EDITORIAL
A
cada dois anos, na APPOA, mais uma turma do Percurso de Escola
conclui seu projeto de estudo sistemático de conceitos fundamentais da Psicanálise, que a instituição oferece. E, a cada dois anos,
os membros e participantes e os alunos do Percurso têm uma oportunidade
de acompanhar os efeitos deste ensino assim proposto. Essa oportunidade
é oferecida pela Jornada do Percurso, onde, os alunos que concluem essa
trajetória, se propõe a escrever sobre as questões que convocaram seu interesse.
Desde a primeira jornada, percebemos que o que pretendíamos ser
um roteiro teórico, termina por revelar seu caráter de transmissão da Psicanálise, pois, mesmo com sua estrutura professor & aluno, todo ensino só
ocorre em transferência e que seja em uma instituição analítica faz toda a
diferença de um ambiente acadêmico.
Tal trajetória não se dá sem percalços, sem hesitações e sem demandas sempre insatisfeitas, já que a mudança de uma posição de aluno para
outra, de investigador das questões que o desejo lhe empurra, não é sem
choro. Sair do efeito “turma” é um exercício custoso, tanto para os alunos,
quanto para os professores e para a Comissão de Ensino, que monitora a
experiência e sempre tem o que aprender com cada “turma”.
Então, nas jornadas, a mudança de lugar se evidencia: os que falavam, agora escutam os efeitos de seu ensino, daqueles que antes só escutavam.
Pois, escutando e trabalhando sobre o efeito do discurso analítico
sobre o trabalho que cada um desenvolve em sua vida, seja em clínica ou em
instituições, aprendemos que a transmissão da Psicanálise se dá, mesmo
quando, cautelosos, a delimitamos a um curso sobre conceitos básicos destinado a quem quer se aproximar da teoria.
Publicar alguns dos textos desse exercício de apropriar-se de um
legado, o de Freud e de Lacan, permite à comunidade acompanhar a possibilidade dessa transmissão, única garantia da permanência desse legado.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
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NOTÍCIAS
SEÇÃO TEMÁTICA
CARTEL DO INTERIOR
A
Dando prosseguimento aos trabalhos em torno da temática da Transmissão da Psicanálise e da Formação do Analista, o Cartel do Interior estará
se reunindo no dia 06 de setembro, sexta feira, às 18h30min, na APPOA. O
texto previamente indicado para esta reunião é o livro de Mustapha Safouan:
Jacques Lacan e a questão da formação dos analistas. Este livro traz um
pequeno histórico acerca das premissas que regem a formação do analista
nas Sociedades não lacanianas e aborda a singularidade da proposta
lacaniana de formação. Sabemos que esta proposta tem seus efeitos, tanto
na prática clínica de cada um, como nos laços institucionais.
A condução da discussão estará à cargo da colega Clara Maria von
Hohendorff. O cartel está aberto a todos os interessados na discussão deste tema.
seção temática deste mês de setembro é dedicada a publicação
dos trabalhos produzidos pelos integrantes do Percurso de Escola
de nossa instituição. Um percurso que, apesar de ser definido como
uma forma de estudo sistematizada, não convoca a nenhuma ‘padronização’
da formação. Cada texto traz questões singulares, fruto da prática e das
construções teóricas de seus autores.
Aqui, vale a pena nos reportamos ao texto de Lacan A direção do
tratamento e os princípios de seu poder, quando escreve que as diretrizes da
psicanálise “...por menos que o analista as comente, podemos considerar
que, até nas inflexões de seu enunciado, veicularão a doutrina com as quais
o analista se constitui, no ponto de conseqüência que ela atingiu para ele.”
Logo, um término que indica que o caminho a ser percorrido pode parecer o
mesmo, mas aqueles que o fazem deixam-se percorrer de diferentes maneiras.
Coordenação do Cartel
Maria Lúcia Müller Stein
CONFERÊNCIA DE ROLAND CHEMAMA
O psicanalista francês Roland Chemama estará proferindo conferência na APPOA no próximo dia 29 de outubro, terça-feira.
Na oportunidade, ele abordará o tema “A direção do tratamento psicanalítico” a partir de questões relevantes da atualidade de nossa clínica, tais
como a transferência e a dimensão do real.
Além disto, durante sua estada em Porto Alegre, Roland Chemama
estará lançando a edição brasileira de seu livro “Elementos lacanianos para
uma clínica no cotidiano”.
Robson de Freitas Pereira
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
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SEÇÃO TEMÁTICA
VIGNOCHI, L. Psicanálise, capitalismo...
PSICANÁLISE, CAPITALISMO E FELICIDADE1
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O DISCURSO
DO ANALISTA NO CONTEMPORÂNEO
Luciano Vignochi
Nada é mais difícil de suportar que
uma série de belos dias.
(Goethe)
J
á em 1929 [30] – período da traumática queda da bolsa de valores de
Nova Iorque, Freud, ao iniciar seu escrito sobre o Mal-Estar na Cultura,
alertou: Não podemos descartar a impressão de que o homem aplica
regras equivocadas em suas apreciações, pois enquanto anseia para si e
admira nos demais o poder, o êxito e a riqueza, menospreza, por outro lado,
os valores genuínos que a vida lhe oferece. O que me parece fundamental
nesse problema colocado por ele é sua preocupação com o dilema humano
frente ao desígnio de ser feliz, e, paradoxalmente, estar limitado por sua condição fragmentária, ou seja, evitar a dor e o desprazer e experimentar intensas sensações prazerosas. Se retornarmos a algumas idéias desenvolvidas
por Freud em textos anteriores, como Alguns tipos de caráter descobertos
no trabalho psicanalítico (1916) ou Um transtorno de memória na Acrópole
(1936), encontraremos que, na origem da impossibilidade humana em ser
totalmente feliz, se encontram a interdição do incesto – elaborada em Totem
e Tabu (1913) – e na culpa edípica frente à superação do pai. Por outro lado,
Freud alerta para o sentido superegóico que a busca incessante pela felicidade pode tomar. Ao passo que o sujeito não pode gozar totalmente da
felicidade alcançada, o mesmo corre o risco de tomá-la como um imperativo
superegóico apelativo ao gozo, ou seja, aquilo que é da ordem da impossibi-
lidade ou da culpa pode se tornar um imperativo absoluto. Estamos, então,
no campo das perversões, ou ainda, na recusa da castração – denega-ção
da interdição do incesto – modelo de satisfação pulsional oferecido nos tempos atuais, como buscarei abordar adiante.
Ofertas com promessa de acesso a todo e qualquer objeto, estando
esse na posição daquilo que venha a garantir atão sonhada felicidade nos
são propostas a todo o momento através dos recursos midiáticos de nosso
tempo. Como aponta Maria Rita Kehl, o imperativo do gozo substituiu a
interdição do excesso e, embora gozar plenamente seja impossível para o
ser humano, é isto o que o supereu, reproduzindo os discursos dominantes
e os valores em circulação, exige dos sujeitos. Nesses termos, encontramonos, então, diante da versão contemporânea da perversão como modo dominante nas relações sociais, legitimada pelo discurso do capitalista que, tomando a demanda pelo desejo, busca fazer do sujeito um usuário de seu
produto2. Não tenha medo de ser feliz, slogan predominante em nossos tempos, orienta o sujeito em uma promessa de gozo especular. Tomado pela
supervalorização da imagem, o sujeito contemporâneo se encontra num dilema narcísico, ora estando na posição de objeto de um Outro absoluto, ora
identificando-se com ele mesmo. Quando fracassa, parece estar esvaziado
em sua existência e, quando se encontra com seu dilema pessoal, parece
estar dilacerado, já não suportando sua falta-a-ser e sua solidão.
Orientado pela busca incessante da felicidade, o sujeito contemporâneo, excluído em sua solidão, é capaz de qualquer ato violento. Estamos
diante do que Jurandir Freire Costa denomina de cultura narcísica da violência, na qual o desaparecimento da figura do Ideal coletivo dá lugar ao
surgimento da impotência representada pela figura do burocrata – e manifesta num voluntarismo subserviente – e, da figura do fora-da-lei – e sua arrogância onipotente – como imagem Ego-Ideal. A partir desse ponto, se apresenta
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Escrito produzido a partir de reflexões no Percurso de Escola IV / APPOA.
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A partir de observações realizadas por Sonia Alberti em O discurso do capitalista e o malestar na cultura, trabalho para os Estados Gerais da Psicanálise. Paris, julho de 2000.
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SEÇÃO TEMÁTICA
VIGNOCHI, L. Psicanálise, capitalismo...
a outra face do paradoxo – também veiculado pela mídia – manifestando-se
através da fome, da miséria, da corrupção, do terrorismo, das guerras, seqüestros... Quadro esse que, segundo o autor, desequilibra a economia egóica
e compromete o bem-estar do sujeito e de sua sociedade. Haja visto o traumático 11 de Setembro com o emblemático ataque seguido da destruição
das Torres Gêmeas de Nova Iorque.
Tem sido recorrente, em minha experiência clínica, a manifestação de
transferências que me parecem seguir o caminho do quadro descrito acima.
“– Sonhei que estava transando com um homem sem rosto... O homem que eu quero deve ter um corpo escultural e deve me desequilibrar, tem
que ser provocativo, alguém que me desestabilize, que possa estabelecer
inclusive um embate em nível intelectual comigo... Eu não posso obedecer a
regras, é muito para meu narcisismo...” Lacan, no Seminário 17, aponta para
uma interpretação ao desejo manifesto acima, propondo que para que o outro dê o lugar ao gozo, não é nomeado. Para ele, trata-se de Deus sem rosto,
grande outro, ele é o gozo. Interpretação essa, pertinente ao que revela o
discurso perverso, ou seja, a busca do gozo ilimitado.
“– Meu texto foi avaliado e teve algumas restrições. Foi só porque não
respeita as normas técnicas estabelecidas. Na academia, as pessoas são
medíocres mesmo!” Temos, aqui, um exemplo em que o neurótico, na tentativa de escapar daquilo que é decidido a sua revelia, antecipa o gozo do
Outro e, por identificação ao discurso perverso (figurado no discurso do capitalista), desloca sua fala na tentativa de gozar como este Outro viria a fazer.
Algo que pode lhe custar a não-realização de um desejo e o gozo deste
Outro absoluto, legitimado pelo instrumento mormativo e burocrático.
“– Me sinto só, desamparada! Estou insatisfeita! Meu trabalho é
repetitivo, não posso fazer ginástica, ou yoga, nem mudar de apartamento,
pois recebo pouco dinheiro. Meu namorado é tudo para mim, não posso ficar
sozinha. Não agüento mais esta dependência, mas quero que ele me cuide.
Não quero ganhar grana, somente quero algum homem que me cuide e um
filho. Não quero mais sofrer! Se pudesse, não trabalharia mais”. Observa-se
aqui um discurso de entrega ao outro numa posição de objeto para seu gozo.
Na busca do prazer, da felicidade e na tentativa de evitar o sofrimento, tornase sintomático que o outro seja o mestre de sua realização. Saída impossível, que resulta em sintomas conversivos que aparecem para apontar-lhe o
limite a todo instante.
“– Não sei porque sou tão maltratada?! Eu falo demais. Às vezes
assumo o que não posso assumir. Tu nunca me viste braba! Um dia eu
arranquei uma placa de ‘Pare’ na rua, de tanta raiva!” Outra manifestação de
um paradoxo, em que a busca de reconhecimento profissional esbarra numa
fantasia de gozo sem limites, retornando como sofrimento por uma demanda
de amor não atendida.
“– Minha mãe é que sabe, combina com ela! Acho que ela vai viajar
semana que vem! Eu vou com ela! Desta vez, vamos ficar em um hotel de
quatro estrelas, não é tão bom! Tu sabes como funciona o concurso do
Banco X? Vale a pena?” É assim que, na busca de um prazer sem limites –
prometido no discurso materno pela sua experiência como funcionária pública – fala esse sujeito e, depois, retorna ao seu mutismo ou, refere-se ao
outro como depositário de um saber sobre a felicidade.
Esses exemplos me parecem revelar algumas configurações do sofrimento psíquico na contemporaneidade. O homem de nosso tempo toma a
mestria e o conhecimento como dispositivos para o consumo do outro ou ao
outro, distanciando-se, a passos largos, do estético e da possibilidade da
construção de laços simbólicos e sociais. Objeto de suas invenções
tecnológicas, toma os valores de troca como imperativos dominantes, ao
passo que não pode mais receber, na medida em que o Outro promete o
logro de que em algum momento não mais precisará pagar. O que ocorre é
que, poucos instantes após abrir o pacote, a felicidade já escapou de suas
mãos e está sendo ofertada em outra coisa ou em um em outro lugar. Sônia
Alberti alerta para a estrutura discursiva presente nessa realidade; segundo
ela, O discurso do capitalista não exige a renúncia pulsional, ao contrário,
ele instiga a pulsão, impondo ao sujeito determinadas relações com a demanda, sem se dar conta de que, ao fazê-lo, sustenta, sobretudo e em
primeira mão, a pulsão de morte.
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O que poderia considerar a respeito do discurso psicanalítico frente a
tal realidade?
Em primeiro lugar, estamos orientados pela lógica da castração e
sabemos que é impossível consumir psicanálise. Cabe lembrar que Freud
em seus Conselhos aos Médicos 3 utiliza-se da metáfora do telefone para
propor que o inconsciente do analista – assim como o fone do aparelho
telefônico transforma em ondas sonoras as vibrações telefônicas – auxiliado
com o material que provém do inconsciente do paciente, reconstrói esse
inconsciente. Há, portanto, a contribuição de analista e analisante no processo da cura. Lacan, em seu escrito sobre a direção do tratamento (cura),
adverte ao analista que ele também paga com suas palavras e, mais ainda,
com seu ser. Constatação essa, que nos coloca frente a uma responsabilidade na transferência, limite que deve possibilitar escutar. Robson Pereira
também aponta para a importância da prática de uma ética que possibilite a
psicanálise, apesar do apelo ao consumo e suas vicissitudes: “Se sua análise pessoal possibilitou o reconhecimento (a duras penas) de um sinthoma,
pode fazer de sua prática um estilo. Se não teve esta sorte, corre o risco de
transformar-se numa caricatura da perfeição. Como ‘Hal-9000’, o
supercomputador da Discovery, que quanto mais soberbo ficava, mais denunciava sua proximidade das falhas características dos humanos, justamente estes que precisavam ser eliminados para que uma suposta missão
pudesse ser levada a cabo até seu final”.
Em segundo lugar, sabemos que o analista, situado na posição de
objeto, pode encontrar brechas na demanda de um discurso para que se
coloque em ato o sujeito do inconsciente, do desejo. Ato fundamental para
que se revele ao analisante sua forma particular de relação com a linguagem,
o social. Nesse sentido, Barthes, retomando Freud, afirma que a escuta do
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Escrito de Freud citado por Barthes ao tratar da escuta psicanalítica, a qual por se dar de
inconsciente para inconsciente, implica riscos. Avesso da garantia de felicidade oferecida
pela lógica do consumo de bens.
analista é ativa, assume participar do jogo do desejo, cuja linguagem é a
cena, ou seja, a escuta fala!
Retomando os discursos que encontro na clínica, gostaria de trazer
alguns deslocamentos que me parecem ir nessa direção. Alguns sujeitos já
podem se interrogar sobre como conciliar trabalho e solidariedade, se perguntam sobre os lugares que ocupam as relações amorosas e outros projetos pessoais em suas vidas. Outros se permitem pensar e se interrogar a
respeito das modificações na realidade urbana e no tempo ou, ainda, trabalhar na construção de espaços de discussão a respeito de suas práticas nas
instituições e passar a reconhecer o outro no discurso e nas relações
intersubjetivas. Quadro que apresenta uma questão fundamental à vida: Como
fazer algum laço social?
Faz-se necessário nesse ponto, lembrar que estamos falando de felicidade (termo que me parece necessário reconhecer com Freud no campo
da sublimação), elemento cultural destacável, pois graças a ela atividades
psíquicas superiores, tanto científicas como artísticas e ideológicas, podem
desempenhar um papel muito importante na vida dos povos civilizados.
A posição ética oferecida pelo discurso psicanalítico me parece, portanto, consistir em escutar “um” desejo; o avesso do discurso do capitalista
que visa prometer “a” resposta. Está incluído aí o pagamento não como forma de acesso a algum objeto-fetiche como “Hal-9000”, ou como confirmação
de uma promessa do tipo pague hoje e receba seu dinheiro de volta amanhã.
Mas como algo da ordem do limite, da castração como possibilidade para o
desejo; como algo que custa sustentar, inclusive no campo das trocas simbolicamente estabelecidas. Essa posição caminha no sentido de situar um
sujeito na cadeia de significantes, lugar de onde é possível escolher e responsabilizar-se por tal escolha, rumo à construção de sua pertença no social
e no processo civilizatório.
Assim, abre-se a possibilidade de relativizar as falsas ofertas de felicidade total que produzem as demandas atuais em consumir e gozar absolutamente. Libertar o sujeito contemporâneo de uma alienação a um Outro
supostamente não castrado, para que reconheça uma dívida simbólica em
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oposição à culpa, me parece uma proposição importante oferecida pela psicanálise. Considerar a cisão do eu, tomando em conta que aquilo que limita
não necessariamente perverte, consiste em poder dar voz ao outro (alteridade),
seja pelo riso, pelo estético ou por algum projeto social.
Talvez, tudo isto aponte para uma certa ilusão de coletividade necessária, pela qual cada um possa contribuir a partir de seu desejo como alternativa ao intenso mal-estar que assola o homem contemporâneo em sua
solidão.
BALDASSO, M. L. Do eco ao espelho.
DO ECO AO ESPELHO
Maria Lúcia Baldasso
R
ALBERTI, Sonia. O discurso do capitalista e o mal-estar na cultura. Trabalho para
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BARTHES, Roland. A Escuta. In: O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, P.217-90
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PEREIRA, Robson de Freitas. Afinal chegamos lá. E daí?. In: Correio da APPOA.
Porto Alegre: Metrópole Ind. Gráfica Ltda n. 87 - ano IX, p.31-35, jan. 2001.
ecordo que nos meus tempos de criança, havia um produto de limpeza que me chamava bastante a atenção. Mais por sua embalagem, especialmente pelo desenho que portava, que era bem curioso
e interessante. Tratava-se de uma latinha de saponáceo, na qual havia a
figura de uma mulher com avental e lenço na cabeça que segurava uma lata
do próprio produto com o mesmo desenho e assim sucessivamente, ficando
cada vez menor e sem nitidez. Minha pergunta era: onde termina? Onde vai
parar? E ficava a buscar o último traço visível.
Esta imagem me voltou à memória ao encontrar com a menina que
recebi para atendimento na instituição onde trabalhava.
Kátia veio encaminhada com solicitação de que fosse realizada uma
avaliação a fim de ingresso em “ensino especializado”, já que estava com 12
anos e até então não havia freqüentado nenhuma escola. Antes de nos encontrarmos, ela me foi “apresentada” por sua mãe em uma entrevista dessa
forma: “Não adianta eu falar. É só olhar para ela e ver”. Mesmo com alguma
insistência, repetia: “Não adianta. Tu vais ver. Ela se liga e desliga e quando
desliga fica no mundo dela. Não adianta”. Foi o que pôde falar da filha naquele momento. Parecia cansada, desiludida e com pouca crença de que algo
diferente ainda pudesse ser feito.
Era a avó materna quem levava Kátia às consultas e também quem, em
casa, se ocupava dela, e das suas duas irmãs menores. Trazia certa queixa
em relação a própria filha, por achar que não dava devida atenção ou maior
dedicação à menina, justificando ao mesmo tempo que “nem poderia mesmo,
pois trabalhava demais”. Nas colocações de ambas, mãe e avó, o pai de Kátia
quase não era mencionado e, quando aparecia no discurso, era como ausente
e desinteressado. Era ainda colocado que ela “precisava desenvolver a fala”.
A “fala” realmente impressionava. Kátia limitava-se a repetir tudo o
que era dito. A única alteração era por vezes uma interrogação ao final da
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BALDASSO, M. L. Do eco ao espelho.
frase ou a última palavra no diminutivo. Imitava também os gestos e movimentos, desviando sempre o olhar. Ficava reproduzindo frases de propagandas e identificando marcas de produtos em anúncios de revistas que estavam na sala.
Assim foi nosso primeiro encontro, e muitos outros que se seguiram.
Em nenhum momento se dirigia a mim, era como se eu ali não estivesse,
mas qualquer tentativa minha de aproximação, causava nela muita angústia,
ficando a balançar a cabeça, repetindo mais intensa e nervosamente o que
eu dizia, até que eu desistisse. Então ela ficava a andar pela sala, apontando
e cheirando os objetos, reproduzindo o que eu deduzia serem falas da TV.
Não sabia o que fazer. Minha preocupação se acentuava pela demanda de avaliação de escolaridade, que trazia um questionamento de sua possibilidade de inserção. Seria viável? Me via convocada a dar esta resposta.
Kátia já acumulava um percorrido em outras instituições, tentativas que sempre se traduziram numa impossibilidade. Era outro círculo de repetições:
Não havia lugar para ela. Ali seria apenas mais um?
Marie Christine Laznik-Penot, no texto “Seria a Criança Psicótica Carta
Roubada?”, discorre sobre o que acontece na instituição ao redor da criança
psicótica. Fala dos efeitos de repetição determinados pelo contato com a
criança, mostrando que tanto na instituição, quanto na família, há uma espécie de rodízio de papéis entre as pessoas que se ocupavam dela. Já existe
um cenário e personagens determinados, e os protagonistas rodam nesse
cenário em função de seu lugar em relação à criança. Diz:
“É difícil se distanciar do modelo, do cenário já armado, mesmo antes
da criança chegar (cena primitiva). Todo membro da equipe e também o
analista na instituição não escapa em determinado momento a ocupar um
papel nesta cadeia, a sofrer o que Lacan chamou supremacia do significante
no sujeito, significante esse que na instituição seria a criança psicótica,
assim como a carta no conto de Poe”.
A pergunta que eu me fazia “seria aqui apenas mais um lugar?” repetia o velho filme. Encontrava-me inicialmente nesta posição: “não vai ficar”; “e
que escola vai aceitá-la?”, ou seja, “não há lugar”. A repetição não era só a
sua fala, seus efeitos também se faziam em mim. Lançada num lugar de
impotência, tomada pelo discurso deprimido da família, eu repetia em eco:
“alguém tem que se encarregar dela, mas ninguém consegue”.
Me perguntava: O que fazer? Era muito angustiante receber tanto este
“eco” interminável, quanto em outros momentos o não registro de minha
presença. Essa angústia me punha muitas vezes a falar muito, numa tentativa de que ela me entendesse e pudesse dar outro tipo de resposta. Em vão.
Quanto mais eu tentava, mais ela também ansiosamente repetia. E repetia
muitas vezes cada frase, até antecipando o que eu ia dizer, como em um
momento em que ao olhar o que ela havia traçado em uma folha que lhe
oferecera para desenhar, disse antes mesmo que eu dissesse: “que bonito,
Kátia!”. Exclamação que eu já havia feito em situação anterior semelhante. E
assim passou a circular pela instituição, como que a “roubar” palavras: “Está
na hora!” dizia próximo ao término de um grupo que se realizava em outra
sala; ou “Vamos lá, pessoal!” no início de outro. O que acabou mexendo com
toda a equipe, como um espelho incômodo a refletir nosso próprio cenário:
nossos comportamentos, ditos, expressões, nossas próprias estereotipias.
Passávamos a nos interrogar: “É assim que eu falo?” ou “chamo o grupo
sempre desse jeito?”
Seguiam-se os atendimentos e eu me perguntava: onde isso vai parar? Que caminho aqui pode surgir? Não sabia. Hoje penso que talvez pela
própria angústia, não tenha caído na desistência. Algo como – já tentei tudo...
mas continuo tentando – talvez tenha possibilitado o surgimento de um caminho.
Em determinado momento, percebi que Kátia cantava músicas. Inicialmente não as identificava, porque se confundiam com as propagandas de
TV e marcas de produtos que falava. Mas começou a cantar trechos inteiros
sem misturá-los com outras coisas. Vários tipos de músicas, especialmente os “hits” que tocavam nas emissoras de rádio da época. Num desses
momentos , reconhecendo uma música comecei a cantar junto. Me olhou,
desta vez diretamente e com olhar assustado, não parou, mas pôs-se a
cantar muito alto e rápido que eu quase não conseguia acompanhar. Conti-
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nuei e assim seguiram-se outras músicas, sendo que aos poucos foi permitindo que eu cantasse junto sem se apressar tanto.
Assim, em muitas sessões, este “espaço musical” foi se dando, onde
alteravam-se momentos e posições, nos quais em alguns ela iniciava a canção e eu seguia, em outras dando-se o inverso. Em certa ocasião, após ela
cantar uma música por mim desconhecida, ao iniciar outra eu disse: “Ah!
Essa eu conheço. É o Leonardo.” E a seguinte: “E essa é do Lobão.” A partir
daí os nomes dos cantores foram introduzidos no jogo e o passo seguinte foi
solicitar músicas a partir desses nomes.
Estes movimentos me levaram a um trabalho de pesquisa, pois ela
certamente não seguia um estilo musical e em grande parte das vezes cantava músicas que eu não conhecia. As mais badaladas na mídia eram
identificadas sem maiores dificuldades, mas de vez em quando se misturava
com Cazuza um Soweto. Soweto? Quem seria? Kátia me levava a uma busca, uma busca de representações da cultura. Me levava por exemplo ao
terreno do pagode, gênero bem marcado na época, e como sabemos, com
uma infinidade de grupos, parecidos até mesmo no nome.
Era grande a diversidade de estilos de músicas que trazia (temas de
novelas, axé, rock, MPB, sertanejo...), mas todos representados por grupos
e cantores bem difundidos de cada gênero musical. Muitas descobrindo pelo
rádio, outras vezes recorrendo aos colegas (“como é mesmo aquela música
do Carlinhos Brown?”) e também com um grupo de adolescentes atendidos
no Núcleo que acabava me atualizando bastante.
Parecia estranho. Para onde íamos? Mário Corso nos lembra que no
atendimento a psicóticos é necessário um trânsito por uma variedade das
significações humanas, pois nunca sabemos por onde vamos andar e “por
mais que pareça caótico, o problema é que vai se tratar sempre de uma
possibilidade de construção de uma significação, então vai ser sempre muito
sério”.
Então pareceu estar se abrindo para Kátia uma possibilidade.
Em sua teoria acerca dos fenômenos transicionais, Winnicott, nos
fala de uma área intermediária que se estabelece entre o corpo da criança e
o corpo da mãe, área situada entre o subjetivo e aquilo que é percebido
objetivamente. Denomina esta área de “espaço potencial” ou “área de ilusão”, pois é partilhada pelo bebê e mãe, não pertencendo exclusivamente a
nenhum dos dois:
“É uma área que não é contestada, porque nenhuma reivindicação é
feita em seu nome, exceto que ela venha a existir como um lugar de repouso
para o indivíduo envolvido na eterna tarefa humana de manter as realidades
internas e externas separadas, porém interrelacionadas”.
Esta área seria estruturante para a criança e “só tornada possível por
uma maternagem suficientemente boa na fase primitiva crítica”, sendo que
acontece apenas em relação a um sentimento de confiança por parte do
bebê relacionado a figura materna.
Ao abordar esta questão dos fenômenos transicionais, Santa-Rosa
os aponta como precursores das operações simbólicas. Refere que:
“Winnicott fala de uma evolução direta dos fenômenos transicionais
ao brincar; do brincar ao jogo compartilhado – aqui significando a possibilidade de um brincar socializado, submetido a determinadas regras ou convenções – e deste à cultura. Essa concepção permite visualizar o lugar dos
fenômenos transicionais – o espaço potencial – como o lugar da função
simbólica. E pensar numa equivalência lógica nesta seqüência: objeto
transicional – jogo – jogo compartilhado – cultura”.
Ao pensar nos caminhos da transferência percorridos com Kátia e em
o que ali se produziu, faço neste trabalho uma relação desta área potencial
de ilusão com o espaço estabelecido na transferência. Espaço compartilhado, incerto inicialmente, mas ao longo do tempo se constituindo como possibilidade de trânsito, mínima ainda, mas já de alguma circulação social.
Nesse espaço, alguns elementos da cultura trazidos puderam circular, ser
brincados, aprendidos e combinados.
Esta brecha que surgiu, possibilitou o estabelecimento de um laço,
que parecia recobrir o que antes era dito aparentemente sem nenhum sentido. Agora não era só uma ecolalia, algo ali já era possível comunicar, fazer
relação: um nome chama uma música, uma música chama outra. Também o
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outro já não parece ser tão ameaçador, pode as vezes até ser contestado.
Certa vez, após cantarmos a música “Como uma onda”, eu disse: do Tim
Maia. Ela corrigiu: Lulu Santos.Durante este processo, Kátia começou a
freqüentar uma Escola Especial do Município e foi de extrema importância
para ela poder experenciar este lugar. A escola, com uma proposta de educação inclusiva, proporcionou-lhe uma acolhida e um espaço escolar de investimento.
Ficou muito animada com a escola e começou a trazer para a sessão, coisas vivenciadas lá. Eram os primeiros relatos seus, trazidos espontaneamente, contava da professora, dos colegas e das atividades lá realizadas. Eu escutava fascinada, e “relatos” é um pouco de exagero por conta
desse entusiasmo. Na verdade eles vinham como palavras soltas, mas que
já contavam algo e eram dirigidos a mim. Passou então a haver uma costura
do diálogo. Como:
– Parquinho... balancinho...
– Ah! Tu foste ao parquinho. Andou de balanço.
ou:
– Everton... não vem... não vem...
– O teu colega Everton não foi a aula. Por quê?
– Não vem... não vem... aulinha... Tia Claudinha.
Passando a fazer a função dos verbos, preposições, conjunções, dos
elementos que ligam, a estrutura do discurso era feita por mim. Funcionava
quase como um suporte simbólico, como que tomando, recolhendo os pedaços, dando ao discurso uma sustentação, uma significação.
– Quente... rua...
– É. Hoje tá muito calor.
– Merendinha... arroz... feijão... massinha... hum... bom.
– Que comida boa tinha na merenda, heim! Arroz, feijão e massa.
Assim, Kátia já podia experenciar um espaço de circulação social
mais viável. Em seu texto “A escolarização de criança psicóticas”, Alfredo
Jerusalinsky, nos fala da importância do significante escola e como pode ser
decisivo nos casos de psicose, especialmente para o adolescente psicótico
para o qual sempre surge a pergunta “qual seu lugar?”, pois seus atos já não
são mais tomados como “coisas de criança”, mas ainda pode-se esperar
que algo modifique em seu funcionamento. Surge a escola, que tem um
benefício de leitura social:
“A escola não é socialmente um depósito como o hospital psiquiátrico, a escola é um lugar para entrar e sair. É um lugar de trânsito. Além do
mais, do ponto de vista da representação social, a escola é uma instituição
normal da sociedade, por onde circula em certa proporção a normalidade
social.” Funcionaria como um “signo de reconhecimento de serem capazes
desta circulação.”
Um episódio relatado por sua avó, ilustra um pouco como Kátia expressa já este efeito, e como vai se alargando a possibilidade de novos laços
se estabelecerem e algumas dificuldades serem vencidas. Uma das razões
apontadas como restritiva à vinculação às instituições anteriormente procuradas, tanto clínicas, quanto escolas, era de que ela, em pânico, recusavase a entrar em ônibus ou atravessar as ruas, ficando muito ansiosa, gritando
ou se atirando no chão.
A história contada agora era outra. Tanto para ir a escola quanto ao
Núcleo de Atendimento, Kátia tinha direito a vale-transporte, desde que para
tanto fosse apresentada uma carteira com identificação. Conforme descreveu sua avó, a menina ainda ficava muito ansiosa, mas agora mal podendo
esperar o momento de sair de casa, perguntando insistentemente pela hora,
sendo muitas vezes antecipado o horário de saída para que ela “parasse de
incomodar”. Ao entrar no ônibus exibia sua carteirinha ao cobrador e ao ser
cumprimentada por este dizia: “Escolinha” ou “Tia Lucinha” que era como me
chamava. O mesmo acontecia com o guarda de trânsito de seu bairro, do
qual já era conhecida.
Ficava a ouvir estes relatos e a construir hipóteses, que em alguns
momentos me pareciam talvez um pouco delirantes, em outros talvez baseada na crença de que algo na posição realmente se alterava. Como se ela
quisesse dizer: Sou Kátia. Estou indo para a Escola ou para o tratamento.
Tenho um nome. Um lugar para o qual me dirigir.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
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SEÇÃO TEMÁTICA
BALDASSO, M. L. Do eco ao espelho.
Sabemos o quanto é importante para a estruturação psíquica que a
mãe tenha um desejo que seu filho cresça, se separe e possa se lançar na
rede simbólica – na cultura, e também o quanto é mortífero para o sujeito
quando este desejo não está colocado.
Falava anteriormente sobre o “espaço de ilusão” apontado por Winnicott
e que este seria o que daria suporte à experiência, às possibilidades criativas e à própria vida cultural.
O caminho percorrido com Kátia foi um pouco nesta direção. Sua
possibilidade de inserção foi se dando a partir da criação deste espaço na
transferência. Utilizando representações disponíveis na cultura, dando-lhes
significação, foi se operando um progressivo deslocamento, uma possibilidade de separação, uma transição que a levasse a experenciar um lugar no
discurso social.
Por vezes pensava na fala de sua mãe: “Se liga e desliga. Está no
mundo dela”. Desde o início, Kátia não parecia desligada, mas sim ligada de
uma forma particular: sempre temerosa. Qualquer tentativa de aproximação
era sentida como ameaça, e a forma encontrada de lidar com ela era através
de uma colagem absoluta. Não tão absoluta assim. Tinha sua marca: o
diminutivo. Massinha, aulinha, casinha... Na tentativa de construção de sua
subjetivação já era um sinal de deslocamento. Já que não podia dizer “Eu
vou a escola”, dizia “escolinha”.
Ao longo desta história foi se delineando uma passagem que poderia
se chamar do eco ao espelho. Sua mãe parecia não ter o que dizer, como o
eco que bate e volta, igual. Mas Kátia aos poucos foi podendo se ver refletida: o encontro com uma imagem que lhe trazia um reconhecimento: sim, és
Kátia e tens algo a dizer. E ocorre que esta relação na transferencia que proporcionou que ela falasse, também produziu em mim um querer dizer: escrever
este trabalho, contar esta experiência, “fala” disso. E mais, evocou em mim
uma lembrança de infância. Justamente uma propaganda. Como que ali,
naquela repetição interminável de propagandas aparentemente sem nenhum
sentido, algo havia também a dizer. Ou como nas conversas com minha
colega, ao final dos atendimentos, nos levando a falar de nosso próprio fazer.
A pergunta inicial “onde isso vai parar?” talvez pudesse ser refeita:
“até aonde podemos ir?” E mesmo sabendo que não há resposta para tal
questão, ela pode ir se revelando no caminho.
Certa vez, outro paciente atendido por mim na mesma instituição,
este um menino neurótico, envolvido com suas questões acerca da aprendizagem, me lança um desafio. Munido de uma versão modernizada da história de Ali Babá me pergunta se eu sabia como esse realmente tinha vencido
o inimigo e se tornado rei. Diante de meu interesse, o menino sorridente
revela: “É que ele venceu o eco. Foi assim que encontrou a caverna.”
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
CORSO, Mário. Dificuldades inerentes ao tratamento da psicose. Correio da
APPOA, n. 77, mar. 2000.
JERUSALINSKY; Alfredo. Psicanálise e desenvolvimento infantil. Porto Alegre.
Artes e Ofícios, 1999.
LAZNIK-P., Marie Christine. Seria a criança psicótica “carta roubada”?. In: SOUZA,
Alduísio M. (org.). Psicanálise de crianças. Porto Alegre, Artes Médicas, 1989.
SANTA-ROSA, E. Quando brincar é dizer. Relume Dumará.
WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975.
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SEÇÃO TEMÁTICA
BOLLA, R. Psicossomática: um olhar...
PSICOSSOMÁTICA :
UM OLHAR SOBRE A PRODUÇÃO DA DOENÇA
ORGÂNICA A PARTIR DA PSIQUʹ
¹ Baseado no trabalho apresentado na Jornada do Percurso IV, em 6 de julho de 2002, na
APPOA.
² Psicóloga.
totalmente científicas, e religiosamente bem-vindo como medida disciplinar
para pecadores e provação para os justos (vide Velho Testamento). Com
isto, os estudos sobre a dor e suas relações com o corpo como um todo,
sofreram considerável atraso. Abolir o sofrimento era um ato desencorajado
pelas idéias cristãs.
Somando-se a esta cultura religiosa, séculos depois, surgiu Descartes (1596-1650). Suas idéias fundaram aquilo que mais tarde chamou-se de
pensamento cartesiano, impondo seu território com grande racionalismo,
conjuntamente com a medicina e as ciências naturais, passando-se a buscar um estatuto de cientificidade nos primordiais princípios filosóficos de
razão e de objetividade. A ciência moderna se desenvolveu a partir do pensamento filosófico de Descartes, isto é, tendo como princípio desfazer-se de
todas as opiniões, crenças e impressões que não fossem capazes de fundamentar conhecimentos satisfatoriamente exatos (Loss, 2001, p.37).
O lugar do homem moderno, então, fixou-se na sua condição de pensar, sua existência vinculada a um pensamento claro – “penso, logo existo”
– pensamento independente do corpo, livre das paixões, das sensações,
dores, satisfações e frustrações. A dualidade corpo e alma é definida como
“realidades coexistentes”, porém perfeitamente distintas.
Assim, o papel do doente mantem-se o mesmo, como vários outros
na sociedade, é regulado e codificado por determinadas expectativas de
conduta e comportamento que incluem obrigações e privilégios. O doente
não pode tomar conta de si, regressando para aquilo que simbolicamente
faz as vezes de uma mãe, seja uma instituição ou mesmo o seio de sua
família.
Muitas são as interrogações que a questão do fênomeno psicossomático pode levantar. Seria uma incapacidade de simbolização? Possui alguma função defensiva? Uma busca de representação? Seria o orgão afetado o representante orgânico do sentimento reprimido? Tais interrogações
têm como ponto de partida um caso clínico atendido por somente nove meses, tempo necessário para uma gestação, criação de um outro capaz de
realizar e simbolizar os desejos mais inconscientes...
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
Roberta Bolla²
E
ste trabalho parte do questionamento frente a uma observação daquilo que denuncia a proximidade entre o orgânico e o psíquico. Médicos e estudiosos de tal assunto escrevem, ainda hoje, o termo tema
deste trabalho, usando a separação com hífen: psico-somático. Esta prática
expressa na própria denominação a dicotomia sobre a relação mente-corpo.
A psicossomática passou a ser mais referida concomitantemente ao
surgimento da psicanálise. O predomínio dos estudos sobre a gênese do
inconsciente e de suas enfermidades, e os benefícios secundários do adoecer marcam sua concepção e evolução. O estudo da histeria, considerado o
ponto de partida da psicanálise, com suas conversões clássicas, já denunciava a existência da psicossomática.
Na história da medicina encontramos figuras que já buscavam, nas
correlações entre o físico e o mental, as respostas julgadas passíveis de
serem encontradas a partir da interpolação entre transtornos psíquicos e
somáticos, como fazia Hipócrates (460-377 a.C.), descrevendo “casos de
loucura que encontravam alívio em ocasiões de manifestações de desinteria”
(Mello Filho, 1979, p.13).
Com o advento do Cristianismo, aquilo que havia restado para ser
relacionado a outras forças, além das científicas, foram atribuídas à religião,
uma vez que a dor foi definida como forma de iluminação ou obtenção de
graças, instaurando a idéia do sofrimento como algo nobre, com explicações
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SEÇÃO TEMÁTICA
Sandra3 tem 34 anos, casada com homem 14 anos mais velho, não
tem filhos. Vem de uma família em que a mãe “anulou-se como mulher”.
Sandra conviveu com sua mãe até seus 7 anos de idade, pois ela faleceu de
câncer de mama, deixando Sandra e seu irmão, 11 anos mais velho, sob os
cuidados do pai. Este irmão, que estava então prestando serviço militar,
afastou-se de casa por não manter boas relações com o pai e por revoltar-se
com a entrada de uma segunda esposa, que o pai impôs menos de seis
meses após o falecimento da mãe deles.
Sandra: “...quando tento dizer alguma coisa, ele (o marido) me diz
que eu me enrolo toda pra falar, começo dizendo uma coisa e acabo afirmando outra e ele se irrita e diz que estou pra ficar menstruada. Isso me deixa
como se tivesse um bicho dentro da minha barriga me comendo por dentro,
fico com um nó na garganta!!!”
Sandra freqüentemente não descrevia seus sentimentos, mas as sensações corporais que assumiam o papel dos afetos. Falar sobre a morte da
mãe, a raiva que sentia da madrasta e sobre a negativa de sentimentos do
pai lhe remetia a dores no estômago, de garganta e crises de tosse. Não
obstante, sessões foram encerradas devido às somatizações que impediam
sua permanência dentro do consultório, levantando-se em atitudes de fúria,
muitas vezes. Acusava-me de “sádica”, pois eu estava ciente que tais assuntos lhe faziam mal e eu os abordaria propositalmente.
Evitava qualquer associação entre suas somatizações e suas dores
psíquicas, empobrecendo o discurso e bloqueando o processo analítico, projetando em mim seus sentimentos mais hostis, contidos desde a infância. Sua
demanda de tratament o já não se configurava mais sobre seu relacionamento
amoroso, mas sobre seu ódio, que sem direção, articulava-se no sentido de seu
corpo físico e delatava a desordem inconsciente de seus sentimentos, revelada através de seu discurso agressivo e provocativo. Provocava um abandono,
testando meus limites, isto é, até onde eu suportaria suas investidas agressivas para daí então passar a confiar em mim, temendo obviamente vincular-se.
3
Nome fictício para proteger a verdadeira identidade da paciente.
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BOLLA, R. Psicossomática: um olhar...
Uma de suas grandes preocupações era o fato de que não confiava
nas pessoas, pois (segundo a paciente) todos os homens a trairam. O pai
traíra a mãe e quando esta cedeu seu lugar à Sandra (quando de sua morte),
ele não hesitou em colocar outra mulher para cumprir o papel que Sandra, no
auge de seus 7 anos, imaginariamente pensou poder assumir. Seu sentimento de abandono, aliado ao de traição, passou então a reger seu lugar. A
necessidade do olhar estruturante do outro passou a colocá-la num lugar
passivo, aguardava que eu a abandonasse e, ambivalentemente, propunha
trocas para que eu suportasse suas investidas hostis. Estes sentimentos
ambivalentes com relação às figuras femininas, iniciados com o abandono
da mãe (através da morte) e a passividade de sua madrasta perante seu sofrimento, transformaram as mulheres em seres passíveis de desconfiança.
Quando criança e angustiada por algo, além de ser forçada a calar-se
para não indispor seu pai, orientada pela madrasta, Sandra barganhava seus
desejos com este. Recorda-se de que quando chorava ele oferecia doces e
presentes para que suspendesse seus reclames, provocando seu silêncio e
oferecendo ainda, uma compensação por isso. Coloco que comigo não teria
a oportunidade de estabelecer essa troca: estava ali justamente pela minha
receptividade de escuta. Isso a desarma e algumas semanas depois volta
com a notícia de que uma fonoadióloga havia lhe encaminhado para um cirurgião otorrinolaringologista, para uma investigação maior de seu caso. Seu
pânico com a palavra “cirurgião”, mencionada pela fonoaudióloga, fez não só
com que se negasse a procurar tal médico, mas também alertou-a para uma
possibilidade nunca antes considerada. O problema orgânico não seria seu,
mas de um outro corpo, paralelo ao seu, um outro desconhecido. O fantasma da doença de sua mãe começou a se fazer mais claramente presente.
Sua angústia de castração, associada à necessidade do olhar do outro,
transformando-a em alguém que inspiraria cuidados e que seria finalmente
acolhida, levaram-na a consultar o especialista do orgânico.
Sandra fez uma bateria de exames e, após o resultado clínico destes,
uma cirurgia foi marcada para que fosse extraído de suas cordas vocais um
tumor maligno de rara tipologia. Passado este período, onde longas horas de
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SEÇÃO TEMÁTICA
solidão e silêncio preencheram sua vida, Sandra retorna ao consultório assustada com aquilo que foi capaz de produzir, pedindo um tempo da sua
análise para que pudesse reorganizar sua vida, para resignificá-la a partir da
constatação de que sua verdadeira doença não era somente o tumor nas
cordas vocais, mas sim a clivagem entre o corpo e a psique, culminando
com a tentativa do soma de se proteger de seu conteúdo não simbolizado.
Finalizando este trabalho, proponho que um maior número de profissionais que pensam o ser humano como um todo, possam se questionar sobre a tênue linha entre o orgânico e o psíquico; sobre o poder preventivo da
resignificação simbólica, considerando que o adoecer e a escolha do órgão
afetado sejam fatores resultantes do modo de estruturação das cadeias
significantes que formam o inconsciente. Significantes estes, inerentes à
cultura contemporânea e particular de cada história individual, de cada representação, destruidora ou não, que induzem ao desejo e à capacidade criativa desse indizível, do irrepresentável, isto é, “a metáfora da morte: o terreno
limite do analisável” (McDougall, p.142).
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FREUD, Sigmund. (1893-5). Estudos Sobre a Histeria. Rio de Janeiro : E. S. B./
Imago, 1969. v.II.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1998.
LOBATO, Oly. O Problema da Dor. In : MELLO FILHO, Julio ; et alii. Psicossomática
Hoje. Porto Alegre : Artes Médicas, 1992.
LOSS, Luciane da Luz. Psicopatologia da Vida Orgânica. In : Correio da
APPOA. Nº 90. Porto Alegre, 2001.
MAGALHÃES, Álvaro. Dicionário Enciclopédico Brasileiro. Porto Alegre : Globo,
1963.
McDOUGALL, Joyce. Em Defesa de uma Certa Anormalidade. Porto Alegre : Artes
Médicas, 1991.
MELLO FILHO, Julio de. Concepção Psicossomática: visão atual. Rio de Janeiro :
Tempo Brasileiro, 1979.
_____ ; et alii. Psicossomática Hoje. Porto Alegre : Artes Médicas, 1992.
WARTEL, Roger ; et alii. Psicossomática e Psicanálise. Rio de Janeiro : Jorge
Zahar Editor, 1990.
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MARTTA, A. K. Pensando sobre obesidade...
PENSANDO SOBRE OBESIDADE MÓRBIDA
Alessandra Kuhn Martta
O
besidade é um dos assuntos mais discutidos nos tempos de hoje,
pois nunca se falou tanto sobre esse problema, que atinge 12% dos
brasileiros, sendo que 40% estão acima do peso. Nos Estados
Unidos, 8 em cada 10 americanos estão acima do peso e, no Brasil, são 4
em cada 10 brasileiros. Existem vários níveis de obesidade, sendo que neste
trabalho se abordará um dos níveis mais altos que é a obesidade mórbida.
No trabalho de avaliação psicológica em pacientes obesos mórbidos,
que serão submetidos à cirurgia bariátrica ou de redução do estômago, deparo-me com a questão: o que leva alguém a comer tanto a ponto de prejudicar sua saúde, tendo que se submeter a uma cirurgia, com todos os seus
riscos, para tirar um pedaço de um órgão de seu corpo?
Isso faz pensar num comportamento agressivo desses pacientes obesos mórbidos, como o próprio nome já refere. O sujeito transforma o seu corpo,
deforma as suas formas. Além disso, o paciente fica totalmente excluído, trancado em casa, sem ter uma vida social, sexual e afetiva. Com certeza, essa
questão, remete mais uma vez, à morbidade da doença, à pulsão de morte.
Esse comportamento também reporta à questão do sintoma, pois todo
o sintoma tem seu lado destrutivo, porém, na obesidade, esse sintoma é escancarado. Por outro lado, apesar de ser claro para nós, para os pacientes é algo
muito difícil de enxergar. O paciente obeso mórbido tem uma grande dificuldade
de pensar sobre o seu problema. Até o ato de comer ele nega, colocando a culpa
de sua obesidade na genética familiar ou em problema hormonal qualquer.
Sabe-se que o nosso corpo é o primeiro e mais eficaz alvo onde se
podem colocar nossas angústias, deslocando questões psíquicas que não
estão bem. Por isso, hoje, o campo da psicossomática está cada vez mais
amplo, estudando a forma que o sujeito encontra de pedir ajuda, pois quando não é possível falar, o corpo mostra, o corpo fala. Aí surge uma questão:
que fala é essa que aparece no corpo do obeso mórbido?
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MARTTA, A. K. Pensando sobre obesidade...
Antonio Quinet em seu livro A descoberta do inconsciente: do desejo
ao sintoma, cita Lacan dizendo: “(...) o corpo do humano não se desvincula
do sujeito do inconsciente. É no corpo humano que o simbólico toma corpo,
pois o corpo ao ser levado a sério é, primeiramente, aquilo que pode trazer a
marca para ser colocado em uma seqüência de significantes”.
Quando se pensa na questão do sintoma ela remete inicialmente à
idéia de sofrimento, de algo que incomoda e atrapalha a vida das pessoas.
O sintoma é o sinal de um conflito inconsciente. Ele é o retorno de
uma satisfação sexual recalcada, uma formação de compromisso. É a verdade do sujeito do inconsciente e ocupa o lugar de uma falta, como se fosse
uma prótese, tendo uma função de organizar o psiquismo.
Mas não se pode pensar em sintoma sem questionar o gozo que ele
proporciona para o sujeito, este gozo que deixa o sintoma articulado com o
desejo inconsciente, com o desejo do Outro.
Pensando na obesidade mórbida como sintoma, é impossível não
questionar sobre o que se deu na vida dessas pessoas para que esse sintoma se constituísse. Apesar de ter em mente que nenhum caso é igual a
outro, é necessário pensar naquilo que aparece em comum nesses casos
que, em seus desdobramentos, resultam nesse sintoma.
Lacan fala que é a partir do lugar que o sujeito ocupa na relação edípica
que um sintoma se constrói, e que a função paterna está diretamente relacionada com o sintoma. Essa maneira de pensar sobre a obesidade mórbida
parece ser um caminho que encontrei entre tantas questões levantadas. É o
que percebo da minha observação clínica.
Veja-se o que uma paciente relata após alguns meses da cirurgia:
Eu sinto um vazio. O que me escondia está indo embora e eu não
estou conseguindo lidar com tudo isso que está acontecendo. Onde está
meu casulo? Eu queria me soltar no mundo e agora que isso está acontecendo eu não sei o que fazer. Sempre quis ser desejada pelos homens,
mas agora que isso começou a acontecer não sei como lidar (J.C. 22 anos).
Essa mesma paciente se referindo a um menino de quem gostava
disse: Se ele me vir pelada, ele sai correndo. Logo em seguida, começou a
falar de seu medo de engravidar. Essa paciente traz em sua história o fato de
que sua mãe engravidou dela antes de casar.
Pensando nesse caso, tenta-se entender o que aconteceu ou o que
não aconteceu para que J.C. precisasse comer tanto. Ela fala que a gordura
fazia o papel de um casulo, algo que a protegia dos homens; poder-se-ia
pensar que era algo que fazia a interdição do desejo pelo pai? Como essa
relação problemática com seu desejo ficará após a cirurgia? Como será
emagrecer e perder sua proteção?
O complexo de Édipo tem uma função fundamental na constituição do
sujeito e, conseqüentemente, no destino de seus desejos.
Outro caso é o de uma paciente que está em processo de avaliação.
Também mostra a questão edípica. Relata que ficou quatro horas presa no
cordão umbilical e que, por esse motivo, a mãe não gostava dela. Seu pai,
que sempre quis ter uma menina e preencheu esse vazio que a mãe deixava
com muito carinho e afeto. Quando ela tinha 13 anos, sua mãe proibiu o pai
de beijá-la e pegá-la no colo, fazendo com que se separasse um pouco do
pai. Ela diz: Ela sempre teve ciúmes de mim com o pai. Era como se fossemos
duas inimigas dentro de casa (A. L. 34 anos).
A.L. fala de uma época em que emagreceu bastante e ficou bem:
Quando emagreci, eu sentia um vazio dentro de mim e voltava a comer.
A questão da sexualidade remete a outro caso: a paciente ficou obesa na fase adulta, quando quis engravidar do segundo filho, e seu marido não
quis em função de problemas que ela teria tido na primeira gravidez. Ela produziu um ato falho ao contar essa história, ao dizer a palavra “engordei” disse
“engravidei”. A gordura surgiu e se manteve no lugar da gravidez, sendo que,
no mesmo momento em que engordou, parou de trabalhar ficando apenas
em casa cuidando da filha. Essa paciente se refere a sua gordura como uma
capa: Vou ficar sem aquela capa (J.L. 36 anos).
Parece ficar claro nesses casos, que a obesidade encontra-se inseparável da questão da sexualidade e que ela protege e esconde o sujeito de
algo, talvez de seus próprios desejos. Como será para cada um perder essa
proteção? Pois é uma capa de gordura, um casulo que parece ocupar, além
de um grande espaço físico, um grande espaço psíquico também; além de
esconder as formas do corpo, parece esconder outros sintomas do sujeito.
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MARTTA, A. K. Pensando sobre obesidade...
A exemplo disso, uma paciente, após dez meses da cirurgia, começa a
relatar sintomas obsessivos que antes não conhecia. Dizia ela: Será que eu
era assim e não sabia? Eu não estou me conhecendo (A. R. 27 anos).
A questão da agressividade está presente também na cirurgia. Qualquer procedimento cirúrgico é invasivo, agredindo o corpo, e a cirurgia bariátrica
prevê modificar ou retirar um pedaço de um órgão, que é importante frisar,
não está doente, é um órgão sadio.
Pode-se pensar que a cirurgia proporciona um corte, um corte real
que pode, talvez, ter um fim simbólico, inscrever-se como corte simbólico.
Existe uma dificuldade do paciente em encontrar o seu limite, antes e também depois da cirurgia; a quantidade de alimento que pode ingerir continua
sendo uma dúvida. A questão é: a relação com a comida não muda, não se
tem limite para comer e nem para engordar. O corpo vai aumentando, dificultando os movimentos e, até mesmo, a sua higiene. É como se fosse um corpo
sem bordas, sem limitações, como se a qualquer momento pudesse explodir.
É necessário abordar também a questão “milagrosa” que a cirurgia
bariátrica apresenta. Pode-se imaginar o que é para alguém, que passou sua
vida inteira fazendo regimes, a possibilidade de emagrecer sem ter que passar pelo sofrimento de uma dieta alimentar. Após um ano, o paciente volta a
comer uma quantidade maior de alimento, quase como anteriormente, e o
que o faz emagrecer é a pouca absorção dos alimentos, fazendo com que
haja um aumento no número de evacuações.
Dessa forma, é impossível não pensar na cirurgia bariátrica como a
solução para o problema da obesidade, pois ela traz uma melhor qualidade
de vida ao paciente em relação a sua imagem e à saúde física, afinal existem
várias doenças associadas à obesidade. Porém, não se pode esquecer das
conseqüências negativas da cirurgia como a queda de cabelo pela baixa
absorção de vitaminas, pelo aumento do número de evacuações diárias e o
odor que elas passam a ter, trazendo muito constrangimento. A cicatriz do
corte também é um incômodo.
A questão de maior preocupação na prática deste trabalho é: como
será para esse sujeito lidar com um corte no seu sintoma, de forma tão
brusca como essa? É fundamental nos perguntarmos: Para onde e como
será recolocada aquela angústia que antes era colocada na comida? Que
outro destino encontrará esse sintoma? Este destino incerto é um risco,
tanto para o paciente, quanto para o médico.
O paciente obeso coloca todas as suas frustrações e problemas na
obesidade; sua infelicidade, seus fracassos e derrotas são sempre em função do seu peso e da sua aparência. No seu imaginário, existe a idéia de
que uma pessoa magra é feliz pelo simples fato de ser magra. Por isso,
existe um grande investimento por parte do paciente nessa cirurgia, pois
além de resolver sua obesidade, o paciente tem uma idéia utópica de que
resolverá todos os seus problemas. Alguns relatos colocam esta questão de
forma clara: Eu colocava todos os meus problemas na minha obesidade, eu
centrava tudo nisso e agora meu peso está indo embora, e os meus problemas ainda continuam comigo (J.C. 22 anos).
Antes eu pensava que todo magro era feliz. Hoje vejo que não (A. R.
27 anos).
Eu pensava que eu não sentiria mais vontade de comer e que a cirurgia
resolveria todos os meus problemas. Hoje vejo que não é assim (C.C. 28 anos).
A cirurgia é vista como a sua salvação. E é aqui que entra uma outra
questão que se enfrenta no atendimento a esses pacientes. Eles procuram
o médico, que proporcionará a sua salvação e, chegando lá, encontram
também uma psicóloga que irá questioná-los. É difícil este trabalho, por não
existir uma demanda em pensar sobre isso. O papel do psicólogo, além da
avaliação e preparação para a cirurgia, é também o de sensibilizar aqueles
sujeitos para que possam se questionar sobre sua vida e sua doença, enxergar um pouco mais sobre seu problema.
A cirurgia bariátrica resolve a doença física, do corpo, mas a doença
psíquica não é solucionada com ela; ela intervém no sintoma e não na sua
causa. A cirurgia é um pedido para calar essa angústia sem dar espaço para
se falar sobre o que leva cada um a engordar. Penso ser aqui onde a psicanálise encontra seu lugar nesse processo, além, é claro, de sustentar uma
melhor relação médico-paciente, fazendo com que a equipe interdisciplinar
possa lidar de forma específica e adequada com cada paciente, conforme a
singularidade de cada um.
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SEÇÃO TEMÁTICA
NEDEL, M. M. O papel da mãe num caso...
O PAPEL DA MÃE NUM CASO DE ANOREXIA NERVOSA
Marli Möller Nedel
D
aniela* veio a tratamento por intermédio de sua mãe, que me procurou para falar dos problemas da filha, principalmente da dificuldade
em se alimentar. A partir dai, Daniela me ligou e marcamos a primeira consulta.
DADOS SOBRE DANIELA:
O desenvolvimento físico de Daniela se deu dentro dos padrões normais. Como a mãe não trabalhava fora, era-lhe companhia constante. A
(oni)presença da mãe limitou, em parte, o desenvolvimento de sua autonomia e de seus contatos sociais. Em uma sessão Daniela disse: Talvez se
minha mãe tivesse trabalhado fora, como tantas outras mulheres, eu hoje
não seria tão insegura, não seria tão dependente dela, teria mais facilidade
em me virar sozinha.
Daniela freqüentou o Jardim de Infância sem problemas. Entretanto,
ao ingressar na 1ª série, chorava muito em sala de aula, pedindo por sua
mãe. E pensava: o que poderia haver de mais importante para minha mãe,
no mundo lá fora, do que estar comigo? Como Daniela “não se adaptava” à
vida escolar, a escola recomendou tratamento psicológico. A menina não
gostou da psicóloga, desde o primeiro dia. Entretanto, os protestos de Daniela
não encontraram eco junto à mãe e o tratamento continuou ao longo daquele
ano. Ela, afinal, adaptou-se à vida escolar, apresentando sempre bom rendimento intelectual, mas com algumas dificuldades na vida relacional. No 2º
grau, teve alguns namorados, mas nada sério, até que conheceu Roberto*,
com quem namora desde então.
* Nomes fictícios.
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
INÍCIO DO TRATAMENTO:
Quando Daniela veio a tratamento, estava comendo pouco e havia
emagrecido bastante. Como eu não a conhecia anteriormente, não tinha
como avaliar seu emagrecimento. Para mim, tinha boa aparência, enquadrando-se no estilo “moderno” de as jovens serem bastante magras. Vinha à
consulta sempre bem vestida, dentro dos padrões da moda jovem. Cerca de
um ano antes, havia comido algo que lhe fez mal no restaurante de um
shopping center. Ela acabara vomitando, ficando bastante vexada e não querendo mais ir a shopping algum para comer. A aversão aos restaurantes dos
shoppings acabou se estendendo a qualquer restaurante, e daí, a qualquer
evento que envolvesse refeição. A este respeito, dizia ela: eu simplesmente
não consigo engolir...Só de pensar em ter que comer, já me dá um ‘bolo’ no
estômago, já começo a passar mal...
Segundo ela, o problema maior era a insistência das pessoas para
que ela comesse, o que acabou gerando evitação de lugares e situações
sociais onde houvesse comida.
Havia, entretanto, uma exceção, só mencionada mais tarde: em casa,
podia comer a comida feita pela mãe. Comida, só pela mãe. O lar parece ter
sido sempre associado com confiança, segurança, enquanto o “lá fora” seria
suscetível de desconfiança e de possível “perigo”.
Uns dois meses antes de iniciar o tratamento, nem a comida (feita)
pela mãe a atraía e ela comia cada vez menos. Conseqüentemente, estava
emagrecendo, o que preocupava a todos. Daniela associou este agravamento de sua rejeição pela comida com a (pre)ocupação em decidir se mudava
de curso, ou não, para o próximo ano. Valeria a pena? Havia ainda a resistência da mãe em relação ao novo curso. Se não fez oposição acirrada, também
deixou claro que “não era do seu gosto”. Poderia ela contrariar a mãe e
arriscar-se a ficar sozinha?
Outro problema de Daniela, na ocasião, eram freqüentes “atuações”.
Não podendo expressar sua angústia, seu desamparo “simbolicamente, através de palavras, expressa(va)-se no real, através de atos; porém, atos com
intenção simbólica”. (Ramalho 2001, p.117).
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
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SEÇÃO TEMÁTICA
NEDEL, M. M. O papel da mãe num caso...
Daniela, mesmo aos vinte anos, não andava sozinha de ônibus, nem
de lotação. Não dirigia, embora tivesse habilitação. Fazia acompanhar-se da
mãe até para fazer a matrícula na universidade, porque, indo sozinha, “ficaria
muito nervosa”. Quando prestou o concurso vestibular, a mãe também a
acompanhou, em todas as provas. Em algumas situações, estar só a deixa
em situação de desamparo. A ansiedade retorna. Como diz Freud, em “Inibição, sintoma e angústia”: “...a ansiedade surgiu originalmente como reação
a um estado de perigo e é reproduzida sempre que um estado dessa espécie
se repete” (p.l57). Para Daniela, ficar só contém uma ameaça de aniquilamento, sentimento que ela já viveu anteriormente, em sua infância. Continuando, na obra citada de Freud: “a ansiedade aparece como uma reação à
perda sentida do objeto (...), e a mais primitiva ansiedade (...) ocorre por
ocasião de uma separação da mãe” (p.l6l). A mãe e o namorado de Daniela
– seus dois grandes amores – são seus suportes narcísicos e ela precisa de
sua presença e atenção constantes.
A (oni)presença da mãe em sua primeira infância propiciou que Daniela
vivenciasse situações de fort-da, de forma precária. A ausência da mãe era
sempre tida como abandono, sentimento este também referido por Ramalho
(200l, p.97) quando nos aponta que “tal fantasma de abandono apresenta
(...) uma estreita ligação com a angústia princeps feminina – temor da perda do amor, ou seja, do amor-espelho que lhe fornece uma imagem, uma
identidade para si (...) não só feminina, mas inerente a todo sujeito contemporâneo”.
Esta mãe também pouco escutou Daniela como um ser diferenciado
de si. Quando a menina não se acertou com a psicóloga, a mãe não a
escutou e continuou o tratamento. Se Daniela se tornou tão dependente da
mãe, há também uma implicação da mãe nesta dependência. Uma vez,
perguntei por que Daniela deixava que sua mãe tomasse as decisões por
ela, por que não se opunha a estes “avanços” da mãe. Ela respondeu: Oporse como? E arriscar-se a ficar sozinha, abandonada?
Mário E. C. Pereira, em seu livro “Pânico e desamparo”( l999, p. 232),
ressalta que “para Lacan, a dependência da criança em relação à mãe é
sobretudo uma dependência de amor...”. A mãe de Daniela, conforme o discurso da filha, tem dificuldade de vê-la como ser diferenciado, com opiniões
próprias. Por isso, como diz Ramalho (200l, p. l04), “podemos pensar que a
recusa (...) consiste na única forma obtida de se rebelar, de dizer não ao
outro – negação esta necessária ao acesso a uma condição subjetiva...
Estabelece-se assim a problemática do domínio versus submissão, continente versus conteúdo, por se encontrarem fragilizados os limites, tanto
corporais, quanto psíquicos”. Assim, continua Ramalho, “...a recusa da comida... consiste numa tentativa de inscrever uma falta, uma diferença, um
limite. Porém, por não se ter dado por uma via simbólica, faz-se pelo real do
corpo, através do ato.”(P.l09) ( grifo meu).
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
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ALGUMAS QUESTÕES DO TRATAMENTO:
Como as queixas de “comer pouco” ou “não comer” e da evitação de
comer fora de casa, pareciam ser a questão mais emergencial para Daniela,
uma das primeiras vias que escolhi trilhar foi a da “autorização” para que ela
comesse a quantidade de comida que lhe aprouvesse. Ao tradicional “Coma!
Coma!”, foi colocada a proposta de se autorizar a manejar sua ingesta. Por
que não? Na época, percebi que este “Coma!Coma! a estava invadindo de tal
maneira, que Daniela se sentia a sucumbir ante tal pressão. Ela parecia
estar “sem fronteiras”. Como a mãe equacionava “lar=segurança=
confiabilidade” e “fora=insegurança=não confiabilidade”, o “comer fora” passou a ser ameaçador. Durante um bom tempo, a comida da mãe esteve a
salvo, até que, pressionada pela (in)decisão de mudar de curso, a questão
se agravou, sendo que até a “sagrada” comida da mãe também passou a ser
alvo de rejeição. Ora, mudar de curso implica em separação, uma questão
difícil para Daniela. Mudar de curso é separar-se dele e, de certa forma,
aventurar-se em outro, sem garantias. E se não gostar? Vai sentir falta do
anterior? E como, quem esteve sempre tão preenchida pela mãe, enfrentaria
a falta? A mãe era, praticamente, sua segunda pele. Como ficar sem ela?
Uma das queixas de Daniela era que “não podia engolir” – engolir o quê?
Certamente, não a comida. Na verdade, o que Daniela não podia mais engolir
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SEÇÃO TEMÁTICA
NEDEL, M. M. O papel da mãe num caso...
era a mãe. Engolir a mãe ou por ela ser engolida – esta era a ameaça. Não
foi isso que ela disse?: Comida, só (feita) pela mãe. Ante uma mãe invasora,
se a filha quiser sobreviver terá que estabelecer fronteiras entre as duas,
fronteiras que devem ser efetivas e respeitadas.
Para Daniela poder se separar do curso não desejado (entenda-se
bem: curso (via, caminho) não desejado teve também que se separar da
mãe, via (!) rejeição de sua comida, que é um dos máximos representantes
dos cuidados maternos. Assim, sua anorexia foi uma tentativa de separação
da mãe, de estabelecer fronteira entre a mãe e ela. Rejeitar a comida da mãe
foi um dos últimos recursos disponíveis à Daniela, a fim de preservar sua
identidade. Foi um grito desesperado (embora mudo) no sentido de dar um
“basta!” às interferências da mãe, ou a sua própria dependência da mãe.
Uma vez estabelecida esta fronteira, Daniela foi gradativamente enfrentando a avalanche dos “coma! coma!” e se autorizando a comer pouco,
ou, às vezes, nem comer.
A partir do tratamento, houve vários progressos, Daniela já anda de
lotação, às vezes dirige o carro da família. Trocou de curso, fez novo vestibular, foi aprovada. Há dois semestres, faz sua matrícula sozinha, sem a mãe.
Como bolsista, participa de projetos importantes, visita empresas, até no
interior. Está se tornando mais autônoma, dispensando, em várias ocasiões, a
interferência da mãe. Tem até discordado dela e sustentado suas posições.
Como Freud considera a Hilflosigkeit (o desamparo) inerente à condição humana, temos mesmo que nos haver com a falta, com a ausência de
garantias, enfim, com a castração.
Daniela, no início da vida, teve muitas dificuldades em lidar com o
Fort-da, sem poder levar a efeito a separação necessária entre ela e a mãe.
Sua anorexia chegou ao ponto máximo com a urgência em decidir sobre a
mudança de curso que daria em sua vida. A comida da mãe, antes tão
valorizada, foi o último reduto de resistência, onde batalha decisiva foi travada para seu grito de independência, de sobrevivência como sujeito.
A anorexia que se instalou primeiramente em relação à comida fora
de casa e depois com a recusa da comida da mãe foi também a recusa da
mãe, que muitas vezes a via como sua extensão. Foi uma tentativa – dramática – de estabelecer uma fronteira entre ela e a mãe, já que as palavras
ditas por Daniela não eram escutadas. O corpo foi então o porta-voz ( literalmente) das angústias de Daniela em se fazer ouvir por esta mãe.
Agora, Daniela já está conseguindo nominar suas angústias, fazer-se
ouvir, assumir determinadas posições, deslocar essa visão monolítica sobre
seu relacionamento com as pessoas a quem ama, ver as coisas sob outros
ângulos, como ela diz. Está conseguindo substituir os atos por palavras,
simbolizar suas faltas, seus limites, acedendo assim a uma posição de sujeito.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, Sigmund. “Inibição, sintoma e angústia”(l926). In: Obras Completas, v.
XX. Rio de Janeiro: Imago, l987.
PEREIRA, Mário E.C. Pânico e desamparo. São Paulo: Escuta, l999.
RAMALHO, Rosane M. “Anorexia e bulimia: manifestações do sofrimento feminino hoje”. São Paulo: PUC, 200l. Dissertação de Mestrado.
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SEÇÃO DEBATES
GURSKI, R. Os meninos de preto.
“OS MENINOS DE PRETO”1
Roselene Gurski
U
“
m dia quero que todos saibam o meu nome. Quero ser famoso”.
Desta forma, o jovem alemão, de 19 anos, noticiado nos maiores
jornais do mundo, antecipava os motivos da chacina que realizou na
pequena cidade de Erfurt, antiga Alemanha Oriental. O estudante, expulso
dias antes da Escola de Gutenberg, entrou, às 11 horas, do dia 26 de abril de
2002, na sala de aula, onde seus colegas começavam uma prova de matemática e disse: “de qualquer forma, não vou escrever nada”. Após estas
palavras começou a atirar e só parou, duas horas depois, ao desferir o último
tiro, aquele que tiraria sua vida.
Temos visto, cada vez com mais freqüência, jovens adolescentes autores de crimes, seguidos ou não de suicídio. Em fevereiro de 2002, um
estudante, também alemão, matou 3 pessoas antes de se suicidar. Chacinas semelhantes já foram protagonizadas por jovens das mais diferentes
nacionalidades e nós, aqui, do lado debaixo do Equador, temos nossas versões locais. A violência das gangues de traficantes, nas escolas da Restinga,
por exemplo, mostra a barbárie de nossos adolescentes.
Perguntamos, que ausência de perspectivas faz com que nossos jovens precisem escrever seus nomes com atos brutais? Será que o problema
está na posse ilegal de armas, conforme discussão recente do parlamento
alemão? Ou será que temos que refletir sobre as condições sociais e culturais que propiciam a banalização da delinqüência?
Sabemos que um dos efeitos da sociedade industrial foi a introdução
de novos padrões educativos. Numa espécie de “cruzada iluminista” junto à
família, a indústria da saúde, aliada à ciência, assumiu boa parte da formação das crianças já que promoveu a intervenção de inúmeros especialistas
1
na educação infantil. Esta nova “ordem” acabou produzindo os pais “soft” da
modernidade que, pressionados pelos manuais educativos de nossa época,
parecem sentir-se mais seguros em medir seus atos pela cota de psicologia
neles contida do que pela autoridade de sua experiência pessoal. Toda essa
invasão da família pelos “agentes da paternidade socializada” foi alterando a
qualidade das relações familiares e lesando a via simbólica da autoridade,
sobretudo porque tal psicologização da educação produziu efeitos também
no âmbito legal.
Os tribunais de menores, criados no final do século XIX, nos EUA,
eram também denominados tribunais terapêuticos pois, neles, as transgressões, ao invés de serem punidas com sanções legais eram combatidas com
correção moral e auxílio psíquico. Não estamos, com isso, criticando as leis
que protegem crianças e adolescentes de terem seus atos julgados sob os
mesmos critérios dos adultos, mas, precisamos observar que as transgressões de nossos jovens são efeitos das condições que a estrutura social
oferece a eles.
Afinal, quando os dispositivos que organizam o laço social falham em
oferecer ao sujeito um lugar simbólico desde o qual se inscrever, nasce um
cenário fértil para atos como o protagonizado pelo jovem alemão. A cena que
ensejou sua morte mostrou a necessidade de um ato simbólico o suficiente
para lhe dar o reconhecimento que não foi possível conseguir em vida: “Um
dia quero que todos saibam o meu nome...”.
Ora, sabemos que quando uma pessoa não encontra, no tecido social, meios de se fazer representar, acaba, muitas vezes, buscando vias extremas de acesso ao reconhecimento. Na esteira desta discussão, não é difícil
perceber que a superficialidade dos valores de nossa época, associada à
dificuldade de pais, educadores e das instâncias sociais atuais de inscreverem a noção de autoridade, produz o limbo no qual nossos meninos de preto
debatem-se, ficando, pelo medo do apagamento simbólico, sem outra escolha a não ser inscrever seus nomes com sangue. Como disse o jovem alemão, “de qualquer forma, não vou escrever nada.”
Artigo publicado na seção Opinião do jornal Zero-Hora, em 31/05/2002.
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
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RESENHA
RESENHA
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE
DE FREUD A LACAN
AS BASES CONCEITUAIS
JORGE, Marco Antônio Coutinho. Fundamentos da psicanálise de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000. 192p.
O
objetivo deste livro foi recolocar a questão freudiana, insistida por Lacan sobre
o que é o inconsciente, base sobre a
qual repousa toda a teoria psicanalítica. Por este
tema não estar suficientemente trabalhado e claro, na opinião do autor, ocorreram muitos equívocos e mal-entendidos, tanto da parte dos psicanalistas como de outras áreas do saber, que recusaram sistematicamente os achados da psicanálise. O conceito de inconsciente é retomado em
toda sua extensão, porém privilegiados as vias da evolução da espécie,
como o missing link tão procurado na emergência do sujeito humano, e o
inconsciente estruturado como uma linguagem. As acepções freudianas e
lacanianas respectivamente são tomadas como abordagens imprescindíveis e complementares.
Como o livro é uma versão modificada da tese de doutorado do autor,
que tem também o desejo ser apreciado por outros saberes, além das articulações inovadoras, pode-se contar com uma excelente revisão bibliográfica
dos conceitos fundamentais da psicanálise de Freud a Lacan, no sentido do
rigor teórico científico, e na concisão e clareza com que são apresentados.
O inconsciente freudiano reestruturado por Lacan tem o nome de real
simbólico e imaginário. O real é o que da pulsão é impossível de ser simbolizado. Objeto a forma o núcleo do inconsciente, como um vazio em torno do
qual se estrutura o inconsciente no simbólico como linguagem. Uma das
questões fundamentais, para o autor é como ocorreu a evolução da espécie
do instinto à pulsão e, portanto, qual o motivo do recalcamento da sexualidade, uma vez que não se pode tomar como um processo natural. Indica ele,
que com a aquisição da postura ereta no homem, o olfato foi perdendo cada
vez mais a sua finalidade como atrativo sexual da espécie; onde “... a urina,
as fezes e toda a superfície do corpo, inclusive o sangue, tem efeito sexual38
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
mente excitante”1. O olfato estava indissociável da sexualidade e até aquele
momento da reprodução. Nos mamíferos, diferente dos primatas, as fêmeas
exalavam um cheiro características (estro) quando estavam prontas a procriar, incitando o macho. Esta forma primordial de acasalamento cedeu
gradativamente lugar ao estímulo visual como encanto sexual independente
da reprodução. A visão, neste sentido, diferente do cheiro é livre de ciclos,
não se encontra atrelada à continuidade da espécie, para despertar o desejo
sexual. Compartilha, entretanto, muitas características com a pulsão: é contínua exercendo uma pressão constante, e é errática quanto ao objeto. Portanto, requer uma contra-pressão igualmente ininterrupta que funcione como
defesa necessária. O recalque orgânico do olfato, como conseqüência da
postura ereta no homem, seria então o responsável pela passagem da sexualidade instintiva a pulsional. Essa forma sem norma que segue o desejo.
Ao tornar-se bípede o homem recalcou inicialmente o prazer de cheirar (contra-investimento) e posteriormente este recalcamento se estendeu para a sexualidade inteira. Sabe-se que da pulsão não há fuga, que sua satisfação é imperativa e que
a condição do recalque é que a satisfação desta traga mais desprazer do que
prazer. Assim sendo, ao transformar os “Deuses em Demônios”, estabeleceu-se o
paradigma do recalque, o que deve ser mantido longe afastado da consciência.
Propõe o autor denominar este momento do recalque orgânico do olfato, como o
momento zero do recalcamento anterior ao recalque originário e secundário, porém
onde estes já sejam efeitos do recalque orgânico. Propõe ainda nomear o olfato
de pulsão olfativa, que mesmo não estando circunscrita as “fazes da evolução
descritas por Freud, parece, antes disso, estar ligado a cada uma delas de forma
subjacente, sob a forma de pulsão componente”; esta estaria afeita ao desejo do
outro, como a pulsão escópica e invocante, como foi distinguido por Lacan.
O inconsciente freudiano reestruturado por Lacan tem o nome de real
simbólico e imaginário. O real é o que da pulsão é impossível de ser simbolizado. Objeto a forma o núcleo do inconsciente, como um vazio em torno
do qual se estrutura o inconsciente no simbólico como linguagem A linguagem que estrutura o inconsciente no simbólico veio preencher a falta de um
saber instintivo da espécie. É o missng link entre o instinto animal dos
mamíferos, saber inscrito no organismo vivo, e esta falta inerente ao sujeito
homem desde seu nascimento.
Rossana Stella Oliva
1
Carta a Fliess de 11.1.1897
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
39
AGENDA
Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events
in the last decade. London, Hogarth, 1992.)
Criação da capa: Flávio Wild - Macchina
SETEMBRO – 2002
Dia
05, 12,
19 e 26
05
05 e 19
12
Hora
15h
Local
Sede da APPOA
Atividade
Reunião da Comissão de Eventos
20h15min
21h
21h
Sede da APPOA
Sede da APPOA
Sede da APPOA
Reunião da Mesa Diretiva
Reunião da Comissão de Biblioteca
Reunião da Mesa Diretiva aberta aos membros
12 e 26
16 e 30
20h30min
20h30min
Sede da APPOA
Sede da APPOA
da APPOA - Tema: “A direção do tratamento”
Reunião do Serviço de Atendimento Clínico
Reunião da Comissão do Correio da APPOA
ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
GESTÃO 2001/2002
Presidência - Maria Ângela Brasil
a
1 . Vice-Presidência - Lucia Serrano Pereira
2o. Vice-Presidência - Jaime Alberto Betts
1a. Tesoureira - Grasiela Kraemer
2a. Tesoureira - Simone Moschen Rickes
1a. Secretária - Carmen Backes
2o. Secretário - Gerson Smiech Pinho
MESA DIRETIVA
Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria Gageiro, Ana Maria Medeiros da Costa,
Analice Palombini, Ângela Lângaro Becker, Edson Luiz André de Sousa,
Gladys Wechsler Carnos, Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora,
Liliane Froemming, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack,
Marta Pedó e Robson de Freitas Pereira.
EXPEDIENTE
Órgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre
Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RS
Tel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922
e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.br
Jornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956
Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.
Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355
PRÓXIMO NÚMERO
TEMPOS DE MUDANÇAS?
40
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 106, set. 2002
Comissão do Correio
Coordenação: Maria Ângela Brasil e Robson de Freitas Pereira
Integrantes: Ana Laura Giongo Vaccaro, Gerson Smiech Pinho,
Henriete Karam, Liz Nunes Ramos, Marcia Helena de Menezes Ribeiro,
Maria Lúcia Müller Stein e Rossana Oliva
S U M Á R I O
EDITORIAL
1
NOTÍCIAS
2
SEÇÃO TEMÁTICA
3
PSICANÁLISE, CAPITALISMO
E FELICIDADE
Luciano Vignochi
4
DO ECO AO ESPELHO
Maria Lúcia Baldasso
11
PSICOSSOMÁTICA: UM OLHAR
SOBRE A PRODUÇÃO DA DOENÇA
ORGÂNICA A PARTIR DA PSIQUÊ
Roberta Bolla
20
PENSANDO SOBRE
OBESIDADE MÓRBIDA
Alessandra Kuhn Martta
25
O PAPEL DA MÃE NUM CASO
DE ANOREXIA NERVOSA
Marli Möller Nedel
30
SEÇÃO DEBATES
36
OS MENINOS DE PRETO
Roselene Gurski
36
RESENHA
38
“FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE
DE FREUD A LACAN”
38
AGENDA
40
N° 106 – ANO IX
SETEMBRO – 200 2
TRABALHOS DE PERCURSO
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EDITORIAL Acada dois anos, na APPOA, mais uma turma do