PENSANDO A TURMA DE SURDOS COMO ESPAÇO INCLUSIVO Carlos Henrique Rodrigues; Luanda Cardoso Martins Rampinelli; Luciana de Assis Miranda Introdução Nos últimos dez anos, as transformações na educação das pessoas com surdez intensificaram-se significativamente. Uma das evidências dessa transformação é a promulgação de uma legislação específica expressa, por exemplo, na Lei 10.436/02 e no Decreto 5.626/05. Nesse período, o processo educacional de alunos com surdez assumiu novas configurações, devido, dentre outros, à ampliação da presença da língua de sinais na educação e às tentativas de organização do espaço escolar por meio de uma proposta de Educação Bilíngue. Tal proposta fundamenta-se na visão sócio-antropológica (SKLIAR, 1997; SACKS, 1998; RODRIGUES, 2008; 2011), considerando a surdez numa perspectiva cultural, para além de um modelo meramente clínico-terapêutico. Atualmente, com o aumento de alunos com surdez em escolas comuns, ao contrário de décadas anteriores em que esses alunos concentravam-se em instituições especiais, novos desafios têm se tornando presentes no espaço escolar, o qual precisa lidar com a diversidade desses alunos e, também, com a diferença linguística e cultural dos alunos surdos. Assim, diversas escolas comuns brasileiras implantaram propostas específicas para a educação de alunos com surdez, promovendo a construção de uma nova realidade educacional, marcada pelo uso da língua de sinais e, em alguns casos, pela formação de turmas somente com esses alunos. Com base nessa nova realidade educacional, problematizamos as configurações específicas de dois espaços comuns na Educação de Surdos: as turmas com surdos e as turmas de surdos. Nosso objetivo foi refletir sobre as características desses espaços, assim como sobre as oportunidades de aprender e de participar proporcionadas aos integrantes dessas salas de aula. Para tanto, assumindo a lógica da etnografia em educação (GREEN, DIXON ZAHARLIC, 2001) investigamos uma turma com surdos de uma escola pública de Juiz de Fora, Minas Gerais, e uma turma de surdos de uma escola particular em São Paulo, São Paulo. Para tanto, contamos com a observação participante (SPRADLEY, 1980) nesses espaços e, também, com entrevistas realizadas com professores, gestores e alunos. Um dos aspectos evidenciados em nossa reflexão diz respeito aos padrões de interação (CORSARO, 1981) estabelecidos nesses espaços, os quais nos permitem afirmar que as turmas de surdos reúnem condições favoráveis à produção e apropriação de oportunidade de aprendizagem e participação (RODRIGUES, 2008; RODRIGUES, MIRANDA, 2012). Assim, a sala de aula composta somente de surdos, considerada por muitos como um espaço evidente de exclusão restrito à Educação Especial, apresenta-se como um espaço inclusivo ao viabilizar a interação dos alunos numa língua que eles têm possibilidade de usar naturalmente, além de reconhecer o lugar do visual na recepção de informações e de respeitar sua especificidade cultural. Desta maneira, proporciona condições necessárias à acessibilidade na educação, fazendo da turma de surdos um espaço de fato inclusivo. O lócus da pesquisa e sua proposta Considerando-se essa realidade, refletimos acerca da sala de aula, abordando as turmas com surdos e as turmas de surdos. Optamos por tal denominação, visto que ela contribui com uma nova definição desses espaços, permitindo que não tenhamos que recorrer a termos e conceitos já banalizados e carregados de significações muitas vezes pejorativas 1. Segundo Rodrigues (2010) e Rodrigues e Miranda (2012), as turmas com surdos seriam turmas mistas, com surdos e ouvintes, e as turmas de surdos seriam aquelas compostas somente por alunos surdos. É importante esclarecer que assumimos certa diferenciação no uso dos termos pessoas com surdez, surdos e pessoas com deficiência auditiva, visto que a visão sócio-antropológica da surdez permite-nos definir as pessoas surdas em termos culturais. Portanto, quando utilizamos o termo pessoas com surdez, referimo-nos a quaisquer pessoas que apresentam deficiência auditiva, independente da maneira como lidam com ela. Assim, as pessoas com surdez seriam aquelas com perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz. Nesse sentido, ao usar o termo pessoas com surdez focamos na questão sensorial, desconsiderando as especificidades da forma desses sujeitos lidarem com a surdez, ou seja, não levando em conta a perspectiva cultural, a qual polariza essas pessoas em, no mínimo, surdos e pessoas com deficiência auditiva. Partindo dessas definições, a reflexão proposta fundamenta-se na análise de entrevistas realizadas com gestores, com professores de turmas com surdos e de turmas de surdos, de entrevistas com os alunos surdos e com os ouvintes, notas de campo e demais informações coletadas através da observação participante (SPRADLEY, 1980). Vale destacar que a turma com surdos em questão localiza-se em uma escola pública e comum; é uma turma PAV II (Projeto de aceleração da aprendizagem – Acelerar para Vencer) composta por 37 alunos, majoritariamente de 14 e 15 anos e possui dois alunos surdos fluentes em Libras; conta com a presença do tradutor-intérprete de Libras-Português e com professores não fluentes em língua de sinais. Essa turma foi observada em 2011. Já a turma de surdos pesquisada localiza-se em uma escola particular e fundamentada numa proposta bilíngüe; é uma turma do primeiro ano do Ensino Médio composta por 25 alunos surdos fluentes em Libras; é constituída por alunos e por professores surdos e por professores ouvintes que utilizam a Língua de Sinais e a valorizam como língua e não simplesmente como recurso para o ensino do Português e foi observada em 2012. O foco da reflexão e sua perspectiva teórico-metodológica Nesta reflexão, orienta-se por teorias e métodos oferecidos pela Etnografia Educacional (GREEN, DIXON ZAHARLIC, 2001) e pela Sociolingüística Interacional (GUMPERZ, 1982). Os dados coletados por meio de observação participante (SPRADLEY, 1980) foram registrados através de (1) filmagens e (2) anotações de campo. As filmagens foram feitas com o intuito de garantir as releituras sucessivas do cotidiano da sala de aula, a segurança na análise interpretativa dos dados e o maior entendimento da complexidade que constitui a sala de aula com surdos. E as notas de campo tiveram como objetivo registrar as situações vividas na turma e as conversas informais, assim como as percepções, inferências e 1 Certas denominações, tais como, turmas inclusivas, sala de inclusão, classe especial, turma de pessoas com deficiência auditiva, podem evocar certas concepções e idéias que não pretendemos nessa reflexão. comentários dos pesquisadores, para posteriores consultas. Além disso, realizaram-se entrevistas com participantes das turmas no intuito de, numa perspectiva interpretativista (GREEN, DIXON, 1994; CASTANHEIRA, 2004), compreender qual é a visão que tais sujeitos possuem sobre a sala de aula e sobre o processo de ensino-aprendizagem. Destacamos que o período de coleta de dados permitiu que se observasse e conhecesse um pouco da trajetória pessoal e escolar de cada aluno.2 Essas trajetórias, sem dúvida, influenciam a relação que o aluno estabelece com o grupo, com os professores, com a Libras, com o Português e, também, com o ambiente escolar e com o processo de ensinoaprendizagem. O conhecimento da trajetória de cada um deles deu-se através das conversas informais, com eles e com alguns professores e coordenadores. Para amparar nossas reflexões, realizamos entrevistas semiestruturadas com professores, alunos e gestores. Destacamos que as entrevistas e os diálogos com os professores e alunos surdos foram realizados em Libras. O uso da Libras favoreceu a relação entre os professores e alunos entrevistados e os pesquisadores, contribuindo com a identificação dos surdos com os pesquisadores e reduzindo uma possível artificialidade na entrevista. Para essa reflexão, utilizaremos alguns excertos que fazem referência à interação em sala de aula com o intuito de refletir sobre as características de turmas com surdos e de turmas de surdos, assim como sobre as oportunidades de aprender e de participar proporcionadas aos integrantes dessas salas de aula. Vale destacar que o objetivo da transcrição foi o de apenas permitir ao leitor o contato com a fala dos entrevistados. Nesse sentido, suprimiremos os símbolos, visto que algumas delas são traduções da Libras para o Português. Portanto, não serão usadas as convenções comuns de transcrição. Reiteramos que as entrevistas realizadas em Libras foram devidamente traduzidas e registradas em Português escrito. Em síntese, é possível afirmar, com base na observação e nas entrevistas, que os surdos preferem estudar somente com alunos surdos e que é melhor terem professores que usam a língua de sinais e que se comunicam diretamente com eles do que ter um intérprete de Libras-Português. É interessante notar que, mesmo um dos alunos surdos que é oralizado/ sinalizador e que se comunica razoavelmente em Português oral e que, inclusive, consegue interagir com os alunos ouvintes da turma, afirma que estudar em uma sala de surdos seria melhor para a sua interação e aprendizado. Tal fato evidência que para que a sala de aula se constitua como um espaço interacional profícuo à construção e apropriação de conhecimentos é fundamental que todos os seus participantes partilhem uma língua comum. Resultados e considerações Ao contrário do que se pode pensar, a turma de surdos reúne condições favoráveis ao processo de ensino-aprendizagem de falantes de Libras e favorece o processo educacional desses alunos, ao se apresentar como um espaço inclusivo que respeita a especificidade linguística e cultural, ao mesmo tempo em que congrega a diferença e a diversidade. Todos os alunos têm a possibilidade de interagir na língua de sinais entre si e, inclusive, com professores e demais membros da comunidade escolar. É evidente que somente a turma de surdos e o uso da língua de sinais não dão conta da atual proposta de Educação Bilíngue de/para/com Surdos, visto que para a efetivação da mesma não basta apenas colocar os surdos no mesmo espaço físico. Faz-se necessário distinguir, assim como Fernandes (2003, p.54), a diferença entre uma perspectiva bilíngue de “apenas incluir a língua de sinais brasileira como agente redentor do processo educacional do surdo” e outra que “englobe a totalidade do indivíduo em seu meio psicossociocultural”, ou 2 Os nomes da escola, da professora e dos alunos foram suprimidos e, em alguns casos, alterados. seja, que considere o “bilinguismo na educação como um todo nunca dissociado de um projeto educacional”. Nesse sentido, uma Educação Bilíngue pressupõe uma profunda mudança nas organizações, conceitos, diretrizes, metodologias, posturas e concepções educacionais. Assim, para que a Educação de Surdos tenha sucesso, é importante que haja todo um projeto educacional, fundamentado na diferença linguística e cultural desses alunos. Além disso, é importante que se considere a heterogeneidade das pessoas com surdez e as diferenças entre os surdos, no sentido cultural do termo, e as pessoas com deficiência auditiva, já que cada grupo exigirá uma estruturação própria do processo educacional. Algumas propostas inclusivas atuais de Atendimento Educacional Especializado, por exemplo, podem se ajustar bem às demandas das pessoas com deficiência auditiva que têm o Português como língua materna e não são falantes de língua de sinais. Tais pessoas conseguem habituar-se melhor às salas de ouvintes, embora também demandem adaptações para a acessibilidade. Entretanto, observa-se que tal atendimento não se adéqua à Educação de Surdos, falantes de língua de sinais, os quais, em condições similares às apresentadas na proposta educacional da escola bilíngue e da turma de surdos desta reflexão, têm ampliadas suas possibilidades de sucesso escolar. Em suma, os embates teóricos travados em cima de concepções e conceitos de educação especial e/ou inclusiva precisam ser superados em prol da construção de uma educação de qualidade acessível a todos. Visões reducionistas que veem a turma de surdos limitada à antiga noção de educação especial, colocando-a na contramão do atual movimento de inclusão e desconsiderando a realidade dos sujeitos surdos em nome da mera imposição de crenças e concepções, estão cada vez mais ultrapassadas e devem ser substituídas. Portanto, as políticas precisam tratar os alunos ouvintes como ouvintes, os surdos como surdos e os com deficiência auditiva como alunos com deficiência auditiva, considerando as especificidades do indivíduo e visando ao pleno desenvolvimento de suas potencialidades. Referências CASTANHEIRA, M. L. Aprendizagem contextualizada: discurso e inclusão na sala de aula. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. CORSARO, W. A. Entering the child’s world: research strategies for field entry and data collection in a preschool setting. In: WALLAT, C.; GREEN, J. L. Ethnography and language in educational settings. Norwood: Ablex, 1981 FERNANDES, E. Linguagem e Surdez. POA: Artmed, 2003. GREEN, J. L.; DIXON, C. N. The Social Construction of Classroom Life. In: International encyclopedia of English and the Language Arts. v. 2. NY: A. C. Purves in collaboration with Scholastic Press, 1994. p. 1075-1078. GREEN, J. L.; DIXON, C. N. ZAHARLIC, A. Ethnography as a logic of inquiry. In: FLOOD, J.; LAPP, D. (Ed.) Handbook of research on teaching in the communicative and visual arts. NY: Macmillam, 2001. p. 181-202. GUMPERZ, J. Discourse strategies. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. RODRIGUES, C. H. Da margem ao centro: preparando um novo campo de debate e reflexão. Revista de Feneis. n.42, 2011. p.30-34. RODRIGUES, C. H. Situações de incompreensão vivenciadas por professor ouvinte e alunos surdos na sala de aula: processos interpretativos e oportunidades de aprendizagem. 2008. 240f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008. RODRIGUES, C. H.; MIRANDA, L; A. Fronteiras Linguísticas e Culturais no Processo de Ensino-aprendizagem: contrapondo as turmas com surdos às de surdos. Anais do SIELP. v. 2, n. 1. Uberlândia: EDUFU, 2012, p.1-10. SACKS, O. Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. SP: Cia das Letras, 1998. SKLIAR, C. Educação e exclusão: abordagens sócio-antropológicas em educação especial. POA: Mediação, 1997. SPRADLEY, J. P. The etnographic interview. Belmont, CAS: Wadsworth Thomson Learning, 1980.