ENTREVISTA
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FOTOS IZILDA FRANÇA
O aprendizado
pela TV
Após a família e a escola, a televisão
é o elemento pedagógico mais presente
na vida de crianças e adolescentes.
Conteúdos violentos e modelos de
identificação que fogem à realidade, porém,
preocupam educadores, a sociedade
e especialistas, como a psicanalista
infantil e presidente da organização
não-governamental TVer, Ana
Olmos. A principal missão
da TVer é controlar
a qualidade da
programação da
telinha, a fim de
plantar um
futuro que,
inclusive,
possibilite a
formação de
cidadãos
melhores.
Revista do Idec: Qual a influência da televisão no desenvolvimento da criança e do adolescente?
Ana Olmos: A TV age diretamente na formação
da criança, pelo mecanismo psíquico de identificação: são internalizados no mundo interno da
criança os modelos do mundo externo que ela
recebe, com os quais se identifica e que formam a
matéria-prima para seu desenvolvimento psicológico. Esses modelos de identificação positivos
ou negativos vêm da família, da escola, da TV, da
leitura. Quanto menor e mais frágil a criança, mais
influência sofrerá e será mais vulnerável e
suscetível a esses modelos.
Do ponto de vista do aprendizado, como o
hábito cria a necessidade, crianças “viciadas” em
TV correm um risco maior de ter dificuldades de
atenção, memória, concentração e, eventualmente, bloqueio da expressão verbal, necessária
ao aprendizado da linguagem. Isso pode influir,
por exemplo, na capacidade de leitura. Nos
Estados Unidos, 85% dos adolescentes são incapazes de ler sem uma fonte sonora ligada, a TV
ou o aparelho de som.
Revista do Idec: Quantas horas a criança fica
em média diante da televisão por dia?
Ana Olmos: Aproximadamente quatro horas
por dia, para crianças da classe média, segundo
pesquisas feitas no mundo todo. E há uma correlação inversa entre a posição socioeconômica da
família e o tempo de permanência diante da TV:
quanto mais baixa, maior o tempo gasto pelas
crianças daquela família assistindo à TV. Crianças
pobres não têm outra opção de lazer. Hoje em dia
até a classe média está sentindo esse impacto, pois
os pais cada vez mais cortam as atividades
extracurriculares, que estão ficando muito caras.
Revista do Idec: Organizações
sociais e membros do governo, a
exemplo da campanha “Quem
financia a baixaria é contra a
cidadania”, pedem a melhoria da
qualidade da programação brasileira. A TV que temos hoje deixa
de cumprir seu papel como concessão pública, principalmente
pelas mensagens transmitidas a
essa geração, que representa o
futuro do país?
Ana Olmos: Sem dúvida. A
questão da qualidade da televisão é
um problema de toda a sociedade,
porque participa da formação dos
cidadãos. Entre as mensagens veiculadas pela TV, há algo que me
preocupa muito por ser primitivo e
difícil de detectar como uma
agressão, uma violência à vida
mental de crianças e adolescentes.
São os modelos glamourizados e,
vamos dizer, estimulados de um
estilo de vida consumista, que exclui os jovens que, não tendo acesso a bens de consumo, sentem vergonha de si. Outro desses modelos
é a violência como forma de resolver conflitos ou a violência como
espetáculo, ou por escárnio.
Revista do Idec: O que a sra.
quer dizer quando cita a violência por escárnio?
Ana Olmos: É a violência
exposta em programas como o do
apresentador Ratinho, onde pessoas humildes se submetem a
várias formas de ridicularização,
que afrontam sua dignidade como
ser humano. Há horários, ainda,
em que a criança não tem opção se
apenas tiver acesso às TVs comerciais abertas: quatro canais veiculam, das 17 às 20 horas, programas policialescos, como Cidade
Alerta, Repórter Cidadão, Cidadão
Urgente*. Vendidos como jornalismo mas tratando a notícia como
espetáculo, formam atitudes e
“Tripudiar sobre a
tragédia de outro
ser humano é
uma forma de
violência. Ninguém
que tenha recursos
vai até a TV se
submeter a isso.”
induzem a modelos de violência
compatíveis com idéias do tipo
bandido bom é bandido morto”.
Já houve cenas de ameaças de
suicídio ao vivo, uma inclusive com
uma garota se jogando do prédio.
Com uma gravação, entramos com
um processo que após quase três
anos resultou numa multa irrisória,
de três salários mínimos, acho que
para o programa do Ratinho. Ele
apresentou a história de duas meninas que haviam sido trocadas na
maternidade e iam saber o resultado do exame de DNA ali, ao vivo.
Os apresentadores animavam a
platéia, levantando perguntas do
tipo: “Conta ou não conta?” (se a
mãe deveria ou não revelar à filha
sobre o ocorrido); “com quem
vocês acham que ela deve ficar?”
(“com a mãe verdadeira?”, ele perguntava, como se a mãe que criou
não fosse a verdadeira e sim a
biológica). Recordo-me bem de que
a menina em questão estava desesperada, tinha em torno de 12 anos.
Então, é uma forma de violência
esse ato de tripudiar em cima da
tragédia de outro ser humano e
que, ainda por cima, não tem
condições financeiras para responder à altura. Ninguém com mais
recursos vai até a televisão e se submete a isso, nem por dinheiro nem
permitindo que sua imagem seja
veiculada e, com isso, denegrida,
desqualificada.
Revista do Idec: Pior é que os
apresentadores argumentam que
têm o intuito de ajudar a resolver
o caso da pessoa que está sendo
humilhada em circuito nacional,
não?
Ana Olmos: Sim. Eles falam que
é para ajudar a pessoa, mas o que
mantém a audiência, a partir da
qual é calculado o preço do anúncio
vendido aos patrocinadores, é o
gozo mórbido que atrai o telespectador. Segundo o filósofo Nietzsche,
o que mobiliza a atenção de todos
nós, seres humanos, são os processos de vida, de morte, de violência.
E o que leva as pessoas a fazer
isso? Além das condições materiais
escassas, também há uma falta de
amor próprio num certo sentido. É
difícil a gente julgar quando não
estamos numa situação de carência
material, mas não dá pra achar que
nenhum de nós tem prazer em se
submeter a uma humilhação dessas, como a exposição pública de
um DNA ou de uma traição, de
uma doença grave. Em suma, acho
que no que depender dessa formação de atitudes que vem dessa
televisão comercial aberta, inclusive a formação para o consumo, há
muitos motivos para nos preocuparmos com o que estamos plantando em termos de futuro para
nossa infância e adolescência.
Revista do Idec: Em que consiste essa formação para o consumo?
Ana Olmos: Em educação para
o consumo. A questão da propaganda, por exemplo, a criança é
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facilmente manipulável pelos
comerciais. No Brasil, essa questão
é ainda mais grave porque, em termos de regulamentação, a criança
brasileira está mais indefesa em
comparação com a infância de outros países. Na Suécia nenhum
comercial de produto infantil pode
se dirigir à criança como públicoalvo. Pode ser uma boneca, uma
bola, um iogurte, a propaganda
deve ser dirigida aos pais e
responsáveis. Isso é maravilhoso,
ainda mais no momento atual em
que estamos preocupados com a
explosão da obesidade. Nos
Estados Unidos eles estão vivendo
isso. Agora, aqui, você tem o
anúncio do fast-food e, em seguida
– paradoxalmente –, o anúncio do
produto dietético para a criança
que se tornou um adulto obeso
dentro desse esquema, típico da
sociedade capitalista, de gerar
lucro de tudo quanto é jeito. Isso
pode gerar na criança uma sensação de que não é adequada, está
acima do peso e, portanto, excluída do convívio com os “normais”.
É um dano, um efeito deletério na
vida mental dela.
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Revista do Idec | Outubro 2004
“Em relação à
manipulação pelos
comerciais, no
Brasil a criança
está mais
indefesa, em
comparação com
outros países.”
Revista do Idec: Mesmo com a
programação que temos hoje, é
possível transformar a televisão,
um veículo tão poderoso, num
agente positivo para a formação e
o crescimento da criança?
Ana Olmos: O problema da
qualidade da TV está na oferta, não
na demanda. Se o que é oferecido
nesse mesmo horário na TV aberta
é semelhante em quatro canais, a
criança fica sem opção. A TV é
uma fonte de educação que pode
facilitar muito a vida das pessoas,
pode, inclusive, formar cidadãos
melhores.
O bom uso da televisão pode
potencializar as funções que esse
veículo pode realizar. E isso pode
ser utilizado para a educação,
como numa atividade feita com
professoras da rede pública nos
anos 90, no qual eu utilizei o
exemplo do programa Mundo da
Lua. Era a história de um menino
comum, de classe média comum,
que se chamava Lucas Silva e Silva,
e era filho de um homem comum,
protagonizado pelo Antônio Fagundes, e de uma mulher comum,
a Mira Haar. Tinha o núcleo da
família, o avô, a namorada do avô,
a irmã do pai, os primos... Enfim,
o Lucas era um menino de 8 anos,
e a série vai até quando ele tem 12
anos. Esse seriado criado no Brasil,
cujo texto é de Flávio de Souza,
além de ser entretenimento puro,
possui as características brasileiras.
A mãe do Lucas, por exemplo, não
faz parte de um modelo de beleza
que, ao se espelhar, a maioria das
brasileiras se sente horrorosa. É
uma coisa comovente, verdadeira,
porque é uma mãe veraz. Se aparecesse uma figura esquelética como
mãe, não somente as mães de verdade se sentiriam pouco adequadas como também poderia
haver um dano causado por essas
figuras de identificação. O telespectador, seja adulto ou criança,
pode ter vergonha de si.
Infelizmente, ainda é difícil
uma posição crítica entre os receptores. Só assim seria possível
perceber que certos tipos de representação estão fora da realidade. É impossível uma pessoa
sobreviver e ser tão magrinha, tão
magrinha... Impossível uma pessoa fazer o que certos anúncios
propõem, como as propagandas
de pessoas que comem, comem e
não engordam.
Revista do Idec: Essa identificação pode, portanto, tanto ajudar
como prejudicar o aprendizado?
Ana Olmos: Sim. A televisão é
um veículo maravilhoso, tem um
poder educativo fenomenal se for
potencializada para o bem. Assim
como Mundo da Lua, há outra série
similar, mas com produção internacional, que foi veiculada pela TV
Cultura, chamada Anos Incríveis. O
seriado é protagonizado por outro
menino com as mesmas características do Lucas, o Kevin, e
também é um ótimo exemplo de
boa pedagogia. Ambas, Mundo da
Lua e Anos Incríveis, servem para a
criança ter uma identificação, viver
algumas sensações muito fortes.
Tanto o Lucas quanto o Kevin são
meninos comuns de classe média.
Eles têm conflitos presentes na vida
de todos nós e é muito enriquecedor ver como ambos lidam com
essas sensações. É fundamental
para o jovem poder se espelhar,
compartilhar os mecanismos de
defesa de que tanto Lucas como
Kevin lançam mão para se livrar de
certos sentimentos, como angústia
e ansiedade, provocados por esses
conflitos.
Agora, por outro lado, toda essa
falsidade que está presente tanto na
propaganda quanto na história
também oferece a possibilidade de
o receptor viver uma certa identificação. Quando você assiste, por
exemplo, a uma novela em que
tudo se passa na Zona Sul do Rio,
com os personagens falando daquele jeito, vestindo-se daquele jeito.
Por exemplo, Malhação, onde circulam meninos e meninas que não
estudam, que não precisam de dinheiro; qual a mensagem que isso
pode trazer para o jovem quando
ele compara essa situação com a
sua realidade? Pode resultar num
sentimento de baixa auto-estima,
de vergonha, numa sensação de
inadequação.
Revista do Idec: Qual o papel
dos pais nesse processo?
Ana Olmos: Os pais têm um
papel fundamental. Eles podem,
por exemplo, traduzir para a criança os conteúdos da TV. É importante ressaltar aos pais do adolescente que a dependência da TV
pode provocar ou agravar na criança a dispersão da atenção e a dificuldade de concentração, diminuição do exercício de pensar,
respostas estereotipadas, tendência
a condutas de imitação e submissão, diminuição da capacidade
crítica, atitude apática, passiva, na
medida em que está acostumado a
que o televisor entretenha, dificuldade para ordenar o pensamento,
falta de concentração dos fatos:
passa de um para outro sem conseguir estabelecer ligações (em
ritmo de videoclipe), tendência
para a inércia, para um certo isolamento, falta de iniciativa, dificuldade de fazer tarefas que “dão trabalho”, desinteresse pelo que não
tenha alto grau de estimulação
externa, inibição da curiosidade e
da criatividade, retardamento e
inibições do desenvolvimento.
“A televisão é
um veículo
maravilhoso,
com um poder
educativo
fenomenal, se for
potencializada
para o bem.”
No caso particular da violência
proveniente do sensacionalismo,
que pode afetar muito a criança, há
diferenças importantes que devem
ser entendidas pelos pais e educadores e, posteriormente, retransmitidas às crianças. Primeiro, é preciso ficar claro que se trata de uma
questão de tratamento da notícia, e
não de conteúdo. Você se lembra
da morte de uma pessoa na Favela
Naval, em Diadema, em 1997? A
TV transmitiu e retransmitiu a ação
dos policiais militares, que extorquiam e agrediam os moradores.
Na minha opinião, essa é a função
da mídia, tornar a população testemunha de um tipo de crime cotidiano na vida dos excluídos. Foi
um serviço de cidadania. Além
disso, mostrou a realidade de
muitas crianças – e a realidade, por
si só, não é sensacionalista. Sensacionalismo é exibir repetidamente,
por exemplo, uma tragédia sem
uma avaliação mais profunda do
significado daquilo.
Revista do Idec: O que pode
propiciar um bom uso da televisão?
Ana Olmos: Em primeiro lugar,
uma leitura crítica dos meios de
comunicação, algo que mostre à
criança a diversidade cultural sem
preconceitos, que lhe apresente
modelos de interlocução e tolerância como formas de resolução pacífica de conflitos. Isso pode estimular sobretudo sua capacidade de
pensar e contribuir – enquanto
meio de educação – para a formação de valores éticos desde a
infância; pré-requisito para o desenvolvimento global da criança e
do adolescente.
*Notícia recentemente divulgada pela
organização não-governamental Midiativa
informou que as emissoras responsáveis
pela veiculação do Brasil Urgente e Cidade
Alerta diminuíram o tempo de exibição dos
programas. A iniciativa, segundo a
reportagem, é fruto de quedas no Ibope,
do aumento de reclamações dos telespectadores, da pressão de campanhas como
a “Quem financia a baixaria é contra a
cidadania” e do atual desinteresse dos
anunciantes em ligar suas marcas a esse
gênero de programa.
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“Tripudiar sobre a tragédia de outro ser humano é uma forma de