Filosofia clínica: uma forma de cuidado1 Monica aiub Resumo A filosofia clínica é uma terapia que faz uso da metodologia filosófica para auxiliar a pessoa a lidar com suas questões existenciais. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma novidade no cenário do século XXI, mas de uma prática muito antiga, datada das origens da filosofia e da medicina. Traz em seus fundamentos a postura filosófica que exige o não saber, a abertura ao diálogo e a autonomia de pensamento. Indicada da profilaxia aos cuidados paliativos, quando a reflexão sobre o cotidiano e o criar novas formas de vida se apresentam como necessidade. Um pouquinho de história Num tempo e numa cultura em que a responsabilidade pela vida humana e seus acontecimentos era atribuída aos deuses – deuses capazes de lançar pestes, doenças, agressões naturais aos humanos por mero capricho – , em que a forma de cuidar de si, da vida em sociedade e da natureza era cultuar esses mesmos deuses, os cuidados com a saúde atinham-se à magia, aos cultos e rituais. Quando, instigados pelo contato com outros povos, outras culturas, os gregos criam a filosofia ocidental, esse conhecimento que surge tem como ponto de partida o estudo da natureza, da sociedade e do ser humano, buscando nestes, e não mais nos deuses, formas mais adequadas para o cuidar. Mal os filósofos Pré-Socráticos iniciaram seu percurso tentando explicar os fenômenos naturais a partir da observação da própria natureza e elaborando teorias que pudessem ser logicamente compreendidas, essa metodologia começou a ser utilizada pela escola hipocrática (Hipócrates, 2002) para compreender os fenômenos da saúde humana. Assim surgia a medicina hipocrática. Em diálogo, filosofia e medicina caminham cuidando do ser humano, compreendido em sua totalidade: mente, corpo, sociedade e natureza. Desde as origens, a filosofia apresenta-se como uma forma de cuidado. Na Grécia Clássica, o famoso princípio délfico “Conhece-te a ti mesmo”, que pontua o pensamento socrático, possuía o significado de conhecer para cuidar, e cuidar de si para cuidar da polis, visto que na concepção grega não era possível cuidar de si isoladamente, sem considerar os cuidados necessários com a sociedade e a natureza na qual estamos inseridos. Em seus Diálogos, em especial Fedro e Timeu, Platão aponta para a medicina como o cuidado do corpo e a filosofia como o cuidado da alma, 1 Artigo publicado na Revista Brasileira de Cuidados Paliativos 2009; 2 (4). ISSN: 1984-087X mas nunca de modo separado, pois cuidar de uma única face desequilibra a natureza humana, causando problemas à saúde. É preciso, portanto, ao mesmo tempo, cuidar do corpo e da alma, composto que produz o vivente a que chamamos humano, nas palavras de Platão (2002). Naquele tempo, o mesmo cidadão era médico, filósofo, astrônomo, músico, etc. Não havia o surgimento das ciências tais como a compreendemos hoje, nem a especialização, que hoje é tão vasta e crescente. Por isso, o mesmo cidadão, médico e filósofo, poderia estabelecer o diálogo entre o cuidado do corpo e da alma. Como cidadão, em sua dimensão política, poderia cuidar das melhores formas de organizar sua sociedade, visando o benefício humano; e como investigador da natureza, cuidaria da preservação da harmonia natural do universo. As doenças, naquele período, eram consideradas como um desequilíbrio desta harmonia universal, e o cuidado necessário era, obviamente, a restauração do equilíbrio natural. Assim, o papel do cuidador era conhecer o ser humano em todos os seus aspectos. Daí a palavra clínica, que vem de klinos, kline (estar deitado, o leito do doente). Os médicos da escola hipocrática visitavam o leito do doente, estudavam seu entorno, seus hábitos, seus pensamentos, humores, dietas, tudo o que se fizesse necessário investigar para compreender as melhores formas de restaurar o equilíbrio perdido. Para Platão, a melhor forma de conhecer o equilíbrio natural era reminiscência (anamnese), que consistia em rememorar, em buscar dentro de si o caminho para o equilíbrio. Caminho este que, segundo a teoria platônica do Mundo das Ideias, todos possuímos em nós, mas necessitamos do diálogo com o outro para que possamos relembrar, rememorar. Curioso observar que a anamnese é, até hoje, um procedimento médico. Um conceito um tanto diferente do conceito de reminiscência de Platão, mas com a mesma origem etimológica. Já para Aristóteles (1985), o caminho para conhecer o equilíbrio natural estava no estudo da natureza, da política e da razão humana. Pois a mesma lei que rege nossa razão, rege o universo e nos dá a base para a política. Ainda que não partilhasse com Platão a teoria das Ideias, o pensamento aristotélico prevê o conhecimento de si para o cuidado de si e da polis. No período Medieval, a ordem natural é substituída pela ordem divina, mas os princípios permanecem os mesmos. Somente com o advento da Modernidade é que teremos a separação, a fragmentação entre homem e natureza, entre natureza e cultura, entre corpo e mente. O corpo, que agora é visto como uma máquina, matéria divisível e explicada em suas engrenagens, é objeto da medicina, que poderá manipulá-lo cientificamente. O modelo de ciência derivado do pensamento de Galileu supõe a observação de constantes e variáveis, a partir da qual se extrai uma lei geral, capaz de previsibilidade suficiente para permitir a intervenção no curso natural, tornando a natureza, a sociedade e o corpo humano mais aperfeiçoados e adaptados às necessidades de um eu racional capaz de manipular e dirigir todo o restante. A dissociação e a fragmentação provocam a especialização. Cada vez mais o foco estreita-se, permitindo um vasto conhecimento sobre pontos específicos, mas dificultando e afastando o foco da leitura da totalidade. Embora o questionamento desta tendência sempre tenha existido, somente no século XX a medicina retoma o seu olhar para a totalidade da vida humana, com a definição de saúde da OMS ( completo bem-estar bio-psicosocial). Contudo, há muito mais que se fazer do que definir saúde desta forma, e a escolha por caminhos que mantenham os benefícios da especialização e os benefícios de um olhar mais amplo é o grande desafio. A filosofia, por sua vez, inaugura o século XX com muitos questionamentos: Seria o seu fim? Seria ela substituída pela ciência? O que a razão humana, tão poderosa por todos esses séculos, está fazendo pela humanidade? Quais os seus limites? Qual o papel da filosofia diante de um universo em constante mudança, diante da constatação de um universo caótico? As duas guerras mundiais da primeira metade do século XX fortificaram esta reflexão e colocaram em cheque o que o humano, este ser racional, estava fazendo de sua existência. Que tipo de mundo construímos? Qual o sentido da existência? O que deixaremos como herança para as futuras gerações? São algumas das inquietações que movem a filosofia da segunda metade do século XX. Diante destas inquietações, surge o movimento da filosofia prática, que tenta trazer a filosofia de volta a seu papel inicial: pensar sobre os acontecimentos da vida humana e buscar as melhores formas de vida para lidar com tais acontecimentos. Mas desta vez, não há uma ordem universal a ser descoberta, há possíveis formas de vida a serem inventadas, criadas. Como criar formas compatíveis com nossas necessidades? Quais são nossas reais necessidades? E de novo se faz necessário conhecer a si mesmo e aos contextos em que estamos inseridos. Assim, retornamos à origem. Durante todos estes séculos a filosofia manteve algumas de suas características fundamentais: o rigor lógico, a clareza dos conceitos, a radicalidade na busca dos fundamentos e bases do pensar, a visão de contexto, que exige uma abordagem que compreenda a origem do problema, sua constituição e sua história. Além disso, abertura para o encontro e o diálogo com o outro, mantendo, ao mesmo tempo, a autonomia do pensar por si mesmo e o exercício de pensar junto com o outro. Somando a observação do sofrimento humano diante das limitações geradas por doenças e perdas, ao conhecimento do movimento da filosofia prática, Lúcio Packter (1997; 2008), pensador brasileiro, criou, na década de 1990, a filosofia clínica: Uma terapia que faz uso da metodologia filosófica para auxiliar a pessoa a lidar com suas questões existenciais. Por ser filosofia mantém a abertura para o diálogo e a autonomia do pensar por si mesmo. Por ser clínica, visita as questões existenciais “ indo ao leito do doente”, ou seja, pesquisando a gênese das questões a partir dos contextos de vida de cada pessoa. Como funciona? Por se tratar de uma terapia com metodologia filosófica, a filosofia clínica não parte de teorias prévias, nem de tipologias. Sua tarefa é investigar as questões apresentadas, buscando encontrar, nas narrativas descritas e em seus contextos, formas para auxiliar a pessoa a lidar com suas questões. O destaque a este ponto é para frisar que não há incompatibilidade entre ser filosofia e ser terapia, pois não se trata de uma terapêutica com um objetivo ou percurso previamente determinados. Aquele que busca a filosofia clínica é chamado partilhante, pois partilha suas questões, sua história de vida, suas inquietações com o filósofo clínico. O partilhante tem papel ativo em todo o processo, definindo objetivos, caminhos, formas de abordagem, etc. O filósofo clínico assume o papel de alguém que acompanha, que visita o universo do partilhante, e quando necessário o provoca a pensar sobre alguns dos pontos apresentados. Para essa visita há uma metodologia adequada, que permite ao filósofo clínico ser conduzido pelo partilhante a seu universo existencial. O primeiro contato entre filósofo clínico e partilhante é o encontro inicial onde é abordado o Assunto Imediato, ou seja, a queixa, o motivo pelo qual a pessoa busca terapia. O local de atendimento é, em geral, o consultório de filosofia clínica, que não possui um formato padrão, e é construído de acordo com as necessidades do filósofo clínico e da cultura na qual ele se insere. Mas pode ocorrer do atendimento ser feito em outro local, como numa escola, num hospital, numa empresa. As consultas subsequentes podem ocorrer, quando necessário, até em locais inusitados, como shoppings, parques, praças, cafés, dependendo da necessidade do partilhante, justificável clinicamente, e da disponibilidade do filósofo. O Assunto Imediato é apenas a queixa inicial, o sintoma. Nem sempre ele corresponde ao Assunto Último, ou seja, o que será trabalhado, de fato, em clínica. Ainda assim, a conversa sobre o Assunto Imediato é de extrema importância, pois tem como objetivo estabelecer a interseção entre o filósofo clínico e o partilhante, permitindo um primeiro acesso ao universo da pessoa, a sua linguagem, a sua forma de vida. Em filosofia, um problema não pode ser abordado isoladamente, sob a pena de superficialidade. É preciso contextualizá-lo, observá-lo em sua gênese, traçar a história do problema, conforme propõem os estudos em hermenêutica e a metodologia historicista. É isto o que fazemos na conversa sobre o Assunto Imediato, considerando o assunto trazido como o problema a ser tratado. Mas a história do problema é pouco se não for colocada diante de um contexto maior, a história da época, da cultura em que surgiu o problema, o que influenciou seu surgimento e o que surgiu como implicação de sua existência. Para que compreendamos esses movimentos, situamos a história do problema na história de uma cultura, de uma época, e estas numa história maior. Assim, o filósofo clínico pede ao partilhante que conte sua história de vida, para que possa contextualizar o problema no todo de suas vivências. Diferentemente do movimento de especialização que supõe um foco cada vez mais estreito e direto, a filosofia exige a ampliação do foco, o vôo da coruja para compreender os movimentos da vida. Na clínica, o partilhante deve contar sua historicidade com o mínimo de interferências possível. Durante este processo, o filósofo clínico deve acompanhar atentamente, e somente interferir caso o partilhante tenha se perdido: “do que eu estava falando mesmo?”; ou pule de um ponto a outro tantas vezes que o filósofo clínico não consiga acompanhar. Suas interferências restringem-se aos denominados agendamentos mínimos – pequenas interferências que têm como objetivo trazer a pessoa de volta ao curso da história contada. Neste primeiro momento da clínica, o filósofo clínico suspende seus pré-juizos (Gadamer, 2003) e compreende literalmente o que é exposto na narrativa do partilhante, fazendo uso do método fenomenológico. O objetivo de deixar a pessoa seguir o curso de seu pensamento é compreender a lógica subjacente ao partilhante. Assim como, ao estudarmos um texto de filosofia buscamos a compreensão da lógica interna do texto, com o partilhante buscamos a compreensão de seu sistema próprio, interno e único. Um vez contada a história de vida, para permitir que o partilhante traga dados que foram deixados para trás ou detalhe partes contadas muito rapidamente, o filósofo clínico pede que ele reconte sua história, agora dividida em partes. Este procedimento chama-se divisão e tem seu fundamento no método cartesiano. São feitas tantas divisões quantas forem necessárias para que o partilhante detalhe sua historicidade. Durante tais procedimentos, o filósofo clínico observa os dados coletados distribuídos em três eixos fundamentais: Exames Categoriais, Estrutura de Pensamento e Submodos. Os Exames Categoriais traçam o universo no qual a pessoa está inserida. Contam com as categorias Assunto, Circunstância, Lugar, Tempo e Relação. A Estrutura de Pensamento diz respeito à forma como a pessoa está constituída. São observados 30 tópicos que englobam desde a visão de mundo e de si mesma que a pessoa possui, suas emoções, pré-juízos, sua estruturação de raciocínio, até suas formas de expressão, buscas, valores, formas de conhecer, papéis existenciais, interseções, entre outros. Os Submodos são modos, maneiras de lidar com as questões, subordinados aos eixos anteriores. São 32 Submodos observados, mas há que se considerar que dificilmente uma pessoa utiliza uma mesma e única forma. Em geral encontramos compostos de formas, próprios a cada pessoa, em cada situação específica. Além de observar as formas usuais da pessoa para abordar os problemas, o filósofo clínico observa os resultados obtidos através destas formas. Um Submodo ou um conjunto de Submodos pode trazer resultados muito bons, mas pode também trazer resultados péssimos à pessoa. Cada uma das cinco categorias, dos 30 tópicos e 32 Submodos possuem sua fundamentação em métodos e sistemas filosóficos. A própria estrutura de leitura por categorias é um conceito filosófico, trabalhado por vários pensadores na história da filosofia. Os elementos dos Exames Categoriais, Estrutura de Pensamento e Submodos não são observados isoladamente, mas em suas constantes relações, em suas movimentações que acompanham o fluxo da vida. A leitura e descrição de tais movimentos é chamada Autogenia. Feito um primeiro esboço de Autogenia, após subsequentes divisões, iniciase o processo de enraizamentos. Processo epistemológico que consiste em pesquisar o significado dos termos. A importância deste procedimento é compreender o “jogo de linguagem” de cada pessoa, evitando equívocos, uma vez que as palavras ganham significado no uso (Wittgenstein, 1974). Esclarecidos os termos, acontecimentos, relações autogênicas através dos enraizamentos, são estudadas, juntamente com a pessoa, as melhores formas existentes para lidar com o problema proposto, o que exige uma pesquisa detalhada dos limites e possibilidades existentes para a situação. Como a construção de tais formas é feita a partir das características singulares da pessoa e de seus contextos, o trabalho é sempre singular, específico para cada um. Os procedimentos clínicos utilizados neste momento, pelo filósofo clínico, são os Submodos: procedimentos subordinados às necessidades e formas de ser da pessoa, que são, segundo Packter (1997), formas vazias, preenchidas com os conteúdos das Categorias e dos tópicos da Estrutura de Pensamento. Os procedimentos aqui descritos: Assunto Imediato, Historicidade, Divisão, Enraizamentos, Autogenia, Submodos são permeados por alguns princípios norteadores, fundamentais ao trabalho do filósofo clínico. Sei que nada sei, de tudo quanto sei O princípio socrático, proposto como postura do filósofo desde os Diálogos de Platão (1988) é fundamental ao filósofo clínico. Como cada pessoa é única, e cada vivência supõe o significado atribuído pela pessoa ao vivido, não há como saber o que a pessoa pensa, vive, sente, deseja, acredita, sem que ela descreva. Não temos instrumentos de acesso aos estados mentais de alguém exceto por suas descrições subjetivas (Teixeira, 2008), e nossas interpretações sobre as descrições subjetivas, e mesmo sobre o vivido, são sempre interpretações a partir de nossos referenciais (Schopenhauer, 2007). Assim, se o partilhante diz ter uma dor, eu não sei o que é a sua dor, ainda que eu já tenha sentido uma dor em local semelhante àquele que ele diz doer, ou ainda que eu já tenha visto muitas e muitas pessoas relatarem uma dor em local próximo. Sua dor é subjetiva, é sua e eu só posso ter acesso às descrições que ele traz desta dor, ou como afirmou Schopenhauer, à sua representação de dor. Se ele estiver mentindo, fingindo, exagerando ou minimizando, só poderei mensurar isso a partir de minha própria medida e de uma interpretação própria do sentir dor. Como minha medida é exclusivamente minha, só posso compreendê-lo em suas descrições e por aproximação, nunca de maneira exata. Mas se ele estiver mentindo, fingindo, exagerando ou minimizando, somente ele saberá disso e, independentemente disso, poderá trabalhar suas questões a partir de seus próprios referenciais. Quando um partilhante chega para uma primeira consulta, nada sei sobre ele. Preciso saber sobre suas questões, sobre sua historicidade. Depois de várias consultas, tenho alguns dados coletados, alguns indícios de caminhos, mas ainda nada sei sobre a totalidade de seu ser. Ainda que tenha revirado do avesso sua história de vida, muito desconheço sobre seu vivido e sobre suas potencialidades. Além disso, durante o processo clínico, muitas modificações podem ocorrer, por isso, a cada consulta, nada sei e, portanto, devo pesquisar. Manter-se no não saber é próprio da tarefa do filosofar, questionar o óbvio é o trabalho do filósofo. Não é diferente para o filósofo clínico. Quanto mais se sabe, mais se toma consciência da ignorância, do quanto falta a ser conhecido. A consciência da ignorância permite suplantá-la, o esquecimento nos faz entrar nos automatismos, nas ações mecânicas, não refletidas, não escolhidas. Um cuidador não pode tratar o outro de modo mecânico, automático, sem refletir sobre seus posicionamentos e encaminhamentos, sob a pena de provocar malefícios com a intenção de cuidar. Conceito de normalidade Normal é aquilo que está de acordo com a norma. A norma, a regra é um padrão médio, calculado a partir de uma curva de Gauss, ou seja, é uma medida estatística (Hegenberg, 1998). Quantas vezes nos encontramos fora de uma medida estatística e nem por isso estamos doentes, precisamos de tratamento? Quantas vezes adoeceríamos se fôssemos enquadrados à força numa medida padrão? Assim, o padrão de normalidade vigente é, em grande parte das vezes, uma medida padrão que atende a necessidades das relações de poder, conforme nos alerta Foucault (2004). Na formação dos filósofos clínicos, há aulas com um médico, que nos ensina a observar sinais e sintomas de casos que necessitem de um acompanhamento médico. Em tais casos, a pessoa é encaminhada para o consultório médico, e este fará o diagnóstico e prescreverá o tratamento, enquanto isso, o filósofo clínico acompanhará o partilhante em trabalho interdisciplinar. Contudo, para o filósofo clínico, o diagnóstico médico é apenas um dado do partilhante, que não é considerado a partir dos padrões do diagnóstico, e sim a partir de suas necessidades singulares. Supondo que um partilhante com uma forma de vida muito diferente do padrão vigente socialmente procure um filósofo clínico, qual o caminho a ser tomado? É sempre uma decisão do partilhante. Se ele desejar modificarse, modificar seu contexto, mudar de contexto, ou qualquer outra opção, o filósofo clínico o auxiliará para tal, não sem antes provocá-lo a pensar nas possibilidades existentes e nas consequências em optar por cada uma das possibilidades que se apresentam. Descobrir o que lhe faz bem, o lugar existencial adequado para seu viver, o tipo de relação que lhe traz o que necessita, as formas que possui para enfrentar as dificuldades, as potencialidades que pode desenvolver, e tantos outros dados muitas vezes não percebidos, podem ser consequências de uma vivência em filosofia clínica. Respeito à singularidade Isso acontece porque a filosofia clínica parte da constatação da singularidade e da plasticidade humanas. Somos únicos e plásticos, flexíveis. Ou seja, além de únicos, estamos o tempo todo em movimento, nos constituindo de diferentes formas. Por vezes nos mantemos os mesmos, outras vezes somos vários simultaneamente. Podemos ainda ser outro a cada instante. Vivemos tendo, diante de nós, todas as possibilidades. Optamos por algumas, desistimos de outras, abandonamos algumas daquelas já escolhidas, enfim, nos movimentamos e por isso somos capazes de surpreender até a nós mesmos em nossas possíveis constituições. Em nossa singularidade, podemos nos deparar com a mesma situação e senti-la de modo diferente. Um adoece, o outro não; um deprime, o outro não; um se alegra, o outro entristece; um se tranquiliza, ou outro enfurece; um gosta e o outro não; um odeia e o outro ama. E ainda, em nossa singularidade, podemos amar e odiar ao mesmo tempo; desejar e desprezar no mesmo instante. Somos e não somos ao mesmo tempo e há inúmeras possibilidades entre ser e não ser. Isso coloca em questionamento a lógica clássica, mas permite que ela continue valendo e sendo de grande utilidade para uma série de propósitos; enquanto, em outra via, lógicas alternativas se fazem necessárias para que possamos abordar e compreender a vida. Não há formas melhores ou piores de vida, há apenas diferentes formas. Entre elas, algumas melhores para uns, outras melhores para outros. Como descobrir a maneira mais adequada? Conhecendo suas necessidades, suas possibilidades e respeitando a legitimidade das diferentes formas de vida. Suspensão dos pré-juízos Assim sendo, para possibilitar seu trabalho, o filósofo clínico deve suspender seus próprios referenciais, aquilo que tem para si como o bom, o belo, o justo, o correto. Despojar-se de seu lugar de referência no mundo e permitir-se conhecer o universo existencial do outro. Não é possível, como nos alerta Heidegger (1988), suspender totalmente nossos juízos, ter uma objetividade total em nosso processo de compreensão. Mas nos é possível conhecer nossos pré-juízos, tomar consciência, o máximo possível, de quais são nossos horizontes, nossos pontos de partida, a fim de que eles não nos ceguem para o universo do outro, a fim de que não destruamos aquele que pretendemos conhecer, com nossas interpretações. O cuidador precisa de disposição para ouvir o outro. Dis-por, estar disposto, sair de seu lugar, silenciar para ouvir o outro, compreender a necessidade do outro, que pode ser muito diferente de sua própria necessidade. E isto é um exercício difícil, mas ao mesmo tempo rico e profundo, pois cada visita é uma nova aprendizagem, é um universo de possibilidades que se coloca diante de quem cuida. O desafio é estar aberto à compreensão sem ser absorvido por tais universos, ora fantásticos, ora terríveis. Cuidando de si Por isso o filósofo clínico precisa cuidar de si. É parte fundamental de sua formação passar pelo processo clínico, conhecer a si mesmo, suas necessidades, limites, possibilidades. Contudo, vivemos em constante movimento, e podemos nos deparar, de um momento a outro, com situações completamente inesperadas, sem que saibamos nos localizar diante delas. Daí a necessidade de ter alguém com quem partilhar suas questões, seus movimentos existenciais. O cuidador do cuidador. É fundamental ao terapeuta que faça sua própria terapia, que possa partilhar suas vivências, para lidar com as questões advindas da clínica, e da vida. Não se trata de uma obrigatoriedade, mas de uma forte indicação, em especial nos momentos em que sente necessidade de partilha, de cuidado. Filosofia Clínica: da profilaxia aos cuidados paliativos Em que situações a filosofia clínica é aplicável? Naquelas em que se necessita de ajuda para “pensar por si mesmo”, naquelas em que o diálogo questionador é preciso. Desde situações em que o pensar sobre nossas questões pode ser profilático, passando por contextos em que precisamos encontrar maneiras de modificar nossas formas de vida, e incluindo as situações em que é preciso descobrir ou criar as melhores formas para lidar com o inevitável. Da profilaxia aos cuidados paliativos, a filosofia clínica é uma forma de cuidado que considera a pessoa em seus contextos, relações, necessidades, singularidades e diferentes e legítimas possibilidades e formas de vida. O filósofo clínico é o amigo do saber, mas é também o amigo do outro, aquele que partilha a construção de formas de vida, do mundo que construímos para nossa existência. Referências Bibliográficas: AIUB, M. Como ler a Filosofia Clínica: Prática da autonomia do pensamento. São Paulo: Paulus, 2010. _____. Filosofia da Mente e psicoterapias. Rio de Janeiro: WAK, 2009. _____. Para entender Filosofia Clínica : o apaixonante exercício do filosofar. Rio de Janeiro: WAK, 2004. ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Brasília,UNB: 1985. FOUCAULT, M. Doença Mental e Psicologia . Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000. _____. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2004. GADAMER, H. G. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, Petrópolis: Vozes, 2003. 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Professora titular no curso de formação em Filosofia Clínica do Instituto Packter. Fundou e dirige o Interseção – Instituto de Filosofia Clínica de São Paulo. www.institutointersecao.com e-mail: [email protected]