadas como integrantes da geração precursora, uma vez que esta é composta por mulheres que viveram mudanças significativas na organização familiar e doméstica, decorrentes da nova organização das cidades nas primeiras décadas do século XX. As bisavós, precursoras, começam a experimentar o aumento do grau de escolarização e da inserção das mulheres no trabalho remunerado. No entanto, tais mudanças ainda não são acompanhadas de uma igualdade nas relações entre os gêneros nem na estrutura familiar, que permanece hierárquica. O trabalho remunerado só é aceito como forma de ganhar a vida, quando muito necessário, para as solteiras, entre a escola e o casamento, ou para as desprovidas de marido, viúvas ou separadas. Mesmo assim, o leque de opções é estreito, reduzido ao magistério ou a algumas ocupações técnicas, como a datilografia. Para as casadas da camada média, que precisam colaborar no orçamento, há poucas saídas: dar aulas particulares em casa é uma delas, de preferência de piano. (Bruschini, 1990:66) Ao lado do caráter precursor das gerações das bisavós, encontramos também traços de conservação, que podemos exemplificar na submissão dessas mulheres aos seus maridos. Mas os traços inovadores relacionados sobretudo à educação das filhas também estão presentes nessa geração. Nesse aspecto, a geração das bisavós exerceu certa solidariedade com suas filhas ao protegê-las do autoritarismo de seus pais e criando condições para que suas filhas experimentassem novos modos de sociabilidade entre os pares de idade, de lazer, de namoro. Entre os valores que as bisavós receberam de suas mães e que transmitem às suas filhas existe uma elaboração, quero dizer a produção de uma síntese e, nesse sentido, a geração das bisavós também revela um aspecto "resolutivo". Talvez o grande legado dessa geração às jovensavós tenha sido o esforço para que suas filhas tivessem um maior grau de escolarização em relação a elas próprias e pudessem afirmar-se no mercado de trabalho. No entanto, tais projetos deveriam ser conciliados a dois outros: o casamento e a maternidade. As jovens-avós são mulheres da geração revolucionária marcadas sobretudo pelo ideário de uma sociedade igualitária, refletido nos movimentos sociais da década de 60, especialmente o movimento feminista. Cabe, no entanto, ressaltar que nem todas as mulheres dessa geração compartilharam e viveram esses ideais, o que demonstra que uma geração não é monolítica. Nesse sentido, apoio-me na seguinte consideração de Vaitsman: Certamente muitas delas reproduziram os papéis esperados. Mas, nesta época, entre um grupo significativo de pessoas oriundas deste segmento 4 social [as camadas médias e urbanas], a expansão e a diversificação das oportunidades culturais e ocupacionais abriam um leque de escolhas que favoreceria a diversidade e tornaria as diferentes opções profissionais e pessoais cada vez menos estigmatizadas e mais legítimas. Este seria um momento de transição para a rearticulação das relações de gênero e dos comportamentos no casamento e na família. (Vaitsman, 1994:97) Por outro lado, o fato de que algumas mulheres contemporâneas dessa geração não terem vivido pessoalmente tais experiências não invalida a constatação de que os ideais libertários permaneceram como emblemas dessa geração. As definições de geração apontam-lhe uma dupla função de símbolo coletivo e de referência do tempo social. Os símbolos coletivos agem como pólos de ligação, mediando a identificação com acontecimentos históricos. Por outro lado, as definições de geração produzem os discursos sociais, marcando a memória coletiva e promovendo elos entre o passado, o presente e o futuro. A geração das jovens-avós marcou com tal força a memória coletiva como tendo sido a geração revolucionária que o exercício de procurar vestígios reacionários nas suas práticas não constitui tarefa fácil. Para encontrá-los, é preciso examinar essa geração internamente, analisando as significações que ela produziu sobre si mesma. Também é necessário estarmos atentos aos discursos que as mães-adolescentes produziram sobre suas mães, uma vez que esboçam críticas à geração anterior e estas são importantes, pois acabam por pontuar as contradições da geração revolucionária. Se, numa direção, as jovens-avós assumiram práticas no terreno afetivo-sexual e profissional muito diferentes de suas mães, como, por exemplo, na experiência sexual antes do casamento, favorecida pela tecnologia contraceptiva, elas também reproduziram padrões de comportamento. Além de evitar uma gravidez indesejada, o uso dos métodos contraceptivos pelas mulheres solteiras contribuiu para que a sua vida sexual ativa permanecesse oculta. Embora o discurso que pregava a dissociação entre a vida sexual ativa e o casamento já se fizesse presente, assumir tal prática exigia uma ruptura com os valores familiares herdados. A prática dos casamentos formais e tradicionais era comum e coexistia com o discurso libertário. Nesse aspecto, encontramos um traço reacionário entre as jovens-avós: a permanência de uma prática da geração das bisavós. No entanto, muitos casamentos não resistiram ao desejo das mulheres de construir com seus parceiros relações mais igualitárias, tanto no âmbito do espaço doméstico quanto do espaço público. Na medida em que essas mulheres ocuparam postos de trabalho no espaço público, a reorganização das tarefas domésticas se tornava imperativa e muitos dos casamentos foram desfeitos. A dupla jornada de trabalho é uma questão não resolvida pela geração das jovens-avós. As mulheres dessa geração continuaram responsáveis pelo chamado "trabalho invisível", como sendo próprio da sua condição de gênero. 5 A centralidade da criança nas famílias da geração das jovens-avós é outro fator importante que contribui para a conservação de papéis tradicionais de gênero. Cuidar dos filhos pequenos continuou a ser tarefa da mãe e/ou de outra mulher substituta, tarefa raramente assumida e partilhada pelo pai. A questão da maternidade parece ter significado para essa geração um conflito, um obstáculo à trajetória das mulheres. As jovens-avós foram precursoras dos novos arranjos afetivo-sexuais, possibilitando, por exemplo, que a geração das mães-adolescentes vivessem a experiência do "ficar". Além, disto as mulheres da geração revolucionária buscaram pautar a educação de seus filhos pela “pedagogia do diálogo”, o que incluiu espaços abertos para conversas sobre afetividade, sexualidade, práticas contraceptivas e de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, inclusive a AIDS. Algumas destas mulheres incentivaram e ofereceram meios para que suas filhas consultassem um médico antes que se iniciassem sexualmente. Entre as jovens-avós entrevistadas, nenhuma delas propôs o casamento formal para suas filhas depois de saberem que estavam grávidas, o casamento reparador estava fora de questão. No entanto, elas manifestaram seu desapontamento pelo fato de que suas orientações sobre contracepção não tivessem sido seguidas, e ainda pelo fato de não terem sido escolhidas por suas filhas para as confidências sobre as experiências afetivo-sexuais e, nem de não terem sido comunicadas em primeiro lugar da gravidez. Estas atitudes das adolescentes fizeram com que suas mães sentissem que a “pedagogia do diálogo” de certa forma falhou. Nos arranjos cotidianos que a geração das jovens-avós produz revela-se a função resolutiva dessa geração. A gravidez e a maternidade de suas filhas adolescentes propiciam o exercício da solidariedade, manifesto na atenção ao recém-nascido e na aceitação tanto das novas formas de convívio entre a adolescente e seu parceiro, neste sentido algumas ofereceram um quarto para que o jovem casal pudesse morar juntos ou ficarem juntos nos finais de semana. Outras aceitaram a opção de suas filhas pelo casamento formal e tradicional, embora fossem desfavoráveis a este tipo de arranjo. Os legados que as jovens-avós passaram para a geração das mães-adolescentes talvez possam ser resumidos em duas palavras: autonomia e igualdade. Autonomia pela via da escolarização e do trabalho, como lhes ensinaram suas mães; e pelo domínio de seus corpos, no sentido do exercício da sexualidade e das decisões no terreno reprodutivo, como inventou sua própria geração. Igualdade entre os gêneros, o que inclui nova organização do trabalho doméstico e público, das relações afetivo-sexuais, do cuidado de si e do outro. As mães-adolescentes podem ser consideradas como integrantes de uma geração reacionária, uma vez que essa geração produz uma reação aos valores da geração precedente, a 6 geração revolucionária à qual pertencem as jovens-avós. Tal reação parece especialmente manifesta na recusa anticonceptiva e no prolongamento da dependência em relação às famílias de origem. Embora tenham informação sobre práticas contraceptivas e acesso aos métodos contraceptivos, não fazem uso deles. Recusam o exercício de domínio sobre a reprodução praticado por suas mães e, dessa forma, acabam por interromper a realização do ideal da mulher moderna. A geração das mães-adolescentes é uma geração herdeira das conquistas e transformações no que se refere às práticas afetivo-sexuais, mas também depositária de expectativas de afirmação e ampliação das mudanças conquistadas, sobretudo no âmbito da escolarização e da profissionalização e, ainda, no terreno afetivo-sexual. Nesse sentido, a gravidez de uma mulher adolescente pode significar uma ameaça às conquistas da geração anterior. Essa ameaça tem duplo sentido: coletivo e individual. Do ponto de vista coletivo, é preciso indagar de que forma a gravidez e a maternidade consideradas precoces acarretam a interrupção ou adiamento do processo de escolarização e de preparação para postos de trabalho mais qualificados para as mulheres, gerando, de um lado, mais pobreza para elas e, de outro, mais encargos sociais e familiares e, rompendo com ideal emancipatório e libertário tecido por mais de uma geração de mulheres. Já do ponto de vista individual, indaga-se de que forma a vivência de uma gravidez e da maternidade consideradas precoces tolhe cada uma das jovens-mães nas suas escolhas e nas suas oportunidades de experiências afetivo-sexuais e profissionais, sonhadas por suas mães e as encaminham para casamentos que comportem a divisão tradicional de papéis, de um lado o homem provedor e de outro a mulher dona de casa responsável pelo cuidado das crianças. Outro sentido a ser também examinado é o da perpetuação da dependência da adolescente, sobretudo das camadas médias e urbanas, de seus próprios pais. A recusa da autonomia, também como reação, parece estar manifesta no prolongamento da dependência e numa certa passividade frente à vida. A geração das mães-adolescentes é fruto, sobretudo nos meios urbanos, de uma educação que se pretendeu libertária. É preciso lembrar que o modelo igualitário defendido nas relações conjugais foi estendido para a relação entre as idades, fazendo desaparecer o “pai autoritário” e a “mãe submissa”. Tal modelo propiciou às crianças e aos jovens a manifestação de suas opiniões, sentimentos e desejos. A pedagogia do diálogo pautou-se pela negociação e pelo respeito às decisões tomadas por crianças e adolescentes. No seu cotidiano, as mães-adolescentes inovam ou são precursoras de uma outra significação para a maternidade. Premidas por suas necessidades materiais e afetivas, acabam por exercer uma maternidade menos centrada na figura da mãe e resgatam, de certa maneira, uma experiência remota na história da humanidade, a da criação coletiva das crianças, uma vez que 7 envolvem os amigos e a família extensa. A quarta geração, a dos filhos das mães-adolescentes, talvez seja aquela que se possa definir como preponderantemente resolutiva, ou seja aquela que promove certa síntese dos legados das gerações anteriores. Referências ATTIAS-DONFUT, Claudine. Générations et âges de la vie. Paris: PUF, 1991. ATTIAS-DONFUT, Claudine. Sociologie des générations. L’empreinte du temps. Paris, PUF: 1988 ATTIAS-DONFUT, Claudine. & Segalen, Martine. Grands-Parents. La famille à travers les générations. Paris, Ed. Odile Jacob. 1998 BRUSCHINNI, Maria Cristina Aranha. Mulher,Casa e Família: Cotidiano nas camadas médias paulistanas. SP: Fundação Carlos Chagas: Vértice, Ed. Revista dos Tribunais, 1990. VAITSMAN, Jeni. Flexíveis e Plurais. Identidade, casamento e família em circunstâncias pósmodernas. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. i i Este artigo foi produzido a partir da pesquisa realizada para a elaboração da tese de doutorado em Psicologia Social: MOREIRA, Maria Ignez Costa.Gravidez na Adolescência: Análise das significações construídas ao longo de Gerações de Mulheres. Tese de Doutorado em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica De São Paulo. SP.2001