SERVIÇO SOCIAL & REALIDADE UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP Reitor Prof. Dr. José Carlos Souza Trindade Vice-Reitor Prof. Dr. Paulo Cezar Razuk Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Prof. Dr. Marcos Macari FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL Diretor Prof. Dr. Hélio Borghi Vice-Diretor Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social Prof. Dr. Pe. Mário José Filho UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA SERVIÇO SOCIAL & REALIDADE Serviço Social & Realidade Franca ISSN 1413-4233 v.12, n.1 p.1-250 2003 SERVIÇO SOCIAL & REALIDADE Editor Prof. Dr. Mário José Filho Comissão Editorial Prof. Dr. Mário José Filho Profa. Drª Neide Aparecida de Souza Lehfeld Profa. Drª Íris Fenner Bertani Profa. Drª Maria Ângela Rodrigues Alves de Andrade Prof. Dr. Ubaldo Silveira Profa. Drª Maria Rachel Tolosa Jorge Prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi Prof. Dr. Paolo Nosella (Universidade Federal de São Carlos) Profa. Drª Lizete Diniz Ribas Casagrande (USP) Profa. Drª Luzia Aparecida Martins Yoshida (UNICAMP) Publicação Semestral/Semestral publication Solicita-se permuta/Exchange desired Correspondência e artigos para publicação deverão ser encaminhados a: Correspondende and articles for publicacion should be addressed to: Faculdade de História, Direito e Serviço Social Rua Major Claudiano, 1488 CEP 14400-690 - Franca –SP Endereços Eletrônico / email [email protected] SERVIÇO SOCIAL & REALIDADE (Faculdade de História, Direto e Serviço Social – UNESP) Franca, SP, Brasil, 1993 1993 – 2003, 1 – 19 ISSN 1413-4233 APRESENTAÇÃO ... “Pesquisar é uma arte da interlocução” ... Ao oferecer à Comunidade Científica mais um exemplar da revista Serviço Social & Realidade, cumpre ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UNESP – Campus Franca, refletir sobre a importância do momento da produção científica do Serviço Social em nível regional, nacional e internacional. Aberto aos questionamentos que se impõe às Ciências Sociais Aplicadas o Serviço Social vem avançando na interdisciplinaridade, buscando capacitar-se para intervir na realidade social. Muito se tem produzido, ultimamente, demonstrando o esforço empregado em socializar as discussões acadêmicas e científicas que envolvem a prática profissional, identificando principalmente a necessidade de se sistematizar um conjunto teórico-metodológico técnicooperacional em atividades de pesquisa, ensino, extensão e atuação profissional. As crescentes “crises sociais”, o alarmante crescimento do desemprego e das desigualdades sociais, a invasão de realidades “paupérrimas”, revelando índices elevados de miserabilidade, exigem novas e contundentes posturas de intervenção que só serão possíveis no diálogo interdisciplinar. Neste número da Revista Serviço Social & Realidade, apresentamos diversidade de assuntos, que vão desde a necessidade de reflexão sobre a formação do profissional, sobre nossa participação em diversas instâncias, sobre formas de compreensão do agir profissional. Os textos aqui apresentados são fruto de reflexões interdisciplinares que apontam o cenário atual como espaço privilegiado da nossa ação como atores sociais. Esses textos revelam argumentos de sustentação da pesquisa e consistência, possibilitando a comparação com outros estudos em diferentes regiões do Brasil e América Latina, trazendo em si a possibilidade de novas discussões. A pesquisa tem se tornado um rico instrumento para o desenvolvimento das Ciências Sociais Aplicadas e nesse sentido não precisamos inaugurar metodologias, estabelecer novas teorias ou revolucionar paradigmas. É preciso perceber a realidade tão complexa e multifacetada aproveitando o momento privilegiado da pesquisa para qualifica-la a partir de novas propostas, ainda que se corra algum risco. O risco é inerente à Ciência comprometida consigo mesma e revela a coragem dos autores, expondo suas idéias na medida de suas convicções, conscientes de que elas serão debatidas, refletidas e conseqüentemente enriquecidas com novas e importantes reflexões. Prof. Dr. Pe. Mário José Filho Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – UNESP – Franca SUMÁRIO/CONTENTS • Caps: uma nova proposta de tratamento e a importância desse atendimento aos seus usuários CAPS: a new proposition of treatment and the importance of this service to its users. Elaine Cristina Marchis; Maria Odete Simão; Ana Guilhermina M. Pinheiro ................................................................................................ 9 • O significado da participação para os pais coordenadores do programa agentes multiplicadores do Serviço Social de projetos comunitários do HRAC The meaning of participation to the coordinators parents of the Multipliers Agents Program of Social Work in communal projects of HRAC. Marcela Cristina Chaddad; Silvana Aparecida Maziero Custódio; Lilia Christina de Oliveira Martins ................................................................ 21 • Construindo espaços: a história das associações de pais e portadores de lesões lábio-palatais e a contribuição do Serviço Social Building spaces: the history of associations of parents and beares of cleft lip and palate and the social service contribution Maria Inês Gândara Graciano ................................................................ 45 • O perfil profissional do Serviço Social e a importância de cursos para a formação de formadores (docentes/supervisores de campo) The new professional profile to Social Work and the importance of formation courses of formers (teaching staff/field supervisors) Rosane A. de Sousa Martins ............................................................... 69 • O processo de participação na escola pública: perspectiva dos sujeitos envolvidos The process of participation in the public school: point of view of each member of the sochool community Eliana Bolorino Canteiro Martins ........................................................... 87 • A formação de conceitos de uma perspectiva Vygotskiana The formation of concepts, based on a Vygotsky perspective Djanira Soares de Oliveira e Almeida .................................................. 101 • Na contramão da engrenagem: uma abordagem reflexiva Against the gearing: a reflexive approach Ubaldo Silveira; Niulza Antonietti Matthes ............................................. 111 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 1-250, 2003 7 • • • • • As organizações atuais: perfil profissional esperado The current organizations: the professional profile expected Ana Paula Barbosa Indiano de Oliveira; Daltro de Oliveira Carvalho .... 129 Vínculos enlouquecedores nas instituições Madden tieds in institutions Sirlene Aparecida Pessalacia Barreto; Íris Fenner Bertani .................. 151 A Política de Seguridade Social: Constituição Federal de 1988 e a LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social The social security politics: the 1988 Federal Constitution and the LOAS – Organic Law of Social Assistance Ana Maria Tassinari; Juliane Stamato Taube Stamato; Maria Inês Nascimento Fonseca de Sousa; Adriana Giaqueto; Lilia Christina de Oliveira Martins ...................................................................................... 159 A teoria Social de Marx e o Serviço Social The Marx Social Theory and the Social Work João Antônio Rodrigues ...................................................................... 169 As configurações da Questão Social no Brasil e os desafios do Serviço Social Configurations of the Social Question in Brazil and of the defiances to Social Work Marilena Jamur .................................................................................... 197 RESENHAS/ REVIEWS • DEMO, Pedro. Pesquisa – Princípio Científico e Educativo Rita de Cássia Camargo Brandão ....................................................... • • BIANCHETTI, Lucídio.; MACHADO, Ana Maria Netto (org.). A bússola do escrever: desafios e estratégias na orientação de teses e dissertações Silvia Cristina Arantes de Souza ......................................................... 229 MORIN, Edgar. Os setes saberes necessários à Educação do Futuro Sira Napolitano .................................................................................... 235 ÍNDICE DE ASSUNTOS ......................................................................................... SUBJECT INDEX .................................................................................................... ÍNDICE DE AUTORES/AUTHORS INDEX ............................................................. NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ORIGINAL ................................................ 8 225 241 243 245 247 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 1-250, 2003 CAPS: UMA NOVA PROPOSTA DE TRATAMENTO E A IMPORTÂNCIA DESSE ATENDIMENTO AOS SEUS USUÁRIOS1 Elaine Cristina MARCHIS* Maria Odete SIMÃO** Ana Guilhermina M. PINHEIRO*** • RESUMO: A assistência psiquiátrica foi baseada até 1970 na internação de pessoas portadoras de transtorno mental em instituições psiquiátricas fechadas. Como ressalta LEMGRUBER (2001) “os estados mentais conhecidos como loucura eram motivos de isolamento e tratamentos radicais”, afinal as pessoas portadoras de transtorno mental poderiam contaminar outras pessoas da sociedade, representando perigo para mesma. Era preciso isola-las para que fossem reequilibradas para conviverem socialmente. Muitas críticas surgiram quanto ao tratamento psiquiátrico oferecido, principalmente após a segunda guerra mundial, quando comparados os campos de concentração de prisioneiros aos manicômios, nos quais os doentes eram internados. Era necessário reformular a assistência psiquiátrica oferecida, entendendo os portadores de transtorno mental como sujeitos e não como objetos de ação. Surge o movimento da reforma psiquiátrica. Uma das diretrizes deste movimento tem sido a substituição gradativa dos hospitais psiquiátricos por serviços abertos e comunitários. Em Botucatu uma das possibilidades de atenção à saúde mental é o Centro de Atenção Psicossocial-CAPS “Espaço Vivo”, criado com a finalidade de implementar esta nova forma de atenção à saúde mental e atendendo a proposta da desinstitucionalização do doente mental. Este serviço, de acordo com os principais resultados obtidos na pesquisa realizada junto aos seus usuários, influenciou de modo positivo sua qualidade de vida, uma vez que evitou a internação fechada e possibilitou ao indivíduo com transtorno mental permanecer em seu contexto familiar e social, preservando as relações sociais. • PALAVRAS-CHAVE: Exclusão Social; Reforma Psiquiátrica; Tratamento. Introdução A saúde mental pode ser entendida como o pleno bem estar físico, psíquico e social da pessoa, sendo esta possuidora de relações harmônicas no trabalho, na família, no grupo de amigos. Muitas pessoas, por várias causas, adoecem, comprometendo a saúde mental propriamente dita e passam a ser portadoras de transtorno mental, vistas de forma leiga como “loucas”.2 1 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado a FIB’s/UNIFAC, Botucatu/SP. * Assistente Social da Seção Social Médica do Hosp. das Clínicas da Faculdade de Medicina – UNESP. Doutoranda em Ciências pela USPRP, Assistente Social do Departamento de Neurologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP e Docente. *** Assistente Social do CAPS – Espaço Vivo de Botucatu (DIR XI) – Secretaria Estadual de Saúde. 2 PITTA, A. M. F. Cuidar Sim, Excluir Não (evento comemorativo do Dia Internacional da Saúde realizado em abril de 2001 em São Paulo). ** Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 9-20, 2003 9 Ao longo de muitos anos estas pessoas foram consideradas objetos de pena e preconceito sendo tratadas com descaso e exclusão. Os estados mentais conhecidos como loucura eram motivos de isolamento e tratamentos radiciais (LEMGRUBER, 2001), afinal as pessoas portadoras de transtorno mental poderiam contaminar outras pessoas da sociedade, representando perigo para a mesma. Em todo o resgate da historicidade da assistência psiquiátrica vemos cenários árduos, tendo como pano de fundo a solidão, a humilhação, o desespero.3 A questão da saúde mental no mundo e no Brasil vem passando por vários momentos históricos, marcando épocas e proporcionando mudanças em relação ao tratamento oferecido às pessoas portadoras de transtorno mental. Hoje se fala em Reforma Psiquiátrica, que segundo (AMARANTE, 1994), é o conjunto de iniciativas políticas, sociais, culturais, administrativas e jurídicas que visam transformar a relação da sociedade para com o doente. A reforma psiquiátrica que estamos construindo vai das transformações na instituição e no saber médico-psiquiátrico até as práticas sociais em lidar com as pessoas portadoras de problemas mentais. Dentre os pontos principais das discussões em torno dessa reforma está a questão do isolamento das pessoas portadoras de transtorno mental em hospitais psiquiátricos, não permitindo o convívio dessas pessoas em seu meio ambiente e de seus direitos enquanto ser humano, os quais se perderam ao longo dos tempos. Busca-se mostrar que é possível tratar as enfermidades mentais no seio da comunidade, podendo as pessoas acometidas por esse transtorno usufruir os recursos desta como qualquer outro cidadão, superando o preconceito existente na sociedade. A criação do Centro de Atenção Psicossocial Professor Luís Cerqueira, na cidade de São Paulo, no ano de 1987, foi um exemplo das novas práticas em saúde mental propostas no movimento da reforma psiquiátrica, uma vez que é um serviço extra-hospitalar e possibilita o tratamento de pessoas portadoras de transtornos mentais que demandam um cuidado contínuo. Seu funcionamento é de 08 horas diárias e em cinco dias da semana (AMARANTE, 1995). O Deputado Paulo Delgado, no ano de 1989, apresentou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 3.657/89 no qual propôs a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais. Este projeto de Lei tramitou pelo Senado desde 1990 até ser aprovado pelo mesmo com 3 Idem. 10 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 9-20, 2003 substitutivos em 1999 (LIMA, 1999) e sancionado pelo Presidente da República Fernando Henrique Cardoso sob a Lei Federal n. 10.216 em 06/04/2001. (BRASIL, Leis etc. Lei n. 10216 de 6 de abril de 2001. –Psiquiatria hoje. n.2, p.8-9, 2001). A Lei Federal n. 10.216 garante os direitos individuais dos pacientes psiquiátricos e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, buscando tornar a assistência psiquiátrica menos hospitalocêntrica, enfatizando um atendimento comunitário. Considerando as novas propostas da política de saúde mental e com o anseio de proporcionar um atendimento que extrapolasse os muros da instituição, vários profissionais que desenvolviam suas ações técnicas no hospital psiquiátrico “Professor Cantídio de Moura Campos” – HPCMC, localizado na cidade de Botucatu/SP, começaram a discutir a possibilidade de implantar um Centro de Atenção Psicossocial – CAPS na cidade. As discussões foram amadurecendo e em fevereiro de 2000, após a conclusão da proposta terapêutica, deram início aos atendimentos. O CAPS – “Espaço Vivo” é um serviço extra – hospitalar vinculado ao HPCMC e atende as normas técnicas da Portaria do Ministério da Saúde n. M.S. 224/92 (CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA, 1997). Seu atendimento está voltado para adolescentes e adultos de ambos os sexos, portadores de transtorno mental que demandem ou necessitem atenção intensiva e contínua, residentes nos municípios da região de Botucatu. Tem capacidade para atender 45 pessoas, sendo 15 em período integral e 30 em período parcial, de acordo com a proposta terapêutica de cada usuário, sendo que, em cada período o usuário participa das atividades propostas e recebe alimentação. A proposta de trabalho do CAPS – “Espaço Vivo” está baseada num tripé, composto por equipe interdisciplinar, na qual cada profissional, inclusive o assistente social, oferece seus conhecimentos específicos para juntos definirem estratégias terapêuticas; família que é fundamental para o apoio e a orientação àqueles que fazem parte do convívio da pessoa com transtorno mental e o projeto terapêutico individual (PTI), necessário para identificar as necessidades de cada um e também mais um instrumento que permite avaliar a trajetória do usuário dia a dia no serviço. Baseado neste tripé o serviço visa prestar um atendimento que possibilite a pessoa portadora de transtorno mental desenvolver e/ou ampliar sua autonomia em relação a sua vida, respeitando as singularidades de cada um bem como permitir um tratamento no qual a pessoa possa continuar o convívio em seu meio social e familiar. Desta forma o CAPS “Espaço Vivo” procura evitar ao máximo as internações psiquiátricas. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 9-20, 2003 11 Paralelamente a este objetivo, o serviço tem em vista ainda, atuar frente à comunidade a fim de possibilitar uma melhor compreensão da doença mental. Assim, as atividades oferecidas no serviço não têm como princípio manter o indivíduo ocupado, mas sim possibilitar a produção de sentido, de convívio, de identidade em cada atividade. Para que os objetivos do CAPS “Espaço Vivo” sejam alcançados o serviço também adotou um sistema de referência, ficando cada profissional com um número determinado de usuários sob sua responsabilidade. A pessoa de referência traça a trajetória do dia a dia do usuário no serviço – PTI, acompanhando todo o processo de tratamento, utilizando-se dos outros profissionais, os quais recebem o nome de rede de ajuda, para viabilizar ações terapêuticas (PINHEIRO, 1999). Visto que o CAPS “Espaço Vivo” é o primeiro na região da cidade de Botucatu vindo de encontro às novas propostas de tratamento do doente mental, as quais estão sendo discutidas acirradamente, foi importante realizar a presente pesquisa para avaliar o serviço e traçar o perfil de seus usuários em seu primeiro ano de atendimento e obter maior conhecimento sobre a realidade vivida pelas pessoas portadoras de transtorno mental. Sujeito e Métodos A pesquisa foi realizada com usuários do serviço CAPS “Espaço Vivo”, de ambos os sexos, que participaram do tratamento no mínimo de uma semana, em dias consecutivos, durante o período de 01 de março e 2000 a 30 de março de 2001. A amostra inicial consistia em 55 usuários correspondendo a 100% da clientela atendida. No entanto, houve uma perda de cinco pessoas: três foram a óbito, uma não foi localizada e uma outra não foi possível o acesso. Assim nossa amostragem final foi de 50 usuários. Os dados foram coletados no período de abril a julho de 2001 através da aplicação de formulários, contendo 24 questões. A aplicação dos mesmos ocorreu no próprio serviço ou em visitas domiciliares quando necessário, mesmo no caso dos usuários que residiam em municípios fora de Botucatu. Resultados e Discussão Através da pesquisa realizada junto aos usuários do Centro de Atenção Psicossocial Espaço Vivo pudemos caracterizar a população do serviço em seu primeiro ano de atendimento. Constatamos que há o predomínio de mulheres (52%), podendo ser explicado pelo fato das mesmas procurarem mais os serviços de saúde do que os homens. O Hospital – Dia da Faculdade de Medicina de Botucatu é um serviço similar ao CAPS – Espaço Vivo e em seu 12 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 9-20, 2003 grupo de usuários de acordo com a pesquisa realizada (LIMA, 1999), o sexo feminino também foi o predominante (76,5%). Com relação à idade, a população usuária do CAPS – Espaço Vivo é jovem e está em período produtivo da vida, 40% possuem idade entre 30 e 39 anos e 22% entre 20 e 29 anos. Um fator que pode ser investigado dentro desta análise é o fato das pessoas mais idosas já estarem institucionalizadas, o que é justificado pela própria história da assistência psiquiátrica, ou então, devido o período de tempo da doença ser grande e os familiares diminuíram as expectativas de melhora (LIMA, 1999). Quanto ao estado civil, há uma porcentagem considerável de pessoas solteiras (54%) enquanto apenas 24% estão casadas. Podemos dizer que uma doença, no caso, a mental, dificulta o estabelecimento de um relacionamento de toda natureza, incluindo o conjugal (tabela 1). Tabela 1: Idade, sexo e estado civil dos usuários do CAPS - Espaço Vivo Sexo Masculino Feminino Total Estado Civil Idade Solteiro Casado Separado Solteira Casada Separada Viúvo % % % % % % % 20-29 7 - 14 1–2 2–4 1-2 30-39 8 - 16 1–2 1-2 1–2 6 - 12 3-6 40-49 2-4 1–2 2–4 1-2 2-4 1–2 9 – 18 50-59 2-4 3–6 1-2 1-2 1–2 8 – 16 1–2 2–4 3–6 50 – 100 60-69 TOTAL 11 – 22 1–2 19 - 38 3–6 2-4 8 – 16 9 -18 % 6 - 12 20 – 40 Fonte: Pesquisa realizada junto aos usuários do Centro de Atenção Psicossocial Espaço Vivo Botucatu, SP, 2001. Como era previsto, a procedência maior foi da cidade de Botucatu (68%), pois além do serviço ser regionalizado e prestar atendimento aos trinta municípios que estão vinculados a DIR XI, a locomoção das pessoas que residem em outra cidade até o município do serviço é intrincado. Em relação a escolaridade, 60% dos usuários do CAPS “Espaço Vivo” tinham instrução apenas no ensino fundamental, sendo que desta, 48% possuía o ensino fundamental incompleto e 12% o ensino fundamental completo. A escolaridade verificada neste trabalho, não destoa daquela encontrada em outros estudos. LIMA (1999) avaliando usuários do Hospital – Dia da Faculdade de Medicina de Botucatu encontrou que 64,7% tinha até a 8ª série do ensino fundamental (tabela 2). Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 9-20, 2003 13 Tabela 2: Quanto à escolaridade dos usuários do CAPS - Espaço Vivo Escolaridade N Analfabeto 1 2 Ensino Fundamental Incompleto 24 48 Ensino Fundamental Completo 6 12 Ensino Médio Incompleto 2 4 Ensino Médio Completo 10 2 Curso Técnico 1 2 Superior Incompleto 3 6 Superior Completo 2 4 Não soube responder 1 2 50 100 TOTAL % Constatou-se que 24% dos entrevistados são aposentados, seja por tempo de serviço ou devido problemas de saúde, 38% estavam desempregados no momento da entrevista e 8% faziam “bicos” como forma de ajudar no sustento ou mesmo para provê-lo. Nesse contexto não podemos deixar de considerar o problema do desemprego que agrava o País, a baixa qualificação da população. No entanto estes são fatores que provavelmente se somam ao preconceito existente na sociedade em relação aos doentes mentais, que são vistos como incapazes de realizar qualquer tipo de atividade. Talvez seja importante mencionar que existem quadros psiquiátricos em que de fato, a pessoa vai aos poucos se debilitando, mas não podemos generalizar, pois muitos adoecem mentalmente e após tratamento possuem plenas condições de retornarem ao mercado de trabalho. Em relação a renda dos usuários, 46% possuíam renda entre um e três salários mínimos (salário mínimo vigente de R$ 200,00), provenientes de benefícios de prestação continuada, aposentadorias entre outros e 34% não possuía nenhuma renda, o que acabou influenciando diretamente na qualidade de vida da pessoa. Durante toda a história da assistência psiquiátrica no mundo e em especial no Brasil, os doentes mentais dificilmente foram ouvidos, sendo sujeitos passivos do tratamento. Hoje a reforma psiquiátrica busca torná-los sujeitos ativos, ouvindo seus desejos, críticas, opiniões e sugestões, e isto, de fato está ocorrendo, pelo menos no CAPS “Espaço Vivo” onde 80% de seus usuários sentem que suas idéias têm valor. 14 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 9-20, 2003 Ao aplicar o formulário para a realização da presente pesquisa, um familiar mencionou que o Ministério da Saúde havia enviado uma carta solicitando que os dados da internação do paciente fossem conferidos e que respondessem cinco perguntas com o intuito de avaliar o hospital onde esteve internado. Esta iniciativa por parte do Estado foi a primeira vez na história da psiquiatria, significando que de fato estão buscando mudar a saúde mental no Brasil e procurando ouvir do usuário, sua avaliação sobre o tratamento recebido. Ele passou a ser sujeito da ação. A família é um outro ponto discutido no processo da reforma psiquiátrica. É necessário que esta participe efetivamente do tratamento de seu familiar. Segundo 76% dos usuários do CAPS – Espaço Vivo a participação da família é importante, e como afirmam, 50,1% são as pessoas mais próximas que convivem junto a eles e participando do tratamento podem entender melhor a doença, demonstrando preocupação e assim fazendo com que a pessoa/usuário se sinta melhor, como responderam 5,3% dos entrevistados (tabelas 3 e 4). Tabela 3: Importância da participação da família no tratamento na visão dos usuários do CAPS - Espaço Vivo Sim Importância N 38 % 76 Não 10 20 2 4 50 100 Não responderam TOTAL Fonte: Pesquisa realizada junto aos usuários do Centro de Atenção Psicossocial Espaço Vivo Botucatu, SP. 2001. Tabela 4: Motivos que os usuários do CAPS - Espaço Vivo apresentam em relação à importância da família estar participando do tratamento. Motivos Os familiares são as pessoas mais próximas e podem entender melhor a doença N 19 % 50,1 A família apóia e fortalece 7 18,5 A participação da família faz parte do tratamento 1 2,6 Mostram que se preocupam com eles, assim sentem-se melhor 2 5,3 É importante devido aos problemas de saúde 3 7,8 Ajudam a resolver os problemas 1 2,6 Não souberam responder 5 13,1 TOTAL 38 100 Fonte: Pesquisa realizada junto aos usuários do Centro de Atenção Psicossocial EspaçoVivo Botucatu, SP. 2001. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 9-20, 2003 15 Observamos que a importância da participação da família no processo de tratamento, também está sendo compreendida pela mesma, 58% dos usuários contaram com a participação de pelo menos um familiar no tratamento (tabela 5). Tabela 5: Quanto à participação da família no tratamento Participação N % Sim 29 58 Não 19 38 2 4 50 100 Não responderam TOTAL Fonte: Pesquisa realizada junto aos usuários do Centro de Atenção Psicossocial Espaço Vivo – Botucatu/SP 2001. O grupo de apoio à família foi freqüentado por 62,1% dos familiares dos usuários do serviço, sendo esta uma das formas de expressão que os familiares recorrem. Quanto aos familiares que não participaram (38%), referiram ser a falta de tempo (15,8%) e problemas pessoais (10,5%) os motivos que “impedem” tal participação. Um dos pontos discutidos no movimento da reforma psiquiátrica é a exclusão social das pessoas portadoras de transtorno mental. Em relação a esta variável constatamos que 50% dos usuários do CAPS “Espaço Vivo” não se sentem segregados, ou seja, marginalizados pela sociedade, indicando que o serviço está desenvolvendo seu trabalho no sentido de colaborar na superação do preconceito existente na sociedade, em relação às pessoas portadoras de transtorno mental. No entanto, não podemos desconsiderar que 40% dos entrevistados responderam que se sentem marginalizados sim, apresentando motivos convincentes e reais, como a falta de confiança e o afastamento das pessoas devido à doença mental (65%) e comentários (25%). Salientamos que a questão do preconceito não é fácil de ser trabalhada, pois é uma questão que foi sendo estruturada ao longo dos anos. De acordo com os resultados obtidos na pesquisa, podemos dizer que o CAPS “Espaço Vivo” vem buscando melhorar as relações sociais de seus usuários, segundo 76% dos entrevistados, seja através de grupos (34,2%), passeios, comemorações com familiares, atividades expressivas e manuais (13,2%) ou devido ao próprio ambiente (7,9%). Uma usuária mencionou que ir ao CAPS melhorou sua vida, pois voltou a viver normalmente; ser alegre; ir aonde desejasse sozinha; antes chorava muito, tinha medo de tudo, até de chegar perto dos filhos. 16 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 9-20, 2003 Com este relato somado aos dados coletados, percebemos que o CAPS – Espaço Vivo influencia de modo positivo na qualidade de vida de seus usuários (75,5%), seja melhorando a saúde (17,6%); o relacionamento com outras pessoas, havendo um convívio social (22,8%) ou por não precisarem de internação psiquiátrica fechada (8,8%). Os objetivos do CAPS- Espaço Vivo estão sendo atingidos, como o de evitar internações, dos 55 usuários que passaram pelo serviço no primeiro ano de atendimento, foram efetuadas onze internações (20%). É um número favorável se considerarmos que 26% dos entrevistados tiveram anteriormente ao tratamento, de duas a cinco internações e 22% mais do que dez internações psiquiátricas fechadas (tabela 6). Tabela 6: Número de Internações em Hospitais Psiquiátricos dos usuários do CAPS Espaço Vivo N. de Internações Psiquiátricas N % Nenhuma 1 2a5 6 a 10 10 Não lembra TOTAL 10 20 8 16 13 26 7 14 11 22 1 2 50 100 Fonte: Pesquisa realizada junto aos usuários do Centro de Atenção Psicossocial Espaço Vivo – Botucatu/SP, 2001. Bueno (2001), relata em seu livro Canto dos Malditos o seguinte depoimento: Ao sair dos hospícios, ficamos com muitas seqüelas. O nosso emocional fica quebrado, altamente sensível e inseguro para enfrentar a vida aqui fora. Ficamos com medo de sair na rua, com desconfiança de nos aproximarmos das pessoas. Muitas vezes, leva tempo para nos livrarmos dos efeitos da medicação excessiva que tomamos. Outro problema são as cobranças dos familiares, que também não sabem lidar com a situação precária, com o emocional do ex-interno. Se, na minha época, existissem os “trabalhos substitutivos” creio que eu nem teria sido internado... Conclusão A saúde mental é um setor que ainda precisa passar por várias transformações, propostas de serviço são, sem dúvida, imprescindíveis para o Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 9-20, 2003 17 sucesso nesta área, mas devemos estar atentos a pontos como o de ter serviços de saúde organizados e orientados para as necessidades de seus usuários, identificando e investindo nas potencialidades das pessoas, as quais tem direitos e valores, tratando-as com humanidade e respeito, considerando suas singularidades. E como afirma Rosa (2002), a maior tecnologia em saúde mental é o relacionamento humano. É preciso menos exclusão, menos discriminação para que as pessoas e seus respectivos familiares atingidos pelo transtorno mental possam ter uma vida melhor. MARCHIS, E. C.; SIMÃO, M. O.; PINHEIRO, G. M. CAPS: a new proposition of treatment and the importance of this service to its users. Serviço Social & Realidade (Franca), v.12, n.1, p.9-20, 2003. • ABSTRACT: The psychiatric assistance was based until 1970 on the internment in enclosed psychiatric institutes the carriers of mental perturbations. “Mental conditions kenned like madness was motive to isolation and radical treatments”, as emphasizes LEMGRUBER (2001), seeing that people carriers of mental perturbation would can contaminate other people of society, representing a social danger. Many critiques emerged regarding the psychiatric treatment that was offered, mainly behind the Second World War, when the psychiatric asylums were compared to the prisoners concentration fields. It was necessary a reformulation in the offered psychiatric assistance, seeing the carriers of mental perturbation like subjects and not objects of action. Arises the movement of psychiatric reform. One of the guidelines of this movement is the gradual substitution of the psychiatric hospitals for communal and open services. In Botucatu one of the possibilities of mental health attention is the Social Psychic Attention Center – CAPS “Espaço Vivo”, created towards the implementation of this new form of attention to the mental health, corresponding to the retirement of mental carriers of institutions. This work according to the principal obtained results in the performed research with users, demonstrated that the life quality bettered, in order that avoided the closed internment and made possible to people with mental perturbations to stay in their familiar and social contexts, kepting its relations. • KEYWORDS: Social Exclusion; Psychiatric Reform; Treatment. Referências Bibliográficas AMARANTE, P. Algumas reflexões sobre ética, cidadania e desinstitucionalização na reforma psiquiátrica. Revista Saúde em Debate, n. 45, p. 43-46, 1994. ______. (org). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: SDE/ENSP, 1995. BRASIL, Leis etc. Lei n. 10216 de 6 de abril de 2001. –Psiquiatria hoje. n.2, p.89, 2001. 18 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 9-20, 2003 BUENO, A. C. Canto dos malditos. Rio de Janeiro. Rocco, 2001. CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA. Trancar não é tratar. 2.ed. São Paulo, 1997. LEMGRUBER, V. Nova face da psiquiatria Especial reforma. Psiquiatria hoje. n. 2, p. 6-10, 2001. LIMA, M. C. P. Hospital – Dia da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP: estudo descritivo da população atendida. Campinas, 1999. 12-47, p. 112-129. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Campinas. PINHEIRO, A. G. M. et al. Projeto Centro de Atenção Psicossocial de Botucatu. Botucatu, texto, p. 11, nov./1999. ROSA, Lucia Cristina dos Santos. Serviço Social e Saúde Mental. Palestra proferida durante o Curso de Saúde Mental e Serviço Social no I CONASS, realizado em abril de 2002, em São Paulo. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 9-20, 2003 19 O SIGNIFICADO DA PARTICIPAÇÃO PARA OS PAIS COORDENADORES DO PROGRAMA AGENTES MULTIPLICADORES DO SERVIÇO SOCIAL DE PROJETOS COMUNITÁRIOS DO HRAC Marcela Cristina CHADDAD* Silvana Aparecida Maziero CUSTÓDIO** Lilia Christina de Oliveira MARTINS*** • RESUMO: A Reabilitação tem na participação social um dos meios para sua concretização. Tornou-se importante situar a relação entre o significado da participação e o nível de envolvimento para os pais coordenadores do Programa Agentes Multiplicadores do Serviço Social do HRAC-USP. Objetivou-se com este estudo a explicação e a compreensão do significado da participação para os pais coordenadores. A metodologia da pesquisa baseou-se na abordagem quanti-qualitativa e a análise dos dados concebeuse pelo método dialético. A pesquisa teve como sujeito os pais coordenadores vinculados as associações, tendo como instrumental de investigação o questionário semi estruturado que trabalhou alguns eixos analíticos como participação, organização e mobilização. Verificou-se que as ações desenvolvidas por estes pais imprimem gradualmente o caráter sócio-político e o processo de participação vem sendo entendido como elemento essencial para as mudanças sociais e a conquista da cidadania. • PALAVRAS-CHAVE: Serviço Social; Pais Coordenadores; Agentes Multiplicadores. Introdução O Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (HRAC-USP), fundado em 1967, é especializado no tratamento das anomalias craniofaciais (fissura labiopalatal e deformidades congênitas do crânio e da face) e distúrbios da audição, visão e linguagem. O Hospital presta atendimento público e integral, reconhecendo saúde como direito universal e dever do Estado. O tratamento oferecido é mantido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e tem por objetivo a reabilitação de seus pacientes. O tratamento das fissuras lábio-palatais é complexo e longo, por isso necessita de acompanhamento contínuo da equipe reabilitadora, de acordo, com as etapas terapêuticas. São atendidos pacientes de todas as regiões do Brasil e de alguns países vizinhos. (GRACIANO et al., 1999). As atividades desenvolvidas pelo Hospital têm por finalidade o ensino, a Assistente Social, aluna do curso de Especialização em Serviço Social (HRAC/USP). Mestre em Serviço Social e Coordenadora do Serviço Social de Projetos Comunitários do HRAC/USP – Orientadora. *** Livre Docente em Serviço Social e professora do Departamento de Serviço Social da UNESPFranca – Co-orientadora. * ** Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 21 pesquisa e a extensão dos serviços a seus pacientes. Entre as atividades destacam-se: assistenciais, de prevenção, tratamento, proteção e recuperação da saúde. Para atender seus objetivos conta com uma equipe especializada e interdisciplinar, composta por profissionais de nível superior (médicos, dentistas, fonoaudiólogas, psicólogas, enfermeiras, assistentes sociais, fisioterapeutas, nutricionistas e outros). (GRACIANO et al., 1999) Tendo em vista a participação como meio eficaz de mudanças nas políticas públicas, que favorece a consolidação dos direitos sociais e viabilizando a emancipação do ser enquanto sujeito individual para o coletivo, a presente pesquisa buscou situar a relação entre o significado da participação e o nível de envolvimento comunitário dos agentes do Programa dos Pais Coordenadores do Serviço Social do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo. Dessa maneira, a análise teve como objetivo a explicação e compreensão do significado da participação para os agentes multiplicadores do Hospital. Procurou analisar a importância do processo de participação para os pais coordenadores, verificando se este trabalho voluntário tem estimulado a participação em outras lutas sociais mais amplas. Buscou refletir sobre o processo de conquista dos direitos sociais e a consolidação da cidadania desses agentes, analisando como ocorre a participação e atuação na sociedade civil. Esta pesquisa também pretendeu enfocar a representação social desses agentes, propondo medidas que visem melhorias em sua capacitação, objetivando-se, portanto, a qualidade do Programa. Em primeiro lugar è contextualizado o trabalho desenvolvido pela equipe de Serviço Social e, em específico, o Programa Agentes Multiplicadores do Serviço Social de Projetos Comunitários do HRAC-USP. Em segundo discute-se as questões relacionadas à participação social. Inicialmente, foi traçado um breve histórico-social da participação, contextualizando-a em seus aspectos e conceitos fundamentais. A realidade social vivenciada no campo da saúde foi refletida com a abordagem a participação diante do contexto sócio-político brasileiro e do programa de pais coordenadores. Em seguida o texto descreve o processo metodológico usado para a realização da pesquisa e, em seguida, ocupa-se em trabalhar com a interpretação dos dados coletados, correlacionando teoria e prática. As Considerações Finais analisam a consecução dos objetivos propostos da pesquisa, avaliando a relevância do estudo. Discutiram-se ainda alternativas que visem melhorias na capacitação dos agentes multiplicadores. 22 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 1 Contextualização do Serviço Social do HRAC-USP Para iniciar a discussão em torno do significado da participação para os pais coordenadores é necessário contextualizar antes o trabalho desenvolvido pelo Serviço Social do HRAC-USP. 1.1 Serviço Social no HRAC-USP O Serviço Social do HRAC-USP pertence à Divisão de Atividades Técnico Auxiliares (DATA) e compreende três setores: Ambulatório, Internação e Projetos Comunitários. Atua como mediador entre usuários, familiares e comunidade nas relações com o Hospital e tem por objetivo a viabilização do acesso ao tratamento e sua continuidade, visando à inclusão dos portadores de anomalias craniofaciais em uma política de saúde, por meio dos programas de apoio à reabilitação. O Serviço Social desenvolve diversos programas sociais na área de prestação de serviços, ensino, pesquisa e gestão. Os programas de prestação de serviços (GRACIANO et al., 1999) desenvolvidos pelo Serviço Social incluem: • Serviço Social Ambulatorial: Acolhimento e atendimento de casos novos; Assistência continua aos pacientes e familiares: plantão social in loco. • Serviço Social “Projeto Bauru”: Acolhimento a casos novos de Bauru; Assistência contínua aos pacientes de Bauru: Família, Escola, Trabalho e Comunidade; Prevenção e Intervenção em casos de abandono de tratamento do Projeto Bauru; Adoção Nacional e Internacional. • Serviço Social de Internação: Integração e dinamização hospitalar: internação, acompanhamento, alta e óbito; Assistência hospitalar aos usuários: plantão social durante o período de internação; Assistência hospitalar aos usuários: Chamadas emergenciais. • Serviço Social de Projetos Comunitários: Agentes multiplicadores: pais coordenadores; Parceria com Prefeituras Municipais; Carona Amiga; Capacitação de representantes comunitários; Mobilização do Tratamento Fora do Domicílio (TFD) do SUS; Parcerias com Promotorias Públicas; Intervenção em casos de abandono de tratamento e sempre que possível prevenção do abandono; Assessoria às associações e núcleos; Parceria entre Serviço Social de Projetos Comunitários e Programa de descentralização. • Parceria com Recursos Institucionais: Assistência aos usuários das Unidades de Pré-internação e Pós – cirúrgico; Assistência social Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 23 integrada: HRAC-USP e Sociedade de Promoção Social do Fissurado Lábio Palatal (PROFIS).1 Todos os programas/ projetos sociais se articulam na perspectiva de totalidade e cidadania visando à inclusão social. Os programas de ensino e pesquisa objetivam a formação e aperfeiçoamento dos recursos humanos em Serviço Social (supervisão dos estagiários, curso de malformações, curso de aperfeiçoamento e cursos de especialização), a participação em eventos científicos, bem como a participação em pesquisas sociais e/ou interdisciplinares. No programa de Gestão, a administração de Recursos Humanos, visa o planejamento, organização, coordenação, supervisão e avaliação das atividades do Serviço Social. Com todos esses programas/projetos o Serviço Social tem como desafio a construção de diferentes espaços rumo à conquista de direitos de cidadania, por meio de uma prática profissional competente e comprometida com os usuários, (GRACIANO, 1999). Apresentaremos a seguir uma visão geral do Programa de Pais Coordenadores/Agentes Multiplicadores, no qual estão inseridos os sujeitos desta pesquisa, visando fornecer subsídios que possibilitem o seu conhecimento e apreensão do compromisso com a população usuária. 1.2 Programa de Pais Coordenadores/Agentes Multiplicadores Pais coordenadores são pais e/ou pacientes adultos que, por meio do trabalho voluntário, representam elementos de ligação entre a família, a comunidade e o Hospital. São representantes dos portadores de deficiências de suas respectivas cidades, trabalhando em busca da defesa de seus direitos e interesses comuns. Para ser coordenador o ideal é que os pais procurem de forma espontânea o serviço social com o interesse em ser o coordenador de seu município, no entanto quando isso não ocorre o serviço social procura durante seus atendimentos identificar pais com potencial para assumir tais responsabilidades. Para tanto, é necessário, um certo grau de instrução, facilidade de comunicação para efetuar os contatos com representantes/autoridades em seu município e condições de acesso facilitado (domicílio fixo, telefone e outros). No entanto, o mais relevante para a elegibilidade é o tipo de fissura e a etapa de tratamento que o paciente se 1 PROFIS - Sociedade de Promoção Social do Fissurado Lábio-Palatal, tem por finalidade prestar assistência social aos pacientes em tratamento no HRAC/USP (Centrinho), com o qual ela mantém convênio e intercâmbio de idéias e programas. 24 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 encontra, o que determina a sua freqüência ao hospital. Periodicamente o setor de Serviço Social de Projetos Comunitários analisa as listagens das cidades que não possuem pais coordenadores e a partir dessa análise solicita o seu agendamento para verificar o interesse e potencial para assumir a responsabilidade como representante dos pacientes em seu município. Em relação a este Programa o Serviço Social tem como função motivar, selecionar, capacitar, supervisionar e avaliar os coordenadores, dando apoio e suporte ao trabalho comunitário desenvolvido. Dessa maneira, busca capacitar os pais coordenadores para o processo participativo e organizativo em apoio à reabilitação, através de entrevistas, reuniões, encontros e cursos. Entre as funções dos pais coordenadores estão: divulgação, apoio, mobilização e organização. • Divulgação: tem por objetivo a apresentação do Hospital e das associações de pais em pontos estratégicos de sua comunidade. Trabalho que procura democratizar as informações a cerca dos serviços prestados em relação aos hospitais e as associações. • Apoio: tem por objetivo prestar orientação e esclarecimentos sobre as rotinas do Hospital, recursos comunitários (Tratamento Fora de Domicílio - TFD, Sistema Único de Saúde - SUS, Promotorias, Conselhos, Carona Amiga, Associações e outros). Visa também ao acompanhamento da freqüência do paciente ao tratamento, localizando pacientes e, situação irregular (faltosos), dando apoio através da motivação e diálogo com os pacientes e familiares entre outras atividades de apoio. • Mobilização: mobilizar recursos humanos e materiais em sua comunidade, viabilizando o acesso ao tratamento por meio de Prefeituras, Carona Amiga, Tratamento Fora de Domicílio, Sistema Único de Saúde, Promotorias e Associações e a sua continuidade. Identificar profissionais interessados em tornar-se representantes comunitários para um trabalho em conjunto. • Organização: coordenação e organização da carona amiga e das associações, promoção de reuniões, eventos e visitas que facilitem seu trabalho, registro das atividades executadas e outras atividades. Dessa maneira, por perceber que a reabilitação da pessoa portadora de anomalias craniofaciais, entendida como processo que busca a inclusão social, tem na participação um dos meios para sua concretização, tratou-se de abordar aspectos relacionados à participação, objetivando pela construção e discussão de conhecimentos a cerca da temática. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 25 2 Participação Social Com base em Demo (1993), a participação é definida como um processo de conquista imprescindível para a organização da sociedade. O processo da participação, compreendido, então, como conquista, se opõe a toda e qualquer forma de concessão, necessitando do compromisso e envolvimento para a garantia dos direitos sociais e consolidação da cidadania. Por meio da participação abre-se espaço para a conquista da democracia, visando à justiça social, assegurando, dessa forma, a universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais. Conforme Bonetti (1998) a democracia é entendida enquanto socialização da participação política e da riqueza social produzida. 2.1 Aspectos Relevantes da Participação Social A participação ao longo da história aparece vinculada a diversas idéias. Durante o período pós-guerra, esteve associada as idéias de modernização e democracia, na medida em que preconizava a inserção dos países subdesenvolvidos no desenvolvimento internacional, (SIMIONATO, 1997). Já nos anos oitenta, assiste-se ao fortalecimento do discurso da participação, enfocada-a em seu caráter coletivo, associada a democracia e ao controle social. Dessa maneira, a participação aparece como fortalecedora dos espaços de controle social e gestão das políticas públicas. No entanto, em virtude do reordenamento das políticas públicas em favor da implementação do projeto neoliberal, a participação aparece desconstituída de seu caráter coletivo, para expressar apenas a cooperação solidária. O discurso da participação aparece descaracterizado e reduzido a operação solidária entre os cidadãos, mediada pelo Estado, ausente de sentido político e envolto em uma grande opacidade e maleabilidade, (SIMIONATO, 1997 p. 158). Apesar da busca concreta e constante por sua legitimidade enquanto processo de caráter sócio-político, a participação, face à implementação da política neoliberal, sofre com o esvaziamento e deturpação de seu discurso enquanto mantenedora do projeto de transformação social, favorecendo a garantia dos direitos sociais em busca da cidadania plena. No entanto, apesar dos contrapontos, é necessário lembrar a importância do processo de participação para a efetivação dos direitos sociais. Deve-se visar por práticas que coloquem a participação como processo democratizante, objetivando-se a construção de novos sujeitos políticos coletivos e a emancipação do ser humano. Ressalta-se, dessa forma, seu papel no 26 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 fortalecimento dos espaços de controle social e gestão das políticas públicas. A participação se coloca como processo inerente ao ser humano de pensar e agir sobre determinada realidade, visando o enfrentamento de desafios e conquista de seu espaço. Deve ser enfocado nas relações sociais, almejando o poder de decisão sobre suas condições básicas de existência. Portanto, não pode ser dissociada da questão social. Assim, a participação, enquanto processo social, pode tanto caminhar para a transformação da realidade social, buscando o rompimento com a alienação sócio-cultural-política como apenas ser mais um instrumento de reprodução das relações sociais. O processo participativo envolve algumas dimensões como: a representatividade da liderança que envolve democraticamente a confiança, a legitimidade do processo, a participação de base que envolve a reivindicação dos direitos e compromisso e o planejamento participativo auto-sustentado. (DEMO, 1991). Entende-se, então, que a participação ocorre das e nas relações sociais, que é um processo histórico e está permeada pelo pensamento de grupos sociais. O processo de participação abrange a conscientização, organização e capacitação, pois somente por meio do compromisso e do real entendimento de sua importância, é que esta irá garantir seu papel de não reprodutora das relações sociais. A conscientização, enquanto processo de desvendamento da realidade social, visa à ação do homem em sua realidade. A conscientização permite a passagem do homem da consciência individual para a consciência social. Na medida em que o processo de conscientização busca a ação coletiva do homem sobre a realidade, a organização se coloca como processo inerente à conscientização. Conforme Souza (1993, p. 93), Conscientização é organização, pois supõe tomada de atitude que implica a compreensão da força social da população quando articulada e organizada Por sua vez, organização é conscientização, pois a população projeto, avalia e confronta sua força social com a dinâmica da realidade social. Complementa essa autora que a partir do momento em que a população inicia seu próprio processo de conscientização e organização, percebendo a essência da realidade social, temos o processo de capacitação. A ausência de qualidade nas organizações reflete a não qualidade democrática da sociedade. Para garantirmos os direitos sociais, é necessário caminhar em busca da qualidade política, e compreender que somente por meio da organização da sociedade é que será possível ter a cidadania plena. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 27 Conforme Demo (1988, p. 40) "Qualidade política é aquela que trata dos conteúdos da vida humana e sua perfeição é a arte de viver”. Portanto, a participação, aparece como uma das principais diretrizes preconizadas pelas políticas públicas. Assiste-se o enfoque da participação tanto pela sua importância para formulação e execução das políticas sociais em busca da concretização dos direitos sociais, como para o processo de democratização e justiça social para consolidação do projeto ético-político visando à emancipação do ser humano. Em seguida, será contextualizado a participação social no campo da saúde em relação ao contexto social e político brasileiro. 2.2 Participação Social na Saúde Diante à Realidade Brasileira A crise econômica e o processo de redemocratização do Brasil na década de oitenta, culminou com a rediscussão do Sistema Nacional de Saúde Brasileiro. A 8ª Conferência Nacional de Saúde impulsionou segmentos da sociedade e de profissionais da saúde para o debate em torno da reestruturação da saúde, por meio da Reforma Sanitária. (MENDES, 1994). A Reforma Sanitária poder ser entendida como processo democratizante e modernizador em torno da política de saúde, trazendo mudanças na política judiciária, operacional e institucional. Com esse processo, a saúde, a partir da promulgação da Constituição Federativa de 1988 e da implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), é colocado como questão coletiva, de natureza social e política. A saúde é entendida como direito do cidadão e dever do Estado, sendo garantida a universalidade e igualdade nas ações e serviços prestados para a promoção, proteção e recuperação, integrando a rede organizada e hierarquizada formada pelo SUS. Dessa forma, presencia-se diversas mudanças na Política de Saúde, tais como: estratégia do SUS, democratização do poder local, descentralização das ações para os estados e municípios e outras. Assistimos, então, a alteração do conceito de saúde, sendo esta expressada por meio dos níveis de organização social e econômico da população brasileira, tendo como fatores determinantes e condicionantes a alimentação, moradia, meio ambiente, renda, educação, lazer, trabalho, saneamento básico e transporte. Com a implantação do SUS temos como principais diretrizes e princípios da Saúde: universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos níveis de assistência, integridade de assistência, igualdade da assistência à saúde, preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral, descentralização político-administrativa, participação social e outros. Dessa forma, por meio do processo de descentralização e 28 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 democratização da política de saúde assiste-se ao fortalecimento do controle social e, da participação da sociedade civil na gestão das políticas públicas. Portanto, participação social aparece delimitando o controle social na gestão da política de saúde, sendo os Conselhos de Saúde um dos mais importantes canais de participação social. O controle social é entendido como participação da comunidade na gestão das políticas públicas e, não no sentido de manutenção da ordem social. Nesse sentido, entende-se que a construção da cidadania ocorre a partir desses espaços de participação. A participação permite a construção dos espaços de controle social, tais como os Conselhos, viabilizando a capacitação e formação de novos sujeitos políticos. De acordo com Bravo e Potyara (2002, p. 44), A participação é concebida como a gestão nas políticas através do planejamento e fiscalização pela sociedade civil organizada. Ou seja, a interferência política das entidades da sociedade civil em órgãos, agências ou serviços do Estado responsáveis pela elaboração e gestão das políticas públicas na área social. No entanto, lembramos que a partir dos anos noventa, com a implementação da política neoliberal no Brasil, assiste-se ao redirecionamento do papel do Estado. Presencia-se a redução dos direitos sociais e o desmonte das políticas públicas. Ressalta-se que enquanto no cenário mundial a desregulamentação, a flexibilização e a privatização aparecem como elementos inerentes à política neoliberal, o Brasil ainda estava em processo de criação de mecanismos políticos-democráticos de regulação do sistema produtivo. No entanto, a reestruturação do capitalismo veio implementar medidas visando à integração ao sistema econômico mundial que conforme Neto (1999, p. 79), tratava-se de implementar uma orientação política macroscópica que, sem ferir grosseiramente os aspectos formais da democracia representativa, assegurasse ao Executivo Federal a margem de ação necessária para promover uma integração mais vigorosa ao sistema econômico mundializado-integração conforme às exigências do grande capital e, portanto, sumamente subalterna. Dessa maneira, nota-se que a implementação do projeto político do grande capital inviabiliza a alternativa constitucional da construção do Estado atrelado as propostas de responsabilidade social e direitos sociais universais, na Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 29 medida em que implementa a liberalização comercial, abertura sem restrições ao capital internacional, minimização do papel do Estado na economia, privatização estatal, revogação das leis de proteção social e trabalhistas visando a autoregulação econômica pelo mercado. No entanto, os espaços de representação social coletivo podem tanto favorecer o avanço da política neoliberal, preconizando as práticas de autogestão, autonomia do indivíduo e liberdade, como também podem constituir um espaço de luta pela democratização e de patamares de equidade e justiça social. Dessa forma, as novas diretrizes propostas pela política nacional de saúde se podem favorecer a consolidação da saúde como direito universal, requisitando pela participação da sociedade na gestão da política, pode também contribuir para a implementação do projeto neoliberal implementando a participação da sociedade civil sem o devido repasse dos recursos públicos, visando em sua totalidade pela ausência do Estado em suas responsabilidades sociais. Portanto, a descentralização político-administrativa dos serviços e ações de saúde preconizada como uma das principais diretrizes do SUS, não aparece como partilha de poder, mas sim como descongestionamento da saúde por meio de medidas que visem ao cerceamento dos recursos e estimulem medidas em acordo com a agência do mercado financeiro. “O problema do enfoque neoliberal é que a descentralização dá se num contexto de uma proposta de diminuição do Estado em busca de um Estado Mínimo”. (MENDES, 1994, p. 51). Sendo assim, no campo das políticas sociais, diante à política neoliberal, presencia-se três eixos fundamentais como estratégia de estabilização: privatização, descentralização e focalização. Reafirma-se a necessidade de estabelecer estratégias que visem à participação consciente e transformadora da realidade social, possibilitando a garantida dos direitos sociais e a consolidação da cidadania. 2.3 Participação e o Programa de Agentes Multiplicadores O Programa Pais Coordenadores tem na participação o principal meio de sua concretização. Sendo uma das principais diretrizes do SUS, a participação vem permitir o controle social na gestão das ações e serviços. Considerando a política neoliberal e sua repercussão nas políticas sociais, percebe-se que o processo participativo dos pais coordenadores abre espaço para o fortalecimento dos canais de controle social, privilegiando a formação de novos sujeitos políticos coletivos. Permite a acessibilidade dos usuários, de forma participativa, ao seu tratamento, contribuindo para a democratização de suas ações e serviços. 30 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 Nota-se que o trabalho desenvolvido pelo Serviço Social do HRAC-USP em relação ao programa de Agentes Multiplicadores tem atendido de maneira comprometida as diretrizes propostas pela nova política de saúde e com a construção e fortalecimento do projeto ético-político profissional, daí mais uma vez a importância desse estudo para detectar o significado da participação para os sujeitos políticos inseridos neste programa. 3 Metodologia A metodologia da pesquisa baseou-se na abordagem quanti-qualitativa, na relevância de que seu principal elemento é propor respostas às questões particulares de uma realidade, trabalhando com o universo de significados e valores vinculados nas relações e processos que não se reduzem apenas à quantificação. (MINAYO, 1997). Em relação à abordagem qualitativa, buscou-se explicar e compreender o significado da participação, trabalhando em torno de conceitos, valores e idéias. A quantificação foi necessária na medida em que descreveu dados relacionados ao nível, tempo e à freqüência de participação dos pais coordenadores no Programa Agentes Multiplicadores. Conforme Minayo (1997, p. 22), O conjunto de dados quantitativos e qualitativos, porém, não se opõem. Ao contrário, se complementam, pois a realidade abrangida por eles interage dinamicamente, excluindo qualquer dicotomia. A pesquisa pretendeu trabalhar o significado da participação social para os pais coordenadores do Programa Agentes Multiplicadores do Serviço Social do HRAC-USP - USP. Teve como sujeitos os pais coordenadores dos municípios que apresentam associações. Atualmente há 46 Associações de Pais e Portadores de Fissuras Lábio Palatais e 542 pais coordenadores no país cadastrados no HRAC-USP. No entanto, conforme levantamento realizado nos projetos comunitários, constatamos que 38 associações contam com pais coordenadores em seus municípios. Dessa forma, o instrumental de investigação utilizado foi o questionário semi-estruturado enviado com respectivo termo de consentimento por correio para 38 pais coordenadores dos municípios que apresentam Associações de Pais e Portadores de Fissuras Lábio Palatais em diversos estados brasileiros, abrangendo as regiões sudeste, sul, centro-oeste, norte e nordeste, compondo assim, o universo da pesquisa. O questionário semi-estruturado permitiu uma reflexão mais ampla e dinâmica por parte dos sujeitos da pesquisa sem Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 31 comprometer seus eixos analíticos referendando o processo participativo, que são os seguintes: conscientização, organização e capacitação. Para a análise dos dados foram utilizados os questionários recebidos dos pais coordenadores dos municípios que apresentam associações. Assim, dos 38 questionários enviados foram devolvidos 14 questionários sendo 13 respondidos e 1 deles sem resposta, caracterizando uma amostragem de 36,8% do universo de pesquisa. Em relação ao questionário não respondido o coordenador justificou que não seria coerente participar da pesquisa uma vez que não está mais atuando na associação. Desconsiderou-se esse questionário na quantificação dos dados, já que optou-se em utilizar apenas os questionários respondidos. Sendo assim, para a análise dos dados foi considerada a amostragem de 34,8%, ou seja, os 13 questionários respondidos. Dessa forma, teve como sujeitos da pesquisa 13 pais coordenadores dos municípios onde existem as associações, representadas por 4 regiões do Brasil. (Sul, Sudeste, Norte e Nordeste). A pesquisa foi descritiva incluindo a bibliográfica, a documental e a pesquisa de campo. Conforme Barros e Lehfeld (2000, p. 70), este tipo de pesquisa "Procura descobrir a freqüência com que um fenômeno ocorre, sua natureza, característica, causas, relações e conexões com outros fenômenos”. A análise dos dados concebeu-se pelo método dialético, na medida em que apresenta-se relevante a interpretação do estudo a partir do processo histórico-social e suas contradições, analisando-a em sua totalidade. De acordo como Faleiros (1985, p. 91) "Do ponto de vista dialético, a metodologia não é um conjunto de regras mas uma consciência dos processos globais historicamente dados numa relação contraditória e globalizadora". Na análise da interpretação dos dados da pesquisa de campo procurou-se correlacionar os fundamentos teóricos/práticos. 4 Análises dos Dados Antes de iniciar a análise dos dados com os referidos eixos analíticos da participação: conscientização, organização e capacitação, torna-se interessante o perfil dos pais coordenadores, sujeitos da pesquisa, objetivando traçar aspectos referentes a sua caracterização social, sua atuação como coordenadores, vínculo com as associações. Acredita-se que essa contextualização inicial permite maior conhecimento e esclarecimentos dos sujeitos da pesquisa, possibilitando analisar aspectos relevantes para explicar e compreender o significado da participação. 32 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 4.1 O Perfil dos Pais Coordenadores Tabela 1 – Os sujeitos da Amostra Segundo Classe Social, Procedência, Vínculo e Tempo de Atuação Classe Social Freqüência Porcentagem Baixa Inferior 1 7,6% Baixa superior 2 15,3% Média inferior 6 46% Média 2 15,3% Média Superior 2 15,3% Total 13 100% Procedência Freqüência Porcentagem Norte (AC e AM) 2 15,3% Nordeste (PE) 1 7,1% Sudeste (03 SP e 02 MG) 5 38,4% Sul (03 PR, 01SC e 01RS) 5 38,4% Total 13 100% Pai Mãe Pais Paciente Outros Total Vinculo/Paciente Freqüência 1 6 3 3 13 Porcentagem 7,1% 46,1% 23% 23% 100% Tempo de Atuação 1 a 3 anos 3 a 5 anos Acima de 5 anos Total Freqüência 4 1 8 13 Porcentagem 30,7% 7,1% 61,4% 100% Ao ser analisado o perfil dos pais coordenadores vinculados a pesquisa verificou que 46% destes pertencem a classe sócio econômica média inferior, sendo que apenas 7,6% da amostra está inserida na classe social baixa inferior. Esse dado é um reflexo do universo dos pais coordenadores que compreende: Baixa Inferior 5%, Baixa Superior 31%, Média Inferior 46%, Média 13% Média Superior 2.5% e não caracterizado 2.5% e também devido aos critérios de elegibilidade do Serviço Social do HRAC-USP. No entanto ao indagar sobre a classificação sócio econômica para os pais coordenadores 46,1% consideraramse pertencentes a classe média inferior, 23,0% da classe baixa superior, 15,3% da classe baixa inferior, 7,6% da classe média, 7,6% classe média superior e 7,6% da classe alta. Constatou-se também que a maior parte deles é proveniente da região Sul (38,4%) e Sudeste (38,4%), seguida respectivamente da região Norte e Nordeste. Ressalta-se aqui, que não foi possível obter representatividade da região Centro Oeste, já que não foi devolvido nenhum dos questionários enviados à esta região. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 33 Em relação ao vínculo do coordenador e paciente foi verificado que 46,1% destes são mães de paciente. Assim, percebe-se que o envolvimento da mulher no programa, como também em outras lutas sociais, está relacionado a várias implicações sócio-culturais. Essas implicações refletem que o processo participativo, conforme referendado nas análises teóricas, se dá mesmo a partir da necessidade de mudança em uma determinada realidade social, se colocando como processo de conquista, necessitando de compromisso e envolvimento para a garantida dos direitos sociais e para o processo de construção e consolidação da cidadania. Importante também é a participação dos pais de 23% no programa mostrando a importância da família no tratamento de reabilitação dos pacientes. Verificou-se que os pais coordenadores (64,1%) envolvidos na pesquisa atuam no Programa por mais de 5 anos, demonstrando a continuidade e necessidade do compromisso e envolvimento para a objetivação do programa de Agentes Multiplicadores. 4.2 Participação dos Pais Coordenadores nas Associações Constatou-se, em relação à amostragem, que 84% das associações estão em funcionamento, sendo que a maioria destas, ou seja, 72,7% apresentam vínculo com os Conselhos Municipais. Entre estes estão: Conselho Municipal da Assistência Social (45%), Conselho Municipal da Saúde (27,2%), Conselho da Criança e Adolescente (36%) e Conselho da Pessoa Portadora de Deficiência (18,1%). Em relação ao vínculo com a associação, os dados obtidos apontaram o período de 1 a 3 anos, em sua maioria, como tempo de atuação do coordenador na associação, seguido de 36,3% dos pais coordenadores acima de 5 anos, sendo que a maioria destes, cerca de 63,6% exercem função na diretoria. Constatou-se ainda que 90,9% dos pais coordenadores participam das reuniões das associações. As dificuldades colocadas pelos pais coordenadores que não participam das reuniões estão associadas à falta de informações e espaço para a participação. No entanto, os pais coordenadores reconhecem a importância de sua participação para o contato com os outros pacientes, o repasse de informações e planejamento e execução das ações da associação. Em relação a participação nas reuniões assinala-se: "...acho importante e necessário participar das discussões, tanto para planejar as ações como para avaliar as que estão em prática". (DP 1).2 Verificou-se em relação às associações em funcionamento, que 90,9% 2 A identificação dos questionários será fornecida por depoimento com as siglas DP 1 a DP 13. 34 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 dos pais coordenadores participaram da fundação da associação. Ao indagar-se sobre as dificuldades da atuação na associação notou-se que estes enfrentam problemas relacionados com a falta de recursos humanos, articulação com outras entidades, dificuldades de mobilização de recursos e também de comunicação com os pais e pacientes. Constatou-se que somente 45,4% dos pais coordenadores realizaram curso de capacitação de entidades sociais. Verifica-se a necessidade do incentivo e implementação a cursos de capacitação, os quais possibilitam aprimoramento, o conhecimento e gerenciamento de entidades sociais que são aspectos inerentes às atividades dos pais coordenadores nas associações. Em relação ao vínculo dos pais coordenadores com as associações os dados demonstram que estes estiveram presentes, em sua maioria, ou seja, 90,9% na fundação e que exercem grande importância para o funcionamento da associação. Permite colocar que os Programa Agentes Multiplicadores favoreceu a participação destes nas associações uma vez que o tempo de atuação como pais coordenadores, em sua maioria, coincide com o tempo de atuação na associação. Nota-se a importância do Programa como elemento desencadeador do processo participativo. Em seguida o estudo tratará de discutir a participação social e os Pais Coordenadores. 4.3 Participação Social em relação à concepção dos Pais Coordenadores Acredita-se que para a compreensão e a explicação do significado da participação no Programa é necessário refletir os processos que permeiam a participação social. Sendo assim, a análise considerou os seguintes eixos analíticos do processo participativo: conscientização, organização e capacitação. Verificou-se que os pais coordenadores consideram importante a participação social. Ao ser indagado sobre a importância e o significado de serem coordenadores notou-se que estes aparecem relacionados a vários sentimentos e valores refletidos na satisfação de poderem ajudar as pessoas em suas dificuldades, troca de experiências, repartindo as dificuldades no tratamento e reabilitação dos pacientes. O processo participativo destaca-se pela mobilização de recursos, permitindo o entrosamento dos pais e/ou pacientes, facilitando as ações para consecução dos objetivos necessários a reabilitação. Ao considerar a análise dos eixos analíticos referendados no processo participativo foi percebido que a conscientização apareceu vinculada a idéia de ajuda, organização, senso de responsabilidade e orientação. Muitos pais coordenadores consideram que a consciência está relacionada com a ajuda, ou seja, "Eu me conscientizo que tenho que ajudar o pequeno a se ajudar..." (DP 12). Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 35 Esse discurso vem descaracterizar a conscientização em seu caráter político, uma vez que rompe com o entendimento de processo de desvendamento da realidade, visando a ação do homem. No entanto, ao preconizar a consciência para ajudar reflete a passagem do homem da consciência individual para a consciência social, embora muitos pais coordenadores não façam a relação da conscientização com despertar para a realidade social, na prática, mesmo permeado pela idéia de ajuda implícita na atual sociedade, buscam pela ação coletiva do homem sobre a realidade. Considera-se, então, que embora não haja maior entendimento do processo de consciência a nível dessas reflexões, a conscientização entendida como ajuda, responsabilidade e organização expressa o caminho pela consciência coletiva. Porém, por outro lado, alguns pais coordenadores expressaram a conscientização como processo de desvendamento da realidade social reforçando as análises teóricas. De acordo com estes pais coordenadores a conscientização pode ser entendida como: Despertar a consciência de um grupo para os direitos e deveres. A conscientização leva a participação... (DP 10). Passar para as pessoas o conhecimento sobre determinado tema ou assunto e com elas interagir, para que as mesmas compreendam e entrem nessa realidade e passem a ser sujeitos dos processos. (DP 1). A organização aparece relacionada com diversas idéias. Vem associada com a idéia de traçar objetivos e estabelecer as metas a serem cumpridas, como também a união, liderança, envolvimento e participação. Reflete também a organização para o bom funcionamento da estrutura, assumindo, nesse sentido, a organização do tratamento, em relação aos cuidados com a higiene e a alimentação, buscando viabilizar o processo de reabilitação. No entanto a idéia principal expressa de organização reside em: Grupo que por terem interesses comuns passam a formar um conjunto de necessidades em ações concretas para conseguir atingir seus objetivos. Para isso criam regras dentro do movimento (DP 1). Nota-se que a organização aparece relacionado à idéia de grupos com interesses comuns que se unem e se organizam para atingirem seus objetivos. Verifica-se, entre linhas, a presença da compreensão da força social da 36 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 população quando articulada e organizada na conquista dos direitos sociais. A capacitação aparece relacionada à preparação para a ação e aquisição de conhecimentos, expressando sumamente a necessidade de buscar caminhos que tornem as pessoas capazes de agirem na luta pelos seus direitos sociais. Da capacitação tem-se: "Ato de tornar capazes os sujeitos que pretendem atuar na busca de garantia de direitos. Exercício de uma ação que possa mudar seu comportamento". (DP 1). Como é notado, a análise dos eixos analíticos possibilitou maior entendimento do significado da participação social para os pais coordenadores. Verificou-se que embora alguns pais coordenadores ainda sintam dificuldades de compreensão da participação como uns dos principais meio de fortalecimento dos espaços sociais e caminho a ser percorrido para a conquista dos direitos sociais, o discurso que prevalece atende as reflexões teóricas, uma vez que imprimem ao significado da participação seu caráter sócio-político. Dessa forma, ao ser analisado o entendimento por participação social constatou-se que esta aparece associada à idéia de bem comum e a união em busca de objetivos comuns. Dessa forma, aparece vinculada a mobilização de pessoas por uma causa justa, visando pela reflexão e mudança em determinada realidade social. Participação Social é participar de qualquer movimento que tenha o objetivo de garantir o exercício da cidadania, de ter acesso aos bens e serviços produzidos na sociedade. E, fazer parte do grupo, lutando, discutindo, propondo e ajudando a decidir (DP 1). No entanto, percebe-se ainda que o discurso da participação, ao ser associada com o bem comum, muitas vezes expressa valores permeados pela ideologia neoliberal, que enfatiza a participação da sociedade civil não como forma de controle social, mas como alternativa para a ausência do Estado no papel da execução de políticas públicas. Disso assinala-se: "Desempenhar um papel que traga benefícios para toda sociedade". (DP 13). "Onde todos da comunidade participem buscando o bem comum". (DP 1). Nesse sentido é preciso refletir que participação social não é somente desempenho de papéis sociais buscando o bem de toda sociedade, mas sim, processo de conquista que se opõe a toda e qualquer forma de concessão, que deve ser entendido em suas contradições, na medida que ocorre nas e das relações sociais, sendo permeada pelos conflitos de classes e, portanto, adquirindo sentido antagônico entre os diferentes grupos sociais. Notou-se também, ao analisar a importância e o significado da Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 37 participação no programa, que esta aparece associada com a idéia de necessidade para a viabilização do tratamento e reabilitação dos seus filhos e a importância de poderem ser solidários e contribuir para o tratamento dos demais pacientes. Percebe-se que os dados referentes ao vínculo com o paciente refletem, dessa forma, não só a questão da necessidade como também do envolvimento com a situação vivenciada que estimula as mães a participarem em maior número do Programa. Confirma-se, dessa forma, o real entendimento do significado da participação, conforme trabalho anteriormente pelos eixos analíticos. "É extremamente importante a experiência e o envolvimento dos pais no repasse aos pacientes novos, nada como alguém que já passou pela problemática". (DP 11). Dando prosseguimento a análise buscou-se traçar o significado e a importância de serem coordenadores. "Significa doação daquilo de bom que também recebi. Através de pequenos esforços, unidos, obtemos grande força de mobilização". (DP 6). Nota-se com este discurso que o Programa Agentes Multiplicadores não só reflete sua importância como vinculador do processo participativo, enfatizando seu papel na continuidade e não abandono do tratamento e na reabilitação global de seus pacientes, como também no reconhecimento pessoal de atuar como coordenador. Ao analisar como ocorre a orientação dos pacientes em relação aos recursos comunitários, verificou-se que os pais coordenadores preocupam-se com o repasse das informações sempre direcionadas pela perspectiva dos direitos sociais. Percorrem por atividades que vão desde a indicação dos pacientes para as associações, hospitais e demais instituições sociais como também orientações sobre os recursos disponíveis, o caminho percorrido para alcança-los e avaliação das dificuldades encontradas na consecução desses direitos sociais. Porém, embora desenvolvam trabalho direcionado na perspectiva dos direitos sociais, em alguns casos, ainda ocorre a falta de envolvimento do usuário. Percebe-se que ainda muitos pais coordenadores não possuem preocupação real com a participação do usuário no exercício da cidadania, uma vez que as ações para a consecução dos direitos sociais aparecem centralizadas, em alguns casos, na figura do coordenador. Assim, ao indagar sobre como ocorre a orientação dos recursos comunitários obteve-se: "...ligando e marcando exames e consultas dos pacientes, através do SUS e outros. Procuro fazer o melhor". (DP 3). Se por um lado o significado da participação aparece entendida por parte dos pais coordenadores em sua concretude, associada com a idéia de luta pelos direitos sociais e mudança em determinada realidade social, por outro, a centralização das ações na figura do coordenador implica no reconhecimento de 38 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 diversas questões políticas e culturais que permeiam as relações sociais. Questões estas que culminam na cultura da não participação, refletidas pelo processo histórico social da sociedade brasileira e referendadas na análise teórica. Outra questão a ser discutida diz respeito ao conhecimento da Política Nacional da Pessoa Portadora de Deficiência e de seus direitos sociais. Dos pais coordenadores, 76,9% afirmaram ter conhecimento da política e 84,6% em relação aos direitos sociais. Entre as dificuldades apontadas foi colocado a preocupação na aplicação dos direitos sociais referentes a pessoa portadora de deficiência, sendo muito discutida o enquadramento da pessoa com fissura lábiopalatal como pessoa portadora de deficiência para obter seus direitos sociais em relação a inserção no mercado de trabalho. Essa questão vem sendo alvo de discussões tanto pela equipe de profissionais do HRAC-USP, como também pelos diversos segmentos de profissionais e de organizações sociais que atuam na Política Nacional da Pessoa Portadora de Deficiência. Nota-se, então, que a preocupação dos usuários reflete, de certa maneira, a prática profissional do Hospital que busca sempre possibilitar a capacitação do usuário para sua atuação na sociedade civil em defesa de seus interesses comuns, garantindo a viabilização da cidadania. Em relação à participação dos pais coordenadores em outras atividades verificou-se que 69,2% possuem envolvimento, sendo que (46,1%) mantém vínculos com os Conselhos Municipais, (30,7%) com grupos sociais e (23%) com centros comunitários. Ao indagar se o Programa Agentes Multiplicadores influenciou a participação nessas atividades, 100% destes afirmaram que a atuação como pai coordenador facilitou a participação em atividades interligadas a saúde e impulsionou o desenvolvimento de trabalhos voluntários, permitindo atividades de orientações em outras instituições, influenciando a atuação e o acompanhamento nos Conselhos de Saúde e outros. Um depoimento assinala esta colocação: "Atuação em diversas atividades ligadas a saúde e a educação, em geral como também voluntariado". (DP 7). Os dados inicialmente obtidos permitem a compreensão da importância do Programa Agentes Multiplicadores como vinculador da participação social, uma vez constatado sua importância na realização de outras atividades comunitárias. Por meio destes tornou-se possível demonstrar que os agentes multiplicadores vêem se envolvendo em lutas sociais mais amplas, buscando percorrer caminhos a favor da garantida dos direitos sociais. Portanto, esses dados permitiram a reflexão de vários aspectos interligados á participação, que conforme nas análises teóricas, a coloca não só como processo fortalecedor, mas também como criador de espaços para a consolidação e garantida dos direitos sociais. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 39 Finalizando, a pesquisa, como meio de propor alternativas visando a melhoria na capacitação dos pais coordenadores e objetivando-se pela qualidade do Programa, conforme proposto nos objetivos deste estudo, procurou realizar uma avaliação da atuação do Serviço Social de Projetos Comunitários no Programa Agentes Multiplicadores. De forma geral, o trabalho realizado pelo Serviço Social de Projetos Comunitários em relação ao Programa Agentes Multiplicadores foi considerado importante. Considerou-se que o Serviço Social possui equipe de profissionais qualificados, funcionando como coordenador das atividades e dessa forma, influenciando o trabalho dos agentes multiplicadores. Colocou-se ainda que o assistente social é o profissional que está sempre informado sobre a situação de tratamento dos pacientes, fornecendo orientações e apoio sempre que solicitado. No entanto, alguns pais coordenadores apontaram questões relacionadas com a sobrecarga do setor de Serviço Social e com a necessidade da realização de um trabalho mais dirigido e com maior número de reuniões. Por outro lado, os próprios pais coordenadores consideram as dificuldades enfrentadas como decorrência da distância de suas cidades. "Dificuldades para mim é o contato, gostaria que fosse mais freqüente, mas é difícil pois a distância é grande para estar indo mais vezes, além das datas de retorno”. (DP 1). Ao indagar o que acham sobre o programa afirmaram que o programa é indispensável para o processo de reabilitação Conforme depoimento. possibilita auxiliar os outros mostrando a importância de diminuir as ansiedades de nossos semelhantes. (DP 4). Acho muito importante que as pessoas tenham um ponto de apoio, uma referência e os pais coordenadores são um exemplo disso. (DP 1). No entanto apesar da maioria dos pais coordenadores afirmarem a necessidade do programa, um dos depoimentos de pais coordenadores coloca que o programa é dispensável nas cidades que possuem associações. "Acredito que onde haja associação/núcleo torna-se dispensável o programa". (DP 11). No entanto, conforme análise dos dados percebe-se que o vínculo dos pais coordenadores com as associações é muito forte, sendo que a maioria destes participam ativamente das associações, exercendo cargos na direção das mesmas. A maioria dos pais coordenadores também esteve presente no processo de fundação da associação, o que demonstra a importante do programa. Conforme depoimentos desses pais, o trabalho dos agentes multiplicadores nas associações é imprescindível para o funcionamento da associação, uma vez que permite agilizar o tratamento e a reabilitação das pessoas portadoras de fissuras lábio palatais. 40 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 Conforme depoimento: "...acho importante e necessário participar das discussões, tanto para planejar ações como para avaliar as que estão em prática". (DP 1). O estudo reconheceu como importante o Programa Agentes Multiplicadores, uma vez que visa dar apoio ao processo de reabilitação, permitindo o suporte ao trabalho comunitário desenvolvido. As dificuldades apontadas com relação ao Programa centralizam-se nas questões que envolvem o tempo disponível para atuar como coordenador e a distância de suas cidades em relação ao hospital, o que dificulta a realização de um trabalho mais dirigido e maior contato com a equipe dos profissionais de Serviço Social responsáveis pelo Programa. As facilidades destacam-se pela educação e dedicação dos profissionais e o apoio recebido pela continuidade e não abandono do tratamento. Em seguida, o estudo se ocupa das considerações finais, procurando analisar na totalidade o significado da participação social, buscando refletir de forma crítica e dialética sobre a referida temática. Dessa forma, procura por alternativas que visem melhorias no Programa Agentes Multiplicadores, avaliando, de forma geral, a consecução dos objetivos propostos neste estudo. Considerações Finais A análise permitiu o conhecimento à cerca do significado da participação para os pais coordenadores. Dessa forma, notou-se que embora o discurso da participação ainda apareça muitas vezes vinculado ao processo de solidariedade, descaracterizado de seu caráter coletivo e político, a participação social, de maneira geral, conforme explícito nas reflexões teóricas, é entendida como processo imprescindível para a organização da sociedade. Nesse sentido a idéia de solidariedade ainda aparece implícita na participação social, sendo relacionada com a troca de experiência e união por bens comuns. Nota-se então, que essa idéia reflete a concepção política neoliberal, que imprime nos programas e políticas sociais o caráter expresso por seu discurso ideológico, reforçando a autonomia e liberdade dos indivíduos em detrimento do caráter sócio-político do processo participativo. Portanto, a participação, conforme destacada nas análises teóricas, em função do discurso neoliberal, ainda aparece, em alguns dos depoimentos dos pais coordenadores, descaracterizada de seu caráter coletivo, constituindo-se em mecanismos de consentimentos na implementação das políticas e programas sociais a favor do projeto sócio econômico. No entanto, a prática dos pais coordenadores revela que o processo de participação social vem contribuindo para a efetivação dos direitos sociais, Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 41 constituindo-se em um processo democratizante, que caminha na construção de novos sujeitos políticos coletivos. Sendo assim, a análise dos referendados eixos analíticos permitiu maior compreensão e esclarecimento do significado da participação para os pais coordenadores e, embora ainda seja presenciado que alguns pais coordenadores sentem dificuldades de estabelecer as inter-relações do processo participativo, o estudo dos eixos analíticos revelou que estes estabelecem práticas direcionadas na perspectiva dos direitos sociais. Portanto, percebe-se que a participação e a atuação desses agentes na sociedade civil está favorecendo a construção de novas relações sociais na realidade vivenciada pela pessoa portadora de fissura lábio palatal. Por meio desse trabalho voluntário ocorre o envolvimento em outras atividades comunitárias e a participação em outras lutas sociais mais amplas. O profissional de Serviço Social demonstrou ter papel importante tanto na condução do Programa como também por ser profissional que está sempre integrado em relação ao tratamento dos pacientes. Dessa forma, ao ser feito a inter-relação do significado e importância da participação para os pais coordenadores com a atuação do Serviço Social, entendendo a participação como processo de conquista, propõe-se, levando em consideração os dados obtidos com essa pesquisa, que sejam criadas alternativas que possibilitem diferentes programas de capacitação. A presente proposta torna-se pertinente, uma vez que possibilitará em relação aos dados da pesquisa: • Suprir a carência de cursos de capacitação de entidades sociais e outros, conforme constatado no estudo. • Reforçar as práticas de mobilização de recursos comunitários, buscando despertar nos pais coordenadores a importância da participação social de todos na busca pelos direitos sociais. A idéia parte da necessidade de estabelecer práticas que além de reforçarem o trabalho já exercido pelos pais coordenadores em relação a mobilização de recursos também possam contribuir para as questões relacionadas ao processo de participação, uma vez que constatou-se que alguns pais coordenadores ainda não demonstram preocupação com o envolvimento dos outros pacientes na consecução dos objetivos para o processo de reabilitação. • Importância do profissional de serviço social na condução dos mecanismos e programas visando o processo participativo. • Importância de reforçar as práticas exercidas pelos pais coordenadores, uma vez que o estudo verificou que os mesmos exercem práticas coerentes pela viabilização e garantia dos direitos sociais. 42 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 • Interesse em estimular o envolvimento entre os pais coordenadores, já que a troca de experiência foi considerada muito importante para a atuação dos pais coordenadores. O processo de capacitação irá favorecer a atuação dos pais coordenadores e permitirá que o processo participativo seja cada vez mais consciente e comprometido com o exercício da cidadania plena e a emancipação do ser humano. Portanto, considera-se que em vistas aos objetivos propostos por este estudo verificou-se que não houve dificuldades quanto à consecução dos mesmos, uma vez que os dados obtidos permitiram o conhecimento do significado da participação para os pais coordenadores, viabilizando, dessa maneira, a construção de novos conhecimentos sobre a atuação dos pais coordenadores e a verificação com êxito dos objetivos traçados. CHADDAD, M. C; CUSTÓDIO, S. A. M.; MARTINS, L. C. O. Meaning of participation and level of envolvement to co-ordinating parents of multipliers Agents Program. Serviço Social & Realidade. (Franca), v.12, n.1, p. 21-44, 2003. • ABSTRACT: Rehabilitation, understood as a process that search for social inclusion, has on participation on of the means for being realized. So, has become important to place the relationship between meaning of participation and level of envolvemnet to co-ordinating parents of multipliers Agents Program HRAC/USP Social work. The purpose of this research is explanation and comprehension of participation`s meaning for co-ordinating parents. The reseatch`s methodology has been based on quantitu-qualitu aproach and figures analysis has made by dialectic method. Research has takem as subject the coordinating parents connected to associations, has as instrumental of investigation the self framed questionary that has worked some of analytic uses so as participation, organization and mobilization. Checked that action developed bau co-ordinating parents have b gradually printed the social political character and participation process has been taken as an essential component for social changes and citizen conquest. • KEYWORDS: Social Work; Parents Co-Ordinating; Multipliers Agents. Referências Bibliográficas BARROS, A. J.; LEHFELD N. A. Fundamentos de metodologia científica: um guia para a iniciação científica. 2.ed. São Paulo: Makron Books, 2000, p. 122 BONETTI, D. A. Serviço Social e ética: convite a uma nova práxis. 2.ed. São Paulo: Cortez, 1998, p. 232 BRAVO, M. I. S.; POTYARA, A. P. (org.). Política social e democracia. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2002, p. 256 DEMO, P. Avaliação qualitativa. 3.ed. São Paulo: Cortez, 1991, p. 103. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 21-44, 2003 43 DEMO, P. Participação é conquista: noções de política social participativa. 2.ed. São Paulo: Cortez, 1993, p. 176. DEMO. P. Pobreza política. São Paulo: Cortez, 1988, p. 111. FALEIROS, V. de P. 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A organização desse segmento da sociedade civil vem construindo diferentes espaços de luta e tem como eixo central a questão da solidariedade em função de um problema comum – as lesões lábio-palatais. A partir da contextualização dos municípios em que se situam as associações, aprofundamos a análise enfocando a sua origem, os significados atribuídos à associação, participação e solidariedade; os recursos humanos, materiais e institucionais; a organização e estrutura de funcionamento; serviços prestados; processo eleitoral e mobilização dos associados; assessoria às associações; desafios e propostas. Essas associações constituem-se em um dos programas do Serviço Social do HRAC-USP, situado em Bauru-SP, considerado como de referência nacional e internacional na área da saúde/reabilitação das lesões lábio-palatais. Esse processo de organização social é um exemplo de luta pela conquista de direitos garantidos pela Constituição, numa sociedade em fase de construção da democracia. • PALAVRAS-CHAVE: Fissura Lábio-palatal; Pais-associações; Serviço Social. Introdução O Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (HRAC-USP), considerado como um serviço público de alta tecnologia, serve a uma grande parcela da população brasileira que necessita de serviços especializados para a reabilitação. O seu universo de pacientes em dezembro de 2000 era de aproximadamente 33.000 portadores de lesões lábiopalatais, procedentes de todo o país, dentre outras deficiências atendidas. É reconhecido pelo Ministério da Saúde como um centro de referência no país para o tratamento das malformações crânio-faciais. Seu objetivo está intrinsecamente ligado ao ensino, a pesquisa e à prática de prestação de serviços. 1 Trabalho extraído da tese. GRACIANO, M. I. G. Construindo espaços: a história das associações de pais e portadores de lesões lábio-palatais e a contribuição do Serviço Social. São Paulo, 1996. 328p. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. * Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Diretora Técnica do Serviço Social do (HRAC-USP), Bauru/SP. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 45 Dada a sua crescente demanda e a falta de recursos especializados no país, o HRAC tem um compromisso assumido com a população na descentralização nacional de seus serviços, tendo como objetivo firmar-se como um centro formador de recursos humanos. Este estudo que versa sobre o processo histórico e organizacional de associações de pais e portadores de lesões lábio-palatais foi desenvolvido em 1995/1996 a partir de nossa experiência no Serviço Social do HRAC. Acreditamos que são as associações e ou movimentos sociais, no âmbito da sociedade civil, que vêm tentando criar ou ampliar espaços de participação e definição de políticas sociais. Daí nosso interesse em compreender como a formação associativista em função de um problema comum - malformações congênitas lábio-palatais - vem contribuindo para o processo participativo desse segmento social, considerando principalmente a sua estrutura e dinâmica de funcionamento enquanto campo de aprendizagem da participação e como espaço da ação profissional do Assistente Social. O objetivo geral é conhecer a história e a organização das associações em diferentes contextos, buscando identificar a ação do Serviço Social no fortalecimento do processo de participação. O eixo central desse estudo é a questão da solidariedade entre pessoas envolvidas num mesmo problema, bem como a questão da parceria da associações com o HRAC e outros serviços. O interesse por este estudo ocorreu a partir de nossa prática ao longo de mais de duas décadas de experiência no HRAC, e do compromisso em aprofundar o assunto discutido na tese de mestrado - De cliente a agente: os pais coordenadores e sua ação multiplicadora num programa com portadores de lesões lábio-palatais (GRACIANO, 1988). Trata-se de uma pesquisa qualitativa e com uma direção reflexiva, sendo que a apresentação e análise interpretativa dos dados estão estritamente relacionados. Quanto aos procedimentos, optamos por apresentar o universo das associações de pais e portadores de lesões lábio-palatais do país, cadastrados no HRAC, (12/1995) que somam 43 associações, iniciando com a reflexão sobre essa totalidade e aprofundando posteriormente o estudo na amostra escolhida 07 associações. O tipo de pesquisa adotado é o estudo de caso histórico organizacional e o instrumento para a coleta de dados aplicados foi o questionário, complementado por entrevistas, visitas às associações e documentos. Neste estudo, consideramos tanto as particularidades presentes na história de cada uma delas como os seus aspectos gerais, tomando-as da forma 46 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 associativa que as une, enquanto possibilidades de encaminhamento a questões comuns. Para a análise interpretativa nos apoiamos nos resultados alcançados no estudo, na fundamentação teórica e na nossa experiência profissional e de investigador, tendo como base uma direção teórico-metodológica-históricoreflexiva, não existindo visão isolada das diversas partes do estudo. Esse estudo visa além de conhecer a história e a organização das associações de pais e portadores dessas lesões, no país, compreender o significado dessa prática associativista com vistas à descentralização dos serviços do HRAC em diferentes regiões do país. 1 Associação e Participação As associações são consideradas a exemplo das organizações não governamentais, instituições filantrópicas e fundações privadas como organizações do 3º setor (LANDIM, 1996), expressão utilizada em contra posição à idéia de que o 1º setor é o Estado e o 2º a iniciativa privada. Segundo (FERREIRA, 1986) associação é o efeito de associar-se; é a combinação, união; significa também sociedade; liga, organização. (CESAREO, 1991) define que as associações voluntárias consistem em grupos formais livremente constituídos aos quais se tem acesso por própria escolha e que perseguem interesses mútuos e pessoais ou então escopos coletivos. O fundamento deste tipo particular de grupo é normativo - o que significa tratar-se de uma entidade organizada de indivíduos coligados entre si por um conjunto de regras reconhecidas e repartidas, que definem os fins, os meios, os poderes, os procedimentos dos participantes, com base em determinados modelos de comportamento oficialmente aprovados. (BARCELO, 1986) afirma que o fato de associar-se é voluntário: um conjunto de cidadãos se agrupam livremente pra conseguir seus objetivos, que são explícitos, comuns e definidos previamente, a serviço dos quais se colocam, e que individualmente não seriam atingidos. O nascimento de uma associação é produzida, portanto, em função de seus objetivos, que podem ser econômicos, sociais, políticos, culturais, recreativos, gerais e outros. Esse autor ressalta que a maioria das associações estão configuradas por objetivos setoriais, ou seja, esporte, cultura e outros..., mas para que a questão da territoriedade seja vista de forma global como um sistema capaz de impulsionar transformações que transcendem inclusive o território, é importante que haja a participação de diferentes entidades setoriais, o que favoreceria a inter-relação de projetos comuns de diferentes associações. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 47 É nesse sentido que entendemos que as associações precisam estabelecer parcerias com outras formas de organização, para a discussão mais ampla de problemas comuns a diferentes áreas: assistência, saúde, criança e adolescente, educação e outras, impulsionando o seu crescimento organizativo na busca de respostas e gestão de recursos coletivos. O associativismo é um fato voluntário, mas a gestão de seus recursos exige um certo grau de profissionalismo. Para tanto é preciso criar parcerias e mecanismos de formação permanente, tanto dos voluntários como dos profissionais, permitindo uma reciclagem contínua dos recursos humanos que formam uma associação. As associações têm um papel estrutural na configuração da dinâmica social global, já que são suporte de uma vida coletiva representando valores, atitudes e opções que potencialmente são dinamizadas na sociedade. Portanto podem pressionar o seu conhecimento, e se constituir um instrumento de transformação. Um associativismo democrático deve ter uma estrutura organizativa com alto grau de representatividade, assessoramento na formação e dinamização das atividades, bem como propiciar a comunicação e geração de opinião entre os cidadãos para sua credibilidade. A partir desses elementos, entendemos que o associativismo é uma forma ideal de capacitação da ação coletiva e definição de certos interesses dos cidadãos, que cria espaços de solidariedade e de intercâmbio de idéias e experiências, portanto de relações, dependendo da força dos associados. Segundo (MACIVER; PAGE, 1973) as associações são meios de perseguir fins, supondo portanto alguma base cooperativa. Essa perspectiva de cooperação é por nós entendida como um trabalho em comum, sendo uma importante forma de ação coletiva. Ao cooperar com os outros de acordo com um plano, as pessoas se libertam das amarras de sua individualidade e desenvolvem o espírito de solidariedade, o que implica assumir um verdadeiro compromisso de ação coletiva. Segundo esses autores, a ação coletiva envolve também a reciprocidade entre seus membros, pois definem associação como um grupo expressamente organizado em torno de um interesse peculiar, grupo entendido como qualquer reunião de seres sociais que entram nitidamente em relações sociais entre si. As associações, segundo eles, são meios ou agências através dos quais seus membros procuram concretizar seus interesses similares ou compartilhados. Tais organizações atuam, como agências, não só por intermédio de líderes, como também por intermédio de funcionários ou representantes. Normalmente as associações atuam através de agentes que 48 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 são responsáveis por elas e para com elas, o que confere um caráter peculiar e status especial e legal. A associação verdadeiramente não tem interesses que não sejam os de alguns de seus membros ou de todos eles. Tem, porém, métodos de operação que lhe são peculiares enquanto associação. Pode possuir propriedades, pode possuir fundos, que seus membros não podem distribuir, à vontade, entre si; tem direitos e obrigações, poderes e responsabilidades que os membros não podem exercer como indivíduos, mas apenas como autênticos representantes. Esses autores argumentam que um grupo pode organizar-se expressamente com o fim de atingir alguns de seus interesses em conjunto e quando isso acontece, surge uma associação. Definem, portanto, uma associação como um grupo organizado que visa atingir certo interesse ou conjunto de interesses em comum. Porém, ao considerar o aspecto dos interesses das associações, ressaltam que essas são organizadas para fins particulares, visando interesses específicos. Isto nos leva a refletir que participar de uma associação pode ter um significado limitado, se ela existir tão somente em virtude de alguns interesses específicos. Daí a importância de sua articulação com outros segmentos, numa perspectiva de percepção mais ampla das políticas sociais, em função de suas necessidades. Segundo (FARIAS, 1987) num estudo sobre associativismo e participação, a prática associativista permite o desenvolvimento de atividades que correspondem às necessidades e/ou interesses de uma determinada camada da população envolvida nessa prática. Às atividades alia-se também o treinamento para a vivência dessa mesma prática. Com base nessas duas ocorrências, o associativismo poderá vir a ser encarado como um possível campo de aprendizado da participação popular. Nesse sentido entendemos que um dos fatores que determinam a participação são os motivos que levam à criação das associações. Isto é, quando as associações nascem como resposta à iniciativa dos próprios associados podem ter sua ação voltada para atividades de caráter mais amplo. A autora enfoca o associativismo como um campo de participação que ganha significância, pois a população passa a expressar suas reivindicações. Alerta porém que, quando a participação significa acesso às decisões, os espaços nem sempre estão garantidos para a maioria dos sócios. As colocações dessa autora (FARIAS, 1987) encontram apoio nos princípios da teoria associativista que asseguram aos associados o direito de discutir seus problemas, de gerir os seus assuntos e de controlar seus mecanismos de funcionamento das associações. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 49 Assim, consideramos o associativismo um fator importante para a organização e participação popular, desde que obedecidos esses princípios fundamentais, especialmente o acesso às decisões os quais devem orientar a gestão dos assuntos e os meios de exercer o controle social dos representantes, através das bases. Essa participação deve garantir não só o acesso a seus serviços enquanto direito que lhe é devido, mas a participação em lutas mais amplas na sua área de interesse tais como saúde e assistência entre outras, redefinindo políticas de interesse coletivo. Observamos que, no Brasil, há um conjunto valioso de práticas participativas populares, que se manifestam através da dinâmica interna de seus grupos e organizações, no aprendizado com diferentes projetos comunitários alternativos e com ações renovadoras. Entendemos, porém, que sua importância reside no que elas representam como aprendizagem de participação, e na forma como esta aprendizagem vem sendo realizada. A participação porém não deve ocorrer somente na execução ou avaliação de serviços ou no acesso aos mesmos, mas também na definição e formulação de políticas de organizações, na definição de seus objetivos, na elaboração de planos, programas e projetos e na destinação de recursos. Abordar o tema da participação popular via associações é, no nosso entendimento, colocar a questão nos marcos de uma perspectiva democrática. Para tanto deve, no sentido do universal, representar os interesses de todos os associados, ser transparente nas decisões, no oferecimento das informações, na alocação de recursos, criando possibilidades de controle social.2 Esse caráter democrático também deve incluir abertura de meios e instrumentos para que haja acesso às informações, participação nas decisões, respeito às diferentes ideologias, estímulo à construção de laços fortes entre representantes (dirigentes) e representados (associados), divisão de responsabilidades, estabelecimento de regras para o comprometimento individual, orientação da gestão pela relevância social e pelos critérios da equidade. Além disso, o caráter de eficiência deve ser assegurado garantindo avaliações periódicas, que estimulem um relacionamento franco e aberto entre os dirigentes, os associados e os técnicos (devidamente selecionados), bem como o desenvolvimento do processo participativo em relação a causa defendida. 2 O Controle social é entendido como possibilidade de criar condições para que a sociedade civil tenha acesso ao processo decisório do Estado, auxilie, acompanhe e possa alterar o seu percurso, o que exige informação e transparência. 50 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 2 A Pesquisa 2.1 O Universo da Pesquisa O universo da pesquisa é representado por 43 associações de pais e portadores de lesões lábio-palatais cadastrados no Hospital até o final de 1995, compreendendo 5 regiões do país, e 17 Estados da Federação (SP, MG, RJ, ES, PR, SC, RS, DF, GO, MS, CE, PB, PE, RN, BA, RR, PA) com cobertura a 13.135 pacientes (60% do universo dos pacientes do Hospital). O potencial de cobertura das associações (60,0%) constitui-se num grande alerta para o HRAC, para que direcione sua política de descentralização de serviços partindo das associações, pois acreditamos que são as associações, em parceria com instituições ou outras formas de organização popular, que no âmbito da sociedade civil vêm criando e ou ampliando diferentes espaços de participação, e influenciando na definição de políticas sociais. Com certeza farão um trabalho de base, dando suporte aos programas de descentralização do HRAC. 2.2 Os Sujeitos da Pesquisa Consideramos como sujeitos da pesquisa as associações escolhidas para a amostra, através de seus representantes legais. A amostra engloba 7 associações: • AAFLAP - Associação de Apoio dos Fissurados Lábio-Palatais - São José dos Campos/SP. • PROFIS - Associação de Pais e Portadores de Lesões Lábio-Palatais do Espírito Santo (Vitória/ES). • APOFILAB - Associação de Portadores de Fissuras Lábio-Palatais de Cascavel/PR. • AFISSUR - Associação de Reabilitação Social de Fissurados LábioPalatais (Curitiba/PR). • AFIM - Associação de Fissurados de Maringá/PR. • ALRPLLP - Associação Londrinense de Reabilitação e Promoção Social de Portadores de Lesões Lábio-Palatais (Londrina/PR). • PROFIS - Associação de Portadores de Fissuras Lábio-Palatais (Concórdia/SC) 2.3 Histórico e Organização de Associações de Pais e Portadores de Lesões Lábio-palatais a) Contextualização dos Municípios Com base nos dados sobre a contextualização dos municípios: região, fundação, atividades e população, as associações pesquisadas referem-se a 02 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 51 (duas) regiões: Sul (5 - 71,5%) e Sudeste (2 - 28,5%), regiões em que está concentrado o maior número de associações existentes no país, ou seja: Sudeste (19 - 44,2%) e Sul (11 - 25,6%), dentre as 43 cadastradas no HRAC (100%). Essa concentração deve-se ao fato de que, embora o Hospital atenda a todas as regiões do país, a maior procedência dos pacientes, que totalizam cerca de 23.000 casos (12/95), é das regiões Sudeste (61,6%) e Sul (18,3%), justificada pela maior proximidade deste recurso hospitalar pelo melhor nível sócio-cultural, entre outros fatores. Esses municípios contam, na maioria, com mais de 100 anos de existência (42,8%), ou seja: São José dos Campos/SP (229 anos), Vitória/ES (444 anos) e Curitiba/PR (302 anos). Numa situação intermediária temos os municípios na faixa de 50 a 100 anos de existência (28,6%) como: Londrina/PR (61 anos) e Concórdia/SC (61 anos). Os municípios mais novos referem-se a faixa de menos de 50 anos de existência (28,6%) e são eles: Cascavel/PR (44 anos) e Maringá/PR (48 anos). Dentre as suas principais atividades temos agricultura, indústria e comércio (85,7%) dentre outras (57,1%). Com relação ao número de habitantes, os municípios da amostra foram classificados como: até 100.000 habitantes (14,2%) como Concórdia/SC, de 100.000 a 300.000 habitantes (28,6%) como Vitória/ES e Maringá/PR e acima de 300.000 habitantes (57,2%) como São José dos Campos/SP, Cascavel/PR, Curitiba/PR e Londrina/PR. Considerando a previsão do número de portadores de lesões lábiopalatais nos municípios e regiões da amostra, o número de pacientes em tratamento no HRAC - o número de pacientes matriculados no HRAC procedentes dos municípios da amostra somam 1083 casos (23,3%) dentre os 4.646 (100%) casos previstos. Preocupa-nos porém uma questão: considerando que o HRAC é o único recurso especializado no país a oferecer um tratamento interdisciplinar e a longo prazo, como fica a situação da maioria dos excluídos deste serviço especializado que somam 25.900 casos (85,6%) dentre os 30.233 previstos só para esses municípios e regiões, se destes, somente 4.333 casos (14,4%) são atendidos neste Hospital? Há portanto que se definir uma política de descentralização desses serviços nas demais regiões do país: norte, nordeste, sul e centro-oeste, pois o HRAC não poderá atender à demanda do país, estimada em cerca de 233.000 52 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 casos.3 Temos consciência de que esses serviços altamente especializados não poderão ser reproduzidos em alta escala, devendo porém ser assegurados, por regiões, para que a população tenha acesso aos mesmos. Portanto, para garantir os serviços assistenciais aos portadores de lesões lábio-palatais, é preciso descentralizar os programas de saúde e reabilitação do HRAC nas diferentes regiões do país, responsabilizando-se este pela demanda do Estado de São Paulo (47,6% dentre os 23.000 pacientes do país matriculados no HRAC até dezembro 1995) ou região sudeste, bem como pelo atendimento das patologias mais graves dos demais regiões do país. Deverá ainda se responsabilizar pelo programa de formação de recursos humanos, em nível nacional repassando suas experiências e tecnologias desenvolvidas ao longo de três décadas de existência. Descentralização, segundo (SPOSATI, 1995) é a passagem de um espaço para outro espaço, implicando porém em novos pólos de poder, novos pólos de decisão, novos pólos de conflito e, portanto, novas formas de relações. Supõe o deslocamento do poder e a construção da democracia participativa, com a participação da sociedade civil a favor da cidadania, criando-se espaços para decisões (Ex: conselhos, associações, etc.). A descentralização representa em teoria, segundo (JACOBI, 1993) a possibilidade de ampliação para o exercício dos direitos dos cidadãos, a autonomia na gestão local/regional, a participação dos cidadãos na gestão pública, e uma potencialização de instrumentos adequados para um uso e redistribuição mais eficientes dos recursos públicos. O HRAC tem um compromisso assumido com os portadores de lesões lábio-palatais e outras deficiências, no empenho para a criação de núcleos de atendimento em todo o território nacional, visando a implementação de programas de forma integrada, preventivos e reabilitadores, descentralizando o atendimento e possibilitando a reabilitação dos pacientes na sua região de origem, preferencialmente em seu município. O objetivo é, portanto, estender o atendimento a um número maior de portadores dessas deficiências e assim promover a reabilitação com dignidade e respeito (SOUZA FREITAS, 1994). É preciso porém definir melhor a proposta de descentralização dos serviços do HRAC e sua parceria com as associações de pais e portadores de lesões lábio-palatais existentes no país, para que possam, enquanto sociedade civil organizada, ter acesso ao processo decisório do Estado criando condições para auxiliar, acompanhar e alterar o percurso das políticas e 3 A previsão de portadores de fissuras lábio-palatais no Brasil é de cerca de 233.000 casos considerando o número de habitantes no país (151.556.831 segundo o IBGE, 1991) e a incidência de fissuras (1.650 nascimentos). Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 53 serviços assistenciais em atendimento às reais necessidades dos usuários, exercendo desta forma, o controle social. Para tanto exigem-se informações e transparência, regras de convívio e negociação, vontade política e investimentos numa pedagogia de ação, com recursos humanos para implantar tal proposta. b) Origem das Associações Os dados com relação ao tempo de existência das associações evidenciam que as associações da amostra contam em sua maioria com mais de 05 anos de experiência. A mais antiga é a associação de Curitiba/PR, fundada em 26/03/85 (10 anos) e a mais nova a de Cascavel/PR, fundada em 10/10/91 (4 anos), todas criadas nas décadas de 1980 e 1990. Observamos que a criação dessas associações acentuou-se com as mudanças previstas na Constituição de 1988, pois se abriu espaço para a participação da sociedade civil através de diferentes formas de organização. A constituição de 1988 legitima e incorpora o povo como co-participante ativo do poder. A democracia deixa de ser apenas representativa para tornar-se participativa, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis. O cidadão tem seus direitos definidos na constituição, mas o acesso aos mesmos depende muitas vezes da pressão exercida através de partidos políticos, sindicatos, associações e movimentos sociais, no sentido de ver as necessidades e carências atendidas. O acesso da população a bens e serviços resulta, portanto, de pressões e reivindicações num movimento da base em direção à cúpula do poder. Daí a importância de incentivarmos a criação de associações enquanto organizações provedoras de bens e serviços para seus membros, devidamente articuladas à outras organizações, pois acreditamos que é o associativismo uma forma ideal de dinamismo social, de capacitação da ação coletiva e definição de centros de interesse dos cidadãos. Analisando os dados sobre a iniciativa e motivo da criação das associações e influência do Serviço Social do HRAC, constatamos que ao mesmo tempo em que predomina na sociedade atual o individualismo é possível encontrar solidariedade entre pessoas que enfrentam problemas comuns - como no caso de pais e portadores de lesões lábio-palatais. Dentre os principais motivos da criação dessas associações, a condição de ser pai/mãe ou portador de fissura lábio-palatal (85,7%), associada às preocupações e envolvimento com outros portadores (42,8%), bem como o 54 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 conhecimento das dificuldades de tratamento especializado no país (71,4%) impulsionaram a prática da solidariedade. Estamos conscientes de que a solidariedade entre os portadores de fissuras lábio-palatais não está apenas mobilizando pessoas através da ação dos pais/pacientes coordenadores e associações em todo o país, mas está denunciando a falta de uma política de saúde para a sua reabilitação nas diferentes regiões do país e, conseqüentemente, o bloqueio dos direitos de cidadania dessas pessoas. Nesse espaço as associações deverão lutar pela perspectiva da igualdade de direitos garantindo o acesso ao tratamento. c) Significados: Associação, Participação, Solidariedade A prática da participação e solidariedade e seus significados também serão objetos de reflexão. Os dados sobre entendimento e significado das associações, evidencia que o entendimento dos sujeitos pesquisados sobre associações, em sua maioria, apontam para a sua definição como um grupo de pessoas com objetivos comuns (71,4%) seguidos da união de pessoas para a solução de problemas comuns (57,1%) e grupo de apoio (14,2%). As respostas evidenciaram que a união, a existência de objetivos, necessidades e vivências comuns e a busca de soluções para a reabilitação de seus filhos portadores de lesões lábio-palatais são os componentes do seu entendimento sobre associação. Isto ocorre porque as associações foram criadas em função de suas necessidades e interesses, no caso a preocupação com a assistência aos portadores de lesões lábio-palatais e o enfrentamento do problema. Com relação aos significados atribuídos, os sujeitos pesquisados ressaltaram que a associação é um serviço de referência regional na área das fissuras lábio-palatais (71,4%), tendo o reconhecimento e apoio da sociedade (42,8%) e garantindo direitos a partir de lutas coletivas (14,2%), além disso, constituem-se em espaço de discussão de problemas e de participação (28,5%), sendo considerada como elemento de ligação entre o Hospital e a comunidade (28,5%). Em 100% dos casos foi ressaltada a importância do assessoramento e da viabilização do processo de reabilitação. Ressaltam ainda que a existência da associação funciona como um recurso seguro para o tratamento de seus munícipes, além de oportunizar o conhecimento sobre as fissuras e seu processo de reabilitação, reduzindo a discriminação social. É também uma forma -enquanto sociedade civil organizada - de pressionar os poderes públicos para a implantação de serviços próprios para a Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 55 assistência aos portadores de lesões lábio-palatais, informando-os a respeito dessa problemática e sua demanda. Ser pai/mãe ou portador de fissura lábio-palatal e participar das associações tem diferentes significados conforme dados sobre o significado de ser pai ou portador de fissura lábio-palatal e participar das associações. Significa principalmente preocupação, apoio e união com outras pessoas com problemas iguais (85,7%), aprendizado e crescimento (85,7%), a possibilidade de viabilizar o tratamento e a reabilitação de outras pessoas (57,1%), repassando e trocando experiências comuns (42,8%). Significa ainda compromisso de agente multiplicador (100%) ou, mais que isso, de cidadão (42,8%), pois enfoca a cidadania como processo de luta pelo exercício e ampliação de direitos. Os dados sobre a prática da participação e solidariedade e seu significado, evidenciam o sentimento de preocupação entre as pessoas com problemas iguais (85,7%), a importância do diálogo e apoio nas questões que envolvem a fissura e seu processo de reabilitação (71,4%), a responsabilidade social consciente (57,1%), a união das pessoas frente a uma problemática comum (42,8%). Implica ainda no engajamento de pessoas comprometidas com os interesses dos usuários dos serviços (57,1%) e na troca constante das experiências (28,5%). Esses valores se manifestam na prática cotidiana quer através de ações concretas, em sua maioria entendidas como a prestação da assistência ou participação efetiva nas atividades da associação, através da prestação de serviços voluntários (57,1%) integração entre os associados (57,1%), ajuda mútua (57,1%), buscando-se com isso objetivos comuns face ao enfrentamento da problemática e à busca de sua reabilitação (42,8%) e até mesmo a preocupação com as ações da diretoria serem aprovadas (ou não) pelos associados (14,2%). Apesar do individualismo da nossa sociedade, há espaços de solidariedade a partir da sensibilidade de alguns à mesma causa, num sentimento de humanidade compartilhando-se problemas iguais. É a busca de soluções num compromisso assumido, pois além do apoio, é preciso reunir forças para o enfrentamento coletivo do problema. Reafirmamos mais uma vez que é preciso incentivar diferentes formas de solidariedade, não significando porém a desresponsabilização do Estado. O caminho é fortalecer a solidariedade sem, no entanto se sobrepor às políticas sociais. d) Recursos Humanos, Materiais e Institucionais Os dados dos recursos físicos e financeiros das associações, demonstram que há os recursos provenientes de convênios (85,7%), somados aos de 56 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 doações e promoções da comunidade (85,7%), bem como os provenientes das contribuições dos associados (71,4%). Os dados sobre especificação do pessoal técnico-administrativo, prestadores de serviços para as associações segundo a profissão, vínculo e aprimoramento profissional, evidenciam que as mesmas incorporaram a idéia de trabalho em equipe preconizada pelo HRAC. Voltam-se para o processamento de demandas, objetivando fornecer assistência integral aos casos, com a participação de diferentes profissionais: médicos, fonoaudiólogos, dentistas, fisioterapeutas, psicólogos, assistentes sociais, pedagogos e outros profissionais de apoio, além de estagiários. As (7 sete) associações estudadas contam com 131 profissionais ou funcionários (100%) com maior concentração de fonoaudiólogos (19,8%), médicos (12,2%), dentistas (14,5%), psico-pedagogos (9,9%), psicólogos (9,1%) e assistentes sociais (4,5%) dentre outros (19,5%), pessoal técnico, auxiliar, secretaria, serviços gerais e outros. e) Organização: Estrutura de Funcionamento Analisando os órgãos diretivos e técnico administrativos das associações, vimos que a maioria das associações, segundo seus estatutos, contam com Assembléia geral (100%) Diretoria (100%) e Conselho Fiscal (85,7%). A Assembléia Geral é definida na maioria dos estatutos como o órgão máximo e soberano da associação, constituindo-se de todos os sócios em pleno gozo de seus direitos políticos e estatutários, com poderes para deliberar sobre qualquer assunto de interesse da associação e seus associados, desde que respeite as normas estatutárias. À Diretoria presente em todas as associações (100%), compete na maioria de seus estatutos: • Elaborar o programa anual de atividades e executá-lo; • Elaborar e apresentar à assembléia geral o relatório anual de suas atividades; • Entrosar-se com instituições públicas ou privadas para mútua colaboração em atividades de interesse comum; • Contratar e demitir funcionários; • Outras atividades afins. O Conselho Fiscal é definido na maioria dos estatutos como um órgão autônomo e fiscalizador dos negócios e interesses da associação. Dentre as suas principais competências temos: • Examinar os livros de escrituração da associação; • Examinar o balancete semestral opinando a respeito; Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 57 • Apreciar os balanços e inventários que acompanham o relatório anual da Diretoria; • Opinar sobre a aquisição, alienação ou permuta de bens; • Examinar todas as contas da associação; • Verificar a aplicação das verbas orçamentárias; • Proceder à exação do patrimônio; • Denunciar à assembléia geral as irregularidades encontradas; • Sugerir medidas de caráter financeiro; • Emitir pareceres quanto a processos ou questões que lhe forem encaminhadas; • Deliberar sobre os recursos interpostos pelos sócios e encaminhá-los à assembléia geral. A forma de dirigir a associação é outra decisão política importante, sendo necessário projetar um modelo alternativo para defender os associados bem como a comunidade do autoritarismo. Sabemos que caberá a toda a diretoria e não somente ao presidente o desempenho da liderança organizacional na dinâmica das associações, todos tomando iniciativas e mantendo os níveis de mobilização e participação dos associados, conforme diretrizes a serem definidas conjuntamente pela diretoria e aprovadas pela maioria dos associados em assembléias gerais. Para tanto as associações precisam ter estrutura organizativa, grau de representatividade, assessoramento na formação e dinamização das atividades, bem como propiciar a comunicação e a geração de opinião entre os cidadãos, que favoreçam o seu desenvolvimento democrático. Analisando os dados sobre o quadro de associados segundo estatutos, constatamos que as associações contam com os seguintes tipos de sócios: fundadores e beneméritos (85,7%), contribuintes (42,8%), usuários (71,4%), voluntários (42,8%) e mantenedores (14,2%). Independente da categoria de associado, o importante não é só a contribuição financeira mas a sua participação como um elemento importante na associação, pois um associativismo democrático e estruturado necessita utilizar os canais de participação como um instrumento para conseguir os seus objetivos e criar mecanismos de gestão de recursos coletivos. Para tanto deve ter uma estrutura organizativa, alto grau de representatividade, assessoramento na formação e dinamização das atividades, bem como propiciar a comunicação e geração de opinião entre os associados. Há uma diferença fundamental entre sócio e usuário na vinculação do projeto associativo; o usuário é mais utilizador do serviço, não lhe interessando muito a sua participação nos projetos das associações, sendo fundamental a sua 58 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 transformação em sócio ativo - que diferentemente dos usuários tem o poder de decisão (BOSCHI, 1987). f) Serviços Prestados e/ou Viabilizados Analisando cada associação, verificamos que todas contam com os serviços básicos de apoio ao processo de reabilitação no HRAC, ou seja, Medicina, Odontologia, Fonoaudiologia, Psicologia, Serviço Social (100%). Além disso, 03 associações (42,8%) dão um destaque especial para a área de pedagogia como São José dos Campos/SP, Cascavel/PR e Londrina/PR, dadas as dificuldades psico-pedadógicas dos portadores de lesões lábio-palatais, não em função da lesão em si, mas dos aspectos psico-sociais decorrentes de problemas estéticos e fonoaudiológicos. Como vimos todas as associações, além de prestar assistência social aos portadores de lesões lábio-palatais, desenvolvem programas de apoio e de intercâmbio com o HRAC, agilizando diversos serviços na área de reabilitação, com a participação de diferentes especialidades. Esse processo é de suma importância, pois garante aos pacientes a realização de tratamento tanto no HRAC, como no seu município de origem conforme condutas estabelecidas por este Hospital, numa relação de parceria. A prática associativa, ao permitir a prestação de serviços, permite entre outras questões o desenvolvimento de várias atividades, devendo sempre considerar as necessidades e/ou interesses dos associados. É necessário portanto incentivar o envolvimento da população nos programas e atividades desenvolvidas, mesmo tendo consciência das dificuldades identificadas no que tange à garantia da participação. É importante ainda ressaltar que o associativismo ligado às pessoas portadoras de lesões lábio-palatais é extremamente necessário, pois além de garantir serviços, define solidariedade ao nível fundamental das relações sociais. Dentre as atividades temos uma maior concentração em reuniões com pais, pacientes e diretoria (100%), visitas às maternidades e hospitais quando do nascimento de novos bebês portadores de lesões lábio-palatais (100%), encaminhamento para serviços na própria comunidade ou ao HRAC (100%), contatos para apoio e esclarecimentos tanto aos pacientes e familiares como à comunidade em geral (100%), acompanhamento dos pacientes com relação ao processo de reabilitação criando condições de início e continuidade do tratamento (100%), promoções diversas (100%), visitas domiciliares (71,4%), realização de cursos, palestras na comunidade com a presença de profissionais locais ou do HRAC (85,7%), cursos profissionalizantes (28,5%) e contatos com Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 59 promotores públicos para garantia de direitos aos pacientes e familiares relacionados ao tratamento (28,5%). Ao analisarmos esses depoimentos, fica evidente o compromisso das associações com o processo de reabilitação dos pacientes, não medindo esforços para a prestação de apoio nos problemas que envolvem a fissura e seu enfrentamento. A preocupação com o outro e o sentimento de solidariedade, associado ao exercício da cidadania e à participação, são os fatores determinantes que impulsionaram essa ação com enfoque tanto educativo como assistencial, social e reabilitacional (100%) e até mesmo pedagógico (42,8%). É o associativismo um ato voluntário, mas a gestão de seus recursos exige um certo grau de profissionalismo. Para tanto é preciso criar mecanismos de formação permanente, tanto para os voluntários como para os profissionais, permitindo uma reciclagem contínua dos recursos humanos que formam uma associação. g) Processo Eleitoral e Mobilização dos Associados Os dados sobre a participação dos associados, revelam que alguns dilemas específicos são identificados no que tange a garantia de participação. Embora a participação seja registrada através do comparecimento dos associados nas assembléias (100%) ou do comparecimento à associação, normalmente, para acesso a algum tipo de serviço ou benefício (100%), através de convocações (57,1%), espontaneamente (57,1%), ou associado a retorno ao Hospital (100%), dentre outros. Não há garantias de que essa participação ocorra com a maioria dos associados. Dentre as diferentes formas de colaboração, a participação ocorre através de campanhas (100%), atividades para manutenção do ambiente físico (18,1%), reuniões (28,5%), doações (57,1%), dentre outras. Esses dados traduzem que a participação está diretamente associada às atividades e serviços prestados pelas associações. A maioria dos associados precisam ser mobilizados, despertados, motivados para as atividades, pois a participação espontânea é reclamada por muitos. É portanto o associativismo que tem garantido o acesso aos serviços, a participação em campanhas, promoções, outras atividades, embora o maior nível de participação seja anunciado pelos dirigentes quando se refere ao recebimento de serviços ou benefícios, tanto da associação como diretamente relacionado ao HRAC e menor nas atividades organizacionais como assembléias, reuniões periódicas, mutirão, enquanto estilos característicos de participação. Essas últimas formas organizacionais não só implicam grande esforço de mobilização 60 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 mas tendem a perder eficácia a longo prazo quando demasiado freqüentes. Devem portanto os dirigentes evitar que o ritmo de suas atividades reiteradas comprometa a definição de seus objetivos, pois o ativismo e a repetição podem levar a atitudes irreflexíveis dos membros da associação, desestimulando-os. Ressaltamos que, além das atividades rotineiras, é preciso lembrar que uma associação é enriquecedora enquanto espaço e intercâmbio de idéias e experiências, portanto de diálogo, de comunicação e de relações. É a participação um elemento importante na associação e um associativismo democrático e estruturado necessita utilizar os canais de participação como instrumento para conseguir os seus objetivos e criar mecanismos de gestão voltados para o coletivo. Dentre as formas de tomar decisões são anunciadas: o poder concentrado na diretoria (71,4%), na deliberação dos pacientes, normalmente em reuniões (42,8%) ou em assembléias gerais (57,1%) e até mesmo através de avaliação dos associados (14,2%). Os meios mais citados foram através de informação e opiniões/críticas (28,5%) e sugestões (14,2%). Com relação ao fato de as decisões serem concentradas na diretoria, (DEMO, 1988) fundamenta que assembléia geral não é o lugar adequado para decisões profundas e complicadas, que exigem tempo de reflexão, amadurecimento no espaço e no tempo, compromissos gerais. Decisões complexas tomam-se em pequeno grupo, em clima adequado, com toda a discussão necessária, aberta e livre, desde que o pequeno grupo tenha mandato para tanto. Daí a importância da formação associativa de baixo para cima, que vai formando seus representantes legítimos, capazes de decidir, porque para isto foram eleitos. Havendo dúvidas, existe toda a condição de fazer o caminho de volta, consultando o coletivo via assembléia geral, precisamente para preservar a representatividade. É importante também ressaltar que existe o problema das assembléias pouco representativas, mas ávidas de decidir pelo todo. Sugere esse autor, que se tome cuidado com o assembleísmo, enquanto vício que pode comprometer muitas associações, a começar pela confusão entre finalidades de uma assembléia geral que, além de fenômeno relativamente esparso, dedica-se a referendar decisões, eleger diretorias, e à finalidade de tomar decisões concretas. Entendemos assim que as decisões, viabilizadas essencialmente através da diretoria, estão previstas em seus estatutos e são legítimas. O que é questionável é a questão da representatividade da diretoria, pois aos Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 61 representantes cabe debater e resolver em nome da base os assuntos de seu interesse - o dos associados em seu coletivo. Nesse tipo de representação da associação o objetivo perseguido é o consenso em torno de objetivos comuns, não podendo significar concentração de poder e manipulação. É preciso então garantir que essa representação seja de fato uma força de participação organizada, segundo os interesses de uma base social determinada - os associados portadores de lesões lábio-palatais e de outras deficiências. A participação não é somente uma questão de acesso a serviços ou associações, é a conquista de recursos e espaços o que exige tomada de decisões na perspectiva do coletivo. Uma outra questão importante é que o problema da representação4 não se resolve por sua eliminação, o que é inviável, mas pelo controle que as bases possam efetivamente exercer sobre os seus representantes. Mecanismos como prestação de contas sistemática, revocabilidade de mandatos, publicidade das reuniões decisórias (assembléias e outras reuniões), discussão das decisões consultando as bases e outros podem ser meios de se tornar a representação identificada com os interesses da base, garantindo sua legitimidade. O índice de votação dos associados, mandato e composição das diretorias nos alerta sobre a importância do associativismo através de uma democracia representativa. Para tanto são necessárias as eleições, de preferência concorrentes, eleições livres, abertas, sem cartas marcadas, sem vitaliciedade, sem manobras. Desde que as eleições sejam corretas, as lideranças adquirem caráter delegado, precisamente representativo. (DEMO, 1988). Os dados mostram que o processo eleitoral das associações tem sido conduzido com chapas únicas em sua totalidade (100%), embora o ideal seja através de concorrentes. Parece-nos a princípio que isto ocorre devido às dificuldades de mobilização dos associados, a dificuldade em se dedicar a essas atividades em função de compromissos profissionais, pessoais ou familiares, bem como ao absenteísmo presente em nossa sociedade, dada a cultura da não participação em nossa história. Quanto ao processo eleitoral queremos apontar que nas últimas gestões das diretorias, o índice de votação foi em média de 36,3%, portanto, abaixo da metade. Em 26 gestões assinaladas o número de sócios totalizou 3.599 e o número de votantes 1.308. Esse processo eleitoral, ainda que pouco representativo em algumas associações, tem sua importância como ideal democrático, bem como para consolidar uma estrutura de representação. As eleições, tanto para a diretoria 4 Ler a respeito da representação... Faleiros, V. de P. Formas ideológicas da participação. In: ______. Saber profissional e poder institucional. São Paulo: Cortez, 1985, p. 71-80. 62 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 como para o Conselho Fiscal, ou outros órgãos existentes, são fundamentais na vida das associações determinando ciclos de participação e moldando sua organização interna. Na composição das diretorias a representatividade dos pais e/ou portadores de lesões lábio-palatais e de outras deficiências é maior (87,0%) quando comparada a outros participantes - profissionais, leigos - (9,2%), o que garante a consecução dos objetivos bem como a ampliação da rede de solidariedade entre os próprios portadores dessas deficiências. Demo, 1988, ressalta que ao poder somente se chega por eleição e para que haja democracia representativa autêntica, o representante precisa literalmente ser perseguido pelo representado, ou em outras palavras as bases precisam exercer controle sobre os representantes. Quanto ao tipo de informações veiculadas, referem-se essencialmente ao processo de reabilitação e ao processo de participação (100%), incluindo orientação, encaminhamento e apoio às pessoas portadoras de lesões lábiopalatais e seus familiares (71,4%), divulgação sobre os serviços prestados pelas associações, criando possibilidades de utilização dos seus serviços (57,1%), informações quanto a normas e rotinas do atendimento tanto na associação como no próprio HRAC, facilitando o trânsito dos associados (57,1%), em ambas as instituições. Os dados revelam em sua essência que a preocupação com o processo de reabilitação dos portadores de lesões lábio-palatais é uma constante. Demonstram ainda que os agentes informantes são antes de tudo agentes solidários, agentes mobilizadores e incentivadores do tratamento. h) Assessoria às Associações A contribuição do Serviço Social do HRAC para com as associações é inquestionável, sendo sua ocorrência reconhecida unanimemente pelos representantes das associações pesquisadas (100%). É definida como assessoria em 71,4% dos casos, cooperação em 57,1% ou outras definições como orientação, intercâmbio (57,1%). Segundo o enfoque dado pelos representantes, o Assistente Social é um técnico que possui capacitação para prestar assessoria, esclarecendo dúvidas, repassando informações, mostrando caminhos, sempre com muita prontidão. Assessorar significa servir de assessor, assistir, auxiliar tecnicamente graças a conhecimento especializado em dado assunto. (FERREIRA, 1986) Assessoria, segundo (NOGUEIRA, 1990) se define pelo caráter sistemático, permanente ou temporário, em função de ajuda técnica em um campo específico. Tem por finalidade mostrar alternativas de decisão e é realizada Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 63 fundamentalmente a partir de solicitação de órgão executor e realizada, via de regra, por pessoal interno da organização. No caso do HRAC a assessoria tem seu componente político na medida em que o Assistente Social que a executa, enquanto agente institucional, define sua ação com base nas necessidades de cada associação, incentivando posições críticas coletivas. O componente educativo está presente na assessoria não como uma simples intermediação burocrática, mas fundada em determinada direção. Significa concretamente ensinar a fazer uma leitura da realidade, elaborar programas, controlar a ação, efetivar a avaliação das ações, compreender os padrões ditados pelas agências financiadoras, alocar recursos financeiros. Supõe habilitar as associações a operarem os instrumentos e técnicas necessárias ao encaminhamento de suas demandas, sejam de ordem jurídica, tecnicamente administrativa, cultural e político-ideológica, que moldam a sua linha de ação. O componente ideológico relaciona-se com a visão de mundo, envolvendo valores, representações, idéias e orientações cognitivas unificadas por uma determinada perspectiva e ponto de vista social que, no caso do HRAC, se dá numa perspectiva democrática. O aspecto administrativo é constituído pela incorporação de instrumentos e funções essencialmente administrativas e organizacionais na ação profissional. Deriva do enquadramento de situações problemáticas do contexto social em atividades administrativas, relacionando-se com a efetivação de objetivos desejados. Não significa a preocupação excessiva com regulamentos, normas, controles legais descabidos, com um fim em si mesmo, mas como de propiciar o melhor rendimento aos objetivos previstos. Neste componente enfatiza-se a operacionalização das políticas sociais públicas e a otimização dos recursos destinados às associações. A importância do Serviço Social na assessoria aos coordenadores (agentes multiplicadores do Hospital) contribui significativamente para fundação, estruturação, organização e aprimoramento das associações bem como para um melhor conhecimento da dinâmica do Hospital de Pesquisa e Reabilitação de Lesões Lábio-Palatais. Essa assessoria faz com que os agentes se sintam mais seguros, motivados para o trabalho cotidiano. i) Desafios e Propostas Avaliando a contribuição das associações no processo de reabilitação dos pacientes em seus respectivos municípios e regiões, constatamos que há uma participação significativa na viabilização do tratamento de seus representados pacientes e familiares - no HRAC. 64 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 Os dados evidenciam que num esforço conjunto de coordenadores, associações, núcleos, instituições locais e Serviço Social do HRAC, os pacientes matriculados neste Hospital, procedentes dos diversos municípios/regiões da amostra, encontram-se em sua maioria em situações regulares (72,5%), ou seja, em tratamento (64,5%) ou alta (8%). O percentual para os casos irregulares (11,8%) incluem os casos com interrupção (0,9%), abandono (4,7%), ignorado (2%) e suspenso (4,2%). Além disso temos os de situação especial (15,7%) que são casos de óbito (2,5%), casos de avaliação inicial sem tratamento (10,7%) e os casos não caracterizados por insuficiência de dados ou pessoal (2,5%). Esses dados revelam ainda que, apesar das dificuldades geoeconômicas, sociais e culturais, o HRAC mantém um alto índice de pacientes em situação regular face ao tratamento (72,5%), produto da cultura e filosofia da Superintendência deste Hospital que, desde a implantação do Serviço Social em 1973, definiu como prioridade a prevenção e o controle do abandono de tratamento, incorporada por toda a equipe e tarefa precípua do Serviço Social. A contribuição do Serviço Social nesse processo de reabilitação, que demanda longos anos, é imprescindível e seu objetivo principal é criar condições de acesso e de seguimento do tratamento. Esta filosofia de atendimento vem sendo mantida porque devido à falta de recursos especializados no país, o Serviço Social tem implantado diferentes programas com vistas a manter os pacientes em tratamento.5 São milhares de portadores dessas malformações no país (233.000) e poucos serviços de saúde disponíveis nessa área, o que aumenta a cada dia o número de excluídos do sistema de saúde. O HRAC, como um dos poucos recursos do país, atende cerca de 10% desse universo. E os demais? Certamente muitos estão isolados da sociedade, outros mutilados e poucos reabilitados ou em processo de reabilitação. Não basta dizer que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, é preciso garanti-la mediante políticas que viabilizem o acesso às ações e serviços de reabilitação dos portadores de lesões lábio-palatais que estão - como a maioria da população - excluídos do Sistema Único de Saúde, em prejuízo dos seus direitos de cidadania. 5 Do universo dos pacientes matriculados no HRAC até 02/06/95 ou seja, 22.249 casos (100%) o índice era de 72,4% para casos regulares (63,4% em tratamento e 8,8% em alta), 13,2% irregulares (0,8% interrupção, 6,1% abandono, 2,3% ignorado, 3,9% suspenso), e 14,4% situações especiais (2,6% óbitos, 9,8% avaliação inicial, 1,9% não caracterizados). Esse índice fica bem próximo aos dos municípios com associações, pois a ação do Serviço Social é globalizadora. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 65 Considerações Finais A partir da análise interpretativa dos resultados da investigação levantamos algumas conclusões: 1) O HRAC, Bauru/SP, é um dos poucos recursos do país especializado nessa área. Presta serviços numa perspectiva de igualdade de direitos a uma parcela significativa da população brasileira que procura seus serviços, cerca de 23.000 casos (10% dentre os 233.000 portadores previstos no Brasil), mantendo relações de parceria com associações afins para ampliar a rede de serviços e de solidariedade no país. 2) As associações de pais e portadores de lesões lábio-palatais, são consideradas espaços importantes de participação e de criação de serviços de reabilitação no país. Atualmente as associações cadastradas no HRAC, somam 43 municípios, com extensão a 701, incluindo suas regiões, com potencial para cobrir 13.135 casos (60%) dentre os 23.000 matriculados no HRAC. 3) O grande motivo impulsionador da criação das associações é a solidariedade - além da preocupação em garantir acesso a continuidade de tratamento a um maior número de pessoas, ampliando as oportunidades de reabilitação. Essa solidariedade além de mobilizar milhares de pessoas no país, está pressionando os poderes públicos para a definição de políticas de saúde/reabilitação para as pessoas portadores dessas lesões. 4) No campo de significados, os depoimentos definem associações como a união de pessoas com objetivos comuns, em busca de soluções para seus problemas, sendo em espaço de troca de idéias e experiências, de relações e de intercâmbio com o HRAC e outros serviços. 5) A ação do Serviço Social do HRAC junto as associações é considerada por todas como de fundamental importância, e classificada prioritariamente como de assessoria. Seu papel foi sempre o de articulador, facilitador e intermediador e sua contribuição foi reconhecida pelas associações, dada a sua importância enquanto assistência, auxílio, colaboração, ajuda, e acima de tudo como mediador das relações de parceria entre as associações e o HRAC. 6) A contribuição das associações, considerando o índice de pacientes em tratamento ou reabilitados no HRAC, procedentes dos seus municípios e regiões é bastante positivo, (72%), evitando-se casos de abandono de tratamento. 66 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 7) As associações tem viabilizado a criação de uma rede de solidariedade e de serviços no país, em função da reabilitação das lesões lábio-palatais. E, enquanto expressão da organização da sociedade civil, tem impulsionado e dado sustentação a vários desafios especialmente ao de descentralização dos serviços de Hospital, garantindo o acesso a saúde/reabilitação, como um direito de cidadania. GRACIANO, M. I. G. Building spaces: the history of associations of parents and beares of cleft lip and palate and the social service contribution. Serviço Social & Realidade (Franca), v.12, n.1, p.4568, 2003. • ABSTRACT: The present study has the purpose of getting to know the history and organization of associations of parents and beares of cleft lip and palate in my country as well as the contribution of social service in the strengthening of this participation process arming the descentralization of the services offered by Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais of University of São Paulo (HRAC-USP).The organization of this segment of the civil society has been created different struggle fields and has as major axis; the matter of solidarity around a common problem cleft lip and palate. From the contextualization of counties in when the associations are located, we have deepened the analysis, focusing their origin, meanings attributed to the associations, participation and solidarity; human, material and institutional resources; organization and working structure; rendered services; electing process and associates mobilization, advising offered to the associations, challenges and proposals. These associations are part of one the programs kept by social service from HRAC-USP, located in Bauru-SP, wich is considered a national as well as an international reference center in the field of health and rehabilitation of cleft lip and palate. This process of social organization is an instance of struggle for conquering rights garanteed by brazilian Constitution, in a society in building process of the democracy. • KEYWORDS: Cleft lip and palate; parents-association; social work. Referências Bibliográficas BARCELO, J. M. Els reptes de L’associationisme. In: ______. Notes sobre associonisme e moviments urbans. (s.l.; s.n.), 1986, p. 51-61. BOSCHI, R. R. A arte da associação: política de base e democracia no Brasil. São Paulo: Vértice, 1987, p. 199. CESAREO, V. Dicionário de política. 3.ed. Brasília: (s.n.), 1991. DEMO, P. Mundo da qualidade. In: ______. Pobreza política. São Paulo: Cortez, 1988, p. 34-58. FARIAS, F. F. Associativismo e participação. São Paulo, 1987. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 67 FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1838. GRACIANO, M. I. G. De cliente a agente: os pais coordenadores e a sua ação multiplicadora num programa com portadores de lesões lábio-palatais. São Paulo, 1988. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – PUC/SP. IBGE. 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Salvador: ABESS, 1995. 68 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 45-68, 2003 O PERFIL PROFISSIONAL DO SERVIÇO SOCIAL E A IMPORTÂNCIA DE CURSOS PARA A FORMAÇÃO DE FORMADORES (DOCENTES/SUPERVISORES DE CAMPO) Rosane A. de Sousa MARTINS* • RESUMO: A importância de cursos de formação continuada apresenta-se como um dos mecanismos de promoção de capacitação e aprimoramento, no sentido de promover maiores reflexões sobre as novas perspectivas e demandas profissionais frente a realidade, a inserção não só dos docentes mas também dos assistentes sociais da prática na construção de conhecimentos e de uma nova proposta de ação e a importância de se fazer a articulação entre universidade – construtora e transmissora de novos conhecimentos e a categoria – principalmente aquela que se detém somente na intervenção cotidiana. • PALAVRAS-CHAVE: Formação Continuada; Serviço Social; Educação Continuada. Introdução A partir da implementação da LDB iniciou-se na maioria das instituições de nível superior discussões sobre a importância e a necessidade de rever o currículo mínimo. Grande parte dos cursos universitários se envolveram neste processo e iniciaram reflexões e ações no sentido de reorganizar a proposta curricular de cada profissão. O Serviço Social, que tinha seu currículo embasado na proposta curricular de 1982 inicia grande movimento através da ABESS, hoje ABEPSS (Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social), e de grandes universidades como PUC/SP, PUC/RJ, UFPE, UERJ, UFRJ, UFMA, UNESP/Franca, dentre outras, cuja preocupação refere-se à necessidade de superação de traços teoricistas e o distanciamento entre a teoria (as idéias dos intelectuais do Serviço Social) e o exercício profissional cotidiano. A partir daí são feitos vários encontros entre os intelectuais/profissionais no sentido de discutir as propostas para o projeto de formação profissional. Estas discussões ocorrem até a atualidade, demonstrando a importância e necessidade de participação de toda a categoria – o que não é muito comum entre os assistentes sociais que não estão na docência. * Doutoranda em Serviço Social pela UNESP/Franca, Mestre em Serviço Social pela PUC/SP, especialista em Formação de professores em EAD pela UFPR, especialista em Serviço Social e políticas sociais pela UNB, especialista em Planejamento Social pela UNIT/Uberlândia, Graduada em Serviço Social pela UNIT/Uberlândia, assistente social do Hospital-escola da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro - FMTM e Diretora do curso de Serviço Social da Universidade de Uberaba/MG. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 69-86, 2003 69 Neste contexto elucida-se alguns requisitos para garantir a qualidade da formação profissional do assistente social na atualidade. Busca-se fortalecer a formação de um profissional criativo, propositivo que tenha competência e agilidade na pesquisa e no desvendamento da realidade, apreendendo a dinâmica dos processos sociais na sua totalidade. Neste aspecto espera-se a superação da visão fragmentada, praticista e determinada unicamente pelos interesses da instituição na qual está inserido o assistente social. Assim, as diversas instituições de ensino de Serviço Social se mobilizaram “na defesa dos princípios acadêmicos-profissionais e ético-políticos norteadores do Código de Ética dos Assistentes Sociais e da proposta de Diretrizes Curriculares da Área de Serviço Social”. (IAMAMOTO, 2000, p.37).1 Segundo IAMAMOTO estas diretrizes foram construídas coletivamente e aprovadas por unanimidade, em 1996, pelas 64 unidades de ensino do país, então filiadas à ABEPSS. A primeira informação trazida pelas diretrizes curriculares do Curso de Serviço Social refere-se ao perfil do Bacharel em Serviço Social: Profissional que atua nas expressões da questão social, formulando e implementando proposta para seu enfrentamento, por meio de políticas sociais públicas, empresariais, de organização da sociedade civil e movimentos sociais. Profissional dotado de formação intelectual e cultural generalista crítica, competente em sua área de desempenho, com capacidade de inserção criativa e propositiva, no conjunto das relações e no mercado de trabalho. Profissional comprometido com os valores e princípios norteadores do Código de Ética do Assistente Social do Assistente Social. As transformações ocorridas na sociedade, as mudanças nas relações de trabalho através do fim de antigas funções, surgimento de novas demandas, atribuições e espaços ocupacionais e requisitos novos para a qualificação dos trabalhadores especializados, em especial do assistente social determinam reflexões e novas propostas para garantir a autonomia e respeito ao projeto ético-político do Serviço Social. Segundo Netto2 (1999, p. 104-105), 1 IAMAMOTO, Marilda Vilela. Associação Brasileira de ensino e pesquisa em Serviço Social. Reforma do Ensino Superior e Serviço Social. In: Reforma do Ensino superior e Serviço Social. Brasília: Valci, 2000. 2 NETO, José Paulo. A construção do projeto ético-político do Serviço Social frente à crise contemporânea. In: Capacitação em Serviço Social e política social: Módulo 1: Crise contemporânea, questão social e serviço social – Brasília: CEAD, 1999. 70 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 69-86, 2003 este projeto ético-político tem em seu núcleo o reconhecimento da liberdade como valor central [....] daí um compromisso com a autonomia, a emancipação e a plena expansão dos indivíduos sociais [....] O projeto profissional vincula-se a um projeto societário que propõe a construção de uma nova ordem social, sem dominação e/ou exploração de classe/etnia e gênero [....] afirma a defesa intransigente dos direitos humanos e a recusa do arbítrio e dos preconceitos, contemplando positivamente o pluralismo – tanto na sociedade como no exercício profissional [....] ele se posiciona em favor da eqüidade e da justiça social, na perspectiva da universalização do acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais; a ampliação e a consolidação da cidadania são postas explicitamente como condição para a garantia dos direitos civis, políticos e sociais das classes trabalhadoras. [....] O projeto implica o compromisso com a competência, que só pode ter como base o aprimoramento intelectual do assistente social. Daí a ênfase numa formação acadêmica qualificada, alicerçada em concepções teóricometodológicas críticas e sólidas, capazes de viabilizar uma análise concreta da realidade social – formação que deve abrir o passo à preocupação com a (auto) formação permanente e estimular uma constante postura investigativa [...]. É seu componente estrutural o compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população, incluída nesta qualidade dos serviços prestados à população, a publicização dos recursos institucionais, instrumento indispensável para a sua democratização e universalização e, sobretudo, para abrir as decisões institucionais à participação dos usuários. [....] o empenho ético-político dos assistentes sociais só se potenciará se a categoria articular-se com os segmentos de outras categorias profissionais que partilhem de propostas similares e, notadamente, com os movimentos que solidarizam com a luta geral dos trabalhadores. Partindo de toda a explanação feita por Netto sobre o projeto ético-político do Serviço Social e assentando-o na nossa realidade local/regional ressalta-se a preocupação sobre o acesso dos assistentes sociais (docentes e profissionais da prática) a tais reflexões e análises. Esta é também a preocupação da ABEPSS e dos intelectuais que estão discutindo as diretrizes curriculares e as novas propostas de formação do assistente social. Por isso Ferreira3 (2000, p.93) afirma que: FERREIRA, Ivanete Boscchetti. Implicações da reforma do ensino superior para a formação do Assistente Social: desafios para a ABEPSS. In: Revista da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social – ABEPSS, Reforma do ensino superior e Serviço Social. Brasília: Valci, 2000. 3 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 69-86, 2003 71 a formação profissional, tal como colocada nas diretrizes curriculares, deve, portanto: • Fomentar a apreensão crítica dos processos sociais numa perspectiva de totalidade; • Instigar a análise do movimento histórico da sociedade brasileira, apreendendo as particularidades do desenvolvimento do capitalismo no país e situando o Serviço Social nestas relações sociais; • Fortalecer os valores e princípios legitimados no Código de Ética profissional, exercitando a vivência da cidadania, democracia e participação política; • Garantir a compreensão do significado social da profissão e de seu desenvolvimento sócio-histórico nos cenários internacional e nacional, desvelando as possibilidades de ação contidas na realidade; • Possibilitar a identificação das demandas presentes na sociedade, tradicionais e emergentes, visando formular respostas profissionais para o enfrentamento da questão social, considerando as novas articulações entre o público e o privado; • Consolidar o entendimento da prática profissional como trabalho socialmente determinado, de modo que o assistente social se reconheça como trabalhador assalariado. Mediante toda a ampla perspectiva de atuação dos assistentes sociais de um lado e de outro as transformações societárias através da reestruturação produtiva, influências da globalização ampliada e da implementação dos ideais neoliberais, o acirramento da desigualdade e exclusão social com as mais variadas seqüelas na classe trabalhadora e do desfacelamento das políticas públicas (em especial a educação; nas universidades públicas, novos projetos de universidade baseado nas leis de mercado com critérios de avaliação a ele pertinentes), confirma-se a necessidade para a implantação de programa de Educação continuada. Esta proposta justifica-se por entendermos que a capacitação e aprimoramento profissional são componentes básicos para o processo de ensino-aprendizagem e contribuem decisivamente para a concretização da relação teoria-prática dos assistentes sociais, reconhecendo os nexos entre os conhecimentos do Serviço Social e a realidade da prática profissional na sua relação com a demanda, com a instituição e com a realidade social, assim como, contribui para o processo de desenvolvimento das habilidades técnicooperacionais desejáveis à prática profissional, visando o atendimento das demandas frente à realidade social e as alternativas de enfrentamento às questões sociais que emergem do cotidiano desta prática. 72 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 69-86, 2003 Mediante o exposto ressalta-se a importância de cursos para “formação de formadores” como um dos mecanismos de promoção desta capacitação e aprimoramento, no sentido de promover maiores reflexões sobre as novas perspectivas e demandas profissionais frente a realidade acima citada, a inserção não só dos docentes mas também dos assistentes sociais da prática na construção de conhecimentos e de uma nova proposta de ação e a importância de se fazer a articulação entre universidade – construtora e transmissora de novos conhecimentos e a categoria – principalmente aquela que se detém somente na intervenção cotidiana. O Novo Perfil Profissional e Importância de Cursos de Educação Continuada para Formadores em Serviço Social As exigências centrais da formação profissional no contexto das transformações sociais em curso têm como base a questão social alicerçada na dinâmica da vida social e no mundo do trabalho. Busca-se compreender e apreender o significado social da profissão enquanto especialização do trabalho coletivo. As profundas mudanças nas relações de trabalho e na reprodução da vida social são influenciadas pela reestruturação produtiva, reforma do Estado seguindo orientações principalmente de órgãos externos como FMI, e conseqüentemente pelas novas formas de enfrentamento da questão social. Percebe-se a necessidade de um repensar dos profissionais frente a todas as transformações societárias, uma vez que também o Serviço Social sofre as influências das mudanças na realidade social. Assim, as exigências da formação profissional baseiam-se em princípios como reorganização do currículo de 1982, aproveitando os pontos positivos e modificando aqueles que impedem o desenvolvimento profissional proposto. É necessário um rigoroso trato teórico-metodológico e histórico da realidade social e da própria profissão. Tal necessidade reforça a importância de novas técnicas de ensino através de disciplinas mais abrangentes e definidas, seminários, congressos, workshops, oficinas, atividades complementares e tópicos especiais. Isto permite maior dinamicidade nos currículos. Busca-se também a formação de um profissional com visão de totalidade percebendo as dimensões de universalidade, particularidade e singularidade. Desta forma propõe-se a superação da fragmentação de conteúdos, a pulverização de disciplinas e a dificuldade em perceber as interfaces entre os conteúdos. A pesquisa e intervenção devem ser tratadas como princípios de formação profissional e como base para a relação teoria-realidade-prática, Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 69-86, 2003 73 refletindo na indissociabilidade entre ensino-pesquisa e extensão, assim como entre estágio-supervisão acadêmica e profissional. Por fim a Ética profissional que deve ser o eixo central da formação profissional do assistente social. Neste contexto as diretrizes curriculares serão o caminho através do qual poder-se-á atingir a capacitação teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa necessária à nova formação profissional do assistente social. Para iniciar a análise sobre a formação profissional e o novo perfil para o Serviço Social torna-se importante fazer uma reflexão sobre a educação neste contexto de transformações societárias. As novas perspectivas de formação do assistente social buscam atender à nova realidade social apresentada e aos novos paradigmas da educação que direcionam os destinos da humanidade. Ante os múltiplos desafios do futuro, a educação surge como um trunfo indispensável à humanidade na sua construção dos ideais de paz, da liberdade e da justiça social. Através de análises, reflexões e propostas, a Comissão deseja partilhar esta convicção com o maior número de pessoas, numa altura em que as políticas educativas enfrentam fortes críticas, ou são relegadas, por razões econômicas e financeiras, para a última ordem de prioridades. (DELORS, 2000, p. 11). Esta é uma realidade premente no Brasil que tem se caracterizado pelo aumento da desigualdade social, miséria, violência, prostituição, desemprego, exclusão sob todos os aspectos, crescimento industrial e tecnológico desenfreado que contribui para a destruição disfarçada do planeta. A educação deve encarar de frente este problema, pois, na perspectiva do parto doloroso de uma sociedade mundial, ela se situa no coração do desenvolvimento, tanto da pessoa humana como comunidades. Cabe-lhe a missão de fazer com que todos, sem exceção, façam frutificar os seus talentos e potencialidades criativas, o que implica, por parte da cada um a capacidade de se responsabilizar pela realização do seu projeto pessoal. (DELORS, 2000 p. 16). Através da educação é possível refletir sobre os movimentos societários e construir propostas para a superação das mazelas sociais a que está submetida a humanidade. Há que se encontrar uma saída. O primeiro passo é pensar conjuntamente e iniciar a construção de um mundo melhor. Tudo nos leva, pois, a dar novo valor à dimensão ética e cultural da educação e, deste modo, a dar efetivamente a cada um, os meios de compreender o outro, na sua especificidade e de compreender o mundo na sua marcha caótica, para uma certa unidade. Mas antes, é preciso começar por se conhecer a si próprio, numa espécie de viagem interior guiada pelo 74 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 69-86, 2003 conhecimento, meditação e pelo exercício da autocrítica. (DELORS, 2000, p. 16). Desta forma educação contribui para o desenvolvimento social sustentável, para o alcance de objetivos societais na dimensão da totalidade e conseqüentemente para a melhoria da qualidade de vida. Para isso faz-se necessário que todos os envolvidos no processo como governo, profissionais da educação, sociedade civil, alunos, pais/responsáveis se organizem e assumam seus papéis e responsabilidades para a construção de um mundo melhor através da educação. Portanto, as mudanças e ações necessárias a esta construção diz respeito a todos. Mas a modificação profunda dos quadros tradicionais da existência humana coloca-nos perante o dever de compreender melhor o outro, de compreender melhor o mundo. As exigências de compreensão mútua, de entre ajuda pacífica e, por que não, de harmonia são, precisamente os valores de que o mundo mais carece. (DELORS, 2000, p. 19). Partindo deste ponto de vista propõe-se uma ampliação da proposta de educação, contribuindo para que todos tenham acesso a dados, informações, fatos permitindo que estes possam analisar, relacionar, escolher, organizar e lançar mão destes conhecimentos para a complementação da formação humana. Aliado a isto está a importância de conhecer a si mesmo e a si compreender neste processo. Para podermos compreender a crescente cumplicidade dos fenômenos mundiais, e dominar o sentimento de incerteza que suscita, precisamos, antes, adquirir um conjunto de conhecimentos e, em seguida, aprender a relativizar os fatos e a revelar sentido crítico perante o fluxo de informações. A educação manifesta aqui, mais do que nunca, o seu caráter insubstituível na formação da capacidade de julgar. Facilita uma compreensão verdadeira dos acontecimentos, para lá da visão simplificadora ou deformada transmitida, muitas vezes, pelos meios de comunicação social, e o ideal seria que ajudasse cada um a tornar-se cidadão deste mundo turbulento e em mudança, que nasce cada dia perante nossos olhos. (DELORS, 2000, p. 47). No entanto, o ensino superior no Brasil ainda não atingiu este ideal. As universidades brasileiras estão passando por um processo de reestruturação direcionado pela reforma do Estado. Este processo caracteriza-se pela organização da política de educação que segundo Neto (1999 p. 29), apresenta traços tais como: o favorecimento da expansão do privatismo, a liquidação da relação ensino, pesquisa e extensão, a supressão do caráter universalista, a subordinação das demandas do mercado, a redução do grau de autonomia pensada apenas como Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 69-86, 2003 75 autonomia financeira: a subordinação dos objetivos universitários às demandas do mercado, nexo organizador da vida universitária; a supressão de autonomia docente, são os traços fundamentais que resultam, como um pacto para o ensino superior, desse duplo e imbricado movimento político de ajuste e de reforma do Estado. Por outro lado, este mesmo autor admite que apesar de todos os problemas e limitações vividos pelas universidades brasileiras, em especial as públicas, ela ainda representa um espaço importante de reflexão, discussão e ação frente à realidade apresentada. Essa universidade com todos os problemas que tem é uma escola de cidadania, ela inquieta, ela agita, ela subverte, ela faz germinar. Então trata-se de suprimir esse seu papel democratizante. (NETO, 1999, p. 29). O ensino superior brasileiro, também, está submetido a um movimento de reformas indicadas pelo Estado, através das políticas de ajustes de cunho neoliberal, “determinada” por organizações internacionais como FMI, Banco Mundial, etc. A reforma na área da educação responde à crise do estado de bem-estar social, às diretrizes das políticas neoliberais e ao interesse do mercado. Os cortes orçamentais provocam três efeitos principais na vida institucional da universidade. Porque são seletivos, alteram as posições relativas das diferentes áreas do saber universitário e das faculdades, departamentos e unidades onde são investigadas, e (ou) ensinadas, e, com isso, desestruturam as relações de poder em que se assenta a estabilidade institucional. Porque são sempre acompanhadas do discurso da produtividade, obrigam a universidade a questionar-se em termos que lhe são pouco familiares e a submeter-se a critérios de avaliação que tendem a dar do seu produto, qualquer que ele seja, uma avaliação negativa. Por último, porque não restringem as funções da universidade na medida das restrições orçamentais, os cortes tendem a induzir a universidade a procurar meios alternativos de financiamentos, para o que se socorrem de um discurso aparentemente contraditório que salienta simultaneamente a autonomia da universidade e a sua responsabilidade social. (SANTOS, 1996 p. 214). À luz desta realidade estão ocorrendo transformações profundas na 76 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 69-86, 2003 proposta de participação do Estado nas questões sociais, construindo diferentes mecanismo para garantir a efetividade das reformas indicadas. Entre elas podese ressaltar as diretrizes estabelecidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei n. 9.394, de 20/12/96, que pretendem reorganizar a política educacional brasileira. Sua estruturação e implantação têm se pautado pela criação de medidas provisórias, decretos, portarias, emendas constitucionais, etc. Desta forma o governo tem minado os espaços de participação e reivindicação da sociedade civil, dificultando ou até mesmo impedindo a realização de um processo democrático, aberto para implementação destas reformas, cujo controle social estaria na responsabilidade de toda a sociedade. O que supõe, como requisito, articular permanentemente, análises das tendências estruturais com a dinâmica conjuntural; apropriar-se criticamente da lógica que preside a política de ensino superior e acompanhar as medidas nas quais se materializa. Realizar, enfim, uma vigilância cívico – acadêmica, de modo a apropriar-se das possibilidades de interferências – dentro dos limites presentes – nas regras do jogo que regem a formulação e implementação da política do ensino superior, no cotidiano das relações que conformam a vida universitária e o exercício profissional (IAMAMOTO, 1999, p. 38). A regulamentação da LDB é constituída por um pacote de medidas do governo para garantir a reforma do ensino superior. De acordo com o discurso governista o Brasil tem uma economia diversificada que demanda mão de obra qualificada. Neste contexto são implementadas algumas medidas para flexibilização dos processos de formação profissional, critérios de inserção no ensino superior, mudanças para ordenação do exercício profissional. Entre as medidas pode-se ressaltar exame nacional de cursos, mestrado profissionalizante, cursos seqüenciais, diretrizes curriculares em substituição aos currículos mínimos, ensino à distância. Estas medidas complementam a perspectiva de construção de novos modelos para a educação superior. Incentiva-se a participação da iniciativa privada na manutenção e financiamento de projetos, pesquisas e convênios junto às universidades públicas. Neste contexto cabe refletir sobre as implicações para o Serviço Social, mediante as reformas propostas ao Estado. Segundo (IAMAMOTO, 1999, p. 66), O (a) assistente social trabalha no âmbito das relações sociais, em suas expressões na vida quotidiana, nas esferas pública e privada. Interfere na reprodução das condições de vida material dos segmentos populacionais que tem acesso aos serviços previstos nas políticas sociais públicas e empresariais. Mas, Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 69-86, 2003 77 também, opera no minado terreno político ideológico – que incorpora conhecimentos, valores, comportamentos, atitudes, sentimentos e emoções, que conformam a esfera da subjetividade dos indivíduos sociais, cuja existência é socialmente objetiva. O assistente social, ao acompanhar o movimento e o ritmo das marés neoliberais, pode vir a torna-se um eficiente e eficaz coadjuvante dos mecanismos de fetichização da vida social: um profissional mistificado e da mistificação ... Portanto, a reforma de ensino superior engloba uma série de medidas que está atingindo diversos níveis da educação (desde a básica até o ensino superior) e as mais diversificadas profissões e cursos. Entre elas, pode-se ressaltar as diretrizes curriculares para o Serviço Social aprovadas em abril de 2001 pelo MEC. De acordo com (FERREIRA, 1999, p. 91) “Este projeto está em dois princípios básicos”. No âmbito ético-político, trata-se de um projeto comprometido com a liberdade como valor central, que se expressa no compromisso com a autonomia, a emancipação e a expansão dos indivíduos sociais. Assume claro posicionamento em favor da equidade e da justiça social, que assegure a remunerabilidade de acesso aos bens e serviços referentes às políticas sociais. No âmbito da prática profissional, esses valores se expressam na defesa da qualidade dos serviços, na competência profissional, na viabilização dos direitos sociais e da cidadania, na luta pela radicalização da democracia no aprimoramento intelectual dos profissionais. Daí a preocupação e ênfase em uma formação acadêmica qualificada, fundamentada em concepções teóricometodológicas críticas e sólidas. As diretrizes curriculares para os cursos de Serviço Social trazem inovações que contribuem para a organização da proposta pedagógica dos cursos, sem no entanto delimitar ou determinar as caracterizações apresentadas pelas escolas de Serviço Social na sua organização curricular. Estas diretrizes apresentam inicialmente o perfil dos formandos. Tal perfil possibilita aos cursos organizar mais propostas pedagógicas de forma a contemplar essa perspectiva, ou seja, profissional que atua nas expressões da questão social, formulando e implementando propostas, de intervenção para seu enfrentamento, com capacidade de promover o exercício pleno da cidadania e a inserção criativa e propositiva dos usuários do Serviço Social no conjunto das relações sociais e no mercado. (Diretrizes curriculares para os cursos de Serviço Social, Abril de 2001). 78 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 69-86, 2003 Outro aspecto importante é a inserção dos requisitos de competência e habilidades. Entende-se que a formação profissional deva viabilizar a aquisição de competências, como a capacitação teórico-metodológica e ético-política, por meio do desenvolvimento de habilidades nos aspectos cognitivos, afetivo social e psicomotor. Para tanto as D. C. apresentam alguns critérios para a organização dos cursos. Tais como: flexibilidade dos currículos plenos com a inserção de outros componentes como seminários, oficinas, estágios etc. Se antes o currículo proposto apresentava as disciplinas a serem ministradas, com suas respectivas cargas horárias, nas D. C. atuais os conteúdos curriculares são propostos através da ordenação de núcleos de fundamentação da formação profissional. As exigências centrais da formação profissional no contexto das transformações sociais em curso têm como base a questão social alicerçada na dinâmica da vida social e no mundo do trabalho. Busca-se compreender e apreender o significado social da profissão enquanto especialização do trabalho coletivo. As profundas mudanças nas relações de trabalho e na reprodução da vida social são influenciados pela reestruturação produtiva, reforma do Estado seguindo orientações principalmente de órgãos externos como FMI, e conseqüentemente pelas novas formas de enfrentamento da questão social. Percebe-se a necessidade de um repensar dos profissionais frente a todas as transformações societárias, uma vez que o Serviço Social sofre as influências das mudanças na realidade social. Nesse sentido, as diretrizes curriculares propõem contribuir para que haja uma apreensão crítica do processo histórico como totalidade, apreensão das particularidades que culminam na constituição e desenvolvimento do capitalismo e do Serviço Social no país, entendimento sobre o significado social da profissão e conhecimento e apreensão das novas demandas postas ao Serviço Social através do mercado de trabalho e no enfrentamento das questões sociais. As diretrizes curriculares definem as competências e atribuições do assistente social prevista na atual legislação profissional contribuindo para a efetivação da nova formação profissional. A partir daí exige-se também uma reflexão daqueles profissionais já formados há muito tempo sobre a necessidade de capacitações freqüentes para que não haja grande distância entre os assistentes sociais graduados após as mudanças nas diretrizes curriculares e aqueles com muitos anos de graduação e distantes dos meios acadêmicos. As D. C. apresentam três núcleos: • Núcleo de fundamentação teórico-metodológicos da vida social; Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 69-86, 2003 79 • Núcleo de fundamentos da formação sócio-histórica da sociedade brasileira; • Núcleo de fundamentos do trabalho profissional. Esta organização permite aos cursos através de aprovação dos colegiados, a formatação de sua proposta pedagógica atendendo aos conhecimentos necessários à formação profissional e à realidade social a qual a escola de Serviço Social esteja inserida. Neste contexto o Estágio Supervisionado e o TCC completam os requisitos para a formação do assistente social. Podemos mesmo afirmar que o eixo fundamental da direção social e do perfil profissional definidos neste currículo impõe esta postura para continuar avançando no sentido de colocar o Serviço Social na direção histórica de ruptura com a velha formação profissional acadêmica, com as velhas práticas profissionais, enfim com a velha sociedade, contribuindo para a construção de novas relações e condições e para a emancipação da humanidade. O aparente idealismo aqui é realismo político porque sustentado na possibilidade histórica (CARDOSO, et al, 1999, p. 125). Frente à realidade exposta ressalta-se a importância de se fortalecer as análises e discursos sobre as novas perspectivas de formação profissional e sua repercussão no exercício profissional, mediante as implicações da LDB e das transformações societárias sobre a profissão. A reforma do Estado, especificamente na área de Educação propõe a flexibilização das políticas educacionais, colocando-as a mercê dos interesses de mercado e a conseqüente desresponsabilização do Estado frente à educação pública. Esta constatação nos remete à importância da educação continuada na “formação de formadores”, que estão trabalhando cotidianamente com todas estas mudanças. O desenvolvimento do projeto pedagógico supõe uma clara política de capacitação continuada que coloca a questão da atualização e qualificação docente, bem como da categoria profissional de um modo global, considerando as necessidades da formação e da prática profissional e os avanços teóricos e políticos alcançados pela profissão nas últimas décadas. A avaliação deste elemento deve, portanto, considerar a relação entre a graduação, pós-graduação e o movimento organizativo da categoria, na perspectiva da elevação das condições intelectuais e políticas do exercício profissional. (CARDOSO, et. al, 1999, p. 130). A partir da aprovação das diretrizes curriculares e a recomendação de que as unidades de ensino procedem à sua implantação, instalam-se os desafios para a formação profissional do Assistente Social em novos parâmetros e sob um novo olhar. 80 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 69-86, 2003 A revisão curricular proposta na década de 90 tem propiciado um repensar da categoria, principalmente daqueles diretamente relacionados à formação profissional. São apresentados alguns desafios como a superação da educação pautada apenas no conteúdo /disciplina, a fragmentação e o distanciamento do contexto social e mesmo a proposição de atividades complementares diversificadas como iniciação científica, pesquisa e extensão para enriquecer a proposta pedagógica dos cursos de Serviço Social. Nesse sentido reforça-se a importância de proposta de capacitação profissional no âmbito teórico, metodológico, técnico-operativo, e ético-politico dos sujeitos envolvidos na formação profissional. Todos os sujeitos envolvidos têm suas responsabilidades, que compreendem o respeito ao outro, o compromisso com o coletivo e a coerência entre os valores éticos assumidos e as atitudes práticas. Na relação professor e alunos, estas responsabilidades são diferentes, exigindo do corpo docente uma constante reflexão sobre suas práticas pedagógicas, critérios de avaliação, postura profissional e relação com os demais colegas de campo e docentes. (BRITES; BARROSO, 2000, p. 28). Considerações Finais Foram destacados aqui alguns desafios e polêmicas que estão se apresentando aos profissionais do Serviço Social, em especial àqueles que se dedicam à formação de novos profissionais. A formação do assistente social é estabelecida pela proposta pedagógica dos cursos de Serviço Social, onde há uma inter-relação pedagógica entre os conteúdos e discussões contidas nos núcleos de fundamentação da formação profissional. Com a participação ativa do aluno e a sua inserção no espaço sócio-institucional. È neste contexto que se discutem os desafios do ensino e da prática e se insere novos sujeitos na proposta de formação e aprimoramento profissional. Para iniciar esta discussão pode-se ressaltar os cursos de atualização, capacitação e especialização como elemento constituinte do processo ensino-aprendizagem em Serviço Social, e um dos alicerces da educação do futuro. Discutir sobre o processo de ensino-aprendizagem em Serviço Social, tendo como referência a atualização remete-nos à reflexão sobre a articulação das dimensões teórico-metodológicas e ético-políticas do processo de trabalho em Serviço Social em sua inter-relação com as demandas de mercado e a realidade social atual. A capacitação profissional, de forma mais elaborada, pode ser estabelecida na construção cotidiana da relação teoria-prática e se consolidar através do entendimento sobre a fusão de habilidades e competências e a busca de viabilidade dos projetos de mudanças sociais com os quais a profissão está Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 69-86, 2003 81 associada. As expectativas e estratégias de organização de cursos de capacitação vêm materializar concretamente esta perspectiva e consolidar a proposta dos cursos de capacitação/educação continuada aos assistentes sociais que atuam cotidianamente na formação em Serviço Social. A importância dos cursos de extensão e especialização no processo de ensino-aprendizagem do Serviço Social é clara e constitui-se num espaço estratégico na consolidação do projeto de formação de novos profissionais. As questões que determinam a necessidade de cursos de educação continuada vão desde a insegurança dos profissionais ao conteúdo/conhecimento apreendido, a defasagem ou desatualização teórica-metodológica até as novas perspectivas e espaços ocupacionais que reforçam as dificuldades de acompanhar as demandas para o Serviço Social e a necessidade de articulação da teoria/conhecimentos e as dimensões ético-políticas, teórico-metodológicas e reflexivas, contidas no processo de trabalho do assistente social, principalmente no “despreparo” dos profissionais para serem educadores. De acordo com Cassab, o ensino da prática pode ser entendido em duas de suas dinâmicas. Na primeira, como um momento privilegiado de estabelecimento de sínteses possíveis no processo da capacitação do aluno para a apreensão da singularidade das situações vividas no trabalho do Serviço Social e para o estabelecimento de objetivos e estratégias de seu enfrentamento, a fim de que seja possível empreender ações qualitativamente diferentes. A Segunda dinâmica [....] refere-se à formação de uma cultura investigava, como condição necessária para o conhecimento dos sujeitos com os quais trabalha o Serviço Social, dos elementos presentes nos processos de trabalho nos quais estão envolvidos e das faces da questão social presentes nas circunstâncias que vivem os sujeitos [....] o ensino da prática supõe a dimensão do conhecimento da matéria sobre a qual o Serviço Social atua, dos meios e instrumentos necessários na produção dos resultados e ainda um conhecimento acerca das condições que potencializam ou dificultam seu fazer, além, é claro, do horizonte ético-político construído pela categoria profissional. (2000 p. 128). Compreender toda esta complexidade que envolve o ensino da prática contribui para um repensar profundo sobre a efetividade de discursos sobre as diretrizes curriculares, a organização das propostas pedagógicas dos cursos de Serviço Social, a educação continuada e seu impacto na formação profissional, mediante as transformações societárias constatadas cotidianamente. E, do mesmo modo outros elementos poderiam ser ressaltados em relação à formação profissional. Entre eles o próprio processo de trabalho dos assistentes sociais. A categoria vem sofrendo as conseqüências da ampliação do ideário neoliberal, da implantação da reestruturação produtiva, flexibilização 82 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 69-86, 2003 das relações de trabalho, minimização da participação do Estado nas políticas públicas, descaso com a área social. Tudo isso repercute nas condições de trabalho do assistente social. Diariamente ele se vê envolto por um acúmulo de trabalho, aumento de seu desgaste físico e diminuição de recursos e alternativas para o enfrentamento das questões sociais. Estes aspectos fazem parte dos desafios e dilemas que compõe a formação profissional e contribuem efetivamente para o processo de ensinoaprendizagem de todos os envolvidos na educação. Isto porque: O ensino da prática propicia o estabelecimento de um tipo de relação pedagógica no processo de formação de profissional particularmente privilegiado em termos da capacidade do aluno de estabelecer síntese, de desconstruir um pensamento orientado por modelos aplicáveis, de articular críticas e formação, em síntese, de se construir em sua identidade de trabalhador, de assistente social. (CASSAB, 2000, p. 132). Este é um aspecto extremamente importante e pode ser contemplado através da implementação de cursos de atualização, extensão e especialização, principalmente para aqueles que lidam diretamente com a formação de novos profissionais. Há que se instituir ações que desvelem perspectivas e possibilidades de enfrentamento da realidade social apresentada e suas potenciais mudanças incentivando o desenvolvimento de práticas pedagógicas que contribuam para a apropriação dos debates teóricos acerca da profissão e concomitantemente para a construção de mediações que aproximem a realidade profissional das demandas contemporâneas para o Serviço Social. A construção coletiva de um projeto político pedagógico para implementação de cursos de aprimoramento, atualização e capacitação para docentes vai muito além da observação formal dos contextos indicados, das novas diretrizes curriculares propostas pela ABEPSS ou pelas normas do MEC. Será sim uma sensibilização para a importância de atualização teóricometodológica, ético-política, técnico-operativa dos docentes e supervisores de campo e a percepção das vantagens em ser organizada pela própria universidade. Obter-se-á resultados em uma formação profissional satisfatória se for decorrente de um espaço coletivo que envolva as mais diversas áreas de atuação. Pensar na construção coletiva deste projeto pedagógico exige centrar a formação dos novos profissionais em uma nova perspectiva de prática pedagógica onde a educação assume o desafio de construir e universalizar a cidadania. Por isso, a educação deveria mostrar e ilustrar o Destino multifacetado do humano: Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 69-86, 2003 83 O destino da espécie humana, destino individual, o social, o destino histórico, todos entrelaçados e inseparáveis. Assim, uma das vocações essenciais da educação do futuro será o exame e o estudo da complexidade humana. Conduziria à tomada de conhecimento, por conseguinte, de consciência, da condição comum a todos os humanos e da muito rica e necessária diversidade dos indivíduos, dos povos, das culturas, sobre novo esvaziamento como cidadão da terra... (MORIM, 2000, p. 61). MARTINS, R. A. de S. The new professional profile to Social Work and the importance of formation. Serviço Social & Realidade (Franca), v.12, n.1, p.69-69, 2003. • ABSTRACT: The importance of the continual educational training courses takes the role of a mechanism intended to promote the capability of self-improvement so that further reasoning on new persrpectives and professional demanding can be promoted in face of the reality, the inclusion of not only the educators, but also the social assistants of the practice in the building of knowledge and of a new proposal for the action together with the importance of making the articulation between the university – the builder and conveyer of new learning and the teaching class – especially those that keep solely the daily pedagogical intervention. • KEYWORDS: Continual Educational Training Courses; Social Work; Education Continual. Referências Bibliográficas BRITES, Cristina Maria; BARROCO, Maria Lúcia Silva. A centralidade da Ética na formação profissional. Revista Temporalis 2. 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Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 69-86, 2003 85 O PROCESSO DE PARTICIPAÇÃO NA ESCOLA PÚBLICA: PERSPECTIVA DOS SUJEITOS ENVOLVIDOS Eliana Bolorino Canteiro MARTINS* • RESUMO: O presente artigo oferece uma reflexão sobre o processo de participação da comunidade escolar nos diferentes níveis de representação existentes na escola pública; bem como a relação que se estabelece entre escola-família-comunidade, na perspectiva destes sujeitos. • PALAVRAS-CHAVE: Educação; Participação; Representatividade; Escola Pública. Introdução O caminho a ser percorrido neste artigo, que reflete sobre o processo de participação da comunidade escolar, perpassa sobre a questão da democracia. A palavra democracia designou inicialmente, uma forma particular de governo da sociedade – o governo de todos. Com a evolução da cultura humana, o conceito de democracia foi se ampliando para significar um tipo de sociedade e um tipo de cultura que incorporam três valores básicos de convivência social: a liberdade, igualdade e participação. Segundo Vieira (1992), referindo-se ao estado de Direito no Brasil, define a democracia como o resultado da luta pela liberdade contra a autoridade. Nos anos 80, os processos políticos e sociais de restauração da democracia e dos direitos civis e políticos, bem como as lutas pela ampliação e reconhecimento legal dos direitos sociais - conquistados na Constituição de 1988 – ensejaram mudanças no processo de participação da população no controle e gestão das políticas públicas, de forma geral. As legislações ordinárias regulamentadoras da Constituição previram conselhos colegiados, em geral paritários e deliberativos, nas mais diferentes instâncias do governo e também das instituições públicas. Na escola pública, como veremos a seguir, a luta pelo processo de democratização tem três grandes frentes: a ampliação do acesso à instituição educacional; a democratização dos processos pedagógicos e a democratização dos processos administrativos. É este último aspecto que será abordado no presente artigo, considerando que a consolidação de uma gestão democrática no interior da escola não é um processo fácil, pressupõe uma construção coletiva que se materializa por meios de avanços e retrocessos característicos de tal processo. * Mestre em Serviço Social - UNESP- Franca/SP. Doutoranda em Serviço Social - PUC - SP. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 87-100, 2003 87 Para iluminar a reflexão proposta neste artigo é importante reportar-se ao pensamento de Antônio Joaquim Severino (1986), a educação tem um papel significativo na reprodução social, na medida que a mesma atua eficazmente na reprodução ideológica. Mas esta função reprodutora da educação não esgota sua significação total - a educação, contraditoriamente, também é força de transformação objetiva das relações sociais, ou seja, a força da educação não tem sentido unívoco enquanto pura instância de reprodução. O processo de educação, no seu conjunto e no seu interior geram e desenvolvem também forças contraditórias que comprometem o fatalismo da reprodução, quer ideológica, quer social, atuando simultaneamente no sentido de transformação da realidade social. Portanto, o saber acaba levando ao questionamento das relações sociais mediante processo de conscientização do real significado dessa relações enquanto relações de poder, revelando inclusive a condição de contraditoriedade que as permeia. A conscientização aqui é entendida como a passagem de uma consciência puramente natural para uma consciência reflexiva, de uma consciência em si, para uma consciência para si, de uma consciência dogmática, para uma consciência crítica. Esta é a função intrínseca da educação e o seu papel preponderante na contribuição que pode dar a transformação social. A educação, entendida como a apropriação do saber historicamente produzido é prática social que consiste na atualização cultural e histórica do homem. Este, na produção material de sua existência, na construção de sua história, produz conhecimentos, técnicas e valores, comportamentos, atitudes, tudo enfim que configura o saber historicamente produzido. Saber que é passado para as novas gerações, mediação realizada pela educação. (PARO, 1999, p. 300). Compreender como se materializa nas instituições escolares públicas o processo educacional é avaliar o contexto global da escola no seu interior, nas relações estabelecidas entre os sujeitos que a compõem, na forma como conduz a sua gestão administrativa. Há muitas reflexões a este respeito, recentemente estimuladas pelas controvertidas analises da nova Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (1996), especificamente no que se refere a democratização da escola pública tanto na gestão administrativa, quanto na articulação com a comunidade, visando maior integração escola-sociedade, conforme revela vários artigos e incisos da referida Lei, tema que o presente artigo pretende enveredar-se. Como nenhum homem é uma ilha e desde a sua origem vive agrupado com seus iguais, a participação sempre tem acompanhado - com altos e baixos, 88 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 87-100, 2003 as formas históricas que a vida social foi tomando. Entretanto no mundo inteiro nota-se uma tendência a intensificação dos processos participativos. Estão a favor da participação tanto os setores progressistas que desejam a democracia mais autêntica, como os setores tradicionalmente não muito favoráveis aos avanços das forças populares. A razão, evidentemente, é que a participação oferece vantagens para ambos, ou seja, pode ter objetivos de liberação e igualdade como para manutenção de uma situação de controle de muitos por poucos. A participação facilita o crescimento da consciência crítica da população, fortalece seu poder de reivindicação e a prepara para adquirir mais poder na sociedade. Facilita também, o controle das autoridades por parte do povo, visto que as lideranças centralizadas podem ser levadas facilmente á corrupção e a malversação de fundos. Quando a população participa da fiscalização dos serviços públicos, estes tendem a melhorar em qualidade e oportunidade. Segundo Netto (1989) - participar é tomar parte em alguma coisa, é ter parte em alguma coisa, é fazer algo, é ser parte de alguma coisa. Assim, os seres humanos tomam parte, têm parte, são parte da humanidade. Quer dizer, participam desse grande conjunto de seres que forma a humanidade. Sabe-se que a participação é produzida mediante mecanismos que variam conforme cada sociedade, cada momento histórico, funcionando como oportunidade à população em função do processo participativo. Temos como exemplo: o voto, o plebiscito, a representação política, os conselhos e outros. Uma das questões mais importante, talvez um dos grandes desafios para toda administração, é o acesso dos cidadãos à informação enquanto base para garantir uma participação real. A questão não é só de informar os cidadãos, mas de explicar e tornar transparente e abertos os canais de participação. Para (PEDRO DEMO, 1988) um dos papéis da educação está em ser instrumento de participação política. A educação é uma condição necessária para desabrochar a cidadania desde que voltado para a formação do homem como sujeito do desenvolvimento inserido dentro de um contexto de direitos e deveres. A participação não é um conteúdo que se possa transmitir, mas uma mentalidade e um comportamento com ela coerentes, é uma vivência coletiva e não individual, de modo que somente se pode aprender na práxis grupal. Só se aprende a participar participando. Para discutir sobre o processo participativo, em construção, na escola pública, faz-se necessário percorrer dois movimentos dialeticamente articulados: a participação dos elementos da comunidade escolar nas mais diferentes instâncias representativas presentes na escola como os Conselhos de Escola, os Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 87-100, 2003 89 Grêmios Estudantis, as Associações de Pais e Mestres e demais instâncias significativas de poder decisório, bem como compreender a relação que se estabelece entre escola-comunidade. A Escola e o Processo Participativo A escola, como qualquer instituição social, é um espaço contraditório de lutas e empates historicamente construído pelos sujeitos que a compõem. Atualmente a escola possui instrumentos legais que garantem o processo de participação de todos os elementos envolvidos na comunidade escolar, num processo contínuo de democratização da escola como única alternativa viável para o enfrentamento das novas demandas postas pela sociedade que exigem um redimensionamento da mesma. O Conselho de Escola, por exemplo, é o resultado de uma trajetória histórica de lutas pela democratização da gestão escolar, iniciado pela Congregação (1953), Conselho de Professores (1961), Conselho de Escola Consultivo (1977), Conselho de Escola (1978) e Conselho Deliberativo (1985), alterando-se em sua forma e estrutura visando aproximar-se cada vez mais de uma espaço realmente democrático. Atualmente, o Conselho Deliberativo de Escola, é regulamentado pelo Estatuto do Magistério, sendo eleito anualmente, durante o primeiro mês letivo; presidido pelo Diretor da Escola, tem um total de 20 a 40 componentes fixados sempre proporcionalmente ao número de classes existentes no estabelecimento de ensino. A sua composição é parietária, com a participação de elementos da escola e da comunidade. No texto legal, nas atribuições do Conselho de Escola, transparece um processo democrático, porém há dificuldades na prática, neste e nas demais instâncias de poder presentes na instituição escolar que acabam por espelhar o que ocorre na sociedade de uma forma mais ampla. Este foi um dos aspectos abordado na Dissertação de Mestrado (UNESP – Franca/SP, 2001), denominada - Serviço Social: mediação escola e sociedade, apresentada pela referida autora, cuja pesquisa abrangeu os diversos segmentos da comunidade escolar, ou seja, diretor, vice-diretor, coordenador pedagógico, supervisor de ensino, professores, serventes, merendeiras, inspetores, pais e alunos de duas escolas públicas do município de Bauru, trazendo contribuições significativas para o entendimento desta questão. Para realizar a análise da participação no âmbito escolar e comunitário, percebeu-se que o viés que conduziu este processo reflexivo, foi a avaliação da participação da comunidade escolar nas instâncias de poder decisório existentes na escola pública, ou seja, o Conselho de Escola e a Associação de Pais e Mestres. 90 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 87-100, 2003 Ao abordar-se este tema como os diretores, vice-diretores, coordenadores pedagógicos e supervisores de ensino, todos consideram importante a existência do Conselho de Escola e da Associação de Pais e Mestres, porém, enfatizam os entraves existentes para que estes órgãos cumpram, integralmente seus objetivos. Elencam como uma das maiores dificuldades, a escassez de participação dos pais - por diversos fatores que vão desde a acomodação, o desconhecimento, até a falta de tempo - para atuarem nestas instâncias de poder decisório. Algumas afirmações demonstram que estes órgãos existem juridicamente, por força de Lei, mas não exercem suas funções de fato. O Conselho é muito mais um órgão de obrigatoriedade, de papel, do que de fato.(diretora). O Conselho funciona, apesar de ter problemas para conseguir horário adequado para as reuniões, principalmente em relação aos pais. (vice-diretora). Muitos analisam a questão da não participação dos pais como um dos entraves para a efetivação das instâncias de poder decisório na escola, às vezes compreendendo os determinantes conjunturais, culturais, que incidem sobre esta questão e, outras, fazem sua análise com uma visão ingênua, centrada no indivíduo e não na sociedade como um todo, conforme revelam as suas falas: Existe a cultura da não participação. O diretor fica com uma certa preocupação que o Conselho vai interferir, pela responsabilidade que ele tem na escola. Preocupação exagerada, muitas vezes se fechando e dificultando a participação. Os pais por sua vez, quanto mais humildes, pensam que só podem dizer 'amém'....( supervisor de ensino). Do total de doze professores entrevistados, nove participam do Conselho de Escola e três da Associação de Pais e Mestres, sendo que apenas um participa das duas entidades. As referências sobre esta participação são muito significativas para compreender a organização, a operacionalização dos Conselhos de Escola e da Associação de Pais e Mestres. O Conselho de Escola tem grande poder, porque nós precisamos reunir o Conselho para expulsar um aluno da escola, porque ele desacatava demais... e o Conselho teve força para isso. O próprio aluno vê que o Conselho tem poder, Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 87-100, 2003 91 quando a gente fala - olha menino, seu nome vai para o Conselho, ele dá uma maneirada no comportamento. (professora). No Conselho nós temos duas reuniões anuais, uma cada semestre, que é obrigatória. Sempre que há um assunto importante a ser discutido, então convoca uma reunião extraordinária.Enfim, é extremamente o que é legal [jurídico]. (professora). Fica explicito, na maioria das afirmações, que o Conselho de Escola é uma instância burocratizada da escola, que não atinge seus objetivos na sua abrangência, competência e poder de decisão; apontam também a dificuldade de participação dos professores e pais. As declarações das famílias, confirmam a posição dos professores, porém, acrescentam que a maioria desconhece a real competência do Conselho de Escola, conforme verifica-se a seguir: Participo do Conselho de Escola. Tem duas reuniões por ano, mas até agora não fui convocada para nenhuma. Entrei porque acho que a gente tem que estar presente na escola. (família). Depreende-se destas e demais declarações dos diversos segmentos da comunidade escolar, pontos que determinam questões observadas na prática dos Conselhos, sendo: • Não correspondem à totalidade de suas atribuições, centrando sua ação apenas em uma das suas funções, ou seja, aplicar penalidade disciplinares àqueles que estiverem sujeitos, especialmente os alunos; • Não há a socialização do conhecimento de ordem administrativa e pedagógica, portanto, a escola acaba monopolizando o poder decisão das questões relacionadas ao projeto pedagógico; • Não há representatividade efetiva dos conselheiros e sim posicionamentos pessoais, conseqüência da forma como ocorre o processo de eleição, fazendo dos Conselhos órgãos meramente formais e legais; • A postura do diretor é de importância capital, é ele quem dá a direção nas relações estabelecidas na escola, especialmente nas efetivadas no Conselho de Escola; • O exercício da participação de todos nas questões administrativas, financeiras, pedagógicas e sociais, conforme trata a própria Lei de 92 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 87-100, 2003 criação dos Conselhos, é minimizado, restringindo-se a ações extremistas como transferências e expulsões de alunos. A visão que a instituição escolar é uma entidade coletiva - situada num certo contexto social, com práticas, convicções e saberes que se entrelaçam numa história própria em permanente mudança e que precisa ser pensada coletivamente por toda comunidade escolar - ainda está muito restrita ao discurso de alguns teóricos e assessores curriculares, encontrando inúmeros obstáculos para a sua concretização. O mesmo ocorre com as Associações de Pais e Mestres das duas unidades de ensino pesquisadas, onde fica evidenciado o consenso que este é um órgão meramente articulador de recursos financeiros, funcionando precariamente, com a participação de poucos pais. A escola não funciona sem a Associação de Pais e Mestres. Nós dependemos de verbas para ter material para as crianças carentes. Então fazemos festas, vendemos doces para arrecadar dinheiro, porque a verba que o Estado manda é muito pouca. (professora). Outro espaço de participação importante nas escolas é o Grêmio Estudantil, que deveria existir com a finalidade de mobilizar nos alunos, a visão do coletivo, da organização, propiciando condições de incentivo aos estudos e estimulando o sentimento de pertença à instituição escolar, além de consubstanciar-se em um exercício de democracia, de participação. No entanto, percebe-se que a falta de participação, na verdade, serve à velha cultura dominante pautada no centralismo das decisões e na obediência incondicional das massas às normas e determinações que, além de raramente corresponderem aos seus interesses, necessidades e preocupações, ainda voltam-se a impedir sua participação consciente. (AMARO et al, 1997, p. 47). Ainda no que se refere à participação, todos os sujeitos envolvidos na comunidade escolar foram questionados sobre a relação estabelecida entre escola-família-comunidade, registrando posições ambíguas e diversos obstáculos, conforme exposto a seguir. Os educadores, no geral, consideram que há um bom relacionamento entre escola-família-comunidade, porém suas declarações apontam contradições: Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 87-100, 2003 93 A relação da escola com a comunidade é boa, os pais quando chamados, atendem. Há vários problemas na escola: pais presos, falta de segurança na escola, falta de transporte para os alunos, tudo a gente tem que conversar com os pais e com a comunidade. (diretora). De certa forma somos privilegiados neste ponto. O relacionamento com a família é bom... com as famílias que a gente consegue chegar... A gente consegue trazer os pais para conversar, embora eles venham com a idéia de que o seu filho é um anjinho. (vice-diretora). Um aspecto relevante a se considerar é que os educadores restringem a participação das famílias à sua presença nas reuniões de pais e mestres ou quando são chamadas em decorrência de algum problema com o seu filho. Em relação à família, percebe-se que ela precisa aprender a ocupar os espaços de participação com um caminho para a real democratização da escola e da sociedade. Por outro lado, os coordenadores pedagógicos, inspetoras de alunos, merendeiras e serventes deixam transparecer em suas declarações as dificuldades que existem na relação escola-família, havendo um jogo em que se culpa principalmente a família, demonstrando uma visão distorcida em relação a ela, desconectada de uma crítica da própria instituição escolar e do contexto vivenciado pelas famílias, conforme descrito a seguir: A relação escola-família é nota zero, a participação da família é nenhuma. É difícil um pai vir aqui, mesmo quando é chamado com reclamação do seu filho... A escola é aberta aos pais, eles é que não vem. (servente). A escola deveria ser mais rigorosa com os alunos. A família não participa, e às vezes os alunos não comunicam seus pais e outros são omissos mesmo. Tem aluno 'bandidinho' que os pais já não agüentam mais em casa e mandam para a escola e a gente tem que agüentar. (merendeira). Certos casos fica difícil, porque as mães pensam que a escola é responsável pela educação de seus filhos... Então elas confundem, transferindo totalmente a responsabilidade da educação de seus filhos para a escola. (inspetora de aluno). Quanto aos professores das escolas pesquisadas, prevalecem duas posições: aqueles que consideram que há um bom relacionamento da escola com a família-comunidade e os que expõem as contradições desta relação. 94 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 87-100, 2003 Estes últimos demonstram Ter uma visão mais crítica, analisando as determinações atreladas à família e outras à própria instituição escolar, conforme registra-se a seguir: A escola tem feito um trabalho legal, nos casos de mais necessidade, todos ajudam e a família é chamada para inteirarse do assunto, para saber como agir. (professora). Nós entendemos que a educação só se faz cm este conjunto: família-escola-sociedade juntos, valorizando o ser humano... (professora). Nossa comunidade é pouco participativa... os pais só vem quando solicitados, por atos de indisciplina dos seus filhos... (professora). Em casa os pais deveriam ver a tarefa dos filhos, eles não fazem sua obrigação de pais. (professora). Explicita-se na fala de alguns professores sua concepção em relação às famílias, cobrando das mesmas um modelo idealizado, desconsiderando as condições sócio-econômicas-culturais da população usuária da escola pública. Esta atitude reforça a subalternidade, ideologicamente passada para as famílias de classes populares, que aceitam passivamente as condições que lhes são impostas; não aprendendo a reivindicar, perpetuam a cultura da não participação. Verifica-se que os professores vêem as famílias de seus alunos como desestruturadas, desinteressadas, carentes e violentas. Segundo Szymanski (1996, p.35), um pouco de reflexão junto a esses professores eles se darão conta de que: • A família desestruturada não quer dizer mais do que uma família que se estrutura de forma diferente do modelo de família nuclear burguês; • A organização da família não é responsável por todo comportamento acadêmico de suas crianças; • Nem todas as famílias são violentas, muitas vezes o bater significa uma punição pelo baixo rendimento escolar; • As famílias também são vítimas de violência - exclusão social; • As famílias podem recorrer à violência contra a escola e a professora, reproduzindo o modelo de como são tratadas; • A condição de famílias trabalhadoras, a baixa escolaridade, dificultam o acompanhamento acadêmico de seus filhos. As afirmações aqui transcritas entre outros, conduzem a análise para a Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 87-100, 2003 95 compreensão das mediações existentes nesta relação escola-família-sociedade com o processo de democratização da escola pública. Se a finalidade maior da educação, é preparar o aluno para o exercício da cidadania, esse aprendizado deve ser iniciado no interior da própria escola, afastando concepções cristalizadas - que não respeitam a heterogeneidade cultural e social - e práticas institucionais que tutelam, manipulam e subalternizam os usuários, utilizada pelas camadas que representam o poder e que reproduzem práticas conservadoras. Por isso, a escola precisa ser garantida como um espaço de exercício interdisciplinar, interpretando e reinterpretando as relações internas e externas a ela - que constituem uma trama de mediações de vínculos e de relações sociais que dela emergem - e a ela voltam conforme seus objetivos. A discussão da democratização da escola pública passa ainda, necessariamente, pela análise do tema autonomia. A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional traz, pela primeira vez, a autonomia escolar e o projeto pedagógico vinculados num texto legal, estabelecendo que a elaboração e execução do mesmo é uma tarefa coletiva, devendo contar com a colaboração de todos segmentos envolvidos com a educação, inclusive a comunidade local. Desta forma reconhece que a instituição escolar é uma instituição social, uma entidade coletiva, situada num contexto determinado, e que, portanto, mobilizar o Conselho de Escola, a Associação de Pais e Mestres, o Grêmio Estudantil para a construção do projeto pedagógico e considerar a relevância de tudo que envolve a teia de relações escolares, é o caminho a ser percorrido pelas escolas. Para isso é essencial ter uma visão totalizante das relações sociais internas e externas a escola. A seguir verifica-se, na ótica das famílias esta relação escola-famíliasociedade, conforme suas declarações. É bom, tudo que a gente precisa, eles orientam e a gente é sempre bem recebido. (família). Comigo é bom, eu me dou bem; em relação a outras mães eu não sei. Todo dia eu converso com a professora e pergunto se meu filho fez bagunça, aí eu educo ele. Eu passo para a professora as suas dificuldades e ela ajuda meu filho. (família). Percebe-se nas respostas que as famílias não possuem, muitas vezes, indicadores que fundamentem com maior precisão a intensidade deste relacionamento, tendo uma visão individualizada do mesmo. 96 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 87-100, 2003 Por outro lado, uma minoria de mães, principalmente da escola de periferia pesquisada, revelou haver problemas neste relacionamento, contraditoriamente centrando-os às vezes na própria família ou na escola. Eu percebo que poucas famílias vêm de encontro a escola e quando vêm, é em massa para criticas. Não vêm dar sugestões boas, só criticar. Por isso acho que deveria Ter uma pessoa que faça os pais entenderem a importância da sua participação. (família). A relação está muito distante. Ao mesmo tempo que a escola quer a participação dos pais, vendo na TV propagandas do Projeto Amigos da Escola, não é para você dar palpites, da sugestões. O que eles querem é que os pais venham aqui para lavar o banheiro, consertar porta, pintar parede... essas coisas. (família). Os relatos destas mães, suscitam a reflexão sobre as contradições existentes na relação escola-família, marcada historicamente, pelo signo da oposição, onde a maior preocupação é buscar os culpados e não elucidar as alternativas de parceria. Embora as escolas desejem a participação da família e a família também almeje esta participação, nenhuma das partes tem claro o que busca com esta participação; muitas vezes, nem ao menos possuem clareza da concepção de participação que pauta suas ações. Na verdade, a escola não se percebe como limitadora desta participação, reproduzindo, muitas vezes, a ideologia da subordinação e alienação, próprias da ordem capitalista. Os que nela estão inseridos, pensam que a existência de canais de participação são o suficiente para que a participação ocorra como que por 'milagre'. Compreende-se que a participação é uma conquista que ocorre num processo contínuo em que o indivíduo vai adquirindo uma consciência crítica, percebendo as contradições presentes na sociedade, compreendendo que só de forma organizada pode conseguir melhorar as suas condições de vida e especificamente as condições de educação. É claro que a condição sine qua non para atingir esta meta é existir uma relação dialética que garanta a condição de sujeito tanto ao educador quanto ao educando e sua família. Portanto, as relações escola-família devem ser permeadas pelo respeito mútuo, tendo claramente delimitados os papéis e âmbitos de atuação de cada um. Neste sentido, a família e os educandos precisam de orientação para que possam trocar saberes de modo que estes façam emergir novos modelos Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 87-100, 2003 97 educativos, tanto na escola quanto na família, abertos à continua mudança. Paralelo a esta questão é importante salientar que a consolidação de uma gestão democrática, portanto participativa, na escola não é um processo espontâneo e fácil, é um processo de construção coletiva que se materializa por meio de avanços e retrocessos próprios de um processo de transformação, presentes nas ações e reflexões cotidianas dos envolvidos e na explicitação coletiva dos fundamentos da conquista. Neste sentido é de extrema relevância, para o sujeito administradoreducador, compreender a dimensão política da sua ação administrativa, respaldado na ação participativa, rompendo com a rotina alienada do mando pessoal e racionalizada da burocracia. Comprometido com uma ação educativa revolucionária que venha a servir de instrumento de superação da dominação e alienação. Desta forma, o administrador-educador, os educadores, a família e a própria comunidade precisa entender que a escola não é um órgão isolado do contexto global, portanto suas ações devem estar interligadas com o mundo ao qual ela pertence, ou seja, a realidade municipal, regional e estadual. Constata-se portanto, que a gestão democrática, nas relações estabelecidas com os educadores, família e comunidade, incidem entraves exógenos e endógenos à instituição escolar, que se projetam, principalmente, nas instâncias de poder decisório - Conselho de Escola, Associação de Pais e Mestres e Grêmio Estudantil. Marcados pela cultura da não-participação, traço histórico, ideologicamente imprimido aos brasileiros, os sujeitos envolvidos com a escola pública permanecem no imobilismo, cristalizando pré-concepções, fatalismo e omissões. Os profissionais da educação, a família e os alunos não se vêem como sujeitos capazes de interferir nos rumos da educação, raramente discutem a função social da escola e os papéis de cada segmento no processo educativo. A escola, família e comunidade possuem dificuldade de estabelecer uma relação de parceria, de co-responsabilidade no processo educativo dos alunos, apesar dos sujeitos pesquisados, de ambas as partes, afirmarem a imperiosa necessidade deste relacionamento. Sabe-se que a premissa que conduz a participação é a informação, o conhecimento mútuo. Isto é, a família precisa conhecer as diretrizes educacionais, o funcionamento da escola, e esta, por sua vez, deve organizar um diagnóstico do perfil dos alunos, família e comunidade, conhecendo as peculiaridades sócio-econômica-culturais desta comunidade, suas expectativas e aspirações, para efetivar a parceria. É preciso ainda, conectar esta realidade particular a um contexto mais amplo, visualizando os determinantes que incidem 98 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 87-100, 2003 sobre aquela comunidade, só assim será possível romper a alienação que a lógica capitalista impõe às pessoas e instituições, o que raramente acontece no âmbito da instituição escolar. Por outro lado, constata-se que apesar das dificuldades para que relações mais democráticas ocorram na escola, existe por parte da maioria dos sujeitos envolvidos neste contexto, o desejo para que ela se concretize, cunhando o primeiro passo para efetivar um projeto sócio-pedagógico democrático - a intencionalidade dos sujeitos. Considerações Finais A escola pública, no contexto atual, urge por modificações para atender as demandas advindas das alterações societárias, decorrentes do processo de globalização, bem como das expectativas e interesses dos educadores e dos educandos. Analisando a escola numa perspectiva dialética, constata-se a existência de um processo contraditório, ou seja: a escola não é absolutamente independente da sociedade capitalista, nem puro reflexo do sistema econômico, mas um palco de lutas. Coragem, ousadia, comprometimento com a educação não faltam a maioria dos educadores, mas considerando a complexidade das relações sociais e das questões sociais que perpassam a escola pública contemporânea, acredita-se que somente o esforço isolado dos seus interlocutores, não serão o suficiente para efetivar a função social e política da escola, ruma a sua democratização. O Serviço Social, cujo projeto ético-político estabelece a luta pela cidadania, democracia, equidade e justiça social, revela o ponto de conversão com a educação, na identidade social e política dos profissionais e nos objetivos pelos quais acreditam e lutam. Portanto, acredita-se que o Serviço Social pode contribuir com a educação, como um recurso a mais, no processo de democratização das relações internas e externas a escola pública, ampliando a participação dos sujeitos nela envolvidos. MARTINS, E. B. C. The process of participation in the public school: point of view of each member of the sochool community. Serviço Social & Realidade (Franca), v.12, n.1, p.87-100, 2003. • ABSTRACT: The present article offers a reflection about the process of participation of the school community on the differente levels of representation that exist in the public school; as well as the relation established between school-family-community, according to the point of view of each member of that school community. It is based on one of the aspects from the essay named. ‘Social work - mediation school and society’. • KEYWORDS: Education; participation;representation; public school. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 87-100, 2003 99 Referências Bibliográficas BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Secretaria de Estado da Educação. Brasília/DF: Abrelivros Associação Brasileira dos Editores de Livros, 1998. DEMO, P. Participação é Conquista. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1988. ______. Desafios modernos da Educação. São Paulo: Cortez, 1999. FLORES, D. G. Conselho de Escola: possibilidades e limites (um estudo de caso). Marília, 1996. 116p. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Estadual Paulista. MARTINS, E. B. C. Serviço Social: mediação escola e sociedade. Franca, 2001. 281p. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Faculdade de Serviço Social, Universidade Estadual Paulista - UNESP. PARO, V.H. A gestão da educação ante as exigências de qualidade e produtividade da escola pública. In: SILVA, L. H. A escola cidadã no contexto da globalização. 3.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1999. p. 5-25. SAVIANI, D. Escola e democracia. 4.ed., São Paulo: Cortez, 1995. SEVERINO, A. J. Educação, ideologia e contra-ideologia. São Paulo: EPU, 1986. SILVA, L. H. (org.). A escola cidadã no contexto da globalização. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1998. SZYMANSK, H. Trabalhando com famílias. São Paulo: IEE/PUC-CBIA, 1992. p. 40. 100 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 87-100, 2003 A FORMAÇÃO DE CONCEITOS, DE UMA PERSPECTIVA VYGOTSKIANA Djanira Soares de Oliveira e ALMEIDA* • RESUMO: Uma das indagações a serem feitas por qualquer pessoa que se proponha a analisar a alfabetização é a de saber para que alfabetizar. E, em decorrência, uma segunda se coloca: como alfabetizar? O presente estudo tem por objetivo apresentar estratégias de alfabetização a partir da construção de conceitos, da forma como propõe Vygotsky. A metodologia da pesquisa consistiu na observação das atividades de uma classe das professoras e dos alunos de duas séries iniciais (Grupo A e Grupo B) de Ciclo Básico, utilizando métodos diferentes, em escolas da rede pública, na cidade de Franca, São Paulo. Os momentos aqui relatados se referem à metodologia alternativa, sem uso de cartilha. O relato das crianças que construíam conceitos e a linguagem por elas produzida é o principal aspecto a ser demonstrado. A professora do Grupo A trabalhava com materiais alternativos. A linguagem posta na interação foi sempre observada por ser veículo e principal instrumento em todas as atividades. Tratou-se de pesquisa qualitativa, não participante. Ao longo do período de observação, foram acumuladas descrições das ações, pessoas em interação, fatos e manifestações de linguagem. A pesquisa ficou centralizada na busca do lingüístico, como são incentivados os diferentes usos da linguagem, as possíveis distorções na construção dos conceitos via instrumento verbal, o conhecimento do professor em relação às especificidades da língua portuguesa, as interferências nas atividades das crianças e em que medida essas se enquadram, ampliam ou cerceiam os sistemas de referência já construídos. A questão básica na formação de conceitos são os meios, as formas de pensamento pela quais uma operação é realizada numa situação concreta, conforme a idade da criança. Daí entender-se que, dependendo da idade, as crianças têm respostas diferentes para as mesmas questões. Foi possível verificar que o exercício mental na solução de problemas via linguagem leva ao pensamento conceitual; o ambiente pode retardá-lo ou estimular seu surgimento. Vygotsky chama a atenção para a necessidade de se diferenciar a atividade mental centrada na vida cotidiana e a elaboração sistematizada na escola. As brincadeiras de ‘O que é, o que é’ são um recurso interessante na caminhada das crianças em direção à formação de conceitos científicos. • PALAVRAS-CHAVE: Linguagem; Conceito; Mediação. Introdução O presente estudo tem por objetivo discutir estratégias de alfabetização a partir da construção de conceitos, da forma como propõem as observações do psicólogo russo L. S. Vygotsky e colaboradores. Pretende relatar pesquisa efetuada pela autora, com observação das atividades de duas classes de séries iniciais de Ciclo Básico, em que foram utilizados métodos diferentes de ensino, Docente do Departamento de Educação, Ciências Sociais e Política Internacional da UNESP – Franca/SP. * Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 101-110, 2003 101 em escolas da rede pública, na cidade de Franca, estado de São Paulo. No registro das observações, levantaram-se as seguintes situações de uso da linguagem: Situação 1: Professora: Onde fica Ribeirão Preto? Aluno D: Onde minha avó mora. Situação 2: Professora: Quanto são quarenta e seis mais vinte e dois? Aluno E: Quarenta e seis mais vinte e dois dá seis e oito. Situação 3: Professora: Por que será que Adalberto é o número um? Aluno A: Porque ele é piquinininho. Aluno B: Mas eu também sou piquinininho e não sou o número um. Aluno C: Porque o nome dele começa com a letra A. Professora: Porque a lista de chamada é pela ordem alfabética. A seguir, a professora escreve o nome das três primeiras crianças na lousa e explica o conceito de ordem alfabética. Situação 4: O aluno Sílvio propõe adivinhações para a classe, lendo-as na revista infantil Amiguinho. Outros colegas participam, com perguntas de seu próprio repertório. É a vez da Miriam: O que é, o que é? Anda, mas não tem pé, fala, mas não tem boca. Como as crianças não adivinharam, a professora interfere, escrevendo na lousa “anda, fala...” Ivo quer saber: De que cor? Miriam: É branco. A professora solicita que fale cada um de uma vez e as crianças arriscam: livro, chinelo, avô. Ivo novamente: É redondo? Miriam: É quadrado. Tem braço? Não é bicho. Tem bico? Não. Todo mundo tem? Quase. Miriam acrescenta: Nós recebe ela em casa. E os colegas: Carta! Situação 5: Fernanda pergunta: O que é, o que é? Entra rindo e sai chorando? E começam as tentativas e perguntas: Cachorro. Fernanda: Não. Gato. Não. É de plástico. Que tamanho? Tem desse tamanho (a criança faz gestos com as mãos), tem desse (menor). Picolé. Não! Sorvete. Não! Caixa de som. Não! É quadrado ou redondo? Começa grosso e vai afinando. 102 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 101-110, 2003 A professora intervém: Fernanda, dá mais uma dica. Ele tem um ferrinho para segurar. E continuam os colegas: Armário. A professora também participa: A gente tem que comprar? Fernanda: Tem! Só a mãe que usa? Tem quem quer. Uma criança: Rádio. E a resposta de Fernanda: Não! Para terminar, Fernanda explica: É balde. Ele entra sem água no tanque e depois, põe água dentro, ele sai chorando. (EEPG Adalgisa de São José Gualtieri, C. B. F., 1991). Os exemplos acima permitem algumas reflexões, sobre a formação de conceitos, mediatizados por palavras, no cotidiano escolar. Os momentos aqui relatados se referem à metodologia alternativa, sem uso de cartilha. O relato das crianças que construíam conceitos, a interação entre elas e a professora e a linguagem por elas produzida é o principal aspecto a ser demonstrado. Segundo (LURIA, 1987, p. 32), a principal função da palavra é exercer um papel designativo, ou seja, quando empregada na função referencial da linguagem. A construção da linguagem deu-se por etapas, na história social do homem; primeiro associada ao trabalho, depois passou a ser empregada como suporte da ação e se transformou em instrumento do conhecimento humano. Com o tempo o homem pôde construir um sistema de códigos que lhe permitisse traduzir as ações e as relações entre elas e individualizar as características dos objetos, superar os limites da própria experiência e prever novas possibilidades de ação. Considerada em sua dimensão social escolar, a atividade lingüística de adultos e crianças pode mediar a organização de processos mentais superiores, de forma a transformar experiências concretas em elaborações conceituais sistematizadas. Os diálogos acima relatados são parte de interações ocorridas no cotidiano das crianças, em sala de aula. O elemento fundamental da linguagem, segundo Vygotsky, é a palavra, porque ela tem um peso semântico considerável: designa as coisas, codifica a experiência, denomina as ações e suas relações, descreve situações, reúne elementos em sistemas abrangentes. O tema principal nos estudos de Vygotsky é a dimensão social do desenvolvimento humano: o indivíduo só se constrói como tal, se estiver em relação com o outro, numa interação quase sempre mediada pela palavra. Na escola, essa mediação se produz pela participação do adulto. Entre outras concepções acerca do processo de desenvolvimento se encontra a questão da formação de conceitos. Esta, por sua vez, remete as relações entre pensamento e linguagem, a questão da mediação cultural, ao Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 101-110, 2003 103 processo de internalização e ao papel da escola como transmissora oficial de conhecimentos, diferente dos apreendidos na vida cotidiana. O estudo da formação de conceitos na maneira tradicional tem partido da definição verbal já produzida. Esse método é inadequado porque trabalha o produto e não o processo e também porque valoriza as palavras, não a elaboração mental que as produziu (VYGOTSKY, 1987, p. 45). Como pudemos observar, a criança não traz prontos os conceitos, mesmo os mais simples; cabe a escola ampliar os sistemas de referência trazidos de experiências anteriores com a linguagem. Estudos mais recentes contestam que a formação de conceitos se dê de maneira associativa, de forma a associar palavras e objetos. Fica evidenciado que se trata de um processo criativo e não mecânico, passivo. Pesquisas também tem revelado que crianças diferem entre si (Situação 1) e de adolescentes e adultos na forma como suas mentes trabalham na solução de problemas (VYGOTSKY, 1987, p. 47). Piaget também propôs estágios de desenvolvimento para crianças e adolescentes: período pré-operatório, de 2 a 7 anos, operações concretas de 7 a 12 anos e operações formais de 12 anos em diante (PIAGET,1969, p. 13). A questão básica na formação de conceitos por diferentes idades não é a compreensão do problema proposto em uma situação concreta, mas os meios, as formas de pensamento pelas quais uma operação é realizada. Daí entenderse que, dependendo da idade, as crianças têm respostas diferentes para as mesmas questões (Situações 1 e 2). Todas as funções psíquicas superiores são processos mediados, e os signos constituem meio básico para dominálas. O signo mediador e incorporado a sua estrutura como uma parte indispensável, na verdade a parte central do processo como um todo. Na formação de conceitos, esse signo e a palavra, e, posteriormente, torna-se o seu símbolo (VYGOTSKY, 1987, p. 48). O exercício mental na solução de problemas leva ao surgimento do pensamento conceitual. O meio ambiente não é suficiente, mas pode estimular ou retardar o surgimento do pensamento conceitual. A criança, no início, tem dificuldade para operar com conceitos abstratos e para generalizar a partir de fatos de sua experiência ou de outros. Por isso, muitas vezes, constrói hipóteses inadequadas de fatos de sua experiência e de outros, a partir dos elementos que possui (Situação 3). Tais hipóteses, uma vez diagnosticadas, devem ser trabalhadas a partir de dados concretos. Os conceitos matemáticos de agrupamentos, valor absoluto e relativo merecem tratamento especial (Situação 2). 104 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 101-110, 2003 Todos os processos de abstração ou de generalização, conceitos fundamentais dentro dos currículos escolares, prestam-se à reflexão e ao estabelecimento de relações, mediadas pela linguagem. Para ser denominado carta (Situação 4), o objeto deve ser uma mensagem escrita e endereçada, de um emissor a um destinatário. Alguns dados do objeto são comuns a outros, mas há elementos que o individualizam. Da mesma forma, chama-se balde (Situação 5) a um vaso de metal, de madeira ou plástico, com alça, para tirar água. Uma carta, um bilhete e um telegrama têm características comuns, que lhes permitem ser chamados de mensagens; um balde, um prato e uma colher têm traços semânticos que lhes permitem ser classificados como utensílios domésticos. Os conceitos são construções culturais internalizadas pelos indivíduos ao longo de um processo de desenvolvimento. Portanto, dependem dos grupos culturais que os construíram, na medida em que os usuários desse grupo definem os atributos pertinentes, necessários e suficientes para definir os significados. Por isso os conceitos se modificam de grupo para grupo e, no mesmo indivíduo, dependendo da fase do desenvolvimento. De acordo com as relações que os usuários estabelecem com o geral, por meio da palavra, o significado das palavras muda; mas, a trajetória de um conceito irá depender sempre do significado das palavras na linguagem dos adultos (Situação 3). Os pequenos usuários organizam e fortalecem sua atividade mental pela elaboração da linguagem do adulto. Portanto, a mediação sistemática da escola permite a criança operar com conceitos e praticar o pensamento conceitual de forma consciente e deliberada. (VYGOTSKY, 1987, p. 51) relata experiências com crianças e jovens em sua trajetória até a formação de conceitos. Em todas as fases a ajuda da linguagem é fundamental. No exercício de relacionar palavras e objetos, a criança constrói um amontoado de objetos não relacionados entre si, o que é chamado de sincretismo, de relações confusas e subjetivas entre os mesmos. Num segundo nível, a criança já caminha para o pensamento objetivo, que Vygotsky chama “pensamento por complexos”. Ela agrupa os objetos por “famílias”, identificando relações concretas entre os mesmos, mas ainda não o faz no plano lógico e abstrato. É capaz de organizar por associações, coleções, blocos em cadeia, generalizações. A última etapa dessa fase é quando a criança já é capaz de produzir um pseudoconceito, isto é, formar, pela semelhança concreta visível, “um complexo associativo restrito a um determinado tipo de conexão perceptual”. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 101-110, 2003 105 Os pseudoconceitos se baseiam nas generalizações que as crianças fazem a respeito das palavras, fora da influência dos adultos. Esta atrapalha o pensamento próprio da criança nessa idade. É importante, pedagogicamente, não apresentar o significado acabado das palavras para a criança, mas deixá-la utilizar os próprios canais. A transição do pensamento por complexos para o pensamento por conceitos não é percebida pela criança porque os seus pseudoconceitos já coincidem em conteúdo, com os conceitos do adulto (VYGOTSKY, 1987, p. 59). Essa equivalência possibilita a consciência clara das operações que realiza. A terceira fase do processo de formação de conceitos é caracterizada experimentalmente pelo agrupamento de objetos por um único atributo e se chama fase dos conceitos potenciais. A totalidade dos traços foi destruída pela sua abstração, criando-se a possibilidade de unificar os traços em uma base diferente (VYGOTSKY, 1987, p. 68; SMOLKA; GOES, 1993, p. 122). O uso das palavras é o recurso básico na formação de conceito; todo o processo que vai desde o sincretismo, o conceito por complexos, conceitos potenciais até conceitos propriamente ditos, é mediado pelo sistema lingüístico e a palavra ainda é fundamental na formação dos verdadeiros conceitos, resultado final de todo esse caminho (Situações 4 e 5). Conceitos espontâneos e científicos se interpenetram e carecem de uma definição verbal, necessitam de aplicação em operações para serem firmados e poderiam servir de instrumentos na construção de conceitos mais elaborados. O conceito tempo histórico só pode começar a se desenvolver quando os conceitos espontâneos de passado e presente estiverem suficientemente estabelecidos. As narrativas e suas estruturas marcadas se prestam como auxiliares nessa tarefa. As formas verbais “aqui” e “lá”, “ontem” e “hoje” são signos de localização geográfica e temporal, abstrações ou generalizações elementares dos conceitos de espaço e tempo. Vygotsky chama a atenção para a necessidade de se diferenciar a atividade mental centrada sobre a vida cotidiana e a elaboração sistematizada na escola (SMOLKA; GÓES, 1993). As brincadeiras de “O que é, o que é?”, como referido anteriormente, são um recurso interessante na caminhada das crianças em direção à formação de conceitos científicos. Piaget, que é retomado por Vygotsky, mostra a diferença entre conceitos científicos e cotidianos com o seguinte exemplo: O pesquisador perguntou a um grupo de crianças de 7 a 8 anos, o significado da palavra porque na frase “Amanhã não vou à escola porque estou doente”. As crianças não compreenderam que a pergunta não era sobre o conteúdo semântico da proposição, mas sobre a conexão entre os fatos doença e falta às aulas. 106 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 101-110, 2003 A criança aos poucos vai desenvolvendo a capacidade de verbalizar seus processos lingüísticos interiores: É válido afirmar que a criança inicialmente não tem percepção da atividade da mente, isto é, não tem consciência de sua função, não tem controle sobre a mesma. Na segunda infância ela já é capaz de perceber seus próprios processos psíquicos como processos significativos e é capaz de verbalizá-los (VYGOTSKY, 1987, p. 79). O aprendizado escolar torna a criança capaz de operações, como lembrança ou imaginação, e a torna também capaz de dominá-las. Daí que se percebe a diferença entre conceitos espontâneos (a criança está centrada no objeto ao qual o conceito se refere e também no ato do pensamento em si, Situação 1). Na realidade, a inter-relação entre conceitos científicos e espontâneos está na base da relação entre o aprendizado escolar e o desenvolvimento mental da criança. As exigências da escola com a memorização deixam passar a oportunidade de criar nas crianças o hábito de pensar logicamente. O momento da fala infantil poderia ser aproveitado, no exemplo, para situar espacio-temporalmente a cidade de Ribeirão Preto. É comum crianças pré-escolares, perguntadas sobre o que é um cachorro, dizerem que se trata de um animal, que “o cachorro morde”, ou “o cachorro cuida da casa”, sempre referindo-se a uma situação imediata. Mesmo neles já se manifesta a operação de introdução do objeto em uma categoria determinada, quando dizem “é um animal”. A referência do objeto dado a uma categoria determinada ou a introdução deste em um determinado sistema de conceitos predomina em escolares de mais idade. A determinação do significado de uma palavra começa a se dar pela introdução da mesma no sistema de relações lógico-verbais: “O que é EUA?” “É um país”. (LURIA, 1987, p. 60). Ou, “O que é Ribeirão Preto?” “É uma cidade”. É importante refletir sobre as interações sociais escolarizadas e sua influência na formação de conceitos científicos. Na realidade, nem sempre a escola opera com estes últimos, nem cria situações que oportunizam a aquisição, pela criança, de conhecimentos sistematizados. Os conceitos sistematizados (científicos, na expressão de Vygotsky) são parte de sistemas explicativos globais, organizados dentro de uma lógica socialmente construída e reconhecida como legítima, que procura garantir-lhes coerência interna (SMOLKA; GÓES, 1993, p.124). Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 101-110, 2003 107 Por trabalhar o conhecimento de forma redutora e generalizante, a escola desempenha um papel decisivo na elaboração conceitual pela criança nos rudimentos da sistematização. Daí que o ensino de línguas deve operar com a língua antes de trabalhar os fatos gramaticais. A criança necessita da palavra para operar com os conceitos, lingüísticos e não lingüísticos, porque um conceito conhecido ajuda a compreender outros conceitos ainda não conhecidos. O exercício da comparação de objetos (LURIA, 1987, p. 61), em princípio um método da psicologia, de larga aplicação pedagógica, consiste em se apresentar ao sujeito duas palavras que designam determinados objetos e pedir que diga o que há de comum entre eles. A dificuldade do exercício consiste em apresentar palavras que representam objetos da mesma categoria (comparar) ou de categorias distintas (diferenciar). A aproximação de objetos muito diferenciados (ex: rádio e balde; máquina de escrever e lápis) exige um nível maior de abstração. É tarefa mais fácil nomear as características de cada um, sem comparálos; ainda é mais fácil mostrar diferenças do que mostrar o que há de comum entre eles. O pensamento concreto-imediato interfere na operação de diferenciação, enquanto a generalização depende da introdução do objeto em uma categoria abstrata. Um desenvolvimento do método da comparação e diferenciação está na classificação, que consiste em escolher alguns objetos entre muitos que se incluam numa mesma categoria: forma, cor, tamanho. Em uma série de investigações especiais, demonstrou-se que as pessoas que vivem em condições de muito baixo nível sócioeconômico e no analfabetismo utilizam predominantemente a classificação de objetos por inclusão em situações realconcretas... Somente com a alfabetização, com a passagem a formas sociais complexas de produção, estes sujeitos passam a dominar facilmente a forma categorial de generalização dos objetos (LURIA, 1987, p. 67). A criança tem dificuldade para tomar consciência da estrutura verbal da linguagem. O fato de ela adquirir desde cedo um extenso vocabulário não significa que esteja consciente da palavra como unidade isolada da linguagem (LURIA, 1987, p. 73). Primeiro ela toma consciência das palavras concretas (substantivos), depois das que indicam ações e qualidades. Ainda mais difícil é dar-se conta das palavras auxiliares como preposições e conjunções. Acrescentem-se as unidades não significativas, como sílabas e letras. As junções e segmentações inadequadas na escrita, como amenina, a-limentar, depois, têm a ver com esta dificuldade. 108 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 101-110, 2003 Dos dados levantados na pesquisa e aqui referidos, podem ser inferidas conclusões a respeito da formação de conceitos em crianças em fase inicial de alfabetização. As considerações a respeito não alcançaram toda a trajetória da construção, por terem sido um recorte no tempo. O trabalho permanente do professor pode alcançar resultados satisfatórios. À psicolingüística cabe estudar as dificuldades na construção e análise da linguagem e à didática descobrir recursos para conduzir o processo de tomada de consciência das diversas formas de composição verbal da mesma linguagem. ALMEIDA, D. S. O. The formation of concepts, based on a Vygotsky perspective. Serviço Social & Realidade (Franca), v.12, n.1, p. 101-110, 2003. • ABSTRACT: One of the questions that must be done for any person that has as proposal to analyze the teaching of alphabet is why teaching the alphabet. And, also, how teaching the alphabet. The present essay has as objective presents some strategies to the teaching of alphabet with effect from the construction of concepts, go upon the proposals of Vygotsky. The basic question in the formation of concepts are the ways, the forms to think and achieve an operation with the concrete context, according to the different children ages. Then, understand that, according the age, children have different answers to the same questions. We have checked that the mental exercise in the resolution of problem through the language conduces to the conceptual thinking; the environment can retard or incite its appearance. Vygotsky cry out the attention to the necessary difference between the mental activity centered in the quotidian life and the systematized elaboration of school. • KEYWORDS: Language; Concept; Mediation. Referências Bibliográficas ALMEIDA, Djanira S. O. Ensinando e aprendendo a escrita: momentos iniciais. Franca: UNESP-FHDSS, 2002. (Dissertações e Teses, 4). CASTORINA, José Antonio. Piaget e Vygotsky: novos argumentos para uma controvérsia. São Paulo: Cortez, n. 105, p. 161-183, nov.1998. DANTZIG, Tobias. Número: A linguagem da ciência. Trad. Sérgio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. GÓES, Maria Cecília. A natureza social do desenvolvimento psicológico. Cadernos CEDES, São Paulo, n. 24, p. 17-24, 1991. LA TAILLE, Yves de; OLIVEIRA, Marta Kohl de; DANTAS, Heloysa. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. 3.ed. São Paulo: Summus, 1992. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 101-110, 2003 109 LURIA, A. R. Pensamento e linguagem. Trad. Diana M. 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A abordagem tem a intenção de levar à reflexão, é menos explicativa e mais polêmica, sugerindo questões que possibilitem um segundo momento de aprofundamento e discussão. Nessa abordagem, o caminho investigativo sugere uma reflexão sobre o conceito “sem-terra”, transpassando o campo semântico e atingindo o ser humano, indivíduo inserido no contexto político atual, subordinado a uma economia globalizante, cujos valores éticos são determinados pelo mercado capitalista. • PALAVRAS-CHAVE: Luta pela terra; Assentamento/Sem-terra; Carta da Terra; Cidadania; Globalização; Estrutura fundiária; Questão Agrária; Ética. Introdução Até que ponto a identidade de um homem é determinada pela terra? Que tipo de raiz, sólida e inquebrável, estrutura um corpo físico a ponto de confundirse com seu próprio espírito? As marcas da partida, o ciclo interminável da busca e da chegada ao mesmo ponto do qual se partiu, a expressão calada e submissa, o “sertanejo forte” ou o Conselheiro determinado: todos esses tipos e caminhos já foram traçados, literariamente, pelos poetas e porta-vozes da camada oprimida. De Canudos a Vidas Secas, de Severino à Carta da Terra, a luta se repete. O poder abre as portas da masmorra e encerra as bocas pequenas e as barrigas vazias; e a caminhada se perpetua, terminando onde começou. Os acontecimentos históricos também se repetem, do feudo e da Docente do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – UNESP – Franca/SP. ** Doutoranda em Serviço Social do Programa de Pós-Graduação – UNESP – Franca/SP. * Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 111-128, 2003 111 escravidão negra, à exploração não necessariamente negra, mas necessariamente humana. No olhar incipiente, nas palavras ansiosamente humildes – quem fala bonito é doutor! – o “dono-de-nada” sobrevive e espera o seu quinhão na grandeza imensurável de Deus: a Terra. A luta pela terra já carrega consigo muitas mortes. Quando não é a aridez da seca, são as disputas com grileiros e jagunços, ou são as precárias condições de vida no campo, ou são os desmandos de algum senhor amparado pelas “vistas grossas” de “doutores”, ou pelos acordos coletivos. A trajetória empreendida pelo camponês que se junta a outros camponeses, empreendendo uma forma de vida e de luta em comum, constituem-no um indivíduo coletivo que não só coloca em prática a experiência adquirida no campo, na agricultura, mas também que atua como sujeito de sua transformação, lutando pela terra, e construindo uma identidade política e econômica. Na busca pela terra como garantia de sobrevivência, a produção agrícola torna-se o objetivo, todavia, além disso, os grupos de camponeses buscam a produção para a vida. Reconhecendo que o mercado não é garantia de terra e que não é através de produção para o mercado capitalista e da eficiência econômica que irão garantir a sua sobrevivência, partem acirrados na conquista de seus direitos como cidadãos da terra. O Círculo Vicioso: A Engrenagem Capitalista Desde a metade do século XX a agricultura foi apontada como obstáculo ao progresso da industrialização. A indústria em ascensão rende graças ao soberano, o deus capital e, em seu nome, vai invadindo o campo. Enquanto diminui o número de pessoas morando e trabalhando na lavoura, aumenta o número de desempregados na cidade. Os recursos tecnológicos introduzidos pela indústria prometem mais conforto e produtividade, com menos esforço. No entanto, a agricultura continua à mercê da mecanização, como conceito apropriado a mundo subdesenvolvido. Nos anos 50, a agricultura era vista como um entrave à industrialização porque não aumentaria a produtividade dos trabalhadores, não alcançaria a demanda de alimentos e matérias-primas solicitados pela indústria e não se elevariam os níveis de renda da propriedade agrícola. Assim, não se constituiria um mercado consumidor capaz de absorver a produção industrial crescente. Todas essas impressões se tornaram apenas falácias maldosas, à medida que se expande a fronteira agrícola, acelera-se a urbanização e industrializa-se a agricultura, criando-se, de modo simultâneo, a oferta e o mercado consumidor necessário à industrialização. De acordo com (GRAZIANO SILVA, 1981, p. 100), a reforma agrária que aparecia nos anos 50 representava o remédio para a crise 112 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 111-128, 2003 agrária e para a crise agrícola à medida que, visando alterar a estrutura de posse e uso da terra, pudesse contribuir para o rápido desenvolvimento da produção agrícola: Pretendia-se, assim, exorcizar os fantasmas dos ‘restos semifeudais’ escondidos nos latifúndios que atormentavam a vida dos trabalhadores rurais. A reforma agrária, entregando esses latifúndios para os camponeses, suprimiria as ‘relações pré-capitalistas’ (isto é, resolveria a questão agrária) e faria aumentar a produção, uma vez que colocaria as terras ociosas dos latifúndios em cultivo (isto é, resolveria a questão agrícola). (parênteses do autor). Essa reforma não foi feita e o círculo se fecha novamente, no mesmo ponto em que teve início. O processo de desenvolvimento capitalista no Brasil criou riqueza em poucas mãos e miséria em muitas. No sistema capitalista o que interessa em um pedaço de terra é que produza lucros, sejam estes auferidos ou não da produtividade da terra. Mesmo nesse contexto, estrutura agrícola brasileira não foi empecilho ao processo de industrialização do país. Ao contrário, conseguiram-se grandes avanços na solução de questões agrícolas, ligadas à produção, logrando, no entanto, um hiato cada vez maior em relação à questão agrária, ligada à miséria da população rural brasileira. Em toda a evolução histórica da economia, um braço se fez presente como força motriz da produção, mas sempre à margem dos benefícios mais elementares do progresso: o braço da massa trabalhadora. A reforma agrária que ressurge, em mais uma partida, é a de ser uma resolução para a crise agrária brasileira e não para a crise agrícola. A política do governo autoritário no setor agrário desenvolve-se à custa do estímulo ao êxodo rural, do gasto exorbitante com defensivos agrícolas que agridem os rios e reduzem a oferta de trabalho aos agricultores assalariados. Por outro lado, a implantação de indústrias modernas provocou a expansão da monocultura (cana, por exemplo), estimulou a expansão de gramíneas em áreas pecuárias de clima seco e possibilitou a concentração da renda, sem qualquer política de desenvolvimento de formas cooperativas. O Estatuto da Terra é violado de forma cruel; posseiros e indígenas que ocupavam áreas subpovoadas são expropriados, pequenos produtores se convertem em assalariados e se dedicam a culturas de subsistência, enquanto, a seu lado, crescem o latifúndio e as usinas hidrelétricas, cada vez mais distantes do ser humano. Afirma (ANDRADE, 1987, p. 10): Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 111-128, 2003 113 Para acalmar o movimento [o golpe de 64], o governo militar promulgou o Estatuto da Terra, apresentando-o como instrumento capaz de fazer a reforma agrária tão aspirada, instrumento que foi utilizado, durante vinte anos de autoritarismo, não para atenuar as grandes desigualdades no campo, mas para consolidar a grande propriedade capitalista, ampliando e protegendo o latifúndio. O milagre brasileiro se esvazia, camponeses se movimentam, o autoritarismo político dá lugar à democracia e, com ela, afirma-se a necessidade da reforma agrária. Os grandes proprietários e tecnocratas continuam a enxergar o homem como incapaz e incompetente para tomar decisões. Propostas ministeriais e da Igreja são descartadas e grandes áreas continuam a ser ocupadas por latifúndios pertencentes a empresas nacionais e estrangeiras. Os conflitos de terra se exacerbam e os camponeses, esfomeados, ocupam áreas de propriedades não aproveitadas, ociosas e deixadas pelos latifundiários como reserva de valor. O pano de fundo é negro e, no palco, muito vermelho... da morte, “que acontece em vida”.1 De acordo com (GRAZIANO SILVA, 1981, p. 102), o processo de desenvolvimento capitalista no Brasil foi o responsável pelo quadro que hoje se verifica: a riqueza concentrada nas mãos de poucos e a miséria generalizada, embora muita gente acreditasse que esse processo fosse representar a redenção da burguesia nacional e a dos trabalhadores brasileiros em geral: Por isso, as alianças propostas eram as dos trabalhadores (rurais e urbanos) com a burguesia nacional contra seus inimigos comuns: o latifúndio e o imperialismo. Hoje, o latifúndio se aburguesou e se internacionalizou. Não são mais apenas os velhos coronéis do Nordeste. Os grandes latifundiários, hoje, são também os bancos e as grandes multinacionais: O BRADESCO, A Volkswagen, a Jarí... O paradoxo: No Brasil, um país abundante em terra, falta terra – só pode ser entendido por conta da má distribuição de terra. (SILVEIRA, 1998, p. 156) reafirma o cenário pleno de contradições que o Brasil apresenta sendo “o décimo país mais rico do mundo e o segundo na concentração da terra, perdendo apenas para o Paraguai e, seguido por Angola”; mais uma vez, a certeza de que o paradoxo só se explica pela má distribuição de terra, “um dos principais fatores de violência e dos conflitos fundiários”. Prossegue o autor: “Os conflitos no meio rural têm aumentado, não só em termos do número de assassinatos, como 1 João Cabral de Melo Neto In: Morte e vida Severina. 114 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 111-128, 2003 também quanto ao número de pessoas neles envolvidas, e a tradicional impunidade dos culpados”. Continuando nesse raciocínio dedutivo, a premissa que segue torna-se evidentemente verdadeira: se de um lado existem terras em abundância, também são abundantes as leis que amparam medidas governamentais, as idéias, as sugestões e as promessas tão largamente apregoadas. Por outro, também são abundantes as contradições, as ambigüidades, os mal-entendidos, o abuso do poder, os inadequados tributos e até mesmo a desordenada invasão de propriedades públicas e privadas. Ninguém consegue provar ao caráter especulativo de muitas terras, ninguém consegue corrigir distorções na estrutura agrária e na distribuição de renda nacional. (MARTINEZ, 1991, p. 25) afirma que, a reforma agrária que verdadeiramente se acha em curso é a do grande capitalismo monopolista, baseado na posse da terra e das colheitas por poucos empresários que detêm o poder de dispor delas como for melhor para o rendimento dos capitais. Ainda de acordo com o autor, a empresa rural parece ser a forma principal de organização do capital e do trabalho, pelo menos do ponto de vista tecnológico e jurídico. Na medida em que as forças políticas pressionam em favor de uma reforma agrária popular e ampla, mais o impulso parece ser dado no sentido de objetivos capitalistas. Conclui o autor p. 55: A linha mestra da economia agrícola tende a ser, cada vez mais, a empresa rural mecanizada, eletrificada e articulada com outras empresas, em sistemas fechados e financiamento, abastecimento, processamento e industrialização ou comercialização da produção. O quadro continua se repetindo na História, desde o período colonial. A política de incentivos fiscais às grandes empresas costurou o viés do “novo” a esse velho emaranhado de retalhos e o resultado é que a manta tecida continua a ser insuficiente para abrigar pequenos proprietários, indígenas e pequenos posseiros que são expulsos ao relento. A justiça é lenta, os processos de documentação da terra são caros, por vezes ininteligíveis ao camponês e, sem conseguir fazer valer seus direitos de posse perante a justiça, o grupo de excluídos, parte - como vítima submissa ou resistente - mas parte, em busca de outras terras, de novo abrigo. Hoje, a reforma agrária emergente como solução para a crise agrária, é uma voz gritante do trabalhador rural, sugado pela penetração parasitária de uma face capitalista que atinge a toda a sociedade brasileira. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 111-128, 2003 115 A Reforma da Engrenagem: Reconstrução ou Remendo? O espaço histórico-temporal, os movimentos pela posse da terra consolidaram-se como sinônimo de ocupação de terra, anulando quaisquer outras ações sociais realizadas em acampamentos e assentamentos. Essa consolidação semântica estreitou o campo das ações das lutas dos sem-terra, já limitados pelas normas legais e pelos “pacotes da reforma agrária” implantados pelo governo. Como afirma Navarro, in: (COSTA & SANTOS 1998, p. 183): “Este é um claro limite para o MST, pois ao não se alterar mais ambiciosamente, poderá defrontar-se em breve com barreiras de difícil transposição política”. Os movimentos pela conquista da terra assustam às elites que detêm o poder e sua rejeição constitui-se numa ação política de grande significado. O assentamento e, evidentemente, a reforma agrária, representam o desenvolvimento de forças produtivas, aumento de produção e acúmulo de lucros e rendas. No entanto, esse elemento estimulador do desenvolvimento econômico não é capaz de mobilizar ao proprietário interessado na terra apenas como reserva de valor, num modo de produção capitalista cuja apropriação da terra significa menos-processo de trabalho e mais-valia social. Transformada em mercadoria, a terra permite ao proprietário o acúmulo de capital pela posse da terra, o que torna a reforma agrária, conforme afirma (FABRINI, 2001, p. 20): “um instrumento de questionamento da ordem oligárquica e capitalista no campo”. Agravando esse quadro, não há manifestações dos responsáveis pelo governo que apontam para uma reforma agrária como uma estratégia viável de geração de emprego e renda. Num país onde há tantas extensões de terra não aproveitadas, um programa de reforma agrária deveria premiar a possibilidade de tornar produtivas essas terras, integrando social e economicamente as famílias rurais. No entanto, a instalação e consolidação de assentamentos têm sido feitas de forma desigual em relação aos prazos de estruturação da produção em condições sustentáveis. Embasa essas palavras, a afirmação de (SILVEIRA, 1998, p. 157): “Violência e conflitos não são aspectos isolados, mas integrantes ativos da questão nacional como um todo. Portanto estão ligados diretamente à ação ou à omissão do Estado”. Muitas áreas apresentam projetos de assentamento com muitos lotes utilizados como chácaras de lazer, estabelecimentos comerciais, enfim, com elevada “urbanização”, sob o argumento de que a modernização das técnicas de produção no campo e a queda dos rendimentos provenientes da agricultura têm levado à mudança de perfil de ocupação e uso da terra nos últimos anos. De acordo com Fabrini, muitos estudiosos defendem atividades não agrícolas a serem desenvolvidas por trabalhadores do campo, como abertura de um novo campo de atividade profissional. Dessa forma, a terra deixa de ser o elemento 116 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 111-128, 2003 principal e essencial da produção no campo, cedendo sua prioridade para atividades não agrícolas, que não precisam da terra para sobreviver. Afirma o autor (2001, p. 97): Evidentemente, a idéia de retirar a importância da terra como um meio de produção, está comprometida com o interesse dos grandes proprietários de terra. Não sendo importante na produção agrícola, a terra poderia continuar concentrada nas mãos da classe latifundiária. A reforma agrária, com esse tipo de objetivo, contemplaria a concentração de terra nas mãos de poucos, mantendo as classes dirigentes e os latifundiários livres de qualquer ameaça e desvinculando os movimentos pela posse da terra de seu objetivo único: a terra. Conforme (FABRINI, 2001, p. 98), é evidente que os agricultores e assentados, inseridos na dinâmica capitalista macroeconômica, são impelidos para fora das atividades agrícolas para garantir sua subsistência, mas, pelas próprias pesquisas do autor, apenas 10% das famílias consideram as atividades agrícolas como sua principal fonte de renda, contra 90% cuja renda das famílias assentadas se constrói prioritariamente de atividades agrícolas, o que prova a evidência de que toda mobilização dos “trabalhadores excluídos é para entrar na terra, ou seja, querem e exigem o seu direito de ser agricultor assentado”. Ora, a prática da reforma agrária em nosso país mantém-se fundamentada na iniciativa e no poder do governo federal. A ação do Incra, na tutela efetiva da vida dos assentamentos, é definida por LINS, In: COSTA & SANTOS, 1998, p. 192) em duas agendas: A primeira delas se refere à intervenção fundiária redistributiva e tem como objetivo central promover o acesso à terra; a segunda se refere às ações de desenvolvimento em apoio aos assentados. Ao entrar na terra, a maioria dos agricultores sem-terra, agora assentados, passa por dificuldades em relação a equipamentos, ferramentas de trabalho para o desenvolvimento de suas atividades. O crédito de implantação deve então entrar em cena exatamente para minimizar essas necessidades. Explica FABRINI (2001, p.101): O crédito implantação é formado basicamente de três modalidades: crédito habitação, fomento e alimentação. O crédito habitação consiste no financiamento de construção de moradias para as famílias assentadas, com materiais Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 111-128, 2003 117 adquiridos em regime comunitário. O crédito fomento destinase à aquisição de ferramentas, equipamentos, insumos agrícolas e máquinas para o início das atividades produtivas nos assentamentos. O crédito alimentação é uma forma de proporcionar meios para a aquisição de gêneros alimentícios para a subsistência das famílias enquanto iniciam o desenvolvimento de culturas. Não raro, no entanto, esse dever parece falhar. Para ilustrar e levantar uma polêmica, tome-se como exemplo a reportagem da Folha de São Paulo, de 03 de maio de 2002, na qual Marta Salomon cita a pesquisa de duas universidades federais do Rio de Janeiro, a UFRJ e a Rural, que tacham como “insuficiente a intervenção do Estado nos projeto”. Os trechos da reportagem ressaltam a demora da liberação do dinheiro para a instalação dos assentados; a falta de financiamento para a compra de máquinas e equipamentos; os problemas de abastecimento de água (em quase metade dos lotes) e de energia elétrica (em mais de dois terços); a estrutura deficiente para suportar as chuvas; e o trabalho educacional reduzido à alfabetização. O trabalho de pesquisa foi feito em algumas regiões de maior concentração de assentamentos do país, envolvendo assentamentos instalados até 97, e, apesar da precariedade dos recursos, os dados revelam que “42% dos assentamentos têm produtividade melhor do que a média da região”. A partir desses dados, Salomon conclui seu artigo acrescentando que, apesar desses cinco anos para amadurecer, a reforma agrária no Brasil, não mudou substancialmente a concentração de terras no país e é produto direto dos conflitos de terra: 96% dos casos estudados na amostra de 181 projetos resultam de disputa pela propriedade e da iniciativa dos trabalhadores. Neologismo ou Dialeto? Dentro do campo semântico, as palavras da língua portuguesa possuem força ou significado engajado ao contexto em que se inserem. No contexto atual, por exemplo, temos a criação do vocábulo “brasiguaio”, designando o novo personagem brasileiro que “sobrou” do processo de modernização da agricultura dos anos 70 e 80. A pátria legítima lhe falta e ele emigra para o Paraguai. (SILVEIRA, 1998, p. 156) afirma: O ‘brasiguaio’, não sendo aceito em seu próprio país, o Brasil, e por ter sido expulso do Paraguai, surge como um novo personagem na realidade latino-americana. Na verdade, os ‘brasiguaios’ são brasileiros que não encontram mais a própria identidade; não são brasileiros e muito menos paraguaios, e sim os ‘sem-terra’ e os ‘sem-pátria’. 118 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 111-128, 2003 Da mesma forma, é o que está acontecendo agora com a palavra assentado. Não fora tão explorada antes em seus significados, como o está sendo agora, neste início de século. Eliminando o contexto político e mergulhando, apenas, no técnico, o termo, assentamento provavelmente tenha surgido no interior do Estado referindo-se às ações que têm por fim ordenar ou reordenar recursos fundiários com alocações de populações para solução de problemas socioeconômicos.2 A ação do Estado, nesse caso, é meramente técnica, sem compromisso político, enquanto as pessoas beneficiadas ficam desobrigadas da atividade. Por outro lado, a força semântica do termo assentamento fica evidente, quando inserido no contexto político, referenciando um movimento organizado de lutas, resistências e ocupações de terra já há quase quatro décadas acontecendo na realidade brasileira. O resgate da ação política dos trabalhadores exige a conseqüente ação política do Estado. Um conceito muito mais amplo, portanto, que dá ao termo assentamento uma abrangência social capaz de mobilizar o mundo, quase um sinônimo de instrumento de transformação social. Guimarães Rosa, o mestre dos neologismos, com certeza faria uso poético do novo significado engajado à velha realidade do novo milênio. A antítese seria explorada com magnitude no paradoxo assentamento/sem-terra. A prefixação permitiu tantas manobras políticas desvirtuando as palavras de seu contexto real, mas certamente, esta é a mais séria delas: o prefixo sem criou um vocábulo inusitado e por que não dizer ininteligível – como pode existir a palavra sem-terra, significante e significado, num mundo denominado Terra? A dádiva divina nos fez pioneiros e únicos a andar sobre ela e nela, fincando nossas raízes como primatas racionais. Como explicar, racionalmente, um sem, como negação de um presente do Criador? Pior: o prefixo da ausência aplica-se a quem era antes possuidor, caso que não se adequa aos sem-terra, que antes também não possuíam, legalmente nunca tiveram a posse, apenas ocupavam. Livros, charges e crônicas já registram exemplos, por vezes ironicamente, da formação prefixal de palavras novas: os sem-nada, os sem-razão, os semteto e assim por diante. Presos ao dinamismo da língua, os vocábulos crescem e se fortificam. Nesse léxico, mais uma concessão é feita aos com-terra (aquela minoria que não entra na camada dos sem): a atribuição de um novo significado ao vocábulo assentamento. Agora, assentado não é mais a família que tem toda a infra-estrutura básica, acesso à água, luz, rede de esgoto e crédito para a construção de casa.3 É fácil modificar a lei em seu benefício próprio criando 2 3 De acordo com Esterci, 1992, p. 5, In: Fabrini, p. 18. De acordo com o Manual do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 111-128, 2003 119 novos signos lingüísticos que justifiquem ações humanas, quando se detém o poder de movimentar a caneta que assina o tal documento. Essa é a temática desenvolvida pelo Editorial da Folha de São Paulo, 03/05/02, intitulada Os sem-critério, termo que, fazendo analogia com os tantos sem, denomina o Ministério do Desenvolvimento Agrário. A falta de critério acontece como estratégia subterfúgica à afirmação da Folha (reportagens seqüenciais – abril/maio/2002) de que a pasta vinha inflando os números da reforma agrária. Nasce então, do poder da pena, como fruto do movimento dos sem-critério, a portaria de número 80, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, de 24 de abril de 2002, segundo a qual o assentado passa a ser definido como candidato inscrito que, após ter sido entrevistado, foi selecionado para ingresso no programa da reforma agrária. De acordo com o edital, por essa nova normatização, a família não precisa ter seu lote demarcado, nem receber infraestrutura básica e créditos para ser considerada assentada. Em outro edital (02/05/2002), a Folha já informara que a justificativa dada pela assessoria do ministério ao jornal, pela criação desse novo universo semântico, teria sido a suposta necessidade de padronizar e ajustar os conceitos adotados nos documentos internos do ministério (normas, instruções normativas, normas de execução, entre outras), gerando, assim, não um conceito diferente, mas apenas um parâmetro para uniformizar a leitura sobre o tema. A denúncia do jornal aponta que nos balanços atuais do governo constam famílias em áreas onde não foram feitos investimentos, ou que se relacionam a propriedades em fase de decreto de desapropriação ou subseqüentes e também somam trabalhadores cadastrados pelos correios, que nem ainda sabem em que área serão colocados. Um estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), financiado pelo próprio governo, também apontou diferenças e contradições entre os dados relativos ao número de famílias que teriam sido assentadas pelo governo no programa de reforma agrária no biênio 1999/2000 e as que efetivamente aparecem nos registros do Incra. O mesmo Edital da Folha ainda registra que a explicação obtida para a contradição entre os dados, contabilizando terrenos baldios e pessoas fora de suas terras como assentados fundamentou-se no jogo contraditório das palavras - recurso estilístico tão largamente utilizado por Vieira, em seus sermões, no estilo barroco conceptista, século XVII. As famílias contabilizadas como assentadas não constam de portaria publicada em Diário Oficial da União e as áreas às quais elas estavam relacionadas ainda dependiam de atos jurídicos e administrativos para serem obtidas pelo governo. Assim, o conceito de assentados contrapõe-se ao do termo instalado, embora esse novo conceito não conste da nova portaria criada pelo ministério. Para ilustrar melhor o novo 120 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 111-128, 2003 conceito de assentado seguem dois trechos da portaria, publicados pela Folha de São Paulo, 02/05/2002: [Assentado] é o candidato inscrito que, após ter sido entrevistado, foi selecionado para ingresso [ao programa de reforma agrária], sendo-lhe concedido o direito ao uso da terra. [Assentamento é a] unidade territorial obtida pelo programa de reforma agrária por desapropriação, arrecadação de terras públicas, aquisição direta, doação [...], para receber indivíduos selecionados pelos programas de acesso à terra. A polêmica está lançada. Com certeza, alguma pena mágica criará novas palavras, novos números e novas razões. Certamente, mais uma vez o círculo se fechará e o camponês, ou bóia-fria, ou sem-terra, ou instalado, ou talvez até o dadaísta anarquista da Pós-Modernidade, iniciará novamente sua caminhada do ponto de que já partiu e a que tantas vezes já voltou. Apenas mais um personagem do vasto regionalismo brasileiro? Paradigma Globalização A economia mundial é cada vez mais um todo interdependente: cada uma de suas partes tornou-se dependente do todo e, reciprocamente, o todo sofre as perturbações e os imprevistos que sofrem as partes. A humanidade cresceu de uma existência de “famílias” para a “aldeia global”. Por sua amplitude e velocidade, a globalização está afetando profundamente indivíduos, empresas e nações, pois altera os fundamentos sobre os quais se organizou a economia mundial nos últimos cinqüenta anos. Embora conserve conotações relacionadas a idéias secularmente inseridas na temática da cultura ocidental, como universalização, fraternidade, eliminação de diferenças, consagramento, os problemas gerados pelo processo de mundialização econômica são conhecidos. Ela torna mais fácil o enriquecimento dos que já são ricos e mais pobres os que já são pobres, aumentando o fosso que separa os dois grupos. Além do enfraquecimento dos governos nacionais, subordinados aos interesses externos e do aumento do desemprego, provocado por políticas que privilegiam interesses privados, há evidências de que a globalização, no campo social, está produzindo desigualdade crescente. Não se trata apenas de estudar as estatísticas econômicas, distribuição de renda, mas também do reconhecimento de direitos, do acesso a instituições, à alfabetização, à tecnologia e outros critérios sociais. O cenário internacional do início dos anos 90 foi marcado pela crescente hegemonia do ideário neoliberal como modelo de ajuste estrutural de economias. O neoliberalismo e a globalização complementam-se até hoje. A crença no livre Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 111-128, 2003 121 mercado atingiu níveis que atingiram o ponto mais alto do fundamentalismo dogmático. Sob a necessidade de modernização e de aumento de competitividade, gerou-se o desemprego, novas tecnologias e máquinas foram incorporadas, o trabalhador perdeu espaço, aumentou a distância entre os países centrais e periféricos e a desigualdade se manteve por razões históricas: herança escravocrata e outras econômicas. A interconexão dos mercados de consumo, produção e capital tornou-se um dos fatores responsável pelo processo de desagregação e ruptura das redes de solidariedade. A cidadania se desvaneceu ao desarticular os mecanismos de formação das vontades coletivas e esvaziar os padrões mínimos de igualdade material e integração social. Dessa forma, desestruturou-se todo um padrão ético e todo um sistema de direitos construídos em torno de valores como o respeito à dignidade humana. Na sociedade brasileira, esse cenário se repetiu. O processo neoliberal trouxe grandes seqüelas para as economias latino-americanas. O Brasil foi o último dos principais países da América Latina a se embrenhar no tão falado modelo salvador. Abrimos nossa economia, privatizamos praticamente todo o segmento potencialmente lucrativo sob o discurso da modernização. Passamos a depender do capital externo sob forma volátil. De forma acelerada, agravou-se a pobreza. Segundo (BARBOSA, 2001, p. 106), o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) analisou 174 países com dados para o ano 1999, com o propósito de classificá-los em termos de indicadores sociais, levando em conta a renda per capita, o nível de escolaridade da população adulta e a expectativa de vida: O Brasil ocupa a 69a posição, sendo incluído nos países de desenvolvimento humano médio, junto com a maioria dos países latino-americanos e do Leste Europeu, alguns países africanos, como Egito e África do Sul, além de países asiáticos, como Tailândia e Filipinas. A pobreza ampliou-se de forma significativa com o processo de globalização econômica e trouxe, concomitantemente, maior concentração da população nas cidades. Como, na globalização, o espaço econômico se irradia sobre os demais, levando as condições de vida e trabalho a serem condicionadas por valores como poliqualificação, eficiência e ganhos incessantes de produtividade, os excedentes populacionais não têm conseguido se integrar ao sistema produtivo da sociedade urbano-industrial e, nesse contexto, hoje, a situação do homem do campo agrava-se ainda mais. Completamente longe do aparato industrial, despreparado, sem escolarização, sem preparação profissional, o pobre do campo carece de condições materiais básicas para 122 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 111-128, 2003 exercer até mesmo os próprios direitos de cidadania, já que não é aceito em um mercado de trabalho guiado exclusivamente pelo critério do lucro. Junto a outros exemplos de desagregação social no mundo globalizado, os camponeses comprometem seu futuro, a sua saúde e os seus valores morais, mas, em contrapartida, manifestam-se como agentes sociais à medida que reagem contra esse sistema avassalador, insurgindo-se como um Adamastor4 que obstrui a passagem dos navegantes. Conforme explica (BARBOSA, 2001, p. 115-117): Como em outros períodos da História, o surgimento de problemas sociais no atual mundo globalizado traz como resultado um conjunto de forças contestadoras. (...) Talvez não haja melhor exemplo de globalização das demandas sociais do que a articulação entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) brasileiro, a Confederação Camponesa Francesa e o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) mexicano sob o ‘guarda-chuva’ da Via Campesina, organização global que reúne camponeses de mais de cem países. O dia 17 de abril transformou-se inclusive no Dia Internacional da Luta Camponesa, em memória ao massacre dos trabalhadores semterra pela Polícia Militar, na cidade de Eldorado dos Carajás, no estado do Pará. Quanto maior for a organização da sociedade, menos o Estado brasileiro poderá exercer seu poder de manipulação das classes subalternas, menos a lei estará a serviço de apenas alguns. Conforme explica (SILVEIRA, 1998, p. 169), esse Estado protecionista de um modelo de desenvolvimento brasileiro centrado na industrialização trouxe um grande custo para a população, principalmente a rural. “E ainda mais com a globalização da economia, neste final de século XX, fica claro que não basta a reforma do Estado. É preciso transformação do Estado Brasileiro”. Os movimentos sociais contestadores são o outro lado da globalização, sem a dependência econômica do mercado, mas visando à integração e à liberdade de todos. Seu poder de mobilização e conscientização possibilita ações políticas coletivas cujas metas, quando unificadas, poderão levar o sujeito à verdadeira condição de agente transformador. Episódio do Gigante Adamastor – ponto culminante do Canto V de Os Lusíadas, de Camões. Marca a passagem da narrativa para o plano do maravilhoso: o rochedo do Cabo das Tormentas é animizado e simboliza, com suas ameaças, a força bruta da natureza impondo-se como obstáculo à viagem de Vasco da Gama. As proporções gigantescas e terrificantes do gigante tornam maior o heroísmo dos portugueses que, em condições desiguais em força física, venceram os imensos obstáculos que se erguiam à sua vontade de conquista. 4 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 111-128, 2003 123 Notas Finais: Um Pouco de Esperança Em uma sociedade que sofre transformações tão profundas e às vezes até bruscas, necessitamos de uma educação para a decisão, para a responsabilidade social e política. Isso significa reconhecer a capacidade humana de decidir, de optar, de assumir uma atitude criticamente otimista que recusa, de um lado, os otimismos ingênuos e de outro, os pessimismos fatalistas; significa encarar a História como possibilidade, em que a responsabilidade individual e social dos seres humanos se tornaram exigências fundamentais da liberdade. (PAULO FREIRE, 1996, p.114) nos orienta que, em uma sociedade em transição como a nossa, inserida no processo de democratização fundamental, a educação deve colaborar com o povo na indispensável organização reflexiva de seu pensamento, colocando à sua disposição meios com os quais possa superar a captação mágica ou ingênua de sua realidade por uma dominantemente crítica. Contra qualquer tipo de fatalismo, o discurso profético insiste no direito que tem o ser humano de comparecer à História como seu sujeito. De acordo com (FREIRE, 2000, p. 115): Há uma espécie de ‘nuvem cinzenta’ envolvendo a História atual e afetando, ainda que diversamente, as diferentes gerações – ‘nuvem acinzentada’, que é, na verdade, a ideologia fatalista opacizante, contida mo discurso neoliberal. É a ideologia que mata a ideologia, que decreta a morte da História, o desaparecimento da utopia, o aniquilamento do sonho. Seguindo a orientação de Morin,5 pode-se acreditar que o homem possui, em si mesmo, recursos criativos inesgotáveis, o que permite ao mundo, a esperança de vislumbrar para o terceiro milênio a possibilidade de nova criação, cujos germes e embriões foram trazidos pelo século XX: a cidadania terrestre. E a educação, que é ao mesmo tempo transmissão do antigo e abertura da mente para receber o novo, encontra-se no cerne dessa nova missão. Todos os humanos, desde o século XX, vivem os mesmos problemas fundamentais de vida e de morte e estão unidos na mesma comunidade de destino planetário. Aprender a estar aqui, no planeta, significa aprender a comungar, a ser terrenos, não só dominar, mas condicionar, melhorar e compreender. Afirma (MORIN, 2001, p. 78): Para maiores informações sobre o tema, ver MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez; Brasília/DF: UNESCO, 2001. Capítulo IV. 5 124 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 111-128, 2003 Civilizar e solidarizar a terra, transformar a espécie humana em verdadeira humanidade torna-se o objetivo fundamental e global de toda a educação que aspira não apenas ao progresso (...). A consciência de nossa humanidade nesta era planetária deveria conduzir-ns à solidariedade e à comiseração recíproca, de indivíduo para indivíduo, de todos para todos... A educação do futuro deverá ensinar a ética da compreensão planetária. Era de globalização – época de pensar e agir como se o mundo todo estivesse pertinho de nós, e num simples estalar de dedos pudéssemos atingir toda a “aldeia global”. Nasce a Carta da Terra. Nasce a preocupação com as gerações futuras e com a defesa de nossa natureza. Nasce a vontade de trocar o pano negro de fundo, pelo amarelo da esperança. Nasce a necessidade de substituir a ética do mercado, individual e imediatista, pela ética da cidadania planetária, humana e consciente. O novo paradigma precisou de séculos para ressuscitar. Na verdade, ele apenas dormia o sono da Cinderela, esperando o beijo de amor para acordar. A tomada de consciência faz com que a humanidade redescubra a Terra como pátria comum e dá início a um novo processo de civilização. Gadotti (2000, p. 194), defendendo uma educação que tenha a Terra como paradigma, reescreve as palavras de Leonardo Boff, proferidas no discurso de abertura da Conferência Intercontinental das Américas sobre a Carta da Terra (Cuiabá, 31 de novembro de 1998), na qual Boff diz que só via sentido em declarar a dignidade da terra em uma carta se três tarefas fossem cumpridas: o resgate do sagrado, o resgate do princípio feminino e a mutação de nosso estado de consciência. A citação abaixo refere-se à última tarefa: Uma mutação da consciência se opera no momento em que sentimos realmente que nós somos a própria Terra, a Terra que caminha. Somos a Terra que pensa, que ama, que venera, que celebra. Ela não contém vida. Ela é a vida. Não temos a idade de quando nascemos, mas a idade de todo o universo. Quando se formaram as estrelas e os planetas, nós nos formamos também. É a mesma matéria. Como as estrelas, somos feitos de poeira cósmica. Somos os últimos dos grandes seres que entraram na história do Universo. (grifo do autor). A cada passo, o grupo de camponeses desafia a engrenagem. Cabe voltar aqui, ao ponto de partida deste artigo: o eu, indivíduo e identidade, constituindo-se coletivo e social. Essa inserção derruba o conceito de passividade embutido no trabalhador rural e abre espaço para a criação de novo signo lingüístico. O significante será construído aos poucos, nessa trajetória Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 111-128, 2003 125 descontínua de vitórias e derrotas. Mas, o significado já está estruturado nesse processo histórico de busca pela dignidade, como sujeito político, social e transformador de sua realidade. MATTHES, N. A.; SILVEIRA, U. Against the gearing: a reflexive approach. Serviço Social & Realidade. (Franca), v.12, n.1, p.111-128, 2003. • ABSTRACT: In this article, the subject, agent of its reality, is focalized in its identity, like a social and politics human being, inserted in a context that the market ethics transforms dreams in utopias and basic necessities in luxury items. This approach has the intention to take a reflection, according questions that can make possible a deeper treatment of the theme. In this treatment, the investigative way, suggests a reflection about the concept of “sem-terra”, besides the semantic analysis, and attaining the human being, person inserted in the current politics context, underling of a globalizant aconomy, whose ethics values are determined by the capitalist market. • KEYWORDS: Struggles for soil; Settling/Sem-Terra; Soil’s Letter; Citizenship; Globalization; Agrarian Structure; Agrarian question; Ethics. Referências Bibliográficas ANDRADE, Manuel Correia de. Abolição e reforma agrária –São Paulo, Ática, 1987. ______. 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Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 111-128, 2003 127 AS ORGANIZAÇÕES ATUAIS: PERFIL PROFISSIONAL ESPERADO Ana Paula Barbosa Indiano de OLIVEIRA* Daltro de Oliveira CARVALHO** • RESUMO: Com as mutações ocorridas nas organizações decorrentes das tecnologias e do grande número de informações, empresas decidira por buscar novos talentos, capazes de administrar essas mudanças. Vários fatores atuam hoje neste novo panorama, tais como motivação, aperfeiçoamento, investimentos no capital humano e outros. Um histórico desde o início da revolução industrial até nossos dias, notamos que os tempos atuais apresentam mudanças constantes e mais rápidas que antigamente. O papel atual das organizações é buscar seu poder de gestão entre vários atributos necessários para atuar no mundo de globalização. A empresa busca um novo perfil profissional que possa atender às suas necessidades e que se encaixe com a nova realidade. • PALAVRAS CHAVES: Organização; trabalho; profissional; globalização. Introdução A época atual vem sendo marcada por grandes e rápidas mudanças. Nas organizações, o ser humano caminha para deixar de ver o local em que trabalha como um mecanismo dentro do qual é apenas uma peça. A empresa, por sua vez, passa a tratá-lo como um indivíduo cujas potencialidades precisam ser descobertas e cujo crescimento interessa-lhe também. Nas bases em que se apóiam os modernos conceitos de produtividade e competitividade, a educação organizacional continuada, destaca-se como uma estratégia de transformação e crescimento de valor mundialmente reconhecido. As maneiras tradicionais de relacionamento com os funcionários, com o público consumidor, com os fornecedores e com a sociedade começam a ser revistas por grande parte das organizações, uma vez que se evidencia que as formas clássicas de comando e de relacionamento com o mercado mudaram. O grande desafio contemporâneo é pois, preparar pessoas capazes de se adaptar a esta nova realidade e transformá-la, objetivando encontrar maneiras mais eficazes de enfrentar a realidade dinâmica e cada vez mais competitiva. A história mostra-nos que existe uma tendência de multiplicarem as ações de formação e de aperfeiçoamento na busca de um perfil adequado. Nasceu Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos/SP, doutoranda no Programa de Pós Graduação em Serviço Social – UNESP - Franca/SP. ** Mestre em Gestão Empresarial pela FACEF – Franca/SP, doutorando no Programa de Pós Graduação em Serviço Social e Pesquisador/ Grupo de Pesquisa em Serviço Social/UNESP – Franca/SP. * Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 129 uma nova profissão e, às vezes uma nova vocação: a de gestor ou responsável de formação. Operacionalmente podemos definir aperfeiçoamento e formação. Formação é o desenvolvimento de novas capacidades (voltada para o homem) e aperfeiçoamento é a busca do melhoramento das capacidades em exercício (voltada para a empresa). (ARDOINO,1971). Dentro de uma perspectiva psicosociológica mais exigente, podemos considerar uma proliferação de ações de formação como um sintoma social perfeitamente característico de nossa época, e buscar o que ele em última análise encobre. Quando nos perguntarmos sobre o motivo de uma política de investimentos intelectuais praticadas hoje em dia por algumas empresas, a resposta normalmente é que se trata de um esforço para aumentar a produtividade. Isto nos retrata a presença de um modelo mecanicista. Hoje a motivação aparece mais como um fator de ação, e por conseguinte de eficácia. Taylor explicava antigamente por uma diferença de método de trabalho. Entretanto, falando historicamente ele não estava errado. Taylor raciocinava com os dados de seu contexto econômico e social. Hoje, isto não é mais verdade, sem deixar entretanto de o ter sido. A partir do momento que certos níveis econômicos foram ultrapassados, os problemas que já existiam potencialmente começaram a se afirmar por força de repressões econômicas. É necessário agora, tomá-los em consideração, ao passo que antes poderíamos evita-los. Com a revolução industrial o "homo aconomicus" dá lugar ao "homo psychologicus ou sociopsychlogicus". Passamos do modelo mecanicista clássico, ao modelo cibernético mais moderno. (ARDOINO, 1971). A psicologia passa a ter maior importância. Ensinar-se-á aos técnicos, aos vendedores e a todos que sentirem necessidade os rudimentos da psicologia. Existe uma tentativa de "equipa-los" psicologicamente na busca de um perfil profissional mais adequado aos dias atuais. Mas existe um longo caminho a ser trilhado. Nas escolas o que aprendemos de psicologia é muito superficial e não nos ensina a ser um técnico ou vendedor preparado psicologicamente. E nas empresas este investimento ainda é pequeno, e as pessoas muitas vezes não estão preparadas para aplicá-lo e nem para recebê-lo. Mas por outro lado, se aceitarmos a idéia do que o ideal é mecanizar o homem, para que ele corresponda a nossas solicitações, poderemos então dizer que a formação de técnicos constitui um condicionamento em segundo grau, levando a "fabricar máquinas que fabricam outras máquinas". Hoje, já se utiliza testes psicosociológicos, com a ajuda dos quais o 130 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 candidato é examinado no plano de suas inter-relações. Como bem enfatiza (ARDOINO, 1971), só nos resta saber, se recorremos a eles apenas para completar o exame clássico, se não há no fundo, o preconceito de uma personalidade bem "aparelhada" para o mando e para a venda, que terá sucesso quase sempre, seja quem for o interlocutor. Desde então, torna-se teoricamente suficiente, interrogar sobre a personalidade do candidato, para saber se ele está bem aparelhado, se tem ascendência, prestígio e autoridade. Sendo assim o aluno, o técnico ou o vendedor em formação são dependentes do mestre, do professor, do animador de formação. São relativamente passivos. O saber é representado como uma espécie de alimento. Reencontramos a representação mecanicista de antes. Alguns psicanalistas, pedagogos e psicosociólogos contemporâneos, tentaram por em evidência o fato de que nossas concepções tradicionais da autoridade e do comando, vêem sua lógica interna e sua justificação de origem cultural e, geralmente inconsciente. Isso pode ser verificado na história pessoal do indivíduo, através das representações que temos de nossos pais, chefes e ao mesmo tempo de nós mesmos. A história de nossa civilização é rica em exemplos próprios para ilustrar essa maneira de ver, mas as relações sociais evoluíram e a distância social entre os indivíduos fundamenta-se agora em outros critérios diferentes da essência.O gigantismo das organizações humanas e a complexidade das articulações e das comunicações levam fatalmente a certas descentralizações (a delegação de autoridade, a necessidade do trabalho em equipe, entre outros). (ARDOINO, 1971), enfatiza que o gestor moderno, deveria ocupar 30 por cento de seu tempo com sua formação e seu aperfeiçoamento técnico e humano, com atitudes de previsão e integração, e com a formação e o aperfeiçoamento de seus subordinados. Partindo disto, o gestor acaba tendo uma função de educador, delegando cada vez mais seus poderes e tornando-se disponível para colaborar no que for necessário. Suas relações seriam mais democráticas, do tipo A<=>B , pois a utilização do esquema A=>B trás conseqüências inevitáveis. As relações A=>B podem ser comparadas ao modelo escolar, que privilegia as relações de cada aluno com o professor, do chefe com seu subordinado, que retrata uma situação de poder sobre a outra pessoa. Dentre os fatores humanos da produtividade, destacam-se a motivação do trabalhador para aquilo que ele faz, o sentimento de dignidade para a sua pessoa, que ele associa a seu trabalho e à remuneração que é a compensação econômica. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 131 Esses fatores desempenham um papel de vital importância na conjuntura atual. Acreditamos, que muito mais que pensar em produção, isto é, o número de peças fabricadas ou vendidas, deveremos pensar em produtividade como algo que envolve pessoas e seu sentimento frente ao trabalho. Atualmente na empresa, além da função econômica, esboça-se uma função social autêntica, sem a qual sua função econômica estaria de resto, rapidamente comprometida. Espera-se que as atividades sociais constituirão um aspecto da redistribuição das riquezas, fundamentada economicamente. O grupo torna-se um conjunto dinâmico, que obedece as leis globais e tem uma realidade distinta da dos indivíduos que o compõem. Neste caso, as noções de papel e de função, assumidas predominam sobre qualquer outra consideração. Dependendo dos grupos, o líder ou condutor deve elaborar uma política, determinar os objetivos, encontrar soluções para problemas novos, repartir tarefas, fiscalizar, deve demonstrar competência técnica, ideológica e humana, ser mediador, representar o grupo no exterior, tornar-se seu símbolo. É por isso que o papel e as funções do líder podem variar ao longo de sua carreira. Sendo assim, a noção de aptidão para um determinado comando, e não mais para um comando qualquer, se reduz à questão de saber se existe correspondência entre as necessidades do grupo e os papéis e funções que o líder é capaz de assumir. Na empresa, não se trata mais de melhor ajustar o trabalhador ao seu trabalho, mais ainda, de conseguir um melhor ajustamento aos diferentes aspectos, econômicos e humanos, considerados dependentes de um dinamismo interno. É importante perceber que nossa formação e nosso ensinamento tradicionais oscilam entre duas tendências: a formação prática (busca de tipos de saber cultural) e as "humanidades" (cultura geral). Na maioria das vezes estamos diante, da busca de um melhor ajustamento a um modelo determinado, constante e imutável. Mas no que se refere à empresa, ela não pode sem graves riscos, guardar por muito tempo suas tradições. Isto é, ser imutável. Ela se insere num contexto que por sua vez se move, e é essencialmente dinâmico. O meio exerce pressões sobre a empresa, entre o meio e a empresa estabelecem-se tensões recíprocas, que podem resultar em equilíbrio ou desequilíbrio, dependendo do mercado, da concorrência. Sendo assim, a empresa moderna deve partir de uma política coerente de pessoal, que implica em atitudes de previsão e promoção. Formar é pré-adaptar, isto é, se necessário passar de um modelo para outro. Na empresa, as estruturas, os métodos e as normas devem mudar. E isto 132 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 inclui o mais simples funcionário até o diretor da empresa. Para que ela de alguma maneira, possa se ajustar neste mundo em transformação. Estamos talvez na história do pensamento, num momento comparável àquele em que se tomava consciência de que a geometria euclediana não era a única possível. A necessidade de mutação, de transformação, a cada dia fica mais clara dentro das organizações industriais e comerciais, pois se trata efetivamente de sobreviver diante da realidade do mercado. Sendo assim, o objetivo básico deste estudo, foi, sem a pretensão de universalizar conceitos, ou criar modelos, o de buscar compreender o perfil profissional que vem sendo exigido neste novo século, como conseqüência de um processo de constante modificações, levando em consideração os meios que as organizações atuais oferecem a seu funcionários, que possam contribuir para que eles correspondam à esse perfil desejado. Estudar as relações humanas e o perfil profissional esperado para este novo mercado, globalizado e muito concorrido, advém do nosso interesse em aprofundar no assunto, assim como compartilhá-lo com outras pessoas, que comungam as mesmas indagações. Além disso, este artigo poderá contribuir com nossas futuras pesquisas para o programa de Doutorado que estamos freqüentando. O tema embora discutido, ainda tem muito a ser explorado, se considerarmos a questão da capacitação profissional e o perfil profissional esperado. Metodologia Pesquisa científica é a realização concreta de uma investigação planejada, desenvolvida e redigida de acordo com as normas de metodologia consagrados pela ciência. É o método de abordagem de um problema em estudo que caracteriza o aspecto científico de uma pesquisa (RUIZ, 1996, p. 48). Atualmente fala-se muito em globalização, em mudanças que estão ocorrendo mundialmente e que vêm afetando todas as classes sociais. O emprego está se tornando escasso e novas exigências estão surgindo neste mercado competitivo. Cada vez mais, as pessoas são obrigadas a se moldarem acompanhando as mudanças que acontecem em um ritmo muito mais acelerado e com mais intensidade. Este trabalho possuiu como objetivos, pesquisar sobre o perfil profissional Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 133 que será exigido neste novo século e as características necessárias ao gestor de recursos humanos, entendendo as transformações que ocorreram e que ocorrem na natureza organizacional, levando em consideração os recursos que as organizações oferecem a seus seres humanos possibilitando-os corresponder a esse perfil, atendendo às suas exigências. Para elaboração do trabalho foi realizada uma pesquisa bibliográfica, que segundo (BARROS & LEHFELD 2000, p. 70): "é a que se efetua tentando resolver um problema ou adquirir conhecimentos a partir do emprego predominante de informações advindas de material gráfico, sonoro e informatizado". Para a realização desta pesquisa, levantamos algumas abordagens já trabalhadas por outros estudiosos, assimilamos conceitos e exploramos os aspectos já publicados. Em virtude do tempo ser escasso, selecionamos conhecimentos já catalogados em bibliotecas, editoras e internet. Sabemos que não foi possível um levantamento profundo sobre o tema, mas pretendemos trazer algumas informações úteis para as organizações atuais e para o indivíduo trabalhador. As Organizações Atuais: O Papel do Gestor e as Demandas do Negócio O diferencial do século XXI serão as pessoas. Um dos maiores desafios enfrentados pelas organizações é atrair e reter talentos. A máquina não vai substituir o que existe de mais humano: a criatividade, a paixão pela descoberta e a disponibilidade para aprender. O profissional será obrigado a estudar permanentemente. A multicompetência será a principal característica necessária aos profissionais do futuro. Quem estiver apto para atuar em todas as áreas, com habilidade de relacionamento em todos os níveis, especializando-se em vários assuntos, estará pronto para enfrentar as mudanças e atuar em qualquer área. A avaliação do profissional será fundamentada pela função conhecimento técnico x personalidade. O eixo da personalidade do futuro deverá conter: postura ética, idoneidade, flexibilidade para adaptar-se às mudanças, estabilidade emocional para trabalhar em equipe, maturidade para exercer comando e capacidade analítica para resolução de problemas. Já o conhecimento técnico será necessário para concretizar idéias e permitir a conexão do homem com o mundo informatizado. A busca de um profissional que reúna as qualificações expostas acima requer das empresas muito tempo, além de gastos com anúncios, seleção de currículo, entrevistas individuais e avaliação psicológica. 134 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 Escolher a pessoa certa para o lugar certo é indispensável para que o processo seletivo seja feito de maneira criteriosa, dentro dos mais modernos recursos disponíveis no mercado. De acordo com o exposto, exige-se nesse contexto não só as competências técnicas, como era até o momento, soma-se a essas as competências sociais que delineiam um novo profissional. Novos paradigmas surgiram criando um novo cenário, inovador e propício a novas perspectivas de mercado de trabalho. Uma visão de mundo holístico concebe o mundo como um todo integrado, e não como uma coleção de partes dissociadas. A percepção ecológica profunda reconhece a interdependência fundamental de todos os fenômenos, e o fato de que enquanto indivíduos e sociedades, estes se encaixam nos processos cíclicos da natureza. Portanto, (CAPRA apud GUIMARÃES, 1999), faz perguntas profundas a respeito dos próprios fundamentos da nossa visão de mundo e de nosso modo de vida moderno, científicos, industriais, orientados para o crescimento e materialistas. A ecologia questiona todo o paradigma a partir da perspectiva de relacionamento interpessoal, com as gerações profundas e com a teia da vida da qual todos fazem parte. Atualmente percebemos uma profunda crise mundial. É uma crise complexa, multidimensional, cujas facetas afetam aspectos da vida como um todo - na saúde e o modo de vida, a qualidade do meio ambiente e das relações sociais, da economia, tecnologia e política. É uma crise de dimensões intelectuais, morais e espirituais; uma crise de escala de premência sem precedentes em toda a história da humanidade. Pela primeira vez, defronta-se com a real ameaça de extinção da raça humana e de toda a vida no planeta, (CAPRA, 1982), as mudanças estão atingindo a vida do ser humano em todos os níveis, onde ocorre um aumento nos problemas de saúde e diversificadas anomalias econômicas. No momento atual, o que diferencia, é o ritmo no qual as mudanças estão se dando. É um ritmo muito mais dramático do que qualquer precedente. A crise atual não é, apenas uma crise de indivíduos, governos ou instituições sociais; é de uma dimensão planetária. Como indivíduos, como sociedade, como civilização e como ecossistema planetário, chega-se a um momento decisivo. Cabe ainda ressaltar, que as ciências administrativas, o campo do comportamento organizacional desenvolveu-se isoladamente, negligenciando os conhecimentos mais recentes básicos: o quantitativo e as organizações no centro de seu universo, como todo recurso a um pensamento externo e Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 135 forçosamente crítico, podendo sempre ameaçar a ordem organizacional estabelecida. (CHANLAT, 1991). Estes questionamentos tornam-se cada vez mais pertinentes à medida, que as críticas são mais numerosas em relação à formação que recebem os futuros gestores e quando os problemas que surgem no cotidiano não são resolvidos de acordo com o que se pensa ou se ensina. Começando pelo ambiente no qual esse personagem, o gestor, atua, observa-se que alguns processos já deixaram irremediavelmente sua marca e sua influência na constituição do universo sócio-econômico das empresas: o ambiente de mudanças e incertezas, a já desenvolvida internacionalização dos grupos empresariais, as dinâmicas de fusão e centralização dos capitais e, ao mesmo tempo, a descentralização das unidades produtivas: a desregulação e a privatização, a volatilidade e interdependência dos mercados financeiros, o desenvolvimento e socialização da tecnologia da informação (impensável há escassos 20 anos atrás), a nova consciência ecológica e outros. Essas questões, e muitas outras não citadas, têm sido pensadas como elementos fundamentais desse ambiente onde atua o gestor. Por essa razão, uma parcela importante da literatura tem caracterizado o perfil do gestor para os próximos anos a partir dessa "demanda" do ambiente, resultando na elaboração de vastos conjuntos de "competências desejáveis". Trata-se de fato, de um conjunto de atributos ambiciosos, seja pela sua abrangência, seja pela sua diversidade. Podemos apontar alguns atributos como altamente relevantes para o perfil de um gestor no mercado globalizado: (ECHEVESTE, S. et al, 1999). • Capacidade de liderança; • Visão estratégica; • Integridade; • Visão da empresa; • Capacidade de decisão; • Foco no resultado; • Ética no trato das questões profissionais e aspectos sociais; • Capacidade de negociação; • Motivação; • Coordenação de trabalhos em equipe; • Habilidade interpessoal; • Atitude pró-ativa. Os atributos dos gestores face as novas condições do ambiente de negócios, não é muito diferente, resultando também em expectativas abrangentes e diversificadas. Publicações recentes têm revelado essas 136 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 perspectivas, como se pode observar pelas "amostras" selecionadas a partir de entrevistas ou artigos da autoria de (PRAHALAD, 1999), (OHMAE, 1998), (BROWNER, 1999), (HEIFETZ, 1999), dentre os quais destacamos: 1) Capacidade para atuar com emissão e recepção de informações; 2) Capacidade para sintetizar e criar; 3) Habilidade para comandar grupos, assessores e outras redes de pessoas e para estimulá-las a enfrentar desafios; 4) Desaprender periodicamente e aprender de novo; 5) Familiarizar-se com geografia, mas especialmente com as diferenças e conflitos culturais; 6) Abertura para novas idéias e novas perspectivas de mercado, produto ou processo (capacidade para "ouvir", "ver" e "perceber"); 7) Levar as competências além das fronteiras das unidades de negócios (competência é uma dimensão da cadeia produtiva e não apenas da empresa); 8) Iniciativa, coragem, flexibilidade e tolerância. Ora, é evidente que nenhuma pessoa é capaz de desenvolver ou apropriar todos essas atributos. Perfis deste tipo, tão abrangentes e diversificados seriam capazes de criar sentimento de inferioridade nos mais reconhecidos executivos do século XX, vivos ou mortos. A maior parte dos executivos são homens comuns. Assim como em outras profissões. Embora todos, empresas e gestores estejam sempre procurando desenvolver o melhor para si (ao menos as empresas e pessoas que se administram de uma forma profissional, e não amadora), por mais programas de desenvolvimento que realizem, não vão nunca chegar nem próximo destes perfis superestimados. E então, para onde nos leva esse debate acerca do perfil do gestor do século XXI? Em nosso entender, se trata de uma caracterização de tudo aquilo que a gestão, e não o gestor de forma isolada, deve realizar para que a organização consiga uma performance compatível com os melhores níveis de desempenho. E num período em que a gestão das organizações têm muito mais de atividade coletiva do que individual, passa a ser apropriado pensar que esse conjunto super estimado de atributos, não é uma tarefa de um, mas de um ou mais coletivos de gestores. Por outro lado, estas considerações nos remetem a uma nova problemática: como tratar o desenvolvimento destas competências gerenciais "desejadas" nesse ambiente de negócios em mudança continuada? Para compreender as transformações culturais faz-se necessário atentar Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 137 para a situação no contexto da evolução cultural humana. Como diz (CAPRA, 1982, p. 24), transferir nossa perspectiva do final de século XX para um período de tempo que abrange milhares de anos; substituir a noção de estruturas sociais estáticas por uma percepção de padrões dinâmicos de uma mudança. Vista desse ângulo a crise apresenta-se como um aspecto da transformação. Há um velho ditado neste mundo, nada é certo, com exceção de duas coisas: a morte e os impostos. (CHIAVENATTO, 1996). E a estas duas certezas, acrescenta ainda a terceira: a mudança. Dizer que o homem está vivendo em um mundo em constante mudança é simplesmente dizer o óbvio, principalmente, nestas duas últimas décadas, em que a mudança vem ocorrendo a taxas explosivas e gradativamente aceleradas. É evidente que já avançamos o suficiente na nova sociedade póscapitalista para rever e revisar a história social, política, e econômica da idade do capitalismo e da nação estado. Entretanto, ainda é arriscado prever como será o mundo pós-capitalista, é o que diz (DRUCKER, 1997). Novas perguntas ainda serão levantadas e as respostas ainda estão ocultas no interior do futuro. É praticamente certo que a nova sociedade será não socialista e pós-capitalista. Paralelo a essas mudanças, a economia também sofre suas alterações. (DRUCKER, 1989) adverte que em suas bases e em suas estruturas três mudanças fundamentais ocorreram na própria textura da economia do mundo: • A economia de produtos primários desvinculou-se da economia industrial. • Na própria economia industrial, a produção está divorciada do emprego. • Os movimentos dos capitais, e não o comércio de bens de serviços, é que passaram a ser a força motriz da economia mundial. Como reflexo da história nas relações de trabalho e na economia, as relações empregatícias foram nitidamente atingidas por essas mudanças. Ainda não se pode falar em uma estabilidade em um novo paradigma vigente que delineie essas relações, pois vive-se um momento de transição. (RIFKIN, 1995), que escreveu o livro sobre o "fim do emprego", vem provocando um verdadeiro temor nas pessoas, no que diz respeito às perspectivas futuras para as formas de relações do homem com o trabalho. A referência ao fim do emprego feita pelo autor, se baseia na macrotendência do mundo desenvolvido, que vislumbra o declínio da força da produção industrial em contraposição ao crescimento do segmento de serviços, da multiplicação do conhecimento e do poder da informação. 138 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 As tendências atuais da força humana do trabalho indicam crescente redução de proletariado fabril estável; aumento do trabalho precário informal: sub empregados, sub contratados, contrato temporário, terceirização, par-time, maior número de mulheres e crianças trabalhando de forma desregulamentada; exclusão dos jovens e dos velhos no mercado de trabalho formal, trabalho autônomo, residencial e on-line. Segundo (LUDWING apud NEVES, 1998, p. 7), vive-se um novo renascimento, um neoclassicismo grego, com todas as suas conseqüências, com o homem no centro do processo, tendo a aprendizagem como fator mais importante da produção. Aprender é mais importante do que trabalhar, mesmo dentro da empresa. O commodite mais importante é a informação, que é usada como forma de conhecimento, e que dá poder. Para tanto, é preciso saber administrar isso. Teve-se a oportunidade de observar a velocidade com a qual os padrões, até então vigentes, estão sendo alterados. Percebe-se que quase nada é estável e que as recentes mudanças mundiais induzem as pessoas a aderir um novo estilo de vida. Para este, a que se criar uma atmosfera em que as pessoas sintam que se pode cometer erros sem que o mundo caia sobre elas. Se isto não ocorre, é porque não houve movimentos pois, estes provocam mudanças. Transformações culturais dessa magnitude e profundidade, não podem ser evitadas nem detidas, mas pelo contrário, bem recebidas, pois é a única saída para que evitem a angústia, o colapso e a mumificação. As pessoas e as organizações necessitam de preparação para a grande transição, de um profundo reexame das principais premissas e valores da nossa cultura, de uma rejeição daqueles modelos conceituais que duraram mais do que sua utilidade justificava, e de um novo reconhecimento de alguns valores descartados em períodos anteriores de nossa história cultural. (CAPRA, 1982). Perfil Profissional Esperado A organização moderna é busca especialistas do conhecimento, ela precisa ser uma organização de iguais, pois nem um conhecimento se classifica acima do outro, a sua posição é determinada pela contribuição para a tarefa comum e não por alguma superioridade ou inferioridade inerente. As organizações sociais e principalmente as empresas costumam preservar muitos paradigmas do passado, como seus valores sociais, culturais e tecnológicos. São tradições que ajudam a conectar o passado, o presente e o futuro e proporcionar a continuidade de propósitos e aspectos desejáveis da organização. Como proteção contra as mudanças que estão por vir, algumas empresas endurecem sua resistência podendo levar a total incapacidade de Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 139 enfrentar um novo ambiente e proporciona caminho direto para o fracasso. O caráter conservador das empresas é mantido devido a adoção de paradigmas organizacionais e culturais que petrificam a organização impedindo a mudança e a inovação. Na era da informação, as mudanças que ocorrem nas empresas não são apenas conjunturais, mas sobretudo culturais, comportamentais, transformando poderosamente o papel das pessoas que nelas trabalham. A globalização da economia trouxe novos conceitos como qualidade total, produtividade, competitividade, como formas de sobrevivência empresarial. Segundo (TOFFLER, 1985), as empresas em seu ciclo de vida devem lidar em certas ocasiões, com níveis de novidade extremamente altos, enquanto em outras ocasiões o nível é baixo, levantando questões sobre o tipo de direção necessária na empresa. Uma companhia com nível baixo de novidade pode exigir uma administração incrementada; enquanto uma empresa com um alto índice de novidade pode precisar de uma administração radical. Alternativamente, a mesma empresa pode precisar de estilos diferentes de administração em diferentes estágios de seu ciclo de vida. Algumas empresas são muito burocráticas, são as empresas não flexíveis, incapazes de se adaptarem, podendo desaparecer. Ao invés de rotineiro e previsível, o ambiente empresarial torna-se cada vez mais instável, acelerado e revolucionário. Nestas condições, todas as organizações se tornam extremamente vulneráveis a forças ou pressões externas. Pode-se observar que as empresas buscam acompanhar as mudanças que vêm ocorrendo no mundo. A economia globalizada exerce uma forte influência no contexto organizacional e conseqüentemente o perfil do profissional sofre constantes modificações. Para fazer mudanças organizacionais ou culturais torna-se imprescindível preparar as pessoas para que essas mudanças aconteçam. As mudanças reais dentro das empresas somente ocorrem à partir das pessoas. É necessário preparar o ambiente psicológico para as mudanças fazendo com que as pessoas aprendam a aprender e inovar. Mas, um dos obstáculos é que os administradores foram educados a trabalhar com a atenção voltada para assuntos concretos e físicos, com dados previsíveis, coisas reais e palpáveis, e sentem dificuldade em lidar com pessoas. As pessoas podem ser os agentes passivos ou ativos de qualquer programa de mudança organizacional. De um lado, as pessoas somente mudam porque as empresas as fazem mudar. Porém, não participam das mudanças. Elas simplesmente na maioria dos casos, fazem o que lhe pedem, mas não ajudam em mais nada, por falta de comprometimento. Na realidade as pessoas passam a representar o problema, a dificuldade e a resistência para a empresa 140 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 mudar, o obstáculo e a própria desvantagem estratégica. Acredita que a mudança assusta e provoca até pavor diante de uma situação nova e desconhecida. As pessoas têm um limiar de sensibilidade às mudanças; até certo limiar, a mudança é um evento diário e comum e quase sempre passa despercebida; mas, quando a mudança é grande, isto é, ultrapassa o limiar de sensibilidade das pessoas, provoca um grande impacto, preocupação, aflição, ansiedade e conseqüências desconhecidas. As pessoas podem aceitar as mudanças de maneiras diferentes, adotando uma postura de simples aceitação quando movidas pelos argumentos da direção ou quando assumem uma postura proativa em que além de aceitar a mudança toma a iniciativa de fazer ela acontecer. Também podem mudar porque simplesmente são coagidas para isto, como acomodar-se à mudança e resistir a ela para manter status quo dentro da empresa. O perfil do profissional caminha lado a lado com o mercado de trabalho, que é outra vertente em transformação. É um mercado como outro qualquer; ele tem suas vagas próprias e uma lógica rápida, muito antiga, e que ainda hoje está em evidência. É conceituado como o local onde profissionais trocam suas competências por trabalhos remunerados, além de ser um local onde as empresas buscam soluções para seus problemas. (DRUCKER, 1989), considera que os empregados serão cada vez mais forçados a mudar a sua opinião do que chamam de mercado de trabalho. O candidato a uma vaga é que passará cada vez mais a ser visto como cliente, com as oportunidades e características do emprego. Tradicionalmente, o mercado de trabalho pode ser encarado como uma coisa homogênea, dividida apenas por linhas muito amplas: idade e sexo, por exemplo, ou trabalho braçal, trabalho de escritório, trabalho administrativo e técnico. Mas, é cada vez mais comum a segmentação da força de trabalho disponível em número bastante grande de mercados diferentes, com liberdade considerável para o indivíduo se deslocar de um segmento a outro. Cada vez mais os empregados precisarão aprender que os empregos são produtos que devem ser projetados para compradores específicos, e promovidos e vendidos a eles. O profissional que sempre teve emprego geralmente tem preconceitos em vender o seu trabalho, de se comunicar mercadologicamente. Esse preconceito gera uma falta de habilidade da venda em si. Para fazer marketing pessoal, o indivíduo precisa se expor de várias maneiras: oferecendo serviços por mala direta, colocando anúncios em revistas especializadas, freqüentando grupos de profissionais, participando de associações de classes e, principalmente, relacionando-se diretamente com potenciais empregadores. O que se percebe atualmente, é que, o funcionário tímido, apático, sem iniciativa, cede seu lugar ao Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 141 criativo, ambicioso e crítico, que toma decisões e que possui flexibilidade para atuar em diferentes áreas. (NEVES & RODRIGUES, 1997). O funcionário qualificado, é aquele que acompanha as mudanças, e que se adapta à elas, superando suas deficiências, possuindo conhecimentos e iniciativa para reconhecer os problemas do dia-a-dia da empresa. Outro item a ser apresentado, é que não se fala mais em trabalho em grupo; passa a existir o trabalho em equipe, em time, onde cada integrante ajuda, coopera, e passa informações para os outros, colaborando no processo. Além disso, o profissional competitivo do mercado atual necessita desenvolver características de liderança e que a base da liderança eficaz é compreender a missão da organização, defini-la e estabelecê-la de forma clara e visível; não é baseada em ser inteligente, e sim em ser consistente; é ganhar confiança. (DRUCKER, 1989). Outro item, que é exigido do profissional comprometido com o futuro é o espírito de aprendiz. Para ter a imprescindível visão de oportunidades, é necessária a inovação contínua, e a educação é a perspectiva, o caminho da atualidade. Por isso, é indispensável a educação, para que as pessoas aprendam a pensar e agir sobre reflexão, e não ficar a mercê das tempestades, improvisando táticas de salvamento, mas se antecipar com ações preventivas. O investimento permanente em educação é a única segurança, é o que salienta (MATOS, 1996). A sociedade do conhecimento exige que os homens estejam continuamente se educando, não só como motivação de vida, mas como necessidade de sobrevivência, em que a mudança tende a tornar o ambiente mais desafiante e competitivo. Com as mudanças que enfrenta-se, hoje, a educação não se limita mais a sala de aula, nem se completa no período escolar, ela faz parte do complexo de formação integral do homem, transformando-se em alguém capaz de pensar, participar, trabalhar e continuar, enquanto for necessário, a se adaptar a novas transformações, aos novos conceitos, a uma vida renovada. Através dessa perspectiva as empresas têm buscado propiciar um ambiente favorável para o desenvolvimento de seus profissionais. Segundo (LACERDA, 1999), as organizações estão procurando realizar treinamento de criatividade de seus funcionários com o objetivo de compensar a evolução anticriativa que predomina atualmente na maior parte das instituições de ensino. Além da criatividade também se fala muito em pessoas competentes e habilidosas. Ser competente é ter facilidade para trabalhar em equipes, com liderança, auto-motivação, vontade de aprender, permitindo um trabalho bem feito. Habilidade é aquilo que a pessoa sabe tecnicamente. (GOMES, 1998). O novo trabalhador deve mudar continuamente os seus conhecimentos, e 142 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 assim por necessidade, ser um trabalhador em aprendizagem. A necessidade de polivalências, a capacidade de adquirir um comportamento que se adapte a este novo mundo. As características necessárias ao profissional são: espírito de iniciativa, perseverança, criatividade, sentido de organização, espírito crítico, autonomia e auto controle, atitude de liderança, persuasão, auto confiança, percepção e interpercepção nas relações pessoais, preocupação e solicitude em relação aos outros, capacidade de cooperação e comunicação, capacidade de adaptação às mudanças, capacidade de realizar tarefas variadas e complexas, capacidade de planificação. Para enfrentar a era da globalização, é necessário que o profissional também encontre na sua atuação algo que lhe dê prazer. O prazer no trabalho é fundamental, não somente para a qualidade de vida, mas porque ele é o termômetro de sucesso daquilo que é feito. Trabalhando com prazer o sucesso é garantido. Nos dias de hoje, de concorrência exacerbada e crescente no ambiente de trabalho é indispensável um aprendizado constante, mesmo para quem não está empenhado em obter sucesso no trabalho. Adquirir conhecimento, sempre, cada vez mais, é algo inevitável simplesmente para manter a empregabilidade. (PRADO, 1998). Por tudo isso, cabe ainda ressaltar a importância da noção de competências gerenciais e, por extensão, repensar alguns aspectos relacionados ao desenvolvimento destas competências. Genericamente, a questão da competência se coloca num espaço (um tanto indefinido tanto sob o ponto de vista teórico, quanto empírico) de interação entre, de um lado, as pessoas e seus saberes e capacidades e de outro, as demandas das organizações no campo dos processos de trabalho essenciais e processos relacionais (relações com mercados, clientes, fornecedores, com os próprios empregados e com informações). Esta noção tem, recentemente, ganhado um tratamento mais adequado. Nesta ótica, não seria apenas um estado de formação educacional ou profissional, nem tampouco se reduziria ao saber, ou ao saber-fazer, mas seria isso sim a capacidade de mobilizar e aplicar esses conhecimentos e capacidades numa condição particular, aonde se colocam recursos e restrições próprias à situação. Pois a noção acima, permite que se conceba algumas condições nas quais o desenvolvimento de competências gerenciais pode apresentar mais viabilidade. Inicialmente, a percepção de que o desenvolvimento de certo tipo de competências gerenciais vai exigir mudanças mais profundas nas pessoas e nos grupos e de que essa mudança vai transitar por um autêntico processo de aprendizagem. Na prática, esse processo de aprendizagem vai Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 143 exigir mais do que é oferecido nos programas convencionais de formação e treinamento gerenciais, mesmo os de longa duração. Ou seja, entendemos que programas de formação e treinamento não conseguem "naturalmente" gerar um up-grade no nível de competência de seus egressos. O que esses programas estariam desenvolvendo seriam os recursos para a competência (saberes, capacidades, habilidades, etc) mas não a competência propriamente dita. Nestas circunstâncias, seria necessário desenvolver uma sistemática apropriada para levar adiante esse link entre o desenvolvimento dos recursos e a ação (competências). Por outro lado, ao empregar até aqui os conceitos de competência gerencial e de aprendizagem, não podemos colocar de lado uma outra problemática também fundamental. É praticamente impossível que um ou alguns poucos quadros gerenciais possam incorporar ou desenvolver a diversidade de atributos requeridos à gestão das organizações. Neste contexto, são iniciativas voltadas para o compartilhamento coletivo destes atributos, dentre vários quadros e níveis gerenciais, aquelas que vão conseguir configurar um repertório de respostas e alternativas à situações que se apresentam à organização contemporânea. Assim, embora a condição para uma organização aprender seja através da aprendizagem de seus membros, isso não significa que o aprendizado individual desencadeie necessariamente um aprendizado coletivo. Em outras palavras, o desenvolvimento de competências individuais é uma condição necessária mas não suficiente para o desenvolvimento de "competências organizacionais". Nesse caso, iniciativas de desenvolvimento de competências gerenciais passam a ter sentido quando colocadas numa perspectiva de desenvolvimento de competências coletivas ou organizacionais. Somente nessas condições que a competência ganha estabilidade organizacional e passa a gerar valor agregado de forma ampliada. Em síntese, a questão dos perfis e do desenvolvimento gerencial deve ser associada à problematização da noção de competências e às condições de desenvolvimento dessas últimas. Certamente as questões esboçadas neste breve texto exigiriam um debate muito mais amplo e complexo. Entretanto, conforme destacamos inicialmente, este trabalho tem sobretudo a pretensão de sensibilizar e não de apresentar alternativas para as questões apresentadas. De qualquer forma, procuramos estabelecer um nexo entre o recente debate acerca dos atributos "demandados" aos gestores nesse início de século e a necessidade de pensar esses mesmos atributos de uma forma mais ativa (ação associada à competência) e coletiva. Neste contexto, essa exploração coletiva e ativa dos atributos transitaria, segundo essa perspectiva, pela revisão e reposicionamento de alguns conceitos básicos. 144 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 O primeiro deles, o de competência gerencial, cuja noção se descola do conceito básico de atributo ou de recursos (saber, capacidades, habilidades) e se concentra na aplicação destes últimos em contexto profissional e oportuno. O segundo, se refere a uma visão específica do conceito de mudança, mudança essa essencial para a apropriação ou desenvolvimento de competências gerenciais, na qual o processo de aprendizagem assume um papel central. Nesta lógica, estaríamos reafirmando que sem aprendizagem não há mudança e, no mesmo sentido, que o aprendizado no campo gerencial tem suas próprias peculiaridades e que deve estar mais orientado para as competências (ação) do que para seus recursos. Essa condição nos fez repensar e questionar a eficácia dos cursos convencionais de formação e treinamento gerencial, nos quais, essa problemática não é colocada em primeiro plano. Desta forma, tentamos contribuir com uma tentativa de dimensionar de maneira adequada os conceitos de competências individuais e competências coletivas ou organizacionais, valorizando apropriadamente a primeira, mas colocando nas últimas a condição para o desenvolvimento mais profundo da eficácia das atividades de gestão na organização contemporânea. Considerações Finais A escolha da estrada a ser percorrida, se deu através de vários questionamentos que surgiram em nossa mente e que não encontrávamos resposta. Foi preciso construir passo a passo a nossa caminhada, buscando compreender a realidade que o homem vivencia, e nós, enquanto profissionais iremos vivenciar. Nosso objetivo era compreender o que é necessário para que o homem se desenvolva e cresça enquanto pessoa e profissional. Nos estágios na área de Psicologia Organizacional, realizados no quarto e quinto ano de faculdade, vivemos o fazer parte de uma organização. Pudemos experienciar as relações entre funcionários e organização e fazer parte de seus dramas e suas tramas. Essa vivência nos despertou uma vontade de buscar algo novo. Percebemos que assim como uma empresa, o profissional necessita de alguma coisa que o diferencie dos demais. A flexibilidade foi essencial para que conseguíssemos sair de nosso estado de inércia, e desenvolver uma visão holística. Esse estudo nos proporcionou o interesse em aprofundar no assunto, assim como compartilhá-lo com outras pessoas que comungam das mesmas indagações. Nesse momento optamos em construir uma pesquisa que tivesse Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 145 como centro o homem profissional, não descartando o desenvolvimento das organizações, mas preferimos olhá-la por meio do homem, e não o homem através da organização. Esse olhar surgiu da crença de que as organizações existem a partir do homem. Tivemos a oportunidade de compreender melhor, a relação entre a empresa e o profissional, que desde o início nos mobilizou. Acreditamos que a evolução que a economia vem sofrendo, e que atinge diretamente no desenvolvimento das organizações e pessoas que dela fazem parte, tiveram desde o início, sua origem no homem. O homem cria, sua criação reflete no meio, e este lhe devolve com crescimento. Assim ocorre as quebras de paradigmas. As relações seguem a lógica da terceira lei de Newton de ação e reação. Esse pensamento foi construído ao longo de nossa pesquisa. Observamos que o desenvolvimento organizacional está vinculado ao crescimento do homem. Se nos remetermos à revolução industrial, veremos que as mudanças ocorreram através da criação do homem. Este criou as máquinas, as aperfeiçoou, e sua criação atingiu toda a estrutura social, econômica e de trabalho. Esse mecanismo foi se intensificando, e hoje o que temos são relações de trabalho bem definidas, e um pensar organizacional onde o homem não é mais um braço para movimentar uma máquina ou exercer uma atividade; o homem é um cérebro que interfere diretamente no movimento do mundo e em seus resultados. Para estruturar nosso pensamento foram necessárias várias leituras. Mas não era o suficiente, queríamos ver como as organizações e os profissionais reagiam a tantas mudanças. Para esse fim, optamos por um estudo de caso, que nos possibilitou comprovar que o profissional, está em constante processo de aprendizagem e adaptação. O estudo de caso foi o alicerce de nossa construção, contribuindo para a concretização do objetivo proposto, ampliando nossa visão de mundo e de homem. Nessa etapa da caminhada, foram levantadas várias competências que o profissional precisa desenvolver para permanecer competitivo no mercado de trabalho. O que vimos é que para que não ocorra a exclusão, esse profissional tem que estar atento e flexível às mudanças e em contínuo movimento inovador. Para que esse movimento aconteça é importante que as pessoas criem um ambiente organizacional propício para o desenvolvimento e crescimento humano. Ficou claro também, que o ser profissional com preparo específico para ocupar novos cargos, é muito importante, mas é preciso ir além. Este ser 146 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 profissional está fadado ao fracasso se não manter-se atento e preparado para novas exigências e, sobretudo, às expectativas de mercado e necessidades das organizações. A estabilidade, a acomodação, o conformismo sede lugar às inquietações e ao desconforto, pois o mercado está, cada vez mais profissional e se diversificando. Nesse contexto a Psicologia Organizacional caminha junto com a Administração contribuindo para o desenvolvimento e crescimento do potencial humano, centrando o homem como ser participante na construção da cultura organizacional, buscando humanizar o processo de produção. Com isso as empresas passam a desenvolver uma visão holística de seu funcionário, e este, ao se sentir membro integrante e comprometido, passa a contribuir mais para a empresa e investir em novas competências. Assim, nossa caminhada não termina aqui, vários questionamentos foram sanados, mas deram origem a muitos outros: quais são as condições que os profissionais necessitam para acompanharem e enfrentarem os desafios promovidos por essas mudanças; quais são os requisitos futuros que terão que prever para se manterem no contexto organizacional de maneira competente e produtiva. E assim, vários outros questionamentos surgem a cada momento, mediante as leituras especializadas, e sobretudo, frente ao cenário organizacional e competitivo que experienciamos no cotidiano. O profissional internalizado em cada um de nós, muitas vezes adormecido mas, com potencial a ser desenvolvido, necessita apenas que alguém acredite nele. E esse alguém somos nós mesmos. OLIVEIRA, A. P. B. I. de; CARVALHO, D. de O. The current organizations: the professional profile expected. Serviço Social & Realidade (Franca), v.12, n.1, p. 129-150, 2003. • ABSTRACT: With the mutation that happened in the organizations decurrents of the tecnologys and the large number of informations, the company decided to search new talents that is able to manage this changes. Lots of factors act today in this new landscape, just like motivation improvement, investiment in the human capital and others. A historical since the beginning of the industry revolution until nowadays, we notice the new time presents, constant changes faster them formerly. The conduct of the present from organizations and with no power of managment between lots of necessary attributes to act in the word of globalization. The company is scarching for a new professional profile, that can attend the organization´s necessitys and to make them fit with the new reality. • KEYWORDS: Organizations; work (job); profissional; globalization. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 129-150, 2003 147 Referências Bibliográficas ADIZES, I. Os ciclos de vida das organizações. São Paulo: Pioneira, 1990, p. 380. ARDOINO, Jacques. Psicologia da educação: na universidade e na empresa. São Paulo: Herder, 1971. ______. A formação do educador e a perspectiva multirreferencial. (Mini Curso). Universidade Federal de São Carlos – 15/16 out. 1998. BARROS, A. J. P.; LEHFELD, N. A. S. 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As instituições são lugares férteis no desenvolvimento de vínculos geradores de ansiedades e defesas muitas vezes persecutórios deixando quem nela trabalha suscetíveis às situações e à vínculos “enlouquecedores” podendo causar distúrbios físicos e mentais deixando as pessoas vulneráveis perdendo a capacidade de discernimento e de produção. • PALAVRAS-CHAVE: Instituição; Trabalho; Vínculos; Saúde Mental. Introdução Falar sobre instituições nem sempre é um processo simples; visto que, todo ser humano é originário de uma família e traz consigo marcado objetiva e/ou subjetivamente em si tudo que vivenciou. O ser humano é um ser a princípio essencialmente social, passando toda a sua vida fazendo parte de alguma instituição, sejam elas; família, grupos de amigos, grupos de trabalho, sociedade ou Estado que irão inseri-lo no social como pessoa e cidadão proporcionando-lhe o desenvolvimento de sua personalidade, dando-lhe identidade capacitando-o à sentimentos de coesão ou não que lhe darão condições de exploração de todas as suas potencialidades. As instituições são organismos vivos, com características, ideologias e com dinamicidades próprias. O presente texto constitui-se em uma discussão teórica sobre instituição como um campo fértil na geração de vínculos, nos seus desenvolvimentos e interação com o seu meio. Todas as instituições trazem em si valores, objetivos, princípios que estão inscritos em quem nelas trabalham, e que acabam sendo os representantes e propagadores de seus pensamentos, ações e ideologias perante a sociedade onde se vive. Psicóloga do Ambulatório de Saúde Mental de Franca; Administradora de Empresas; Especialista em Psicologia Clínica, Especialista em Psicanálise UNIFRAN/FRANCA; Mestranda em Serviço Social UNESP/FRANCA; Membro do GESQURT. ** Profª Livre Docente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social UNESP/FRANCA. * Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 151-158, 2003 151 A instituição traz registrada em si uma dicotomia de ser ao mesmo tempo farta, provedora, capaz de suprir muitas necessidades, mas também traz a questão de quem nela trabalha se sentir desnutrido de projetos e sentimentos que possam levá-lo a busca de realizações e de um maior crescimento pessoal e profissional. A instituição é formadora de toda uma cultura que lhe é própria, e que é reproduzida e repassada à sociedade através de seus membros. O trabalho institucional exige alguns requisitos básicos, onde o profissional deve estar maduro o suficiente para poder suportar muitas frustrações e principalmente possuir uma mente própria que seja capaz de discernir pulsões tanáticas que travam as suas disposições construtivas. A maioria dos vínculos estabelecidos em instituições públicas entre profissionais e usuários dos serviços, entre profissionais e chefia, profissionais e seus iguais ou profissionais com suas atividades são marcados pelo subjetivo, pelo vazio de positividade onde a instituição pública tem suas fundações. Na prática o que encontramos são vínculos constituídos sob relações defensivas gerando desgastes físico e psíquico causando stress e possivelmente adoecendo o profissional tanto mental como fisicamente. O bom trabalho institucional depende principalmente da atitude do profissional; da sua condição de discriminar e perceber as representações que se formam à nível subjetivo e que são reproduzidos ingenuamente como formas defensivas às ansiedades e angústias. A saúde dos profissionais e dos seus vínculos dentro de uma instituição depende da capacidade desse profissional em lidar com a realidade, tanto da instituição quanto da sua, sem perder de vista seus objetivos e também os da instituição, o que requer clareza, firmeza de propósito, flexibilidade e disposição de aceitação e transformação. O Vínculo da Instituição e o Vínculo com a Instituição É sempre muito penoso refletir sobre os contextos institucionais enquanto sujeitos imersos em algum tipo de instituição todo indivíduo de alguma forma se encontra inserido numa. Bleger (1984), coloca que toda a vida do ser humano transcorre em instituições. Já ao nascermos nos deparamos dentro de uma instituição que é a família, que por sua vez está inclusa numa instituição maior que é a sociedade e o Estado. São nas instituições que encontramos um suporte de apoio, segurança e identidade para podermos desenvolvermos. É também nas instituições que nos inserimos no social como indivíduos participativos, produtivos ou não. As 152 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 151-158, 2003 instituições e as relações que nelas são desenvolvidas irão originar sentimentos de pertença ou exclusão caracterizando toda uma forma de conduta das pessoas. Por instituição podemos definir uma organização de pessoas e trabalho com objetivos específicos pré-estabelecidos em busca de um determinado fim. È um local onde diferentes agentes contribuem com seus recursos para a produção de serviços, onde cada indivíduo explora, adapta e habita com o fim de realizar também seus próprios objetivos. A instituição sendo uma organização de pessoas, recursos e trabalho é um organismo vivo, dinâmico com ritmo e características próprias; constituídas também por ações que irão defini-la. Sempre que falamos em organização seja como sinônimo de instituição ou de organização de trabalho, estamos falando de espaço físico e subjetivo, categorias de profissionais que se relacionam com este espaço, onde são estabelecidas as mais diversas e diferentes relações que irão se estruturar no campo imaginário e se colocarem em prática. O trabalho que se é desenvolvido em uma instituição e todos os vínculos que nela se formam e ocorrem sofrem a influência do que é a instituição como ela está organizada; para quê e a quem serve; sua ideologia; a questão de ser pública ou privada vindo caracterizar a dinâmica do trabalho e do trabalhador estabelecendo assim seus perfis. Toda instituição é portadora de uma cultura com todo um repertório do qual os indivíduos que dela fazem parte retiram seus códigos de aprendizagem e de interação com o trabalho, com as pessoas e com o ambiente onde vive; é um sistema de representações de valores que são compartilhados pelos seus integrantes, instaurando um conjunto de relações e fixando normas que são assimiladas subliminarmente pelos seus membros. A instituição possui sua própria cultura que é transmitida aos trabalhadores, usuários e à população que passam a ter um comportamento específico para com a mesma, da forma em que ela é concebida na subjetividade de cada indivíduo. Neste artigo objetivaremos a instituição pública; quem trabalha em uma sente as conseqüências do que nela está instaurado política e ideologicamente há toda uma cultura do que é público incutida na mente das pessoas. No Brasil existe uma cultura do público instaurado nas vivências de cada um como algo que não funciona; de má qualidade; sentimentos de descaso; desânimo; impotência e abandono. As pessoas trazem introjetadas em si sentimentos de desatenção, falta de respeito e cuidados humano que são revertidos em ataques à instituição e a Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 151-158, 2003 153 quem dela faz parte com atitudes de raiva, ironias e palavras pejorativas. Os profissionais que trabalham nessas instituições muitas vezes não conseguindo fazer um exercício de discriminação, são também abatidos por esses sentimentos identificatórios e que foram introjetados de forma inconscientes passando a ser atuados no contexto do trabalho. As instituições públicas no Brasil é marcada pela carência de atenção por parte dos governantes que por elas são responsáveis; carência de condições básicas para que se possa trabalhar e desenvolver projetos que venham suprir as necessidades da população. Esses profissionais que estão inseridos nestas instituições muitas vezes são também imbuídos pela carência de instrumentos teóricos e metodológicos se sentindo sem apoio técnico e impossibilitados de dar continuidade a sua formação em virtude da extensa carga horária que se tem que cumprir, do alto custo financeiro que é necessário investir. O contexto da maioria das instituições públicas remetem o trabalhador a sentimentos de desamparo e abandono, vindo reforçar a idéia de ineficiência e de não saber o quê e como fazer seu trabalho há registrado no imaginário a cultura do que é público juntamente com um sentimento de impotência que paralisa o trabalhador numa situação de entropia que pode levar as vias de fato, como ao abandono do trabalho ou a morte da instituição. A instituição traz consigo uma dicotomia por um lado existe a idéia e a experiência do vazio e do outro a opulência. A opulência é acompanhada por idealizações onde a instituição é vista como uma mãe farta, provedora de sentimentos de segurança, de se ter bons salários e possuir status. Idealiza uma fonte inesgotável de satisfação. A vivência do vazio faz com que o indivíduo sente que nada ganha, passando a agir com animosidade e hostilidade em suas relações na instituição. Há um sentimento de persecutoriedade onde o indivíduo ataca e se sente atacado. Esta forma de dinâmica mental demonstra um funcionamento primitivo já demonstrado por Freud em Totem e Tabu (1913). O objeto totêmico é carregado de ambivalências, sentido como algo sagrado, protetor mas também visto com horror; sendo este objeto capaz de destruição. Ser parte integrante de uma instituição é muitas vezes ficar suscetível à sentimentos bastante primitivos; mobilizando raiva, frustrações; idealizações e também se utilizando mal do poder que muitas vezes lhe é outorgado. Quando o profissional é investido por esses sentimentos tem a dificuldade de realizar um trabalho produtivo, de qualidade capaz de gerar sentimentos positivos em si e em relação à instituição. 154 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 151-158, 2003 Realizar tarefas e criar novas condições de trabalho e de relações se torna angustiante, ficando a instituição depositária de queixas, desmotivações que impedem os profissionais de crescimento e cristaliza posturas infantis de ressentimentos e acusações, constituindo um Inconsciente Institucional compartilhado entre seus membros e que vai refletir em todas as situações vivenciadas na instituição. Dentro do contexto institucional é comum relações desagregadoras que muitas vezes são pautadas no poder, são mecanismos que Foucault (1979), chamou de “práticas disciplinares de controle” como a questão da produtividade, da vigilância de horários, atuações punitivas em desobediência as regras. São situações que favorecem para que o trabalhador se sinta pressionado, tenso, fazendo com que ele muitas vezes se vincule com seus iguais também através da relação de poder e saber, “... há uma perfeita articulação do poder com o saber e do saber com o poder.” (FOUCAULT, 1970, p.141). É bastante comum nas instituições centralizar poder numa determinada classe de profissionais instituindo-os de saber e poder. Em instituições de promoção à saúde percebe-se uma centralização de poder e saber na figura do médico, que quase sempre é visto de forma idealizada; e o mesmo, ficando identificado com o que lhe é atribuído, assume esse lugar. Muitas vezes esse tipo de relação se estende dos profissionais aos usuários do serviço da instituição, sendo eles os detentores do saber acabam estabelecendo uma relação de subjugação, ficando os usuários sob o poder do saber formando assim relações perversas. O poder quando nas mãos de quem não tem capacidade de suportá-lo e de entendê-lo, leva a um desvio do caráter podendo tornar desagregador a quem o usa, ao ambiente e as pessoas próximas. São vínculos e relações que se estabelecem dentro de uma instituição que deixa quem nela trabalha “enlouquecidos”. O profissional na instituição só trabalha bem quando é capaz de discriminar representações que se formam a nível intra-subjetivo para não reproduzir ingenuamente as situações. Esse trabalhador deverá ter capacidade de lidar com a realidade tanto da instituição como o que nela é produzido sem perder de vista os seus objetivos e os da instituição, buscando mais uma atitude de procurar o sentido subjetivo dos fatos para poder discutí-los dentro de uma realidade. Não conseguindo fazer este exercício, o trabalhador passa a ter que lidar com vínculos que enlouquecem, se utilizando de uma quantidade maior de energia psíquica para poder enfrentar situações desgastantes como; insatisfações, pressões sentidas com as práticas disciplinares e outras, e tendo Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 151-158, 2003 155 que agir ao mesmo tempo de forma equilibrada sobre acontecimentos que necessitam de sua intervenção. Os vínculos, num ambiente tenso e hostil são estabelecidos de forma ansiosa e defensiva, onde as pessoas tendem a esconder partes do seu “eu” formando máscaras que ficam difíceis de serem desfeitas. Esses vínculos são fatores acumulativos de carga psíquica, e não havendo a possibilidade de se reestruturar a organização do trabalho, a relação do trabalhador dentro desse universo é prejudicada surgindo um sofrimento mental podendo gerar atitudes de insegurança, de temor e hostilidade produzindo stress que poderá ser manifestado no corpo através de perturbações que se transformam em doenças. É muito comum em ambientes de trabalho assim descritos, as freqüentes faltas ou afastamentos dos profissionais por licença saúde e mesmo acidentes de trabalho. Nestes ambientes o profissional fica propenso a desenvolver reações emocionais negativas, como o medo e a angústia instalando-se disfunções psicológicas e comportamentais ficando os indivíduos vulneráveis principalmente aos distúrbios psíquicos. Hoje no mundo do trabalho temos visto uma grande quantidade de pessoas sofrendo de depressões, fobias, pânicos sem falar das desordens mentais que se confundem ou não se discriminam de forma clara e perceptível colaborando para a formação de vínculos “enlouquecedores”. Considerações Finais O desenvolvimento de todo ser humano se dá num contexto social através dos vínculos que se formam. Nós humanos estamos ao longo de toda a vida ligados à uma instituição e também à algum tipo de vinculação refletindo muito do que somos e do que suportamos. São nas relações que o homem se torna quem ele é, incorporando valores, crenças tentando dar sentido e explicações as coisas e à sua vida. “Não há homens em si, apenas homens-em-relação.” (DUARTE JUNIOR, 1987, p.33). Todas as relações estabelecidas seja com pessoas ou coisas estão o tempo todo permeadas por sentimentos que são expressos nas atitudes frente à situações e pessoas de forma concreta ou subjetiva. As pessoas e os ambientes são formadores e geradores do que somos e sentimos vindo a refletir nas atitudes que temos para com o mundo. As instituições são lugares propiciadores de vínculos e relações dos mais variados tipos; são lugares muito férteis na criação do subjetivo, de posturas que podem ser positivas ou doentias. Não são as instituições propriamente ditas as criadoras das “neuroses”, elas somente trazem à tona o que está submerso ou 156 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 151-158, 2003 enfatiza o que já existe numa personalidade que já está fragilizada. As instituições carregam em si significados e ideologias que as caracterizam e quem nelas trabalham acabam sendo os representantes desses significados perante a sociedade, e quando identificados agem da mesma forma que introjetaram esses sentimentos, vindo a se manifestar nas relações, no ambiente que se trabalha e mesmo nas tarefas ou funções que se realiza. A vivência pessoal e profissional numa instituição quando experienciada com discernimento e reflexão torna-se rica em conhecimentos acarretando uma construção de saber de si e do trabalho muito positivos. Mas, quando vivida indiscriminadamente se torna desestruturante psíquica e fisicamente; os vínculos e as relações estabelecidas remetem o trabalhador à sentimentos desagregadores, confusos, duplos levando o profissional a emitir atitudes defensivas que podem comprometer principalmente a saúde mental e o desempenho do trabalho. Fazer parte de uma instituição de forma efetivamente produtiva é abrir espaço para a reflexão buscando decodificar e dar significados objetivos para a realidade onde se está inserido como pessoa e como trabalhador. BARRETTO, S. A. P.; BERTANI, Í. F. Madden tieds in institutions Serviço Social & Realidade (Franca), v.12, n.1, p. 151-158, 2003. • ABSTRACT:The presents article makes a reflexion about what institution ia, how it is present in every human being formation of identite and feeling of inclusion or exclusion in it universe of relationship. Also deal with entails formation inside of the labour institution and identifyng with it ideology and subjectivity, may come to beliave in front at the situations, like the way conceved and identifyed. The institutions are fertile places ins development of entais originator of anxiety and self defense, many times persecution leting who works ins it vulnerable to situations and to insane entais able to cause fisical and mental disturbs leting people vulnerable and loosing their capacity of discernment and production. • KEYWORD: Institutin; Labour; Entails; Mental Health. Referências Bibliográficas CHANLAT, Jean François. O Indivíduo na Organização: dimensões esquecidas. v. I e II. São Paulo: Atlas, 1996. DEJOURS, Christophe. A Loucura do Trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5.ed. Ampliada. Trad. Ana Isabel Paraguay e Lúcia Leal Ferreira. São Paulo: Cortez-oboré, 1992. ______. Psicodinâmica do Trabalho: contribuições da escala dejourniana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. Coord. Maria Irene Stocco Betiol. São Paulo: Atlas, 1994. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 151-158, 2003 157 DUARTE JÚNIOR, João Francisco. A política da Loucura: a antipsiquiatria. 3.ed. Campinas: Papirus, 1987. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder: Rio de Janeiro: Graal, 1979. FREUD, Sigmund. Totem e Tabu e Outros Trabalhos: v. XIII (1913-1914). ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, s/d. 158 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 151-158, 2003 A POLÍTICA DE SEGURIDADE SOCIAL: CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A LOAS - LEI ORGÂNICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL Ana Maria TASSINARI* Juliane Stamato Taube STAMATO* Maria Inês Nascimento Fonseca de SOUSA* Adriana GIAQUETO** Lilia Christina de Oliveira MARTINS*** • RESUMO: A partir da Constituição Federal de 1988 e da Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS – 1993, novos conceitos e novos modelos de Assistência Social passaram a vigorar no Brasil, sendo colocada como direito de cidadania, com vistas a garantir o atendimento às necessidades básicas dos segmentos populacionais vulnerabilizados pela pobreza e pela exclusão social. A LOAS confere à Assistência Social o papel de política pública com a universalização dos direitos sociais e a introdução do conceito dos mínimos sociais. A Política de Assistência Social é política de eqüidade, quando se propõe a atender a heterogeneidade entre os cidadãos. Seu papel político é de estimular a ruptura da subalternidade. As grandes linhas indicativas das possibilidades de recomposição do campo assistencial, em sua articulação com o sistema de Seguridade Social, estão garantidas legalmente. Mas a implementação dos direitos sociais previstos, a transformação nas relações de poder – entre Estado e Sociedade – só serão efetivamente materializadas pelas ações colocadas em prática cotidianamente com vistas à aplicação da legislação. Da mesma forma, a direção destas transformações depende das relações de forças resultantes da composição dos dirigentes institucionais, dos conselhos de gestão, enfim, da sociedade civil como um todo. • PALAVRAS-CHAVE: Seguridade Social; LOAS; Assistência Social; Desafios; Eqüidade. Introdução A Política de Seguridade Social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos da população relativos à saúde, à previdência e à assistência social. A Assistência Social é parte integrante das ações que visam garantir direito de cidadania e igualdade de condições de vida a todos os brasileiros. A Constituição Federal de 1988 consagrou, portanto, a Assistência Social como parte do tripé da Seguridade Social (Saúde, Previdência e Assistência). A legislação que a regulamenta (Lei Orgânica de Assistência Social n. 8.742, 7/12/1993; Política Nacional de Assistência Social e Norma Operacional Mestrandas do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – UNESP- Campus de Franca/SP. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – UNESP- Campus de Franca/SP. *** Professora Livre Docente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – UNESP – Campus de Franca/SP. * ** Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 159-168, 2003 159 Básica, publicadas no Diário Oficial da União de 16/04/1999), imprimiu-lhe princípios como seletividade e universalidade na garantia dos benefícios e serviços, gratuidade e não contributividade no que tange à natureza dos direitos; redistributividade, no que se refere aos mecanismos de financiamento; e descentralização e participação, quanto à sua forma de organização políticoinstitucional. LOAS: Novos Paradigmas da Assistência Social A partir da Constituição Federal de 1988, novos conceitos e novos modelos de Assistência Social passaram a vigorar no Brasil, sendo colocada como direito de cidadania, com vistas a garantir o atendimento às necessidades básicas dos segmentos populacionais vulnerabilizados pela pobreza e pela exclusão social. Até então, a legislação brasileira datada de 1947, referia-se de modo difuso às responsabilidades governamentais quanto à Assistência Social, reservando-a aos “menos favorecidos”, limitada a um claro referencial paternalista, típica do populista governo de Getúlio Vargas. Nesta época a Assistência Social era sinônimo de caridade, benevolência, enfim, um conjunto de ações e atividades de favor prestadas por aqueles que têm mais em benefício daqueles que têm menos. Após muita luta dos movimentos sociais, pelos trabalhadores sociais inclusive, a Assistência Social passa a ser entendida como dever do Estado e direito do cidadão. Esse é o novo paradigma, é o novo modelo da assistência social no Brasil, onde não há mais lugar para troca de favores ou para atuação paternalista. Ele pode ser traduzido em ações e atividades voltadas à promoção humana e ao desenvolvimento social, como garantia de condições de sobrevivência, em sua plenitude, a todos os brasileiros em situação de vulnerabilidade e exclusão social. A Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS - dispõe sobre a organização da Assistência Social. É o instrumento legal que regulamenta os pressupostos constitucionais, ou seja, aquilo que está escrito na Constituição Federal em seus artigos 203 e 204, que definem e garantem os direitos a Assistência Social. A LOAS institui serviços, benefícios, programas e projetos destinados ao enfrentamento da exclusão social dos segmentos mais vulnerabilizados. Os pressupostos constitucionais de Assistência Social também se concretizam por intermédio da Política Nacional de Assistência Social. A política de Assistência Social tem sua centralidade na família e a população em situação de risco social deve ser transformada em sujeito de seu 160 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 159-168, 2003 processo de promoção, investido de direitos e também de responsabilidades. Dentro desse novo referencial, é preciso fazer um mapeamento, ou seja, saber onde se localizam as populações sujeitas à vulnerabilidade e à exclusão social, e também o planejamento e a execução de atividades capazes de superar as situações identificadas. Esse trabalho tem por base, especialmente, a articulação entre Estado e Sociedade Civil, onde se incluem as entidades sociais, filantrópicas e beneficentes, as organizações governamentais e não-governamentais, associações de moradores, enfim, todas as organizações de caráter público e sem fins lucrativos, para o desenvolvimento das atividades de promoção humana e desenvolvimento social que garantam o acesso à condição de cidadania. O dever do Estado brasileiro, isto é, do poder público, seja ele federal, estadual ou municipal, é a formulação de políticas e realização de ações e atividades que protejam e promovam aquela parcela da população que se encontra em situação de vulnerabilidade, permitindo a esta parcela, alcançar uma situação de plena cidadania. A Política de Assistência Social é também política de eqüidade, quando se propõe a atender a heterogeneidade entre os cidadãos. Seu papel político é de estimular a ruptura da subalternidade, supondo uma pedagogia não tutelar, de independência paulatina dos cidadãos dos aparatos e programas institucionais. Ao definir diretrizes, princípios, estratégias e formas de gestão, a Política de Assistência Social constitui um instrumento de gestão que transforma em ações diretas os pressupostos legais, estabelece as competências e os fluxos entre as três esferas de governo. Elaborada em parceria com organizações governamentais e não governamentais, e proposta pelo gestor federal, a Política Nacional de Assistência Social, foi aprovada em dezembro de 1998, pelo Conselho Nacional de Assistência Social. Tal Conselho é organizado de forma paritária, isto é, por igual número de representantes da sociedade civil e das esferas governamentais. Os objetivos da Política Nacional de Assistência Social são: • Promover a inclusão dos destinatários da Assistência Social, garantindolhes o acesso aos bens e serviços sociais básicos, com qualidade; • Assegurar que as ações, no âmbito da Assistência Social, sejam implementadas, tendo a família como seu principal referencial para o desenvolvimento integral dos destinatários; • Contribuir para a melhoria das condições de vida das populações excluídas do pleno exercício de sua cidadania e; • Estabelecer diretrizes gerais que sirvam como orientação para Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 159-168, 2003 161 planos, benefícios, serviços, programas e projetos de assistência social adequadas aos valores democráticos implícitos nesta política; A Política Nacional de Assistência Social é regida por princípios democráticos extensivos às populações urbanas e rurais, quais sejam: • Universalização dos direitos sociais a fim de tornar o destinatário da ação assistencial, alcançável pelas demais políticas públicas; • Respeito à dignidade do cidadão; • Igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de qualquer natureza e; • Promoção da eqüidade no sentido da redução das desigualdades sociais e enfrentamento das disparidades regionais e locais no acesso aos recursos financeiros. Além de princípios e objetivos, a Política de Assistência Social tem as seguintes diretrizes: • Definir claramente as competências federal, estadual e municipal na condução da política de Assistência Social; • Garantir de forma paritária a participação popular. Para a implantação da Assistência Social, faz-se necessário o reordenamento institucional, com a descentralização dos serviços (atividades continuadas que visem à melhoria de vida da população), dos programas e projetos de enfrentamento da pobreza. Por isso, a criação dos Conselhos em todas as instâncias de forma a possibilitar a participação efetiva da sociedade civil nas decisões da política. Além dos conselhos, existem os fundos (Fundo de Assistência Social), para que o recurso financeiro da Assistência Social tenha sua aplicação feita por critérios justos, transparentes e submetidos à fiscalização da sociedade. Portanto, os Conselhos, são instâncias deliberativas do sistema descentralizado e participativo da Assistência Social, constituídos em cada esfera de governo, com caráter permanente e composição paritária. No âmbito do Estado, o Conselho possui importante atuação na formulação de estratégias e na aprovação e fiscalização e avaliação dos resultados da Política de Assistência Social, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros. No âmbito do município, conforme o art. 9º da LOAS, o Conselho Municipal de Assistência Social assume, dentre outras responsabilidades, a inscrição de entidades e organizações de Assistência Social, cabendo-lhe, ainda, a supervisão das mesmas. O financiamento da Assistência Social será feito com recursos da União, Estados e Municípios. Para que os repasses sejam possíveis, é imprescindível a 162 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 159-168, 2003 existência dos Conselhos, Fundos e Planos de Assistência Social, em todos os níveis. Os principais benefícios previstos na LOAS são: • Benefícios de prestação continuada garantia de um salário mínimo ao idoso maior de 70 anos e ao portador de deficiência que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por suas famílias; • Benefícios de caráter eventual: auxílio natalidade, auxílio funeral. A LOAS é inovadora na medida em que confere à Assistência Social o papel de política pública com a universalização dos direitos sociais e a introdução do conceito dos mínimos sociais. A construção de uma política de Assistência Social implica em um modelo democrático participativo que estabelece a co-responsabilidade entre Estado e Sociedade na formulação, execução e controle das políticas. LOAS: Resistências e Desafios a sua Implementação Historicamente, a Assistência Social sempre encontrou resistência de diferentes setores que agiram no sentido oposto de seu reconhecimento como direito social. Resistências corporativas de trabalhadores da área e de dirigentes governamentais que agiram para evitar o processo de descentralização; resistência de técnicos da área econômica e da previdência social que temiam que a inclusão da Assistência Social no âmbito da seguridade absorvesse enormes recursos da previdência social; resistências políticas de diversos grupos habituados a se servirem da assistência como um mecanismo clientelista; resistência das associações filantrópicas que temiam a ingerência governamental na sua “autonomia” na execução de ações assistenciais financiadas com recursos públicos; e, sobretudo, resistência dos representantes máximos do governo, que utilizaram diferentes estratégias para retardar a regulamentação da assistência. Estas resistências, já identificadas em momentos anteriores à aprovação da LOAS, parecem ter continuado a agir após a sua aprovação, no sentido de retardar a efetiva concretização da Assistência como direito social. Esta hipótese é alimentada por alguns indicadores como: • A implantação do Conselho Nacional de Assistência Social não se deu por iniciativa governamental, mas por pressão da sociedade civil e do poder judiciário; • O governo não cumpriu os prazos legais estabelecidos na legislação para o reordenamento institucional previsto (artigo 32) e durante todo o ano de 1994 a Assistência Social foi desenvolvida Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 159-168, 2003 163 pelo Governo Federal em completo desrespeito à legislação; O Fundo Nacional de Assistência Social só foi regulamentado em agosto de 1995; • Os benefícios de prestação continuada só foram efetivamente iniciados em janeiro de 1996; • Os benefícios eventuais ainda hoje não foram regulamentados; • O governo atual vem tomando uma série de iniciativas que altera a legislação, antes mesmo que ela seja completamente aplicada (ampliação do prazo para a realização das conferências e mudança nos critérios de convocação, critérios de revisão do BPC (Benefício de Prestação Continuada) absolutamente restritivos, tentativa de mudar a natureza deliberativa dos conselhos, entre outros). Definida como política que deve prover os mínimos sociais a fim de garantir o atendimento às necessidades básicas (art. 1º da LOAS), mas regida pelo princípio da universalização dos direitos sociais (art. 4º da LOAS), a Assistência Social defronta-se permanentemente com o binômio seletividade versus universalidade. Muitas interpretações limitadas e equivocadas destas orientações levam a entender e restringir os direitos assistenciais ao mínimo vital à sobrevivência humana, focalizando-os em segmentos e parcelas da população tidos como absolutamente vulneráveis (em geral aqueles segmentos inaptos ao trabalho: crianças, idosos, portadores de deficiência). Nesse caso, a assistência assume caráter absolutamente seletivo e a focalização acaba estimulando o jogo da discriminação, estigmatizando e excluindo usuários potenciais a quem o direito deveria estar sendo assegurado. Esta interpretação da seletividade é orientada por uma perspectiva que limita a assistência às ações pontuais, assistemáticas, descontínuas e inócuas do ponto de vista da redução das desigualdades sociais. Como um exemplo desta interpretação de Assistência, temos o programa Comunidade Solidária, enquanto estratégia neoliberal do governo Fernando Henrique Cardoso. No discurso oficial o Programa Comunidade Solidária caracterizou-se como uma estratégia de articulação entre governo e sociedade, sendo o combate à pobreza seu principal objetivo explícito. Apresentava como proposta a mobilização de recursos institucionais, humanos e organizacionais existentes para atender os pobres brasileiros, sob a orientação dos princípios da parceria, da solidariedade e da descentralização. A idéia era evitar a pulverização de recursos e articular o envolvimento dos três níveis de governo e da sociedade. Propunha integrar e descentralizar as ações do governo abrindo-se à • 164 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 159-168, 2003 participação e parceria da sociedade. Adotava a filosofia da SOLIDARIEDADE considerada a nova concepção de cidadania. Visto como continuidade do Plano de Combate à Fome, à miséria e pela vida, pretendia atuar em duas frentes: • Sensibilizando o governo para priorização de iniciativas assistenciais; • Mobilizando e envolvendo a sociedade em torno da fome e da pobreza através de campanhas, manifestações públicas, etc. Na realidade, entretanto, a Comunidade Solidária restringiu-se a práticas emergenciais, assistencialistas, com uma assistência arcaica, eventual, clientelista, sobretudo por estar desarticulado de ações mais amplas, que fossem capazes de corrigir as distorções estruturais presentes na nossa sociedade. Nesse sentido é um Programa que expressou a fragmentação da política de Assistência Social, contrapondo-se aos preceitos de ampliação dos direitos sociais e ao princípio de universalização, que constam na Constituição de 1998 e na LOAS. O princípio da universalização garantido legalmente indica que a Assistência Social deve ser entendida tendo como horizonte a redução das desigualdades sociais. Isto não significa que os direitos assistenciais devam ser garantidos a todos os cidadãos, pobres e ricos indiscriminadamente, mas eles devem agir no sentido de buscar a inclusão de cidadãos, viabilizando-se mediante a vinculação orgânica com as políticas econômicas e sociais. A universalidade assume, assim, dois sentidos: o primeiro, de garantir o acesso aos direitos assistenciais a todo o universo demarcado pela LOAS, ou seja, a todos aqueles que estão dentro das categorias, critérios e condições estabelecidos por ela; e o segundo, é o de articular a Assistência às demais políticas sociais e econômicas, tendo como perspectiva a construção de um sistema de proteção social contínuo, sistemático, planejado, com recursos garantidos no orçamento público das três esferas governamentais, com ações complementares entre si, evitando assim o paralelismo, a fragmentação e a dispersão de recursos. Enquanto política setorial, ela não tem (e nem deve ter) a função de dar respostas cabais à pobreza. Seu horizonte deve ser o da sua inserção efetiva num projeto de desenvolvimento econômico e social, tanto local quanto nacional. Na relação entre as três esferas governamentais, o Governo Federal assume o papel de articulador da unidade nacional (LOAS, art. 12). Os Estados assumem uma atribuição complementar à dos municípios: participar no financiamento dos auxílios natalidade e funeral, apoiar técnica e financeiramente os serviços, programas e projetos de enfrentamento da pobreza e atender às ações assistenciais de caráter emergencial (art. 13). Aos municípios e ao Distrito Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 159-168, 2003 165 Federal coube a carga mais pesada: garantir o custeio e implementação dos benefícios eventuais (auxílio-natalidade e morte), implementar os projetos de enfrentamento à pobreza, atender às ações assistenciais de caráter emergencial e prestar os serviços assistenciais previstos na lei (arts. 14 e 15). Esta distribuição de competências apresenta aspectos positivos, mas também alguns riscos. O principal risco é a tendência de reduzir a descentralização a uma simples transferência de atribuições e responsabilidades aos Estados e, sobretudo, aos municípios, sem a correspondente transferência de recursos financeiros, humanos e materiais e, principalmente, sem dividir o poder político de tomada de decisão. Para materialização destas orientações, ainda se colocam desafios como: • A garantia do comando único em cada esfera governamental, ou seja, a existência de apenas uma secretaria (ou equivalente) responsável pela política de assistência social, o que não vem sendo cumprido no âmbito federal, já que a Secretaria de Estado de Assistência Social do Ministério da Previdência Social concorre com o Programa Comunidade Solidária; • A garantia de condições financeiras e materiais para a consolidação da municipalidade como espaço privilegiado de poder local com autonomia; • A definição mais clara do papel e competências dos governos estaduais. Considerações Finais A Constituição Federal de 1988 inaugura uma nova posição da Assistência Social como Política Social Pública; novos conceitos e novos modelos passaram a vigorar no Brasil e hoje a Assistência Social é entendida como dever do Estado e direito do cidadão. O dever do Estado é formular políticas e realizar ações que protejam a parcela da população que se encontra em situação de vulnerabilidade, permitindo a esta parcela alcançar uma situação de plena cidadania. Neste sentido, a política de Assistência Social é também política de eqüidade. Por outro lado, as novas definições trazidas pela Constituição e pela LOAS, ainda que importantes e de grande relevância para operar avanços significativos na área da administração pública, como a descentralização e democratização das políticas sociais, têm levado, em alguns casos, ao puro formalismo, devido à forte tradição centralizadora do governo federal, à tendência à padronização, que não considera as diferentes realidades 166 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 159-168, 2003 apresentadas pelos estados e municípios, ou seja, tratam os desiguais como iguais, e à não efetivação de transferências de recursos da união e dos estados para os municípios, compatíveis com as demandas apresentadas pelo nível local. Os elementos apontados, entre outros, indicam que a política de assistência é um campo político em constante conflito, e que sua consolidação como direito social depende, não exclusivamente, mas em larga medida, da ação dos sujeitos envolvidos na sua formulação e implementação. Os mecanismos legais necessários à construção de um sistema descentralizado e participativo já existem. É preciso, agora, investir na sua efetivação. É preciso que haja vontade política dos governantes e a ação organizada da sociedade para materializar a transformação da assistência em política pública de direito social. TASSINARI, A. M.; STAMATO, J. S. T.; SOUSA, M. I. N. F. de; GIAQUETO, A.; MARTINS, L. C. de O. The social security politics: the 1988 Federal Constitution and the LOAS – Organic Law of Social Assistance. Serviço Social & Realidade (Franca), v.12, n.1, p. 159-168, 2003. • ABSTRACT: Since the 1988 Federal Constitution and the 1993 Organic Law of Social Assistance – LOAS – new concepts and models of Social Assistance had started to invigorate in Brazil, established as citizenship rights, in order to guarantee the basic necessities of the population that suffers the consequences of poverty and social exclusion. LOAS grants Social Assistance the role of public politics with the universal social rights and the introduction of the concept of minimal social. Social Assistance Politics is an equity politics, when it proposes to minister the equality among citizens. Its political role is to stimulate the rupture of the subordinates. The great directions are to reorganize the assistance field, which is legally guaranteed, in organization with the system of Social Security. But, the implementation of the foreseen social rights, and the transformation on the power relations, between the State and Society, will only be factually materialized by daily actions in order to put the application of the legislation into practice. Likewise, the direction of these transformations depends on the relations of resultant forces of the institutional controllers, the council of management, lastly, the civil society as a whole. • KEYWORDS: Social Security; LOAS; Social Assistance; Challenges; Social justice. Referências Bibliográficas BOBBIO, N. A era dos direitos. São Paulo: Campus, 1992. BRASIL, Ministério da Previdência e Assistência Social. Norma Operacional Básica da Assistência Social. Brasília, DF, 2000 (impresso). CARVALHO, Alysson; et al. Políticas Públicas. Belo Horizonte: UFMG, 10/07/2002. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 159-168, 2003 167 CARVALHO, M. C. B. A política de assistência social no Brasil: dilemas na conquista de sua legitimidade. 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São Paulo: Cortez, 1987. 168 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 159-168, 2003 A TEORIA SOCIAL DE MARX E O SERVIÇO SOCIAL João Antonio RODRIGUES* • RESUMO: As categorias do materialismo dialético e a leitura da realidade da sociedade brasileira e suas relações de classe como embasamento teórico para o Serviço Social. • PALAVRAS-CHAVE: Materialismo Dialético; totalidade; universalidade; singularidade; particularidade. Introdução Este texto foi construído objetivando sintetizar informações sobre o materialismo dialético e a metodologia no serviço social, para uso em sala de aula, na disciplina de Fundamentos Teórico-metodológicos. Procurou-se reunir o estudo de algumas categorias marxianas para a compreensão da dinâmica das relações sociais de produção na sociedade brasileira e suas repercussões na forma de sobreviver da classe que dispõe apenas da força de trabalho para viver, quando consegue vendê-la. Exercitou-se a reflexão sobre o binômio conhecimento-ação, como forma de construir a práxis do serviço social, estabelecendo aproximações de potenciais ações profissionais nas abordagens com indivíduos, grupos e populações. Apresentam-se exemplos e sugestões objetivando clarificar os aspectos constitutivos, para fins didáticos, não estabelecendo modelos ou receitas, pois se entende que a ação profissional deve ser pautada com base na apreensão do real partindo-se de múltiplas e sucessivas apreensões, garantindo sua apreensão na totalidade e na historicidade. 1 Algumas Considerações sobre o Materialismo Dialético A teoria marxiana torna possível realizar a análise da realidade incorporando o raciocínio dialético-materialista. A opção pelo materialismo dialético não permite a construção de modelos, de “receitas”, pois a práticateoria-prática encaminha as mediações em cada realidade, em cada relação particular do sujeito, seja ele, o indivíduo, o grupo ou a população em uma perspectiva de totalidade. Tal opção não fornece ainda, generalizações a partir de experimentos que, por uso reiterado, passam a estabelecer teorias e/ou leis generalizantes. Entende-se, que tal procedimento, dificulta sobremaneira a apropriação de Assistente Social e mestre em Serviço Social, Doutorando em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da FHDSS – UNESP – FRANCA/SP. * Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 169 um método, determinando que o instrumental técnico-operacional esteja envolto em um processo, necessariamente coletivo, que irá contemplar, contextualizado historicamente, o processo coletivo de reflexão da prática profissional, das ações de investigação e de intervenção na realidade. Para Marx, não existe a questão da teoria e do método, pois ambos encontram-se imbricados e articulados. Na apropriação do método materialista dialético, José Paulo Netto em seu livro Ditadura e Serviço Social – uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64, entende existirem três momentos no surgimento do projeto de ruptura do Serviço Social com o seu projeto tradicional, aproximando-se da tradição marxista pela militância político-partidária, pelos movimentos de esquerda influenciados pela Igreja Católica e por seus setores progressistas, vinculados à Teologia da Libertação. Existia forte influência althusseriana (LOUIS ALTHUSSER – Filósofo francês), além do marxismo soviético, que fazia uma leitura estreita, baseada no movimento estrutural da sociedade, impedindo perceber-se as contradições permeando as relações sociais, o que resultou numa visão míope, do trabalho social com indivíduos e grupos no âmbito institucional, como reprodutor da ordem capitalista estabelecida e ainda como promotor da manutenção do “status quo”. Chamou-se esse período, segundo vários autores, da negação do trabalho institucional, quando se procurou negar o espaço institucional como legítimo para a ação profissional, percebido como controlado pela classe dominante e buscaram-se os espaços populares, enfatizando-se a conscientização da população, a preparação para a militância política e políticopartidária, como forma de construção da luta contra a classe dominante e o modo de produção capitalista. O momento seguinte supera o anterior com o marxismo acadêmico predominando e promovendo-se o retorno aos clássicos, ou seja, fundamentarse nas fontes originais, percebendo e valorizando a historicidade. No último momento, com a recuperação da tradição materialista dialética, elege-se como referencial de análise profissional da realidade, o referencial teórico materialista concebe a análise de totalidade o que permite compreender o funcionamento da sociedade capitalista. Discute-se uma prática profissional determinada pela intencionalidade (teoria), definindo a necessidade do estabelecimento, para alguns, do compromisso com uma determinada classe, no caso, a classe trabalhadora, para outros a questão do “compromisso seria muito católica, sendo uma questão de aliança de classe, exprimindo o real” (KAMEYAMA, 1989). Compromisso ou aliança, com o projeto político da classe trabalhadora, seria traduzido como o reconhecimento dos sujeitos da ação profissional e da intensa luta pelo 170 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 reconhecimento e conquista da cidadania. O próprio Código de Ética Profissional (1993), define a questão do compromisso e a classe, decorrendo daí a construção do projeto ético-político profissional do Serviço Social brasileiro. Segundo (MARILDA VILELA IAMAMOTO, 1991): as alternativas profissionais são gestadas exclusivamente no campo intraprofissional, pois elas são intimamente articuladas e dependentes do processo histórico de nossas sociedades nacionais e que, portanto, não são dadas apenas por uma posição VOLUNTARISTA (grifo nosso), mas por sua dependência das possibilidades históricas. A ação profissional é construída como processo, percebida como movimento, construída, desconstruída e reconstruída cotidianamente, a partir do lugar onde é desenvolvida, contemplando as análises conjunturais, institucionais, sociais e profissionais, na perspectiva da totalidade da vida social. Por outro lado, na dimensão intraprofissional, o Serviço Social na perspectiva crítica, às vezes, não consegue construir as mediações e instrumentalizar-se adequadamente para trabalhar a realidade cotidiana considerando a totalidade social. A complexidade das relações sociais, atualmente, com o aprofundamento da questão social, apresenta aos assistentes sociais e à sociedade como um todo, um gigantesco desafio no sentido de construção de um projeto transformador das relações sociais e da sociedade, quando se vivencia todas as pressões da ofensiva neoliberal e de um projeto definido à partir das “livres forças do mercado”. Segundo (BATTINI, 1995): Reconstruir conceitos não é somente pensar e descobrir nexos, é sobretudo traduzir a reconstituição do real. É revelar a visão crítica do real, imiscuir-se na realidade, produzindo o novo e não reproduzindo o existente. A condição para tal reconstrução é a necessária unidade sujeito-objeto que implica uma unidade teoria-prática. Para compreender uma situação e intervir com competência, os profissionais necessitam: • Competência Teórica: ter claro o referencial teórico que ilumina a leitura que faz da realidade para a reconstrução de conceitos, tais referências o agente profissional escolhe segundo sua visão de mundo (intencionalidade) e se posiciona no jogo de forças da Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 171 sociedade juntamente com os interesses da classe que mais se identifica com a sua intencionalidade, passando a agir coletivamente; • Competência Técnica: desempenho com habilidade no uso do instrumental técnico-operativo, estabelecimento de estratégias para o enfrentamento da questão social, objeto da ação profissional em uma perspectiva de aliança /compromisso com a população usuária, claramente definida pela intencionalidade do profissional; • Competência Política: perceber a repercussão da ação profissional na defesa de um projeto de sociedade (de acordo com sua visão de homem e mundo) agindo na arena onde estão sendo confrontadas as forças presentes no cenário social e como participação necessária dos intelectuais na prática social. O assistente social em sua prática cotidiana defronta-se com imposições institucionais, fenômenos conjunturais, fenômenos estruturais e ainda limitações profissionais, que podem ser “obedecidas” ou “enfrentadas“ com competência e habilidade, na perspectiva da mudança e/ou superação dos limites e a utilização das oportunidades existentes, construídas e negociadas no atendimento dos objetivos profissionais, além daquela apresentada pela população usuária da instituição e dos próprios objetivos institucionais: • Imposições Institucionais: normas institucionais rígidas, regulamentos, normas estabelecidas nos Estatutos Sociais, normas ligadas a valores (políticos, religiosos, culturais, étnicos, tribais, etc.), diferenças de definição de um projeto de sociedade, cultura política, etc., na perspectiva de encontrar possibilidades e construir projetos de superação dos limites institucionais; da necessária consecução dos objetivos profissionais; • Fenômenos Conjunturais: momentos históricos, favoráveis ou desfavoráveis, para caminhar na direção do projeto de sociedade, voltado para a ação profissional no interesse da população usuária, capturando e decifrando a conjuntura econômica, política, administrativa, da gestão da instituição, seja pública ou privada; como conhecimento fundamental para a superação das determinações conjunturais; • Fenômenos Estruturais: imposições do próprio sistema capitalista, imposições da legislação e do Estado, a leitura do peso estrutural na determinação das relações sociais da sociedade capitalista, e ainda, a compreensão das múltiplas determinações e da construção de um projeto que possa provocar ao longo da história a mudança estrutural necessária e identificada com o projeto de sociedade desejada pela classe trabalhadora; 172 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 • Limitações Profissionais: desdobradas em dois aspectos: A necessidade de clareza e identidade da concepção de homem e de mundo do profissional, possibilitando uma coerência de projeto de sociedade articulada com a prática profissional e o exercício do compromisso e/ou da aliança com as classes trabalhadoras, compatíveis com o projeto ético-político profissional e societário; A necessidade da formação profissional continuada, com a devida atualização e participação nos foros privilegiados da profissão, nas discussões e vivências dos interesses coletivos, tais como os direitos fundamentais do homem, os ideais de liberdade - a democracia, a defesa e a ação concreta no sentido do despertar para a cidadania, além da participação plena nos movimentos sociais, associações e conselhos municipais, estaduais e nacionais, além de outras instâncias e formas de participação ativa na formulação/ gestão/fiscalização das políticas sociais públicas. Para utilizar essa perspectiva de prática profissional, se deve levar em consideração o projeto de sociedade, compreendendo a necessidade da recuperação da visão de totalidade da vida social, assumindo sua condição de ser político, ser social, pensando a transformação social, fundamentada na teoria marxiana que é portadora do método materialista dialético. A apreensão do método dialético, com a percepção das categorias fundamentais da totalidade da vida social, comportando a universalidade, a singularidade e a particularidade, além das categorias de produção, mediação e de classe social para que se possibilite a compreensão do real, onde sujeito e objeto são articulados entre si, resultando em um processo constituinte de conhecimento do real, possibilitando apreendê-lo na totalidade e no movimento. 1.1 A Produção Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, (CORRIGAN & LEONARD, 1986 p. 63) afirmam: Os homens devem estar em posição de viver para fazer a história, mas a vida implica, antes de mais nada, comer e beber, uma moradia, roupas e muitas outras coisas. O primeiro ato histórico é, assim, a produção dos meios para satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material. No processo de produção, os seres humanos não só entram em relação com a natureza; produzem apenas trabalhando juntos de forma específica e trocando reciprocamente suas atividades. A bem de produzir, entram em conexões e relações definidas uns com os outros, sendo no contexto dessas conexões e relações sociais a sua conexão com a natureza, isto é, a produção. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 173 Para entender-se o modo de produção, necessita-se compreender que apenas a relação dos homens com a natureza, não é suficiente, torna-se necessário também abarcar o reconhecimento de uma relação específica de cooperação entre os homens e a natureza, unidos aos outros homens, acontecem algumas formas de relações sociais de produção. O modo de produção capitalista fundamenta-se em elementos essenciais à produção da riqueza: capital e trabalho - pois produzem os bens (mercadorias) que serão trocados no mercado. Tais elementos não existem naturalmente, são criados para serem úteis à sociedade capitalista. O trabalho é uma criação, não sendo algo natural, que surge espontaneamente. Segundo Engels, em Socialismo: “Utópico ou Científico”: Antes da produção capitalista, na Idade Média, o sistema da pequena industria imperava, de modo geral, baseado na propriedade privada dos trabalhadores sobre seus meios de produção, no campo, a agricultura do pequeno camponês, cidadão ou servo; nas cidades, as artes organizavam suas corporações. Os instrumentos de trabalho eram os instrumentos de trabalho de indivíduos isolados, adaptados ao uso por um trabalhador. Mas por essa mesma razão pertenciam, em geral, ao próprio produtor. (CORRIGAN & LEONARD, 1986, p. 64). Com o surgimento do modo de produção capitalista, o trabalho deixou de ser estático, executado por pequenas unidades familiares, passando a ser executado nas fábricas, impossibilitando ao trabalhador, individualmente, continuar sendo possuidor dos meios de produção. Tornava-se real, por não mais possuir tais meios, sua impotência perante as demandas do capital. As principais relações sociais de produção são criadas conforme o modo de produção predominante em determinada sociedade, sendo o conjunto de relações sociais principal o trabalho, realizado por um conjunto de pessoas, que sejam ao mesmo tempo, mãos para manufaturar a serviço do capital. Marx & Engels no Manifesto Comunista (CORRIGAN & LEONARD, 1986, p. 66). Na proporção em que a burguesia, isto é, o capital, se desenvolve, na mesma proporção o proletariado, a moderna classe operária criou uma classe de trabalhadores, que vive apenas enquanto encontra trabalho e que trabalha apenas enquanto seu trabalho aumenta o capital. Esses trabalhadores, que têm de se vender em partes, são um bem, como qualquer outro artigo comercial, e conseqüentemente estão expostos a todas as vicissitudes da competição, a todas as flutuações do mercado. O proletariado passa por vários estágios de 174 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 desenvolvimento. Com seu nascimento começa sua luta contra a burguesia. A princípio, a luta é travada por operários, individualmente, depois pelos operários de uma fábrica, depois pelos que desempenham uma determinada atividade, numa localidade, contra o burguês que, individualmente os explora. Os trabalhadores inicialmente competem uns contra os outros, e cada vez mais são reunidos nas fábricas, cada vez mais são tratados como força substituível por outra, individualmente, o que concretamente os tornam mais iguais, sedimentando os elementos que poderão formar uma consciência de sua posição como classe. Os assistentes sociais devem incluir no processo de conhecimento do real o lugar que os usuários ocupam no modo que a sociedade possui para produzir a riqueza, ou seja, a relação com o trabalho. É necessário compreender profundamente as instituições e as relações sociais no contexto da sociedade, bem como as determinações geradas pelo modo de produção. Cada sociedade reproduz seu modo de produção e as relações sociais de produção, pois cada modo de produção produz relações sociais diferentes. Na sociedade capitalista, a reprodução dos seus componentes básicos: capital e trabalho, é necessária, pois o capital sendo reproduzido é uma forma de continuidade daquela sociedade e o trabalho deverá ser reproduzido para assegurar a criação de um valor excedente. (IAMAMOTO, 1988 p. 75) afirma: Reproduz também, pela mesma atividade, interesses contrapostos que convivem em tensão. Responde tanto a demandas do capital como do trabalho e só pode fortalecer um ou outro pólo pela mediação de seu oposto. Participa tanto dos mecanismos de dominação e exploração como, ao mesmo tempo e pela mesma atividade, da resposta às necessidades de sobrevivência da classe trabalhadora e da reprodução do antagonismo nesses interesses sociais, reforçando as contradições que constituem o móvel básico da história, sendo a partir dessa compreensão que se pode estabelecer uma estratégia profissional e política, para fortalecer as metas do capital ou do trabalho, mas não se pode excluí-las do contexto da prática profissional, visto que as classes só existem interrelacionadas. Sendo isto, inclusive, que viabiliza a possibilidade de o profissional colocar-se no horizonte dos interesses das classes trabalhadoras. A atuação do Assistente Social é polarizada pelos interesses das classes tendencialmente cooptadas por aqueles que tenham uma inserção dominante. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 175 1.2 A Totalidade Georg Lukács, (BOTTOMORE, 1998 p. 381) afirma: A concepção dialético-materialista da totalidade significa primeiro, a unidade concreta de contradições que interagem, segundo, a relatividade sistemática de toda a totalidade, tanto no sentido ascendente quanto no descendente (significando que toda a totalidade é feita de totalidades a ela subordinadas, e também que a totalidade em questão é, ao mesmo tempo, sobre-determinada por totalidades de complexidade superior.) e, terceiro, a realidade histórica de toda totalidade, ou seja, que o caráter de totalidade da totalidade é mutável, desintegrável e limitado a um período histórico concreto e ainda determinado. Segundo (KONDER, 1992), totalidade significa: “Qualquer objeto que o homem possa perceber ou criar, é parte de um todo”. Em cada ação empreendida, o ser humano se defronta, inevitavelmente, com problemas interligados. Por isso, para encaminhar uma solução para os problemas, o ser humano precisa ter uma visão de conjunto deles: é a partir da visão do conjunto que se pode avaliar a dimensão de cada elemento do quadro. A visão de conjunto – ressalve-se – é sempre provisória e nunca pode pretender esgotar a realidade a que ele se refere. A realidade é sempre mais rica do que o conhecimento que se possa obter. Há sempre algo que escapa às sínteses, porém, não se dispensa o esforço de elaborar sínteses, quando se procura entender melhor a realidade. A síntese é a visão de conjunto que permite ao homem descobrir a estrutura significativa da realidade com que se defronta, numa situação dada. E é essa estrutura significativa – que a visão de conjunto proporciona – que é chamada de totalidade. A totalidade é maior do que a soma das partes que a constituem. Existem totalidades mais abrangentes e totalidades menos abrangentes. A maior ou menor abrangência de uma totalidade depende do nível de generalização do pensamento e dos objetivos concretos dos homens em cada situação dada. Quando se está empenhado em analisar as questões políticas que estão sendo vividas pelo país, a totalização que é necessária seria a da visão de conjunto da sociedade brasileira, da sua economia, da sua história, das suas contradições atuais. Se, porém, desejar-se elevar a análise a um plano filosófico, será necessária então, uma visão de conjunto da história da humanidade, isto é, da dinâmica realidade humana como um todo (nível máximo de abrangência da totalização dialética). Para se trabalhar dialeticamente com o conceito de totalidade, é muito importante saber-se qual é o nível de totalização exigido pelo conjunto de 176 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 problemas com os quais se defronta, registra-se ainda importante não se esquecer que a totalidade é apenas um momento de um processo de totalização (que, conforme já se advertiu, nunca alcança uma etapa definitiva e acabada). Afinal, a dialética – maneira de pensar elaborada em função da necessidade de reconhecer-se a constante emergência do novo na realidade humana – negarse-ia a si mesma, caso cristalizasse ou coagulasse suas sínteses, com a recusa de revisá-las, mesmo em face de situações modificadas. A modificação do todo só se realiza, de fato, após um acúmulo de mudanças nas partes que o compõem. Processam-se alterações setoriais, quantitativas, até se alcançar um ponto crítico que assinale a transformação qualitativa da totalidade. É a lei dialética da transformação da quantidade em qualidade. Cumpre-se ainda destacar, que a modificação do todo é mais complicada que a modificação de cada um dos elementos que o integram. Finalmente, assinalar que cada totalidade tem sua maneira diferente de mudar; as condições da mudança variam, dependendo do caráter da totalidade e do processo específico do qual ela é um momento. 1.3 A Mediação Segundo (BATTINI, 1995): As relações de uma totalidade complexa não se dão de modo linear, mecanicista ou unilateralmente, mas acontecem mediante instâncias de passagem geradas em si mesma. A mediação é concebida como a relação entre o mediato e o imediato, a mediação é a categoria que auxilia o profissional a criar as condições da operação da práxis, figurando entre o resultado do conhecimento e a efetividade desse resultado. São nos processos de mediação que o movimento das relações sociais faz fluir os atos e o desvendar da realidade nos seus atributos e nas suas determinações. Mediação é uma categoria do movimento que está contida na totalidade social, configurando sua processualidade e assegurando ao sujeito sua apreensão. São dos processos de mediação que são construídas e apresentadas as relações imanentes das instâncias complexas constituintes da realidade social. A prática profissional organizada e operacionalizada nos processos de mediação, contém um significado que determina a realização de uma intencionalidade. No movimento dialético da totalidade a mediação possibilita passar do abstrato para o concreto, executando a relação entre os complexos da totalidade através de passagens e conversões. Deve-se entender ainda, que a realidade Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 177 não se desvela de início ao ser social, mas através de mediações que objetivam possibilitar a totalidade concreta em sua dinâmica processual. Ainda, se utiliza a mediação para captar a singularidade do ser, como ser humano genérico, constituinte de uma totalidade. PONTES, apud Sant’Ana (1995, p. 121), expressa que: Na singularidade vamos captar traços particulares de situações (sociais, políticas, econômicas), mas que estão ligadas organicamente às leis tendenciais históricas, que se expressam na particularidade, de tal modo, que uma dada situação peculiar jamais se repita da mesma forma, mas que para operar sua compreensão, é necessário conectar numa relação complexa e totalizante às leis universais. Segundo (MARTINELLI, 1993 p. 36): Mediações são categorias instrumentais pelas quais se processa a operacionalização da ação profissional. Expressamse pelo conjunto de instrumentos, recursos, técnicas e estratégias e pelas quais a ação profissional ganha operacionalidade e concretude. São instâncias de passagem da teoria para a prática, são vias de penetração nas tramas constitutivas do real. Neste sentido, a própria prática profissional é uma mediação, pois coloca em movimento toda uma cadeia de vínculos na relação totalidade/particularidade, tendo em vista a superação da realidade social concreta. Caracterizam-se como categorias instrumentais, outorgantes de operacionalidade da ação profissional, (MARTINELLI, 1993 p. 137-138), afirma que as mediações apresentam várias categorias, ressaltando as seguintes: • são sempre históricas e sociais, construídas a partir da correlação de forças operantes na realidade. São portanto, socialmente determinadas e produzidas no interior do contexto sócio-político e organizacional, o que evidencia que não há mediações prontas e/ou ideais; • são determinadas pela finalidade e objetivos que se busca atingir, pois são os recursos instrumentais necessários para tanto. É através das mediações que penetramos nos nexos constitutivos do real, desvendando as suas contradições; • são os conjuntos instrumentais necessários para o desenvolvimento do percurso dialético essencial à práxis: do singular para o universal, do simples para o complexo, do particular para o genérico, do aparente para o essencial; • são os recursos instrumentais necessários para o desvendar 178 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 • • • • das vias de resistência e vias de transformação, momento crucial na práxis, juntamente com o desvendar dos nexos de articulação entre os fenômenos em estudo e/ou observação; estão sempre referenciadas a uma teoria de base que as ilumina, teoria esta cuja operacionalização demanda um conjunto de instrumentos, técnicas e estratégias adequadas; são relacionadas à posição ocupada pela profissão na divisão social do trabalho e na estrutura organizacional, expressando-se tanto nos rumos e direção da prática, como em sua administração; pressupõem uma concepção filosófica que as fundamente, como pressupõem também um certo nível de autonomia por parte do profissional; finalmente, as mediações são sempre produtos coletivos e devem ser socialmente construídas, para serem historicamente viáveis. Desempenhar a missão institucional, não se trata de tarefa individual, seja da pessoa ou da profissão, mas tarefa de um sujeito coletivo, portador de identidade institucional e avalizador do estatuto político da ação profissional. A mediação torna-se papel do agente institucional, na especificidade de sua profissão e nas mediações erigidas na relação de totalidade/particularidade. Ainda, (MARTINELLI, 1993 p. 138-40), refere-se a alguns princípios fundamentais, na perspectiva materialista, concernentes à construção de mediações: a) Princípio do Reconhecimento do Ser Social: Todas as ações humanas são multifacéticas e multiformes, assim como todos os problemas são multidimensionais. O homem é um ser contraditório e complexo, é parte de uma totalidade social. Ele nunca é produto, e sim processo, nunca é dado, mas um dar-se, é essencialmente um ser histórico. Conhecê-lo, portanto, implica em conhecer suas histórias, sua vida material. A forma como o homem produz a sua vida material (base material) expressa sua inserção na rede de relações sociais, bem como o nível de sua consciência social. b) Princípio de Atividade: A atividade, a prática social do homem, retrata seu mundo interior, expressa a unidade de sua consciência. Na atividade prática se unem os fins, aspirações, conhecimentos do homem com o mundo material, ou seja, unem-se o mundo material e o ideal. A atividade prática do homem é a expressão de sua unidade interior; através dela o subjetivo se objetiva, a consciência se revela, ganha materialidade. É indispensável, portanto, atentar para a Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 179 atividade vital do homem, como princípio explicativo de sua própria vivência. O real da vida social, como dizia Marx, em sua clássica obra: A Ideologia Alemã é a atividade prática. c) Princípio de Sistematização: Todo fenômeno deve ser encarado como um dado real, existente, concreto, devendo ser compreendido e revelado em sua condicionalidade material. Assim, é preciso definir claramente a natureza do fenômeno, sua relação com outros fenômenos da vida social, bem como as bases de seu surgimento. d) Princípio da Totalidade: Como todo fenômeno é multidimensional e se estrutura em uma realidade complexa, é preciso conhecer essa realidade, apreendê-la em sua concretude e em seu movimento, para poder obter uma compreensão adequada do fenômeno. É preciso penetrar neste complexo que expressa a realidade, para apreendê-la enquanto totalidade composta por determinantes políticos, sociais, econômicos, culturais e históricos. As mediações se apóiam em uma visão de mundo como totalidade, como real concreto, em movimento e ainda uma concepção de homem, como ser histórico, dirigindo-se tanto à pessoa como ao fenômeno, objetivando sua compreensão no movimento e com a inserção no real. Relativamente à pessoa, as mediações estão situadas como conhecimento do real e o concreto com fundamento nos dados de sua existência, de sua consciência e da sua vida social. Com referência aos fenômenos, as mediações devem favorecer ao conhecimento de sua própria existência e surgimento, de suas peculiaridades e traços, dos próprios posicionamentos e finalmente, sobre os impactos resultantes. 1.4 A Universalidade, a Particularidade e a Singularidade Segundo Yolanda Guerra, em seu artigo “A natureza interventiva do Serviço Social e a questão do conhecimento”, a racionalidade dialética, explica que se trabalha com dois tipos de categorias: • Categorias lógicas (intelectivas, reflexivas ou analíticas): procedimento que a razão adota para decodificar o objeto de estudo, resultando uma referência a estrutura de constituição do objeto e o seu movimento na história; • Categorias ontológicas: constitutivas do ser social, fundada em sua referência na realidade, articulando-se historicamente, não na mesma ordem cronológica em que surgem, ou seja, cada período histórico 180 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 possui suas próprias leis e deste modo as categorias possuem articulações diferentes no decurso do processo histórico. Torna-se necessário perceber esta articulação no tempo histórico a ser estudado, bem como eleger as categorias analíticas primárias que se evidenciam no período analisado. A compreensão da primazia de uma categoria sobre outra em determinados períodos históricos, permite ao pesquisador eleger adequadamente suas categorias de análise. Os pressupostos são concebidos de acordo com uma percepção em que o real seria tanto efetividade, quanto possibilidade e como dimensão possível constituinte do próprio real. As categorias teórico-metodológicas fundamentais em Marx: • Totalidade: Segundo (GUERRA, 1997): a necessidade de conceber a sociedade como totalidade, ou seja como uma realidade complexa e articulada já se encontra em Hegel, para quem, há na realidade diversos níveis ou instâncias relativamente autônomas umas das outras. Essa realidade é constituída de diferentes níveis, daí a hierarquização histórico-ontológica de categorias que se expressam com maior ou menor ponderação em determinados momentos. • Particularidade: (LUKÁCS, apud GUERRA, 1997), afirma: ... é o centro e o ponto médio; é o ponto de partida e de chegada dos movimentos. O movimento percorre da particularidade à generalidade e vice-versa e atua como vinculação entre particular e geral. Este movimento se realiza entre centro e periferia e não transversalmente. A particularidade sempre se coloca “em relação a”. Em determinada relação o particular se torna um universal ou singular. A realidade comporta três níveis de generalização: singularidade, particularidade e universalidade, que se encontram entrelaçados no real. Todo gênero singular tem uma constituição particular, ou seja, encontrase numa relação particular com um momento determinado de uma totalidade. São as determinações do momento histórico que estabelecem as particularidades ao gênero singular. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 181 O particular é o determinado: ele porta, carrega as determinações. É o único caminho que leva do singular ao universal e vice-versa, mais ainda, é a mediação necessária, produzida pela essência da realidade objetiva e imposta por ela ao pensamento. É um campo de mediações porque vincula singularidade e universalidade e porque específica os elementos estruturais do concreto analisado. O particular, manifesta sua peculiaridade quando se transforma em universalidade ou em singularidade. • Singularidade: (GUERRA, 1997), afirma, que para Marx, as categorias simples são: A expressão de relações nas quais o concreto pouco desenvolvido pode ter se realizado, sem haver estabelecido ainda a relação, ou o relacionamento mais complexo, que se acha expresso mentalmente na categoria mais concreta, enquanto o concreto mais desenvolvido conserva a mesma categoria como uma relação subordinada. A singularidade é rica em determinações quando ela é o anel conclusivo de uma cadeia de conhecimentos que leva, das leis descobertas da universalidade concreta à singularidade como fim do processo de pensamento. (LUKÁCS, apud GUERRA, 1995, p. 15). 1.5 A Classe Social Segundo (MARX, O Capital – Capítulo LII, tomo III): Os proprietários de simples força de trabalho, os de capital e os de terra, cujas respectivas fontes de receita são o salário, o lucro e a renda fundiária, quer dizer, operários assalariados, os capitalistas e os proprietários de terras, formam as três grandes classes da sociedade moderna, fundada no regime capitalista de produção. É na Inglaterra, indiscutivelmente, onde mais desenvolvida encontramos e na forma mais clássica, a sociedade moderna, em sua estrutura econômica. No entanto, nem aí se apresenta em toda a sua pureza esta divisão da sociedade em classes. Também na sociedade inglesa existem fases intermediárias e de transição que obscurecem em todas as partes (embora no campo muito menos que nas cidades) as linhas divisórias. Mas esse fato é indiferente para nossa investigação. Já vimos que é tendência constante e lei de desenvolvimento do regime capitalista de produção estabelecer um divórcio cada vez mais profundo entre os meios de produção dispersos em grupos cada vez maiores; ou seja, transformar o trabalho em trabalho 182 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 assalariado e os meios de produção em capital. E a esta tendência corresponde, por outro lado, o divórcio da propriedade fundiária para formar uma potência à parte distante do capital e do trabalho, isto é, a conversão de toda propriedade fundiária à forma adequada ao regime capitalista de produção. O problema que imediatamente se propõe é este: o que é uma classe? A resposta a esta pergunta decorre da que dermos a esta outra: o que é que transforma os operários, os capitalistas e os proprietários de terras em fatores das três grandes classes sociais? É, à primeira vista, a identidade de suas rendas e fontes de rendas. São três grandes grupos sociais cujos componentes, os indivíduos que os constituem, vivem respectivamente de um salário, do lucro ou da renda fundiária, isto é, da exploração de sua força de trabalho, de seu capital ou de sua propriedade fundiária. É certo que deste ponto de vista também os médicos e os funcionários públicos, por exemplo, formariam duas classes, pois pertencem a dois grupos sociais diferentes, cujos componentes vivem de rendas procedentes da mesma fonte em cada um deles. O mesmo se poderia dizer da infinita dispersão de interesses e ofícios em que a divisão do trabalho social separa os trabalhadores, os capitalistas e os proprietários de terras, a estes últimos, por exemplo, em proprietários de vinhedos, de terras de lavoura, de florestas, de minas, de pesqueiras, etc. (aqui se interrompe o manuscrito) (apud SANTOS, 1991, p. 50-51). Marx tratou o conceito de classes no último capítulo de O Capital, transcrito acima. Segundo (SANTOS, 1991 p. 15): o conceito de classes aparece aqui como a personificação das categorias econômicas centrais de um determinado regime de produção, mas nenhum regime de produção existiu historicamente de maneira pura, porém associado a outros regimes de produção e a outros elementos sócio-econômicos deste mesmo regime que não foram descritos na análise teórica. Em última análise, a determinação das classes sociais básicas da sociedade não é tarefa da observação empírica, mas de uma investigação teórica do modo de produção que a constitui. Quer dizer, a questão de existir estas ou aquelas classes se resolve na análise do próprio modo de produção. Marx continua sua análise ao criticar a ilusão de que as classes têm sua origem nas diversas formas de renda. O conceito de classes aparece como resultado da análise das forças Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 183 produtivas (nível tecnológico dos meios de produção e organização da força de trabalho) e das relações sociais de produção (relações que os homens estabelecem entre si no processo da produção social). Estas forças produtivas e estas relações sociais de produção assumem certos modos possíveis de relação na história. Daí decorrem as contradições existentes na sociedade, pois o modo de produção é determinado por relações antagônicas, sendo as classes sociais a expressão dos antagonismos de classe, podendo constituir-se o conceito de classes sociais a partir do conceito de luta de classes, sendo a chave para a compreensão das classes sociais. A chave do conceito de classes e de consciência de classe, teoricamente, se encontra no prólogo da 1ª edição de O Capital: Nesta obra, as figuras do capitalista e do proprietário de terras não aparecem pintadas, nem muito menos cor-de-rosa. Mas nota-se: aqui só nos referimos às pessoas enquanto personificações de categorias econômicas, como representantes de determinados interesses e relações de classe. Sintetizando, constituem-se as classes sociais por múltiplas determinações: • A posição ocupada pelos indivíduos em setores diferentes da produção social; • A posição ocupada pelos indivíduos é a objetivação da divisão social do trabalho; • Diferentes setores da produção social, determinados pela separação cidade – campo, apresentam-se como mediação da propriedade privada, do capital e da força de trabalho; • Produção social determinante das classes sociais, como produção dada historicamente e pressupondo uma separação entre os proprietários da força de trabalho e os proprietários dos meios de produção, dividindo-os em capitalistas e operários, configurando ainda, uma oposição entre o capital e o salário, este último concebido como o preço, que o capitalista paga pela parcela da força de trabalho adquirida no mercado, com seu valor determinado pelo valor das necessidades exigidas para produzir, desenvolver, manter e perpetuar a força de trabalho; • A oposição entre capital e trabalho, é a luta pela perpetuação do sistema assalariado de trabalho e pelo lado do trabalho, a luta por sua abolição. Daí decorrendo a luta de classes, como luta política, 184 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 • pressupondo a consciência das condições objetivas da própria classe, de outras classes e sociedade na forma de totalidade, fruto de uma determinação da prática social, definida historicamente, como um produto concreto cuja determinação ocorre pela produção social; que por seu lado, é uma determinação das relações entre os homens e entre estes e a natureza, de acordo com as múltiplas relações da produção e reprodução social; As classes sociais decorrem das determinações das múltiplas condições e determinações de classe e na classe. 2 O Serviço Social e a Questão do Método O método não será, portanto, um conjunto de operações estanques e justapostas, realizadas de modo sucessivo. Caracteriza-se por ser um conjunto de procedimentos interligados e interdependentes, que, baseado em uma concepção de análise da realidade, poderá permitir orientar as investigações e experimentações profissionais, em oposição aos modelos mecanicistas do conhecimento, para os quais, o sujeito é um instrumento que registra passivamente o objeto, sendo atribuído um papel ativo ao sujeito, submetido por outro lado a diversos condicionamentos, em particular às determinações sociais, que introduzem no conhecimento uma visão de realidade socialmente transmitida. Sujeito e objeto existem de forma objetiva e real, simultaneamente atuam um sobre o outro de forma interativa produzindo uma apreensão do objeto pelo sujeito na atividade e ainda em atividade. O objeto como um dos elementos do conhecimento humano não existe independente do sujeito, bem como o sujeito não deve ser considerado isolado do objeto. 2.1 O Conhecimento ou a Investigação O método é compreendido na concepção do materialismo dialético, Marx no seu livro O Capital, Livro I, afirma: ... o momento da investigação tem que captar com detalhes a matéria, analisar suas formas de evolução, assim como rastrear sua conexão íntima. Somente nesse momento é que se pode expor adequadamente o movimento real. Segundo (NETTO, apud BAPTISTA, 1999, p. 4), os dois parâmetros metodológicos basilares em Marx são: • A máxima fidelidade do sujeito ao objeto, significa refletir com a máxima precisão o movimento do objeto, Lukács, lembra que o enunciado marxiano, de que “toda a ciência seria supérflua se a Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 185 essência das coisas e sua forma fenomênica coincidissem diretamente” é de extrema importância para a ontologia do ser social. • A consideração da imbricação sujeito – objeto, que é necessário lembrar que não há exterioridade entre os dois elementos, que constituem uma unidade, embora não uma identidade. Não sendo possível a equalização de padrões de objetividade das ciências da natureza e do conhecimento do social. (YAMAMOTO, 1994). Considerada uma dada realidade objetiva, a análise de seus elementos constitutivos e contraditórios, permite estabelecer a relação entre os fenômenos e suas essências, considerando que a realidade é uma totalidade concreta, implicando partir do real, concreto, aparente, vivenciado pela população usuária e relacionado com as instâncias mais amplas. As demandas apresentadas pela população usuária, nada mais são que as expressões concretas das vivências da vida cotidiana de "sujeitos que trabalham, pois o trabalho é o elemento constitutivo do ser social, ser que modifica a matéria e que por ela também é modificado" (IAMAMOTO, 1998). Configuram-se ainda, como as diversas relações que se estabelecem no trabalho, na família, na vizinhança e ainda nas várias atividades: econômicas, políticas, sociais, culturais que são realizadas nos espaços concretos: nas fábricas, nos bairros, na comunidade, nos sindicatos, nas associações, nas igrejas; e inseridos nos vários contextos: econômicos, políticos, ideológicos, históricos, éticos, etc. Tais demandas, ainda exigem a compreensão das relações sociais de produção na sociedade brasileira (capitalista), na compreensão da correlação de forças que possam existir na dinâmica da sociedade, a partir das classes fundamentais e ainda no conhecimento, compreensão e deciframento da questão social. Resultando compreender a realidade mais ampla, apreendendo seu movimento a partir da conexão dos fatos e de suas contradições, percebendo os fenômenos constituídos como sínteses de múltiplas determinações históricas, políticas, econômicas e sociais. Procedendo-se assim, poder-se-á aproximar-se da essência dos fenômenos, permitindo localizar na totalidade seus elementos constitutivos e contraditórios. A práxis profissional terá como fundamento a realidade concreta, a partir da interpretação crítica, podendo viabilizar sua desconstrução e reconstrução, ampliando a compreensão dessa realidade e por conseqüência, sua superação junto com a população usuária. (NETTO, apud BAPTISTA, 1999, p. 5) afirma: “Na investigação marxiana, o empírico, o dado, é sempre o ponto de partida para o conhecimento” (grifo nosso). É na experiência que se inicia o processo do conhecimento, sendo os 186 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 fatos um sinal de algo que os ultrapassa, como sinais de um processo. Na visão marxiana não se trata apenas de correlacionar fatos, estabelecer relações, em virtude de sinalizarem um processo repleto de significados. O conhecimento caracteriza-se também na temporalidade, unindo-se processualmente sua dimensão histórica, sua própria expressão. Ainda, segundo Netto apud Baptista (1999, p. 7), ... Nesse sentido, não se tem relação e correlação entre fatos, tem-se a pesquisa de processos, a relação entre processos, a sua expressão em outros fatos e a relação desses fatos com os primeiros, aquele que foi ponto de partida. Feito esse movimento, os fatos, ainda que no plano da empiria permaneçam os mesmos, já não são os mesmos na reflexão. Conhecer é moverse do abstrato ao concreto, o que permite, na apreensão do ser social perceber a abstração e ir conhecendo as mediações progressivamente até concretizar-se o objeto. Para conhecer, o assistente social deverá analisar a realidade globalmente sob o ponto de vista econômico: relações de produção e forças de produção; sob o ponto de vista sócio-político: classes sociais e suas relações e a estrutura de poder derivada das relações sociais dadas; e do ponto de vista ideológico: valores, interesses, aspirações, consciência, etc. e ainda os referenciais que permitam a compreensão e a análise da realidade do trabalho específico, relacionado com os elementos de um contexto mais amplo. Como foi visto, o conhecimento inicial é sensível, caracterizado por sensações, percepções e representações que apreendem as propriedades particulares, seus aspectos aparentes e externos, seus efeitos, os fatos de forma compartimentada, a apreensão dos dados de forma quantitativa e individualmente. Segundo (YAKOL apud MAGALHÃES, 1987, p. 107): O pensamento reúne, num todo, os índices principais, substanciais, abstratos dos fatos, cria conceitos, idéias gerais, imagens, tira conclusões gerais, válidas para toda uma classe de fenômenos. Esta operação é realizada, no nosso espírito, por processos lógicos, designados indução e dedução. (SANTOS, 1982, p. 201), ressalta que: Nesta etapa os dados colhidos isoladamente são ampliados e correlacionados entre si, de tal forma que o conhecimento anterior caminhará em direção à captação dos aspectos internos dos fenômenos, das relações que existem entre os mesmos, da dinâmica do objeto da intervenção. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 187 Como conseqüência, aprofunda-se o conhecimento transitando do sensível para o abstrato, passando-se do quantitativo para o qualitativo. O passo seguinte, será marcado pela retro-alimentação teórica em relação aos passos anteriores, quando os dados apreendidos pelos sentidos, serão interpretados, coordenados e generalizados, na forma de uma interpretação diagnóstica. Este momento permite dar maior significação aos dados obtidos, na medida em que, auxiliado pelos subsídios teóricos, possibilita encontrar os laços existentes entre os fenômenos, descobrir a essência dos mesmos e as leis de seu desenvolvimento. Desta maneira, este momento (CARACTERIZAÇÃO), permite a obtenção dos dados qualitativamente diferentes dos anteriores, bem como a formação de conceitos e generalizações. (MAGALHÃES 1987, p. 113). Enquanto um momento de ampliação do conhecimento da população implica aspectos históricos, políticos e sociais que deverão ser apreciados, fundamentais para a sua explicação e a percepção de seus condicionamentos. Continuando a construção da compreensão sobre os elementos do conhecimento, é necessário classificar os fatos (categorização), estabelecendo o agrupamento dos fenômenos e indicadores, pelo conteúdo, por suas causas e por seus efeitos. Tal processo deve sofrer continuidade objetivando atingir-se a essência dos fenômenos e situá-los no contexto histórico, quando deverá ser realizada a relação entre as categorias (relação entre as variáveis), proporcionando a ampliação do conhecimento da realidade, o estabelecimento de uma identificação dos fenômenos por importância e a formulação de alternativas para as ações. Em seguida, será estabelecida a interpretação analítica dos fenômenos relacionados com as variáveis na perspectiva da totalidade. Na interpretação diagnóstica se deve ainda proceder ao estudo das alternativas possíveis, sendo caracterizadas como as opções para a ação, fundamentada nos fatos, na análise dos fenômenos e nas mediações realizadas com a população. A dialética materialista considera o conhecimento verdadeiro em sua processualidade infinita, na busca da verdade, acumulando processualmente conhecimentos que serão negados e transformados em sínteses, que serão transformadas em novas teses. Finalmente, o processo do conhecimento não é apenas responsabilidade do agente técnico, mas depende do protagonismo da população. 188 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 2.2 A Ação 2.2.1 As Ações Profissionais • A Socialização de Informações (Veiculação de Informações) Trata-se da ação profissional que possibilita a leitura crítica das condições reais, proporcionando a reflexão crítica das condições existentes e facilitadoras da tomada de decisão e da construção de ações coletivas. Oportuniza superar a postura tradicional, de intermediação apenas dos interesses institucionais na relação profissional x usuário, quando o profissional assume a postura de afirmar o discurso institucional apenas. O desejável, seria que o assistente social fosse também o veiculador das informações de interesse dos usuários, construídas a partir dos seguintes pressupostos: • transmissão de informações, de acordo com o interesse e a necessidade da população usuária, como direito social; • privilegiar a particularização dos sujeitos, individuais e/ou coletivos, partindo da realidade objetiva, do real vivido pela população usuária e rebatendo na totalidade da vida social; • horizontalidade como padrão de relações entre o profissional e a população, entre os saberes, os poderes do assistente social e os saberes da população usuária, materializados nas demandas e nos pleitos apresentados, bem como nas estratégias para o enfrentamento das situações e como o reconhecimento dos poderes e saberes populares; • possibilitar e viabilizar a construção de espaço para o debate, a discussão, a análise da conjuntura, da estrutura, da manifestação do real vivido, caminhando na reflexão crítica e na construção de proposições para a superação do quadro existente; • assegurar que as informações sejam compreendidas e que sejam significativas e de utilidade para a população usuária. Estas ações possibilitam desvelar o real, pois proporcionam o acesso à informação, à compreensão das instâncias de poder institucional, sejam nos setores públicos, privados ou comunitários. A compreensão da gênese das políticas sociais públicas e/ou privadas, e as formas de interferir na elaboração, gestão e controle (avaliação) dessas políticas, bem como de reivindicar de acordo com o interesse da maioria. Devem ainda, possibilitar a apropriação da informação como fonte de saber, de poder, de capacitação para a reflexão crítica, para a viabilização do acesso e na perspectiva da inclusão, para a apropriação de bens e serviços prescritos pelos direitos sociais e no atendimento das demandas imediatas e Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 189 mediatas, além da perspectiva de constituição de ações coletivas articuladas para viabilização das conquistas de classe. Apresentam-se algumas formas de procedimentos, sem desejar construir “receitas”, mas com a finalidade de exemplificar apenas, como construir as ações profissionais na perspectiva de se veicular informações: • identificar as condições objetivas da população usuária, partindo das demandas apresentadas, facilitando o acesso às informações na perspectiva das necessidades particulares de cada usuário, grupo ou população, bem como na direção da construção da cidadania, da afirmação do sujeito, facilitando a apropriação das informações que possibilitem a transformação da sua realidade; • conhecer as expressões particulares como expressão da realidade mais ampla, da totalidade, procurando superar as ações tópicas e pontuais. Considerar o atendimento da população usuária como espaço privilegiado da percepção do real vivido, na defesa intransigente dos direitos fundamentais da pessoa e promover o acesso às informações e as normas institucionais para facilitar a apropriação de bens e serviços; • análise dos aspectos relevantes sobre a população usuária, fundado na observação de sua trajetória, na documentação, na expressão da cidadania, nas normas institucionais, nas normas legais, nos direitos humanos fundamentais, na perspectiva da elaboração de pareceres sociais, na elaboração e aplicação do processo de seletividade compromissada com a inclusão - da população, na construção da avaliação do atendimento na perspectiva da construção de ações revestidas de qualidade e compromisso que supere a dimensão quantitativa, transitando para a dimensão qualitativa; • compilação de dados, informações, pareceres, apropriando-se dos recursos tecnológicos, como informatização, internet, meios eletrônicos diversos, uso de mídia, da mais simples às mais sofisticadas, de acordo com os limites e possibilidade institucionais, profissionais e financeiras, para a divulgação de informações de interesse dos usuários, além de disseminar as informações para divulgar e esclarecer, para facilitar o conhecimento sobre os recursos sócio-institucionais, públicos, privados e não-governamentais, viabilizando o desfrute dos bens e serviços oferecidos; • concorrer para identificar interesses comuns objetivando estimular a coletivização dos interesses e demandas da população usuária. 190 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 • Ações de Fortalecimento do Coletivo Estimular o trabalho grupal, possibilitando a afirmação do coletivo, favorecendo e implementando espaços de reflexão/discussão conjunta sobre as situações concretas vivenciadas pela população usuária visando o fortalecimento da coletivização dos interesses, das reivindicações e das propostas de ações para superar as dificuldades e atender as demandas postas pelos sujeitos, como forma de ação conjunta no projeto de reforma/transformação da realidade. As ações profissionais serão construídas na lógica da ação coletiva através da ação encetada entre a população usuária e o profissional, articulados a partir do compromisso/aliança na perspectiva do projeto da classe. Apresentam-se algumas diretrizes utilizadas para trabalhar o coletivo que apontam alguns dos caminhos possíveis, deixando claro que existem e existirão sempre novos caminhos que são e serão construídos por assistentes sociais e população para a construção do fortalecimento do coletivo, segundo (SOUZA, 1987, p. 141-144): • Partir da realidade concreta em que se encontra a população, concebendo que essa é a realidade das condições de consumo e produção e de sua consciência e atitudes ante tais condições. A realidade concreta é fruto de múltiplas determinações, sendo a organização social condição basilar para o enfrentamento, apoiada nas experiências anteriores já vivenciadas pela população; • Definir e redefinir coletivamente os objetivos que se tem a alcançar a partir da realidade concreta que se vai conhecendo e analisando, por intermédio do diálogo e reflexão entre o profissional e a população em que deverão ser definidos os objetivos com base na apreensão do real vivido pelo conjunto dos moradores, sendo uma condição básica a existência de objetivos mais gerais para garantir a continuidade das reflexões e ações desenvolvidas; • Identificar coletivamente o eixo central da prática do processo pedagógico tendo em vista articular os conteúdos parciais das práticas e reflexões que vão sendo desenvolvidas pelos diversos grupos da comunidade, sendo que a descoberta desse eixo central é, sobretudo, um processo de descobrimento das relações básicas a partir de um universo próprio de comunicação assistente social/população. O eixo central de prática e reflexão têm característica aglutinadora, a partir das particularidades locais, assumindo diversas perspectivas: políticas, econômicas, culturais, constituintes da realidade social; • Definir e avaliar continuamente a qualidade das relações que se Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 191 estabelecem entre o profissional e a população objetivando a manutenção do processo de cooperação necessária entre ambos, sabedores que a definição dos objetivos requer uma ação caracterizada por um processo de intercâmbio e cooperação no descobrimento e desvelamento da realidade e suas condições de enfrentamento. O processo de avaliação deve ser contínuo nas relações entre o assistente social e a população, devendo ser fundamentado privilegiando a autonomia, a liberdade de expressão, respeitando o protagonismo dos sujeitos envolvidos, com base na realidade concreta pensada coletivamente, fruto das diversas determinações; • Estimular progressivamente a articulação da organização da população, fator importante no modo como se apresentam as forças sociais representadas pela população. A dependência e a subalternidade provocam fragmentação, reduzindo sua força social, sendo ainda, a organização, sustentáculo do poder coletivo, possibilitando a participação e o desenvolvimento das ações de interesse coletivo na consecução dos objetivos. A articulação com outros segmentos organizados, com objetivos comuns, que oportunizem uma redefinição permanente de estratégias de acordo com o dinamismo das condições existentes no contexto social assegurando a autonomia dos movimentos sociais. Atente-se ainda para a importância da negação do formalismo burocrático que gera a desvalorização das forças sociais presentes. A assistência social, hoje política social pública, dever do Estado com participação da sociedade, direito do cidadão que dela necessitar, um dos pilares do tripé da Seguridade Social (Capítulo II da Constituição Federal de 1988), não tem mais a conotação do assistencialismo do passado, integrante atualmente, dos direitos de cidadania. As ações executadas diretamente com a população usuária dividem-se em dois grupos: • ações compensatórias: através de atendimentos emergenciais, geralmente no fornecimento de bens (subsídios financeiros, passagens, cestas básicas, apoios temporários, encaminhamentos para recursos públicos, privados e/ou comunitários, etc.), realizados por organizações governamentais, organizações não-governamentais (filantrópicas, de defesa de direitos e de cidadania e ainda por organizações da comunidade), e organizações empresariais (política de benefícios de empresas); 192 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 • ações emancipatórias: voltadas à prestação de bens e serviços, reconhecendo no cidadão suas necessidades e aspirações, pelo tempo necessário, para ser realizado o projeto de emancipação individual, familiar ou coletivo, aliado ao projeto de capacitação: educacional, profissional, de garantia de renda ou de geração de renda, o que poderá permitir a inserção do(s) usuário(s), inclusive inserido social, econômica, ambiental e culturalmente no processo civilizatório, capaz de ser provedor de suas necessidades para o exercício de sua própria cidadania e de seus familiares e conterrâneos, desenvolvidos em organizações governamentais e organizações não-governamentais (filantrópicas, de defesa de direitos e cidadania e ainda comunitárias e/ou populares). O assistente social ainda na área da assistência social participa ativamente da elaboração de projetos específicos, bem como, historicamente tem sido protagonista da luta pela criação, instalação e funcionamento dos diversos conselhos - municipais, estaduais e nacionais - definidos pela Constituição Federal, sendo sujeito ativo na mobilização pela elaboração de projetos de leis, para criação dos diversos conselhos; participar como conselheiro e ativamente contribuindo para a criação de políticas sociais na própria assistência social, nos direitos da criança e do adolescente, dos idosos, das pessoas portadoras de deficiências, na educação, na segurança pública, no meio ambiente, no desenvolvimento urbano, na política penitenciária e criminal, nos transportes urbanos. As ações básicas destinadas à população usuária, na área da Assistência Social e suas interfaces com as outras políticas sociais setoriais, segundo (CARVALHO, 1998, p. 39) podem ser identificadas como serviços de pronto atendimento assistencial (Plantão Social). Os serviços são prestados aos usuários na perspectiva de acolhimento e escuta, definidos como local adequado para os usuários relatarem suas histórias e suas demandas, vinculadas a exclusão social, pobreza e outras demandas referentes à cidadania. Promovem a veiculação de informações, incumbindo-se em fornecer informações decodificadas, assegurando sua compreensão e objetividade na solução das demandas apresentadas. Realizam encaminhamentos, prestados como direito do usuário a ter resolutividade em suas demandas, utilizados forma responsável e competente, com o acompanhamento passível de assegurar ao usuário o atendimento no local de destino, sem deixar de considerar que a resolutividade dos encaminhamentos encontra-se vinculada ao trabalho de estabelecer uma rede de apoio para a atenção e incorporação das demandas originadas nos serviços de pronto atendimento social e a oferta de apoios temporários para a simples procura pelo Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 193 plantão de atendimento social, incorporando-se a demanda com resolutividade imediata. Ainda existem os serviços voltados à complementação e/ou geração de renda, efetivados por projetos de complementação de renda que oferecem uma alternativa cidadã ao traço controlador da filantropia e até do assistencialismo fornecedor apenas da ajuda material na forma de roupas, cestas de alimentos, refeições, etc., pois são caracterizados pela oportunidade de auferir rendimento em moeda, não em materiais diversos. Tais projetos podem estar articulados a ações de cunho sócio-culturais-educacionais e dirigidos às parcelas mais vulnerabilizadas da população, devendo ser duradouros, desenvolvidos no espaço e no tempo, continuados e providos com qualidade de bens e/ou serviços produzidos e destinados ao mercado. RODRIGUES, J. A. The Marx Social Theory and the Social Work. Serviço Social & Realidade (Franca), v.12, n.12, n.1, p. 169-196, 2003. • ABSTRACT: The dialectic materialism categories, the perusal of the Brazilian society reality and its caste relations as theoretical reference to the Social Work. • KEYWORDS: Dialectic Materialism; totality; universality; singularity; particularity. Referências Bibliográficas BAPTISTA, M. V. (org.). O Método na Economia Política - Karl Marx Comentários por vários autores - mimeografado, São Paulo, 1998. CARVALHO, M. C. B. Serviços de proteção às famílias. 2.ed. IEE/PUC/SP MPAS – SAS, 1998. Série Programas e Serviços – Assistência Social. CELATS, Serviço Social Crítico: Problemas e Perspectivas. 2.ed. São Paulo: Lima, Cortez & Celats, 1986. CORRIGAN, P. & LEONARD, P. Prática do Serviço Social no Capitalismo - Uma Abordagem Marxista, 2.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. GUERRA, Y., A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1995. ______. 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Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 169-196, 2003 195 AS CONFIGURAÇÕES DA QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL E DOS DESAFIOS DO SERVIÇO SOCIAL Marilena JAMUR* • RESUMO: O artigo aborda os vínculos estreitos existentes entre questão social e Serviço Social, condição para a emergência e a profissionalização deste. Trata, ainda, dos principais desafios a serem enfrentados pela profissão no Brasil, em face das mudanças na forma de operar do capitalismo hoje, repondo e ampliando as condições que produzem a pauperização dos que vivem do trabalho, sintetizando os principais traços produtores/reprodutores da desigualdade social no país. Questiona-se a designação “nova questão social”, diante da dupla face do fenômeno (velha/nova), esboçando-se sua configuração atual, para examinar alguns desafios que hoje se impõem aos assistentes sociais diante do quadro esboçado, sendo o principal deles a qualificação da sua prática profissional, para superar a distância entre discurso e ação concreta. • PALAVRAS-CHAVE: Serviço Social; questão social; desafios; prática. Introdução Os vínculos entre o Serviço Social e a questão social são muito estreitos, uma vez que a emergência e a profissionalização do Serviço Social são fenômenos articulados à institucionalização das formas de enfrentamento da questão social nos continentes europeu e norte-americano, temporalmente situados entre o final do século XIX e o início do século XX. Esses fenômenos fazem parte de um processo complexo de transformação das representações sociais e das práticas desenvolvidas junto às populações pobres, que se registra com a progressiva desagregação do sistema feudal e a afirmação do modo de produção capitalista. Não caberia aqui analisar este fenômeno nas suas múltiplas determinações, nem os processos de construção, em todas as sociedades, de representações e práticas ligadas ao fenômeno da pobreza, ou as mudanças que nelas se operam historicamente, até a sua formulação como questão social; remetemos os interessados a alguns dos muitos trabalhos que tratam desses processos.1 Doutora em Ciências Sociais pela École des Hautes Études em Sciences Sociales de Paris, Professora do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Serviço Social da PUC/RJ. 1 Para uma análise desses complexos processos de transformação social, até a emergência da questão social, há elementos importantes em: (BEAUD, 1986), (BRAVERMAN, 1977), (CASTEL, 1995), (DONZELOT, 1980-1994), (EWALD, 1986), (HOBSBAWM, 1981-1982), (JAMUR, 19901994-1997), (POLANYI, 1980) e (THOMPSON, E. P., 1979), entre outros, cujas referências completas constam da bibliografia, ao final. * Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 197 É importante, porém, assinalar aqui, por um lado, que a emergência e a profissionalização do Serviço Social se dão quando, num determinado contexto sócio-histórico, se produz na sociedade a necessidade de “especialistas” para lidar com a questão social e, por outro lado, que as funções sociais e políticas que tais “especialistas” devem assumir, os colocam em ruptura com as práticas seculares de ajuda aos pobres, de cunho caritativo, solidário, ou filantrópico até então existentes, como indicam as análises de vários autores participantes do debate que se travou na França no início dos anos 1970.2 Inseridos na divisão social do trabalho como “profissionais do social”, espera-se que esses “especialistas” desempenhem, ao mesmo tempo, funções de identificação e de correção dos “problemas sociais”, que se ocupem dos “efeitos perversos” ou das “disfunções” do sistema, das “conseqüências indesejáveis” produzidas pelo sistema capitalista, ao longo do seu desenvolvimento. Os assistentes sociais são, portanto, profissionais cuja função social se constrói a partir da emergência da questão social como questão propriamente política, que expressa o conflito entre capital e trabalho - como analisaram alguns autores, que iniciam o desvelamento dos vínculos entre o serviço social e a questão social e a sua função no capitalismo, como VERDÈS-LEROUX (1975, 1976 e 1978) e LASCOUMES (1974 e 1977) na França, GEORGE (1973) e CORRIGAN e LEONARD (1978) na Inglaterra.3 2 Um importante debate sobre as funções políticas do trabalho social teve lugar na França, após os acontecimentos políticos que, em maio de 1968, sacudiram e colocaram em questão vários setores da sociedade francesa. Em 1971 realizou-se uma pesquisa entre os trabalhadores sociais franceses sobre a natureza da sua atividade e suas funções sociais e políticas; a publicacão dos resultados, no mesmo ano, deu lugar a amplos debates, envolvendo não só os próprios agentes, mas filósofos e cientistas sociais, como Michel Foucault, Paul Virilio, Jacques Donzelot, Jacques Julliard, Jean-Marie Domenach, Philippe Meyer e Saul Alinski, entre outros; esse questionamento foi objeto da publicação de um número especial da Revista Esprit – Changer la culture et la Polítique, intitulada Pourquoi le Travail Social (n. 4-5, abril-maio 1972). 3 Jeannine VERDÈS-LEROUX, desde o início dos anos 70, dedicou vários estudos à função política do trabalho social, às características dos assistentes sociais pioneiros e de sua ação na sociedade francesa no início do século XX, considerando essa função “como resposta dada, em determinado momento, a mudanças significativas das condições de oposição das classes, particularmente ligadas à constituição do movimento sindical e à importância assumida pelo socialismo, em escala internacional”. No seu texto mais importante, Le Travail Social, publicado na França em 1978, a autora amplia análises já publicadas em artigos de 1975 e 1976 na Revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales; esse texto foi traduzido e publicado no Brasil apenas em 1986, embora tenha inspirado algumas análises do serviço social brasileiro publicadas no início da década - ver, por exemplo, o artigo de Raul de CARVALHO Modernos agentes da justiça e da caridade: Notas sobre o origem do Serviço Social no Brasil, publicado na Revista Serviço Social e Sociedade n. 2, São Paulo: Cortez, 1980. Em 1978 também, dois professores da Universidade inglesa de Warwick - Paul CORRIGAN e Peter LEONARD – publicam o texto Social Work Practice 198 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 A questão social passa a ser objeto de uma intervenção sistemática da sociedade e do Estado a partir do final do século XIX, e será, cada vez mais, assumida por este, até se chegar, no século XX, a um modo mais permanente de regulação social, através da montagem de um sistema de intervenção estatal, designado como Welfare State (ou Estado-Providência, ou Estado Social). Esse sistema foi implantado com modalidades e padrões distintos nos diferentes países, com maior ou menor amplitude da cobertura das Políticas Sociais e na prestação de serviços sociais, sobretudo a partir do final da segunda Guerra Mundial,4 definindo-se assim, as condições concretas para a realização do Serviço Social. Na América Latina, observa-se que, em vários países, o processo de desnudamento das relações entre questão social, natureza e funções do serviço social sob o regime capitalista, é tal como na Europa, relativamente recente, começando e ser realizado neste continente, de modo mais ou menos aberto, a partir da criação de condições políticas favoráveis, com o esgotamento das ditaduras militares, muito embora o questionamento da profissão venha sendo feito desde meados dos anos 1960, sob o impulso do movimento de reconceituação.5 No Brasil, desde meados da década de 1970 esse questionamento se intensifica, refletindo-se nas publicações que, desde o final dessa década propõem reflexões sobre a função da profissão e de seus agentes na ordem capitalista, numa perspectiva de análise marxista. Em 1979, nos “estertores” da ditadura militar, é publicada a tradução do texto já citado de CORRIGAN e LEONARD. Prática do Serviço Social no Capitalismo – Uma Abordagem Marxista, inaugurando a publicização de uma linha de reflexão referenciada no marxismo sobre a natureza e funções do serviço social, para o qual contribuíram muitos outros textos6 que, de forma direta ou indireta, discutem essa questão; under Capitalism, onde analisam não apenas as funções da prática profissional, mais as funções do Estado de Bem Estar Social, das lutas de classe junto ao aparelho do Estado, a questão da ideologia e as implicações para a prática dos assistentes sociais, tendo como referências Marx, Gramsci e outros autores marxistas. A tradução desse texto foi publicada no Brasil em 1979. 4 Para uma análise dos diferentes padrões internacionais de Welfare State, inclusive o brasileiro, ver DRAIBE, Sônia M. “O ‘Welfare State’no Brasil: características e perspectivas”. Ciências Sociais Hoje, São Paulo: Vértice/Anpocs, 1989, p. 13-61. 5 Como se sabe, esse movimento foi muito heterogêneo no continente latino-americano, tanto em termos da orientação teórica e da direção assumida pelos questionamentos, quanto em termos da sua força política, penetração e difusão entre os profissionais e dos resultados efetivos e quanto às mudanças produzidas no campo profissional em cada país. 6 Entre outros, podemos citar por ordem cronológica de publicação: Objeto e especificidade do Serviço Social, de Josefa Batista Lopes (1979); Ideologia do Desenvolvimento de Comunidade, de Safira Bezerra AMMANN (1980); Serviço Social - Intervenção na Realidade, coletânea organizada Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 199 assim, estabelece-se no país um fecundo campo de reflexões, que anteriormente não podiam se expressar, dadas as condições políticas, como já ocorria na Europa e em alguns países latino-americanos. Concluindo esta introdução, queremos assinalar que uma interessante análise do debate latino americano sobre natureza, gênese e funções do serviço social, encontra-se em (MONTAÑO, 1998). A Configuração Atual da Questão Social no Brasil Tratando do tema que nos foi proposto, abordaremos aqui, de maneira breve, a configuração atual da questão social no Brasil, para examinar, em seguida, alguns dos desafios que hoje se colocam ao Serviço Social como profissão, diante do quadro que tentaremos esboçar em grandes traços. Inicialmente, diante da polissemia que envolve a designação questão social, seria bom precisar qual é a problemática teórica em que nos situamos para analisar esse fenômeno: entendemos a questão social como uma forma política de configuração das contradições que emergem em outras instâncias da vida social, decorrentes da forma específica que assumem as relações sociais no sistema capitalista, produzindo a desigualdade social que é geradora de um conjunto de fenômenos que se constituem no desenvolvimento histórico desse sistema, cuja lógica foi analisada por MARX;7 tais fenômenos, complexamente determinados, envolvem processos ligados às relações de produção, à relação capital-trabalho, diante dos quais se estabelece uma pauta de intervenção reguladora do Estado; em geral, os fenômenos são percebidos nas suas pelo CELATS (1980); A Política Social no Estado Capitalista e Metodologia e Ideologia do trabalho Social, de Vicente de Paula FALEIROS (1980 e 1981); Serviço Social e Filosofia – das origens a Araxá, de Antonio Geraldo AGUIAR (1982); Relações Sociais e Serviço Social no Brasil, de Marilda V. IAMAMOTO e Raul de CARVALHO (1982); Serviço Social: a ideologia de uma década, de Arlette Alves de Lima (1982); Serviço Social e Realidade Brasileira, de Maria Helena de A. LIMA.; Textos de Serviço Social, de Leila Lima SANTOS (1982); A questão da transformação e o Trabalho Social, de Alba M.ª P. de CARVALHO (1983); Ideologias e Serviço Social, de Maria Guadalupe SILVA (1983); História do Serviço Social na América Latina, de Manuel Manrique CASTRO (1984); As Funções sócio-institucionais do Serviço Social, organizada por Jean Robert WEISSHAUPT (1985); Trabalhador social: práticas, hábitos, ethos, formas de intervenção, tradução da edição francesa de Jeannine VERDÈS-LEROUX (1986); Serviço Social: identidade e alienação, de Maria Lúcia Martinelli (1989); Ditadura e Serviço Social – Uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64 e Capitalismo Monopolista e Serviço Social, de José Paulo NETTO (1991 e 1992). 7 MARX trata da produção e reprodução da desigualdade - cuja face mais visível é a da pobreza que se apresenta nas sociedades em diversos graus, sendo o mais avançado o que ele designa como pauperismo, ao longo de toda a sua obra, da qual destacamos aqui, especificamente, O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I: O processo de produção capitalista. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. 200 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 manifestações concretas, de forma parcial e fragmentada, sendo “categorizados” como “problemas sociais” específicos, que emergem na esfera da vida privada relacionados com determinadas categorias de indivíduos – que vão se constituir em alvos de “políticas sociais”, ou seja, que serão objeto de atenção na esfera pública.8 A questão social, como assinala (CASTEL, 1995 p. 18), que foi assim designada por volta de 1830, é uma contradição fundamental, a partir da qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta evitar o risco de sua fratura; ela é um desafio que interroga, coloca em questão a capacidade de uma sociedade (o que em termos políticos se chama uma nação), de existir como um conjunto ligado por relações de interdependência. Dizendo de outra forma, a questão que se coloca é: como é possível uma sociedade se manter coesa e não ver essa coesão ameaçada, diante de tão profunda desigualdade? Desde a sua designação, no século XIX, a questão social permanece entre as preocupações da sociedade, através do caráter mais ou menos ameaçador que ela possa assumir no imaginário social, como analisa (DONZELOT, 1994); a representação dos pobres e destituídos - que são produto da lógica de funcionamento do sistema social, das relações sociais - como “as classes perigosas”, como uma ameaça, embora tenha se constituído nesse período num dado contexto, generalizou-se e se tornou uma das mais persistentes representações sociais da pobreza, dentre as muitas historicamente construídas (JAMUR, 1994). Quanto à questão social hoje, pode-se dizer que ela apresenta uma dupla face: por um lado, podemos considerar que a questão social ainda é a mesma, na medida em que, a lógica dos processos e mecanismos estruturais produtores da desigualdade no sistema capitalista e, portanto, responsáveis pela sua produção e reprodução, permanecem inalterados; por outro lado, em função do dinamismo do próprio desenvolvimento do capitalismo, das sucessivas crises do sistema e das características da crise econômica atual,9 considerada por muitos Ver a esse respeito o texto de GÓES DE PAULA, Sérgio. Saúde e Previdência no Brasil. São Paulo, Hucitec, 1986. 9 Sobre as características do desenvolvimento capitalista contemporâneo ver as análises de: Giovanni ARRIGHI em “O longo século XX”. São Paulo, Contraponto/UNESP, 1996; François CHESNAIS, “A globalização e o curso do capitalismo de fim-de-século. Economia e Sociedade, 5 (dez.), Campinas, 1995; Eric HOBSBAWM. “A era dos extremos – O breve século XX: 1914-1991”. São Paulo, Companhia das Letras, 1997; Gilberto DUPAS “Economia Global e exclusão social: 8 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 201 autores como uma crise de superacumulação do capital, a questão social se apresenta com uma “nova” configuração. Qual seria essa nova configuração? O primeiro elemento da “nova” configuração se apresenta como um paradoxo: tem-se, por um lado, a sua indiscutível gravidade, uma vez que a identificação dos componentes estruturais dessa configuração antiga-nova e todos os indicadores já conhecidos sobre o funcionamento da economia (sobretudo os índices de desemprego que têm aumentado exponencialmente) fazem com que se possa considerar as tendências atuais com seus efeitos de longo prazo, como muito mais devastadores do que jamais se ousou pensar na história do capitalismo; e, por outro lado, tem-se o fenômeno da banalização: a “questão social” aparece cotidianamente em todos os discursos, públicos e privados, naturalizando-se como parte da “paisagem” ou do “cenário” urbano, como um elemento que faz parte da “essência” mesma da sociedade e da vida moderna; seria, portanto, inevitável – uma espécie de produto sem produtores, fruto de “geração espontânea”, com o qual temos que nos habituar a conviver. O mesmo poderia ser dito a respeito do uso (e do abuso) da noção de exclusão. Tem-se, dessa forma, o seu esvaziamento como questão social, como fenômeno produzido pelas relações sociais e que se torna mais uma “mercadoria” em circulação: hoje, esvaziada do seu conteúdo político, ela pode ser usada no plural, como sinônimo de “problemas sociais” e, dessa forma, apropriada pelos mercados (material e simbólico) como elemento gerador de um valor que pode ser agregado às mercadorias oferecidas.10 Em função dessa banalização e dessa naturalização, são extremamente pertinentes e importantes as observações de (PEREIRA, 2001 p. 51-52), manifestando-se cética em relação ao conceito e questionando a justeza do termo “questão” para designar problemas e necessidades atuais que se apresentam como novos fenômenos; isso porque se por um lado, eles sem dúvida são inéditos e desconhecidos, por outro lado, “apesar de dramáticos e globais, e de produzirem efeitos nefastos sobre a humanidade, se impõem sem problematizações de peso e, portanto, sem enfrentamento à altura por parte de pobreza, emprego, estado e o futuro do capitalismo”. São Paulo, Paz e Terra, 1999; Luciano COUTINHO, “A terceira revolução industrial”. Economia e Sociedade, 1 (ago.), Campinas, 1992. 10 Atualmente os “investimentos sociais” são parte do marketing das empresas (inclusive as financeiras, como os bancos), com base na suposição de que, dada a sensibilidade aos graves problemas sociais existentes na sociedade, a publicidade feita sobre a ação social (real ou fictícia) desenvolvida pelas empresas, pode se tornar um elemento importante na concorrência intercapitalista: ela poderia influenciar na decisão dos consumidores que, ao escolherem entre produtos que tenham a mesma qualidade e o mesmo preço, optariam pelo produto da empresa que “investe no social”. 202 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 forças sociais estratégicas”. A autora continua, argumentando: “se partimos do princípio de que o conceito questão social sempre expressou uma relação dialética entre estrutura e ação, na qual sujeitos estrategicamente situados assumiram papeis políticos fundamentais na transformação de necessidades sociais em questões – com vistas a incorporá-las na agenda pública e nas arenas decisórias – pergunta-se: de que questão estamos hoje falando, se os riscos e necessidades contemporâneos ainda carecem de efetiva problematização? Será que não estaríamos diante de uma questão latente que, apesar de inscrita na contradição fundamental do sistema capitalista – a contradição entre capital e trabalho - ainda não foi explicitada, dada a posição profundamente desigual dos setores progressistas na atual correlação de forças? Tudo indica que sim”. (grifos em itálico da autora, no original). De fato, na sua configuração atual, com um potencial que parece conter elementos muito mais ameaçadores à coesão social do que no século XIX, a questão social não tem sido tomada como uma verdadeira questão para o conjunto da sociedade e, pelo menos no caso brasileiro, não tem gerado a mobilização necessária para a sua problematização e enfrentamento. A “nova” configuração da questão social, nesses termos, só pode ser entendida no contexto de uma profunda crise, que é de natureza econômica, política, social e moral. Não haveria condições de tratar aqui de todas as dimensões dessa crise, sobre a qual há uma extensa produção, que provavelmente em grande parte é conhecida de todos. De forma resumida, somente para lembrar alguns elementos importantes, podemos apontar alguns traços da manifestação dessa crise, em termos econômicos e políticos: • No contexto da crise atual, que é caracterizada por uma crise de superacumulação, têm-se depressões cíclicas severas, desemprego em massa, contraposição cada vez mais espetacular de mendigos sem teto ao luxo abundante, em meio às rendas limitadas do Estado (HOBSBAWM, 1997). • Isso se dá num processo que é designado como GLOBALIZAÇÃO, configurado como uma nova e mais avançada etapa de progresso tecnológico e de acumulação financeira de capitais (COUTINHO, 1992). • Essa etapa conjuga a inovação tecnológica e a emergência de um novo padrão organizacional, responsáveis pela superioridade competitiva das empresas designado como reestruturação produtiva. Ao lado disso, há a emergência de um número significativo de setores oligopolizados em escala mundial (um grupo restrito de poderosos atores globais, entre 10 e 12 megacorporações) que formam o que os Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 203 autores chamam de policentrismo econômico tripolar, intrinsecamente instável e interdependente. • Constata-se uma enorme expansão dos movimentos de capitais e do volume das transações nos mercados cambiais globalmente integrados, cujo resultado cumulativo é retratado como um intenso processo de interpenetração patrimonial entre as grandes burguesias industriais e financeiras das principais economias capitalistas (COUTINHO, 1992). • A “financeirização” é um traço absolutamente predominante da crise mundial, desde a década de 70 - segundo (ARRIGHI, 1996), que estudou os ciclos sistêmicos de acumulação desde a formação do capitalismo como sistema mundial – gerando, dessa forma o desinteresse no investimento produtivo. • Outro componente importante é a relação entre o CAPITAL e o ESTADO, que foram os principais agentes da acumulação em escala mundial, até que, num determinado momento, a crise de superacumulação não consegue criar um agente suficientemente poderoso para recompor o sistema em bases maiores e mais amplas esta é a fase que vivemos, diz (ARRIGHI, 1996). Um grande complicador da crise atual seria o fato de que a capacidade de gestão do Estado e da guerra permanece nas mãos dos centros tradicionais de poder do ocidente capitalista, enquanto o controle das fontes abundantes de capital excedente mundial está no Leste Asiático. • O contexto macroeconômico mundial dos anos 90 é, segundo (CHESNAIS, 1995): crescimento econômico muito baixo, inclusive o do Japão; deflação; alta instabilidade monetária e financeira, concorrência desenfreada entre 3 pólos hegemônicos; alto nível de desemprego estrutural e de marginalização econômica de numerosos países e regiões inteiras – decorrências de um processo de internacionalização. O conteúdo efetivo da globalização é dado não pela mundialização das trocas, (como nos querem fazer acreditar os seus apologetas) mas pela mundialização das operações do capital, em suas formas tanto industriais, quanto financeiras. • As idéias dominantes sobre globalização que configuram uma ideologia, colocam ênfase no processo de trabalho (novas formas de organização e gestão – a propalada reestruturação produtiva) e na troca (circulação internacional de mercadorias – bens e serviços); até mesmo a financeirização é considerada apenas em termos de circulação de capitais. Entretanto o que está ocorrendo é mais que isso – é um novo regime mundial de acumulação, cujo funcionamento dependeria das 204 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 prioridades do capital privado altamente concentrado – o capital aplicado na produção de bens e serviços, mas também, de forma crescente, do capital financeiro centralizado, mantendo-se sob a forma de dinheiro e obtendo rendimento como tal. Trata-se pois, de uma forma de acumulação predominantemente rentista e parasitária, sendo que o caráter rentista envolve também o capital produtivo. • Conseqüentemente, estamos falando de processos estruturalmente excludentes, de um tipo de investimento que é poupador de mão de obra, gerador de desemprego e não de emprego; essa característica, que nos interessa mais diretamente em termos profissionais, é produtora de mais pobreza, de miséria, de exclusão estruturalmente implantada na sociedade. Essa é a “nova” configuração da questão social. • Mas isso não é tudo: não é apenas no mundo da produção (incluindose aí os desenvolvimentos tecnológicos e organizacionais) e o mundo dos negócios que sustentam essa forma de desenvolvimento do capital. O Estado também precisa ser reformado, para que ele possa realizar o papel fundamental que ele tem a cumprir: apoiar essa nova forma de acumulação através das políticas de liberalização, desregulamentação e privatização, como as que vêm sendo adotadas no Brasil e em diferentes países, sob pressão dos organismos internacionais ou multilaterais, com os quais assumiram compromissos financeiros. • Em síntese: a mundialização do capital implica mudança qualitativa nas relações entre Capital e Trabalho e entre Capital e Estado. As conseqüências dessa mudança se manifestam em processos que são nossos conhecidos: não apenas o desemprego crescente, mas a precarização das relações de trabalho que acompanham a implementação das “novas tecnologias” na produção (o enxugamento da produção, o sistema toyotista, o just in time, a terceirização, a desregulamentação, a flexibilização dos contratos salariais, etc.), produzindo como resultado a grave situação social com a qual cotidianamente nos defrontamos como profissionais e como cidadãos. Esses são indicadores de uma reorganização da sociedade que tem conseqüências sociais dramáticas, na medida em que os processos econômicos mencionados se articulam a outros de natureza política, promovendo o esvaziamento da esfera pública. Como analisa Francisco de OLIVEIRA (1999, p. 57-58), ao lado das transformações da própria classe trabalhadora internas (sua composição) e externas (nas suas relações com o capital), ocorreu Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 205 uma espécie de naturalização administrativa das conquistas e dos direitos que, ao tornarem-se praticamente universais, liberaram-se num processo bastante conhecido do ponto de vista da sua produção conceitual e também histórica, de sua base material, vale dizer, das próprias classes trabalhadoras. Citando Habermas, o mesmo autor considera um esgotamento das energias utópicas, que se refletem no abandono da militância sindical e até mesmo na simples adesão ao sindicato que hoje apresenta baixas taxas de sindicalização: Todo esse processo, diz OLIVEIRA, é a privatização do público. Mais do que as privatizações das empresas estatais, que apenas em dois países, Inglaterra e França, revestiram-se de conteúdos explicitamente ideológicos da luta de classes, no sentido de que as empresas estatais eram bastiões de importantes setores da classe operária que fundou e viabilizou o próprio Estado do Bem-Estar, enquanto que na grande maioria dos outros países as privatizações tiveram sentidos mui pragmáticos, a subjetivação descrita é uma privatização da esfera pública, sua dissolução, a apropriação privada dos conteúdos do público e sua redução, de novo, a interesses privados. Não é por outra razão que as medidas de privatização, de dissolução da esfera pública, de destituição de direitos, de desregulamentação, por parte das burguesias e dos governos, encontram resistência social que não se transforma em alternativa política. É que essa subjetivação é comum dos dois lados da contenda, embora com sentidos de classe bem diversos, o que a resistência social sobretudo contra as medidas típicas do Estado do Bem-Estar (segurodesemprego, seguridade em geral, aposentadoria, etc.) tem mostrado na Europa, apesar de que sua passagem para a política se vê dificultada justamente porque a ruptura da relação de conflito é uma anulação da política, nos termos de Rancière. (grifos nossos). Tendo como principais justificativas a crise fiscal e a ineficiência da máquina estatal, vem-se promovendo, na última década, em vários países, a reforma do sistema de proteção social, o que no Brasil se traduz no desmonte do nosso já precário sistema de seguridade social, justamente quando, através da luta de vários setores organizados da sociedade civil, se conseguira colocá-lo num patamar de direitos constitucionalmente estabelecidos que, entretanto, não estavam ainda totalmente implantados e consolidados. Segundo (TELLES, 2001 p. 140). 206 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 o desmanche, ora em curso, [...] não diz respeito à demolição de direitos que, aqui em terras brasileiras, nunca chegaram a se consolidar como referência de uma ‘norma civilizada’ nas relações sociais. Mas é o desmanche de um horizonte e de um conjunto de referências a partir dos quais a cidadania era (e ainda é) formulada como uma aposta política possível. [...] e sendo assim, entre os ‘resíduos’ do atraso de tempos passados e as determinações da moderna economia integrada nos circuitos globalizados do mercado, a pobreza é fixada onde sempre esteve – como paisagem na qual é figurada como algo externo a um mundo propriamente social, como algo que não diz respeito aos parâmetros que regem as relações sociais e que não coloca, por isso mesmo, o problema das injustiças e iniqüidades inscritas na vida social. Isso tem como conseqüência, no plano social, o aumento da vulnerabilidade de um contingente expressivo da população com o aumento da pobreza, da exclusão ou, como designa CASTEL (1999), da desfiliação, criando duas categorias de indivíduos (integrados, não-integrados), ou como analisa (PAUGAM, 1999) acelera a desqualificação social. Ao examinarmos as características das políticas sociais formuladas na última década, percebemos que elas estão muito longe de oferecer proteção social a essa população, que precisaria de mais atenção no contexto acima descrito, pela sua vulnerabilidade, como demonstram as análises de diferentes autores, como: (COHN, 2000), (KAMEYAMA, 1997) e (SOARES, 2003). O estudo realizado por (KAMEYAMA, 1997) identifica quatro principais tendências das políticas sociais brasileiras na última década: a descentralização, que quando atinge uma forma radical, aumenta as desigualdades regionais, na medida em que se transfere responsabilidades da união para os estados ou municípios, que não são acompanhadas dos recursos correspondentes, alem de aumentar a fragmentação na prestação de serviços. a privatização (explícita ou implícita) que se faz através de vários mecanismos e modalidades: • a transferência para o setor privado os estabelecimentos públicos; • a eliminação dos programas públicos e o desengajamento do governo de algumas responsabilidades específicas, a redução em volume, capacidade e qualidade de serviços públicos, encaminhando a demanda para o setor privado (como é caso do setor saúde, onde se criou um grande mercado para planos e seguros de saúde, uma grande parte dele bastante precários em termos de cobertura); o financiamento público do consumo de serviços privados através de contratação, e terceirização, reembolso ou indenização dos Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 207 consumidores, tickets e vales com pagamento direto dos provedores privados; as várias formas de desregulação ou desregulamentação que permitem às empresas privadas assumirem serviços antes monopolizados pelo governo (DRAIBE, 1993). • a adoção de programas de renda mínima, com diversas modalidades, que, ao contrário do que ocorre na Europa, estão longe de garantir a subsistência das famílias pobres (o Projeto Suplicy de Renda Mínima só foi aprovado quando a proposta original já estava completamente desfigurada e sem condições de apresentar efetividade); a adoção de programas de renda mínima no final do segundo mandato do governo FHC, foi acompanhada de intensa propaganda eleitoreira, que pela sua obviedade não tinha condições para convencer ninguém. • a articulação público-privado, que vem se caracterizando muito mais como transferência de responsabilidades públicas na prestação de serviços às comunidades e famílias, através de ONGs, de organizações filantrópicas tradicionais e da chamada filantropia empresarial - perspectiva que num país onde as dimensões da pobreza são imensas, é uma temeridade; essa transferência de responsabilidades conta com o estímulo a uma solidariedade difusa,11 que é contrária à efetiva solidariedade estrutural assegurada pelo sistema de proteção social institucionalizado na forma do Estado de Bem-Estar Social, da qual o Estado é fiador para assegurar direitos aos cidadãos. Além desse aspecto, como afirma ainda (OLIVEIRA, 1999 p. 58), o deslocamento das responsabilidades do Estado para uma suposta “sociedade civil” é a morte da política, pois esse deslocamento somente produz indignação, mas não produz política. Dessa forma, esvazia-se a esfera dos direitos sociais que a duras penas, com uma ação intensa de vários segmentos sociais, inclusive dos assistentes sociais, organizados através dos Conselhos Federal e Regionais, estava se constituindo. A estratégia política de esvaziamento do campo dos direitos sociais foi, aliás, a tônica do Programa Comunidade Solidária (PCS) implantado no governo FHC que através da promoção da solidariedade difusa já mencionada, congelou os efeitos da Lei Orgânica da Assistência Social, que acabara de ser promulgada (em 1993). Como indicam as conclusões de (COSTA, 1998 p. 131-148) num excelente artigo, o PCS opera à margem da lei, ou seja: 11 Para uma análise do uso político-ideológico que vem se fazendo da noção de solidariedade nos últimos anos, remetemos ao artigo: JAMUR, M. Solidariedade (s). O Social em Questão. v. 4, n. 4, jul./dez. 1999. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Serviço Social, p. 25-60. 208 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 1 Opera à margem do MPAS (Ministério da Previdência e Assistência Social) de sua coordenação, estrutura normativa e organizacional, abrindo o caminho para a desintegração do padrão Seguridade Social; 2 Assumindo a competência do MPAS, no que se refere à assistência, cria uma estrutura paralela que abre espaços para o ajuste institucional necessário à mudança conceitual prevista: nova seguridade social versus previdência capitalizada; 3 Articulando-se aos programas sociais de cada ministério, subordina e limita sua ação às injunções orçamentárias setoriais.12 Quanto à filantropia empresarial, que vem ganhando muito destaque na mídia nos últimos anos e que vem sendo considerada por muitos como uma prática das “empresas-cidadãs”, consideramos que é necessário ir além das aparências e da propaganda e buscar o significado dessa generosidade que, em muitos casos (muitos mais até que gostaríamos de admitir) é, na realidade, um excelente negócio: ela não apenas retira recursos do setor público (através da isenção ou da renuncia fiscal); ela não custa nada, ou custa muito pouco a quem a pratica - na maioria dos casos, as atividades são realizadas pelos funcionários que são “estimulados” a usar o seu tempo livre para isso, em geral sem ganhar horas-extras, o que constitui, portanto, uma sobre-exploração dos funcionárioscidadãos; não há nenhum controle público sobre os serviços prestados – o que deveria ocorrer já que o Estado concede isenção fiscal (as empresas deixam de recolher impostos) e, portanto é dinheiro público (dos contribuintes) que está sendo utilizado; outro aspecto a ser destacado é que as empresas transferem um modo de operar do mercado para os setores sociais (por exemplo, para as escolas que elas “adotam”), neles introduzindo uma lógica e uma cultura mercadologizantes.13 Não se trata de negar o direito à prática da caridade e da filantropia a quem quer que seja, pois essas são atividades que sempre existiram e continuarão a existir – trata-se de definir socialmente o que deve pertencer à esfera de responsabilidade pública, do Estado, e o que deve ficar na esfera das iniciativas privadas; trata-se ainda, e sobretudo de tornas públicas as decisões sobre o uso dos recursos públicos (onde e como eles devem ser investidos), com a necessária transparência e o com devido controle social. Há portanto, como caracterizou QUIROGA (1997) três modelos de ação social operando no Brasil hoje: o da caridade, o da filantropia e o da justiça – 12 COSTA, Vanda Ribeiro. À Margem da Lei: o Programa Comunidade Solidária. Em Pauta n. 12. Rio de Janeiro, UERJ, Faculdade de Serviço Social, maio 1998, p.131-148. 13 Para uma análise mais acurada sobre a ação social das empresas no Brasil, ver (PAOLI, 2002) e (GARCIA, 1997). Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 209 sendo este último, segundo o que todas as análises indicam, o mais frágil em decorrência do desmanche do sistema público de proteção social. Entre as múltiplas dimensões da questão social em sua configuração atual, a dimensão do esvaziamento da esfera pública, deve ser enfatizada, porque ela é central, como afirma (TELLES, 2001 p. 143): A questão não é retórica, pois para além das garantias inscritas na lei, os direitos estruturam uma linguagem pública que baliza os critérios pelos quais os dramas da existência podem ser problematizados e avaliados nas suas exigências de eqüidade e justiça. E isso significa um certo modo de tipificar a ordem de suas causalidades e definir as responsabilidades envolvidas, de figurar diferenças e desigualdades e de conceber as equivalências que a noção de igualdade e de justiça sempre propõe, porém como problema irredutível à equação jurídica da lei, pois sempre é pertinente ao terreno conflituoso e problemático da vida social. Os Desafios do Serviço Social Hoje Cabe agora, diante desse quadro, perguntarmos: quais são os desafios do serviço social hoje e como se pode enfrentá-los? Consideramos que essa questão coloca duas exigências à nossa reflexão: exige, por um lado, que pensemos as condições da profissão no presente, sem esquecermos de examinar tanto as necessidades e demandas de hoje, quanto as possibilidades que o seu potencial atual nos autoriza a conceber em termos de desenvolvimento futuro; por outro lado, é imprescindível não esquecer, neste exercício prospectivo, que o Serviço Social é uma profissão, que tem no horizonte um compromisso de intervenção na realidade social, o que caracteriza os desafios atuais como teórico-práticos, ou seja, as demandas à profissão se situam, ao mesmo tempo, no plano do conhecimento e no plano da ação profissional nas organizações públicas e privadas. Inicialmente, é preciso assinalar que o primeiro desafio é assegurar que as conquistas e os avanços que indiscutivelmente a profissão obteve nos últimos 30 anos se consolidem, se ampliem e se aprofundem. Embora consideremos que é importante analisar detidamente tais avanços, não haveria condições de fazê-lo aqui. Por isso, vamos apenas assinalar, de forma breve, que avanços são esses, que já examinamos mais detidamente em outro texto, ao qual remetemos os interessados.14 Remetemos os interessados ao nosso artigo “A formação para o Serviço Social no Brasil: expectativas, desafios e antigas contradições no sistema”, publicado na revista O Social em Questão, n. 5, Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Serviço Social, p. 25-56, examinamos 14 210 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 Como indicamos naquele texto, verifica-se que, a partir de meados da década de 60, um processo de modernização no serviço social tem curso, trazendo algumas mudanças estruturais na profissão, indutoras de diferenciação interna e de especialização no campo profissional. Dentre essas, destacamos, pela sua importância: • A ampliação do sistema de formação para o serviço social, que se inicia já na segunda metade da década, com uma formação ao nível de Pós-Graduação lato sensu (Cursos de Aperfeiçoamento com duração de um ano, especialmente dirigidos para a formação de docentes de diversas Escolas de todo o país); esse movimento se torna sistemático e ganha consistência da década de 70, com a implantação dos cursos de Pós-Graduação stricto sensu, que hoje já conta com um número significativo de Programas consolidados (17 Mestrados e 8 Doutorados), observando-se uma tendência à expansão da formação pós-graduada nos dois níveis citados; • A consolidação do sistema de formação pós-graduada stricto sensu, que é um dos elementos importantes na transformação do campo profissional, criou a base para realização de outra mudança estruturalmente importante, que foi a sistematização da produção de conhecimentos na área, criando-se as condições para que houvesse uma produção com fluxo contínuo - sobretudo através das dissertações de mestrado e das teses de doutorado; geraram-se assim, as condições para criação de canais para a sua difusão regular com a constituição de um mercado de publicações específicas para a área. Hoje existe uma significativa produção de conhecimentos na área, mantendo-se um fluxo regular de publicações nacionais (livros e revistas), com circulação comercial em todo o país - além dos periódicos editados pelos programas de pós-graduação, de circulação mais restrita - ou através de comunicações e trabalhos apresentados em eventos científicos;15 • A consolidação da pesquisa, atividade que não constituía uma prática sistemática entre os profissionais da área até os anos 70 também é importante na caracterização das mudanças qualitativas introduzidas na formação profissional nas três últimas décadas, assim como a detalhadamente as mudanças estruturais por que passou a profissão no país, e os avanços registrados a partir de meados da década de 60, ao mesmo tempo que analisamos antigas e novas contradições, cuja superação se coloca como desafio aos profissionais. 15 Os indicadores qualitativos e quantitativos quanto a essas mudanças são apresentados no artigo citado na nota anterior, especialmente nas páginas 26 a 33. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 211 inserção do Serviço Social na CAPES e no CNPq, os dois principais espaços públicos responsáveis pela política de financiamento da formação de recursos humanos em ensino e pesquisa, além dos órgãos estaduais.16 As mudanças estruturais, aqui sinteticamente enunciadas, propiciaram avanços no sistema de formação profissional, na pesquisa e na produção de conhecimentos, sobretudo quando os resultados são confrontados com as condições existentes no início dos anos 70, em termos de qualificação docente: existe hoje um significativo contingente de Mestres e Doutores entre os docentes das unidades de ensino, exercendo atividades de ensino, pesquisa e extensão, “cuja qualificação certamente contribuiu para imprimir uma nova dinâmica e elevar o nível da formação dos assistentes sociais que se desenvolve nas escolas públicas e privadas de todo o país” (JAMUR, 2000 p. 33). Após esse breve (e incompleto) inventário dos nossos avanços e conquistas, voltemos aos nossos desafios, reafirmando o que colocamos de início como o primeiro dos desafios a enfrentar: garantir que esses avanços e conquistas realizados em três décadas se consolidem, se ampliem e se aprofundem, na direção política predominantemente progressista que a profissão assumiu nas últimas três décadas. É importante compreender os processos que levaram a profissão a esse caminho e reconhecer o importante papel que as posições críticas em relação à função social desempenharam. Hoje, o compromisso com uma sociedade justa e democrática é inquestionavelmente hegemônica no plano discursivo, mas é necessário que esse compromisso se traduza numa prática coerente com ele, para que se possa enfrentar o risco de retrocesso, favorecido pela conjuntura. Para isso é necessário, entre várias ações estratégicas, realizar um investimento específico direcionado para o campo da prática, que continua sendo o nosso elemento mais frágil, onde se manifestam algumas das principais Para avaliar a importância do investimento em formação científica, indispensável para assegurar a produção de conhecimentos em fluxo contínuo, tendo na elaboração de dissertações e teses um mecanismo fundamental, que não se limita a ele, porém, ver, além do nosso já citado artigo, duas outras fontes: o Relatório de avaliação da CAPES (disponível no site www.capes.org.br)registra a existência 30 linhas de pesquisa cadastradas, onde são desenvolvidos 153 Projetos de Pesquisa, havendo 19 grupos de pesquisadores cadastrados (incluindo os professores-pesquisadores, bolsistas de aperfeiçoamento e de iniciação científica), representando um contingente de 120 pessoas envolvidas permanentemente em pesquisa; o estudo realizado em 1996 por ABREU, M.M. e SIMIONATTO (“A situação da pesquisa em Serviço Social no Brasil 1990-1996”. In: In: Cadernos ABESS n.7, Nov. 1997, São Paulo: Cortez, pp.113-140) indica que em 34 unidades de ensino (48% do total) existem 325 docentes-pesquisadores e 365 estudantes envolvidos em 334 pesquisas. 16 212 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 contradições que precisam ser enfrentadas pelo conjunto dos envolvidos na produção e na reprodução da profissão. Não seria exagero afirmar, com base em estudos que vimos realizando sobre a prática dos assistentes sociais no Rio de Janeiro, assim como em estudos de outros pesquisadores no Brasil, que o campo da prática profissional não acompanhou os avanços aqui já mencionados em termos do sistema de formação, da pesquisa e da produção de conhecimento e, por isso, as contradições existentes entre ambos estão a exigir um cuidado específico, para não comprometer as conquistas já alcançadas, até mesmo no próprio sistema de formação. Para identificarmos essas contradições, que estão constantemente presentes (de forma explícita ou implícita) entre as questões, temáticas e preocupações dominantes entre os assistentes sociais, basta observarmos a sua expressão documentada nos principais fóruns reconhecidos como importantes pela categoria (pesquisas, trabalhos apresentados e registros de debates realizados). Analisando o conjunto dessas formas de expressão, podemos perceber que a prática profissional e a formação profissional estão entre os principais temas que têm mobilizado a reflexão dos assistentes sociais há pelo menos duas décadas, qualquer que seja a sua função no campo profissional.17 Essas preocupações constituem, pela sua permanência, uma espécie de leitmotiv nas discussões do meio profissional e poderiam ser traduzidas numa questão crucial, que pode ser formulada através de três perguntas: em que medida os avanços constatados nas unidades de ensino de serviço social em termos de ensino, pesquisa e produção de conhecimento interferiram significativamente na prática dos assistentes sociais nas instituições? Em que medida se pode afirmar que a prática dos assistentes sociais nas organizações públicas e privadas onde atuam é radicalmente diferente ou, pelo menos, apresenta diferenças significativas daquelas que os profissionais realizavam há cerca de 30 anos atrás? Em que medida a prática do serviço social nas instituições hoje traduz, manifesta, ou concretiza as concepções, as propostas, formuladas no projeto ético-político que foi construído nas últimas duas décadas18 em que, como assinalamos, o sistema de formação profissional se desenvolveu e se transformou? Esse questionamento está vinculado a uma outra preocupação, que freqüentemente se exprime como “necessidade de articular teoria e prática”, há Retomamos aqui a discussão que realizamos no artigo já citado na nota 14, p. 34 e SS. A esse respeito ver NETTO, José Paulo. A construção do projeto ético-político do serviço social frente à crise contemporânea. In: Capacitação em serviço social e política social: Módulo 1: Crise contemporânea, Questão Social e Serviço Social. Brasília: CEAD, 1999, p 91-109. 17 18 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 213 muito tempo presente no campo da profissão “através de algumas questões, que funcionam como vetores em torno dos quais essa preocupação se formula, independentemente da posição epistemológica assumida pelos sujeitos: • Como articular os conhecimentos teóricos que compõem o currículo da formação dos assistentes sociais e as situações que estes devem enfrentar na sua prática cotidiana? • Como superar a falta de articulação, a distância, a dissociação ou a oposição entre ambos? Ao registrarmos a expressão dessa preocupação, observamos também, a manifestação de duas ordens de expectativas no campo profissional: • A primeira, de que o desenvolvimento da formação pós-graduada, sobretudo dos mestrados e doutorados, pudesse transformar qualitativamente o ensino da graduação e, conseqüentemente teríamos uma prática melhor qualificada e coerente com o novo projeto ético-político; • A segunda, de que as reformulações curriculares do curso de graduação, fossem capazes de trazer soluções para as questões que se manifestam nas duas ordens de preocupações mencionadas, relacionadas com a prática e consideradas como expressão maior da fragilidade da profissão, que nem mesmo os avanços do sistema de formação e a produção do saber na área têm contribuído para superar. Diante disso, um dos desafios que se colocam é o de criar estratégias que possam, dentro de certos limites, romper com os processos que vêm produzindo, entre a maioria dos assistentes sociais que concluem a graduação, resultados que não estão à altura dos avanços constatados no sistema de formação e que vêm contribuindo para realimentar e reforçar uma representação social da profissão, de indiferenciação com relação ao trabalho voluntário, de amadorismo, de baixa qualificação e de subalternidade. Considerando que, em função das políticas de desmonte do sistema de proteção social na perspectiva dos direitos anteriormente mencionado, há um estímulo à ação voluntária e à proliferação da ação social privada através das ONGs, onde em geral, não há exigência de qualificação profissional dos agentes esse é um desafio que precisa ser encarado como prioridade. Não vamos tratar aqui, dos desafios e das estratégias especificamente relacionadas com os problemas da formação profissional, embora consideremos que sejam fundamentais no enfrentamento das questões aqui abordadas, porque já discutimos essa temática no artigo mencionado. Vamos nos limitar ao tratamento dos desafios diretamente ligados às 214 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 atividades de pesquisa e à produção de conhecimentos voltados para a necessidade de qualificação da prática do serviço social, visando à superação da distância entre discurso e ação concreta, porque consideramos que as universidades sempre tiveram e continuarão a desempenhar um papel fundamental na formulação de estratégias orientadas para esse objetivo. Uma das razões para tal é o fato de que, embora por convicção política prefiramos a igualdade, não podemos deixar de reconhecer (e de tratar teóricometodologicamente) a desigualdade de poder que existe entre os dois espaços, independentemente da preferência e da vontade dos sujeitos inseridos num e noutro. Assim sendo, o poder simbólico e o prestígio da universidade podem (e devem) ser usados positivamente para enfrentarmos os desafios já mencionados. Uma condição indispensável para tal é redirecionar a produção do saber nas unidades de ensino que, como já analisamos em outro lugar,19 têm que se pautar nas regras próprias do espaço universitário; as escolas de serviço social, sem abandonar a perspectiva que lhe é própria, precisam incorporar ao seu sistema de objetos de forma orgânica e sistemática, as demandas que emergem das situações da prática profissional; a produção de conhecimentos pelas unidades de ensino, como indicamos, deveria alcançar o espaço da prática, não de fora para dentro, mas de dentro: a produção de saber deveria incluir e priorizar estrategicamente as temáticas teórico-metodológicas, ético-políticas e pedagógicas que emergem do cotidiano da prática nas organizações que constituem também campos de estágio; estas temáticas, precisariam ser tratadas como desafios, não apenas retoricamente, com um olhar que critica de fora, distante, mas com um olhar crítico de quem está vinculado por um projeto bem definido de pesquisa-ação, compartilhando a percepção da pressão das demandas, buscando cooperativamente as alternativas e formulando propostas para responder a elas; o distanciamento crítico próprio do espaço da universidade só será fecundo em relação à profissão, na medida em que buscar, através da sua inserção no outro espaço, produzir novas formas de olhar para o campo da prática, que hoje, em geral, é percebido apenas como o avesso ou negação da “teoria” que se ensina na universidade, contribuindo para a qualificação desse outro espaço (p. 51-52). Analisamos num artigo, ao tratar dos problemas da nossa formação profissional as lógicas e regras diferentes que regem os dois espaços (da universidade e das organizações de serviço social) colocando exigências distintas aos profissionais neles inseridos. JAMUR, cf. nota 14, p. 4749. 19 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 215 No que se refere às atividades de pesquisa, consideramos que é necessário se estabelecer uma estratégia que articule permanentemente as organizações da categoria responsáveis pelo direcionamento do ensino e da pesquisa com os Conselhos Federal e Regionais de Serviço Social, para se definir uma política que possa, a médio e longo prazos, estabelecer linhas de pesquisa voltadas para qualificar a prática dos assistentes sociais, tentando responder aos desafios apontados. Trata-se de investir na pesquisa de metodologias que articulem conhecimento e intervenção, unindo num esforço sistemático os professorespesquisadores e os assistentes sociais, formando equipes para realizar programas de pesquisa-ação, que focalizem as dimensões da prática profissional, investigando as condições concretas nas quais ela se realiza, que atualmente revelam mais fragilidades e se mostram mais contraditórias em relação ao projeto ético-político do serviço social. Por falta de atenção a essa dimensão, por falta de instrumentos efetivos para uma ação coerente com esse projeto, as práticas tradicionais condenadas no discurso, acabam se reproduzindo sub-repticiamente entre as novas gerações formadas. Consideramos que a questão social, dentre múltiplas temáticas, é uma área de trabalho estratégico em torno das quais se pode articular os dois conjuntos de atores, na realização de projetos de pesquisa-ação,20 como propusemos acima. Concordamos com (PEREIRA, 2001, p. 57-60) que, como vimos anteriormente, considera que precisamos realizar um trabalho sobre a própria questão social, pois entende que não há uma verdadeira problematização em torno da questão social, afirmando que as questões integrantes da agenda de estudos do Serviço Social, suas pesquisas e projetos de intervenção, nem sempre são questões sociais de fato: Como é sabido a pesquisa-ação tem múltiplos sentidos e dá lugar a métodos e práticas diferenciados, algumas das quais contribuíram para desacreditar essa proposta por negligenciarem as exigências teórico-metodológicas que ela implica. Quando sugerimos aqui a sua utilização estamos nos remetendo à metodologia desenvolvida por cientistas sociais (sobretudo europeus e canadenses), a partir de um referencial marxista. Ver a esse respeito: WIEVIORKA, Michel. Recherche-action et experimentations sociales. Connexions n. 43, Paris, 1884, p. 29-38; DE BAL, Marcel B. Nouvelles alliances et reliance: deux enjeux stratégiques de la recherche-action. Revue de l’Institut de Sociologie, Université Libre de Bruxelles, n. 3, 1981, p. 573-587; CALPINI, J.C. et alli. Recherche-action: interrogations et stratégies émergentes. Cahiers de la Section des Sciences de l’Éducation de l’Université de Genève: 26, 1987, As experiências realizadas, sobretudo por pesquisadores franceses, belgas, suíços e canadenses, no campo do trabalho social e da formação, têm colocado em evidência a contribuição desse método, tanto em termos de produção de saber, quanto de melhor qualificação das ações e dos profissionais. 20 216 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 para muitos de nós, assistentes sociais a questão social não está clara. Ela é, no mais das vezes, vista genericamente, como a representação das crises, tensões, desafios, vulnerabilidades, riscos, desconstruções, discriminações, aporias, que efetivamente existem e castigam grande parte de humanidade. [...] Isso coloca, a meu ver, desafios epistemológicos sérios para o Serviço Social porque, sendo a questão social o seu foco privilegiado de interesse científico e político, e em não estando esse foco teoricamente definido, corre-se o risco de tomá-lo analiticamente como um fato inespecífico, caindo-se no relativismo, ou de pensá-lo como um fenômeno espontâneo desfalcado de protagonismo político. Diante dessa insuficiência, para a autora, “cabe às profissões de conteúdo social, dentre as quais o Serviço Social, descobrirem qual é a sua contribuição e como devem participar da sua problematização”, para torná-la efetivamente uma questão social. Acreditamos que para dar essa contribuição, é necessário articular o esforço sistemático de professores-pesquisadores e de assistentes sociais que, nas organizações públicas e privadas lidam cotidianamente com as situações em que os efeitos da desigualdade social se manifestam, para que possam, simultaneamente: produzir uma problematização que permita uma compreensão teórica mais acurada dessas situações e melhor qualificação das práticas dos profissionais que devem produzir respostas a essas demandas concretas, através de uma cooperação que os vincule num compromisso ético-político prático e mutuamente acordado; é necessário, também, que essa aliança se estabeleça de modo claro, com objetivos e duração definidos, para constituir um sistema de ação concreta, ou seja, para que os atores oriundos de dois campos (que tem lógicas de funcionamento distintas) possam enriquecer a sua experiência, participando de um sistema sócio-científico aberto e de um sistema de pesquisa-ação concreto. Conhecendo as condições gerais em que se realiza a prática profissional que não é autônoma, se queremos efetivamente superar as contradições apontadas, é preciso adotar estratégias que possam romper com a lógica que tem orientado o tratamento das questões da reprodução da profissão; esta continua sendo pensada e definida predominantemente no espaço acadêmico que, pela sua própria lógica e pelas suas regras de funcionamento se mantém distante do espaço onde a prática se realiza. Apesar do esforço realizado pelos órgãos da categoria profissional que têm participado dos debates sobre a implantação das diretrizes curriculares e têm assumido algumas ações importantes em relação à formação permanente (ou à capacitação continuada) Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 217 dos assistentes sociais em exercício,21 essa distância se mantém, sobretudo porque, somente a adoção dessas estratégias, mesmo sendo realizadas com o maior êxito, não são suficientes para reduzir a distância entre os dois espaços profissionais, cada um deles submetido à sua própria lógica – por isso é preciso articulá-los num projeto comum que possa envolver, comprometer e transformar ambos. Para que isso se efetive é necessário que os órgãos representativos da categoria (CFESS, CRESS e ABEPSS) estabeleçam um conjunto de estratégias políticas visando à construção de alternativas em face dos obstáculos existentes para se alcançar uma prática coerente com o que propõe o projeto ético-político da profissão, que deve contemplar uma agenda de pesquisas sobre temas relacionados à prática profissional e também à própria formação profissional. Isso não significa impor aos pesquisadores determinados objetos de estudo, mas estimulá-los, através dos diferentes recursos institucionais de que as organizações profissionais dispõem (sobretudo a ABEPSS pelas suas finalidades) definindo um programa de pesquisas, de longo prazo, que incluísse temáticas que abordem os complexos processos envolvidos na prática dos profissionais. Seria uma forma controlada e sistemática de recolher elementos para se conhecer melhor os processos envolvidos nas dificuldades encontradas pelos assistentes sociais para concretização da sua prática, que subsidiariam reflexões sobre as formas de superação das condições existentes, fundamentando também propostas de políticas sociais. A construção de alternativas implica na articulação dos diferentes sujeitos, ou seja: aqueles que atuam nas unidades de ensino (nos distintos níveis de formação), nas organizações onde a prática do serviço social se realiza, e nos órgãos representativos da categoria; isso é indispensável, porque o caminho para superação da distância existente entre o discurso competente na análise dos macro-processos sociais que se constituiu num longo processo de O Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e os Conselhos Regionais (CRESS), além do trabalho regular de controle e fiscalização do exercício profissional (que as Comissões de Orientação e Fiscalização vêm desenvolvendo uma ação estrategicamente importante a médio e longo prazos, realizando diferentes ações positivas, como as visitas às organizações por áreas e os encontros descentralizados, atingindo inclusive cidades do interior), em termos de formação permanente junto aos Assistentes Sociais: através de Encontros (como o de Seguridade, realizado em nível Regional e Nacional), Cursos, Debates e Comissões Temáticas (Assistência e Previdência, Família, Criança e Adolescente, Gênero e Etnia, Saúde, Dependência Química, etc.) que se reúnem mensalmente; além disso, vêm realizando um Programa de Capacitação Continuada à Distância para Assistentes Sociais, (juntamente com a ABEPSS), através de convênio com o Centro de Educação Aberta, Continuada e à Distância da Universidade de Brasília, em quatro módulos e com excelente material bibliográfico de apoio, que atualmente alcança profissionais de11 Estados. 21 218 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 qualificação profissional nas últimas três décadas, e a construção de formas de intervenção nos micro-processos onde se realiza a prestação de serviços à população é, indiscutivelmente, uma construção coletiva. Ao pensarmos em estratégias para tentar superar os desafios atuais, não podemos esquecer, por um lado, que a razão de ser do sistema de formação profissional e de suas unidades de ensino é assegurar a reprodução de um corpo profissional qualificado, como um dos requisitos que historicamente se constituiu para garantir o reconhecimento social formal da profissão; e, por outro lado, que o campo do serviço social - tal como ocorre com todas as profissões, independentemente de suas especificidades - se estrutura a partir de uma relação dialética entre as condições criadas pela formação social e as condições criadas a partir das ações dos profissionais e de suas organizações, através de processos nos quais se refletem os conflitos sociais presentes na sociedade; isso significa que é necessário investigar quais são os limites colocados por tais processos, assim como as potencialidades que apresentam. Um desses limites é apontado por (SARTI, 2002 p. 62-63), que chama atenção para o fato de que se percebe a ausência de cientistas sociais nos debates em que se pretende refletir sobre temas importantes para a formulação de políticas públicas, mencionando como exemplo, a baixa participação das ciências humanas e sociais em eventos onde se discute temas importantes como as políticas de educação, de ciência e tecnologia, a questão do desenvolvimento sustentável no país, a avaliação de ações governamentais onde certamente teriam uma contribuição relevante a dar. Pergunta-se, ainda, por que os cientistas políticos “não são convidados para os grandes encontros, nem consultados nas importantes decisões sobre elaboração e implantação de políticas que afetam profundamente a vida dos cidadãos?” Nem os cientistas sociais, nem os assistentes sociais, portanto, são chamados a participar da elaboração das políticas sociais que afetam decisivamente as suas condições de trabalho, e sabemos porque isso ocorre: a lógica dos direitos sociais ainda não se afirmou em nosso país. Entretanto, caberia nos perguntarmos: admitindo-se a hipótese de que um governo democrático local, em qualquer cidade brasileira, buscando diálogo, participação e respaldo técnico na sociedade, convocasse os assistentes sociais, juntamente com outros profissionais, para apresentar programas e projetos alternativos às “políticas sociais neoliberais” que, com justa razão, não nos cansamos de denunciar, o que esses profissionais - que se formaram nas nossas universidades - estariam preparados a oferecer concretamente? Isso aponta para o que se pode considerar como um desafio que condensa os demais: produzir conhecimento sobre as formas concretas de Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 197-224, 2003 219 expressão da questão social e sobre os efeitos das atuais políticas e dos programas sociais sobre as condições de vida da população; esse conhecimento, associado à capacidade profissional demonstrada e reconhecida para formular, executar e avaliar alternativas concretas de políticas sociais, pode instrumentalizar uma ação política, articulada com a de outros profissionais, para reivindicar o direito de participar da definição e da avaliação de políticas e de programas sociais. Esse direito, aliás, pode e deve ser reivindicado por todos os cidadãos que visam à democratização da nossa sociedade. Entretanto, daqueles que fizeram da intervenção no social a sua escolha profissional, espera-se que a sua legitimação se construa, não pelo monopólio do exercício garantido pelo Estado, mas pela prática qualificada, que una competência política e técnica, para que sua opção por participar da construção de uma sociedade justa e igualitária se concretize. JAMUR, Marilena. Configurations of the Social Question in Brazil and of the defiances to Social Work. Serviço Social & Realidade (Franca), v.12, n.1, p. 197-224, 2003. • ABSTRACT: The article boards the straits ties existents between Social Question and Social Work, condition to the emergence towards its professionalization. Boards, also, the mainly defiances to be confronted by the profession in Brazil, in front of the changes on the operation form of capitalism today, replacing and amplifying the conditions that cause impoverishment of workers, synthesizing the principals producers/reproducers features of social inequality in Brazil. • KEYWORDS: Social Work; social question; defiances; practices. Referências Bibliográficas ABRANCHES, Sérgio H. Política social e combate à pobreza. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ABREU, M. M. Serviço Social e a organização da cultura: perfis pedagógicos da prática profissional. São Paulo: Cortez, 2002. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999. ARRIGHI, G. O. Longo século XX. Dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto/Unesp, 1996. CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. CASTEL, R. 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Rita de Cássia Camargo BRANDÃO* A Relação Estabelecida entre a Pesquisa e a Aprendizagem A idéia da obra é desmistificar a pesquisa, ou seja, fazer da mesma uma atividade cotidiana, presente desde a pré-escola. Assim o processo de pesquisa não ficaria reservado a poucas pessoas. Segundo o autor a pesquisa deve ter em vista a criação e a emancipação, que olha a realidade de forma crítica. Daí a importância de não ser apenas um repetidor, mas sim, aprender pela própria obra produzida. Assim sendo, é possível intervir, pois cabe ao pesquisador não somente descobrir, pensar e sistematizar, mas também assumir essa intervenção na realidade. A pesquisa vista no todo dialético, busca a atitude política sem desvincular do ensino e da política, não pode ser um ato isolado, mas um processo de investigação diante dos acontecimentos. Busca-se com isso a emancipação. Na expectativa cotidiana, o criar não é retirar do nada, é reconhecer o realismo do dia-a-dia e ter a impressão pessoal em algo retirado de outrem. Portanto, para se criar é preciso pesquisar tendo em vista a capacidade de elaboração própria. A hermenêutica é a arte de descobrir o que está escrito nas entrelinhas, o significado para além da palavra, sabe ver o que está atrás das aparências. Nesse contexto, percebe-se a importância da teoria que deve ser usada como respaldo e como instrumento para o intérprete. Desta forma, consegue-se montar alternativas explicativas, fazer análises e interpretações, ter diferentes visões e resgatar o senso crítico da teoria. A teoria neste contexto é colocada em questionamento quando se depara com a prática, pois somente assim, surgem dúvidas que possibilitam buscar novas alternativas. Em termos de metodologia a pesquisa participante é uma das propostas que mais valoriza a prática como fonte de conhecimento. Essa pesquisa não separa sujeito e objeto e faz a relação entre teoria e prática, compreende o diálogo crítico com a realidade no seu cotidiano. Não se pode falar em neutralidade científica, pois todo cientista molda a * Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – UNESP – Franca/SP. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 225-228, 2003 225 realidade de acordo com seu ponto de vista. O cientista não é um ente desencarnado, mas uma pessoa inserida em um processo histórico social. Diante disso é possível compreender porque uma realidade é construída de modo diversificado. Isso não quer dizer que o cientista inventa uma realidade, mas ele a interpreta, pois ela não é evidente. Essa discussão nos mostra a importância da pesquisa que questionando sobre alguma situação já existente, sugere o “criar”, forçando assim, o surgimento de novas alternativas. Essa é uma das vantagens da postura dialética, pois nem o método e nem a realidade ficam estanques pelo contrário, sempre estão em processo de superação histórica. O processo de pesquisa deve estar ligado à vida acadêmica, pois deve ser visto como processo social. Universidade não pode ser considerada como tal, se ela somente ensina, pois o primeiro princípio da ciência é a pesquisa. A pesquisa como diálogo é a fala inteligente com a realidade, pois surgem críticas e questionamento do próprio ponto de vista do outro. Quando pessoas dialogam é porque são emancipadas e porque têm com que contribuir, não ficam somente escutando, mas discutem e demarcam espaço próprio, defendendo seu ponto de vista. Nesse contexto, a pesquisa não é uma simples descoberta ou uma elaboração teórica, mas uma socialização do saber e um método de comunicação. Com a pesquisa é possível demonstrar que não se perdeu a vontade de iniciar outra vez, pois através dela consegue-se criar novas alternativas, mudando e compreendendo a realidade histórico-estrutural. A aplicação da pesquisa como princípio científico sugere alguns caminhos para que a Universidade não prevaleça pouco produtiva e criativa e fique somente no processo de reprodução de ensinamentos e não no descobrimento de novos. O primeiro passo é aprender a aprender e não fazer cópias. Isso se consegue através de muita leitura, pois assim, é possível discutir várias posições com embasamentos teóricos e criar a sua própria. O segundo passo é a elaboração de um tema, onde o problema deve ser analisado para uma posterior compreensão. Para conseguir dar “conta de um tema” é preciso saber onde se quer chegar no sentido de uma proposta científica, posteriormente verifica-se e comprova-se uma suspeita a qual damos o nome de hipótese. O resultado pode ser tanto positivo ou negativo, mas ambos terão seu significado para a ciência. Quando se consegue elaborar um tema, é preciso lembrar que ele não é a verdade absoluta, somente quer dizer que é bem fundamentado, garantindo o avanço científico. 226 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 225-228, 2003 Nas Universidades, a avaliação do aluno restringe-se apenas a um lado que deve ser avaliado. É preciso verificar se o lado da prática também tem qualidade. Essa avaliação qualitativa é mais difícil, pois não possui dados mensuráveis. Seria positivo trazer a Universidade para dentro da sociedade e assumir um compromisso estrutural, científico e tecnológico. Com isso, teríamos superado a questão que a universidade não faz parte da realidade e a extensão ficaria mais verdadeira. É essencial que o cientista saiba questionar a realidade que vive, problematizar, criar hipóteses, confrontar, elaborar chances de cidadania e democracia. Demo em sua obra indica que a pesquisa como princípio educativo deveria fazer parte da proposta escolar desde os primeiros anos da criança na escola. No próprio ambiente lúdico, é possível visualizar a atitude de pesquisa e promover o desenvolvimento via processo educativo, inventando soluções próprias, descobertas e criação de relacionamentos, sobretudo praticar a emancipação desse sujeito. A emancipação trata da formação de uma pessoa que se recusa ser tratada como objeto, que é capaz de se definir e ocupar o seu próprio espaço. É um processo histórico de conquista do ator consciente e produtivo. Quando esse sujeito torna-se consciente de sua condição histórica, compreendendo suas causas, sua estrutura da qual pode estar fazendo parte, ele passa de objeto a sujeito, ser social. Essa conscientização ocorre de dentro para fora, embasada no questionamento crítico. Isso é conseguido através de discussão repetida, dialogada, questionada. A partir daí consegue-se sair desse processo histórico que lhe foi imposto e executar o projeto emancipatório. A compreensão da emancipação fica mais adequada vista no quadro da desigualdade social, como questão histórico-estrutural. A sociedade vigente é colocada sob uma estrutura desigual, onde existem poucos privilegiados. Emancipar é recuperar o espaço próprio que outros se apossaram. Trata-se de um trajeto problemático, no qual estratégia política é essencial. A emancipação não deve ser uma atitude isolada, pois nada na sociedade é espontânea, precisa ser motivada para conseguir o princípio do processo, mas na deve ser induzida. A escola é um importante espaço para conseguir a formação da cidadania ou pelo menos deveria ser. Não deve ficar reduzida na condição de reprodutiva. Nesse contexto, o conceito de pesquisa é fundamental, porque através da consciência crítica consegue-se questionar, recusar a ser massa de manobra e passa-se à produção de alternativas com vistas a uma sociedade mais tolerável, sobretudo consegue-se aí a política emancipatória de construção do sujeito social competente e organizado. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 225-228, 2003 227 Conclusão O autor nos mostra que a pesquisa é uma exigência para a apreensão da realidade, deve ser entendida como um momento de síntese e expressão da totalidade da formação profissional. É o trabalho o qual possibilita a sistematização do conhecimento como resultado do processo investigativo, a partir de uma indagação teórica. Contribuição da Obra A obra reflete o compromisso do Professor Pedro Demo para com os ideais da emancipação e com a universalidade da educação, que envolve os ideais de justiça e liberdade para todos. Ressalta a dimensão pedagógica da pesquisa com uma concepção de educação emancipatória a qual serve de mecanismo na realização da reflexão crítica como também permite alocar o espaço da pesquisa e a educação escolar em conexão com os diversos aspectos formativos que atravessam a sociedade como um todo. A principal contribuição da pesquisa enquanto processo Científico e educativo reside na abertura para as idéias as quais despertam para críticidade voltada para a possibilidade de construção de uma reflexão critica comprometida com a construção de uma cidadania ativa e com a superação dos problemas sociais da atualidade. 228 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 225-228, 2003 RESENHA BIANCHETTI, Lucídio.; MACHADO, Ana Maria Netto (org.). A bússola do escreve: desafios e estratégias na orientação de teses e dissertações. Florianópolis: UFSC; São Paulo: Cortez, 2002. Silvia Cristina Arantes de SOUZA* Primeiramente é preciso assinalar que a leitura do livro A bússola do escrever – desafios e estratégias na orientação de teses e dissertações foi realizada no momento do meu retorno à instituição pós-graduação, após 06 anos de afastamento. Terminei o mestrado em 1995, exatamente quando as modificações hoje cristalizadas começavam a serem sentidas, porém ainda não impactavam tão fortemente no desenvolvimento dos programas de pósgraduação stricto sensu. Sendo assim, o comentário sobre o livro acaba por refletir a ótica de leitura de um orientando. O livro é uma coletânea cujos textos analisam, sob diferentes enfoques, inclusive a partir de bases teóricas divergentes, o processo de elaboração de dissertações e teses nos programas de pós-graduação.Trata mais especificamente da estreita relação entre o orientar e o fazer a escrita no contexto da pós-graduação nacional. Este livro, definitivamente não é mais uma publicação sobre métodos e técnicas de pesquisa. Ao propor discutir pesquisa a partir dos elementos orientação e escrita, os organizadores abriram um canal de reflexão que extrapola o tratamento dispensado tradicionalmente ao tema até então. Nas suas pesquisas mais recentes, os organizadores observam que já está em curso um processo de mudança no enfoque das publicações sobre pesquisa científica. Estas têm apresentado como objeto de análise questões referentes à elaboração de teses e dissertações, centrando-se menos na tradicional discussão de metodologias, procedimentos e técnicas. A hipótese para esta mudança de enfoque é justamente a expansão do sistema de pós-graduação stricto sensu no país e, arriscaria a dizer, também o encurtamento dos prazos para o término das teses e dissertações determinado pelos novos padrões de avaliação institucional a que estão submetidos os programas. Este último fator pode estar inquietando e alterando inclusive a relação orientador/orientando e, muito provavelmente acentuando a manifestação da chamada síndrome do papel/tela em branco que geralmente * Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social - UNESP - Franca/SP. Assistente Social. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 229-234, 2003 229 acomete os alunos, porém com mais intensidade quando se encontram pressionados pelo tempo. Mesmo com esta já perceptível mudança de enfoque, os organizadores também observam nas novas publicações uma ausência de preocupações voltadas para o papel do orientador e o próprio processo de orientação. Talvez porque “tais livros ocupam um lugar ou papel aparentemente muito próximo ao do orientador, desempenhando a função de auxiliar, substituto ou até de concorrente do professor que assume a tarefa de orientar”. E é justamente neste sentido que o presente livro se mostra interessante e inovador: ao selecionar textos já escritos ou “encomendar” a determinados autores reflexões que, direta ou indiretamente tratassem da tríade orientador/orientando/escrita, a perspectiva dos organizadores foi ressaltar que o processo de orientação enquanto um objeto complexo “constitui-se ele próprio em objeto de pesquisa”. Interessante ressaltar que o livro reúne textos clássicos como “Memórias de um orientador de tese”, de Cláudio Moura Castro escrito em 1978, outros revisitados, ampliados ou reduzidos, até aqueles escritos especialmente para compor a coletânea. E, embora haja entre eles distâncias de mais de uma década, o conjunto do trabalho é extremamente atual. A diversidade de posições teóricas, ideológicas, políticas, de áreas de pesquisa não constituem elemento de instabilidade para o conjunto da obra. A experiência de todos os autores como pesquisadores e orientadores possibilitou a unidade e a coerência da coletânea. Sobre o Orientar e o Escrever Aqui o principal problema é bastante simples de ser enunciado, não havendo inclusive discordância entre os autores que ressaltam a escrita como princípio da pesquisa: a verdade é que a escola básica e os cursos de graduação não favorecem o exercício da expressão escrita. Problema fácil de ser detectado, porém de alta complexidade para ser superado no decorrer do mestrado ou doutorado quando o aluno é obrigado a escrever. Na verdade, a superação desta dificuldade deve acontecer durante toda a escolaridade, o que fatalmente exigirá mudança de comportamento dos professores e de conteúdo curricular, desde inclusive, a alfabetização. Porém, o que fazer hoje nos cursos de pós-graduação onde o problema de ausência de preparo para a escrita já está instalado? A tradição universitária de graduação, assentada, sobretudo no ensino, privilegia a oralidade, observada nas práticas de aulas discursivas e de realização de seminários, “onde se fala e se escuta sobre o que se leu”. E ao 230 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 229-234, 2003 ingressar na pós-graduação o aluno se depara com o universo da escrita, especialmente ao terminar os créditos período em que ainda reina a tradição do ensino via oralidade. É urgente, dado o grande contingente de alunos que tem adentrado a pósgraduação, que os programas cuidem com mais atenção do projeto pedagógico que orienta o funcionamento dos cursos. Nesse sentido é necessário pensar e formular a orientação como um processo pedagógico e dedicar especial atenção à maneira como este vem sendo conduzido pelos orientadores credenciados pelo programa. No livro ora resenhado é nítida a preocupação dos organizadores, que também são pesquisadores e autores, em evidenciar que pouco se estuda sobre o tema orientação. E em dado momento da leitura perguntei-me sobre a validade de constituir o processo de orientar em objeto de pesquisa: é de relevância científica? Após a conclusão da leitura, penso que ao se aprofundar o conhecimento sobre o tema, especialmente como o processo de orientação se materializa (é concebido e executado como elemento de formação do orientando?), melhores orientadores poderemos ter ou ser. Esta é a esperança! Os textos que abordaram mais diretamente a questão da escrita ou mais precisamente a falta de preparo escolar para o exercício da escrita apresentam reflexões extremamente pertinentes denotando conhecimento advindo da prática dos autores como professores e orientadores. A única ressalva é a ausência de estabelecimento entre leitura crítica e escrita. A boa literatura aliada à capacidade de leitura crítica são ingredientes fundamentais para o desenvolvimento da escrita. Ora, se a escola básica não prepara para a leitura crítica (inclusive porque o processo educacional não se assenta no saudável princípio da dúvida)1 e mesmo os meios de comunicação de tradição oral não favorecem a aquisição do hábito da leitura, como pode o aluno escrever bem? Sabemos que a escrita é ferramenta do pensamento, porém precisamos aprender a pensar, a estabelecer relações. E a leitura crítica é parte indispensável deste processo. Sobre a Pós-Graduação Nacional na Atualidade Ao estabelecer a estreita relação entre o ato de orientar e o exercício da escrita na construção do ser pesquisador, os autores como bons pesquisadores que são, não poderiam deixar de contextualizar o processo de escrever/orientar em nosso país. 1 Para conhecermos é imperioso perguntar como tal fenômeno acontece? Por quê? Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 229-234, 2003 231 E sendo assim, levantam importantes e atuais questões que têm determinado os rumos da pós-graduação stricto sensu no país. Considerando que os quinze anos de língua portuguesa, vivenciados pelo aluno até a conclusão da graduação, não habilitam para escrever, o estudante de pós-graduação reúne apenas condições potenciais para o exercício da escrita. Potenciais porque presume-se que o aluno que opta por continuar estudando após a graduação apresenta no mínimo o gosto e a predisposição para o estudo e a pesquisa. Pois bem, para desenvolver potencialidades precisa-se de tempos e provocações adequadas. Tempo para que o aluno escreva muito, e muito tempo para que o orientador leia os escritos de seus alunos. E como sabemos, nos dias de hoje, o tempo para defender uma dissertação ou uma tese encurtou. A questão dos prazos atuais para conclusão dos cursos de pós-graduação stricto sensu é recorrentemente analisada desde o prefácio do livro, até mesmo nos textos mais antigos que foram revisitados pelo respectivo autor. Na verdade alguns destes textos problematizam o contexto institucional da pós-graduação nacional levantando importantes elementos que tem determinado inclusive a relação orientador/orientando e deste com a escrita. Problemas como produção bibliográfica e a pressão pela publicação; os institutos de fomento, o tempo e as condições para a pesquisa são colocados na mesa para o debate de forma bastante atual e pertinente. Nessa perspectiva, o texto da professora Mirian Jorge Warde – Sobre orientar pesquisa em tempos de pesquisa administrada – é bastante emblemático. A partir do universo da educação, esta autora traça um panorama sobre a pesquisa produzida entre os anos setenta e noventa: “nos anos pós ditadura estamos conhecendo essa outra modalidade em que o sujeito do discurso crítico não merece tempo nem preservação”. E termina seu “passeio” pelo universo da pesquisa registrando o seu “mal-estar de ver as atividades de orientação convertidas em gerenciamento dos procedimentos práticos e de aplicação técnica; de ver o tempo escoando-se com disputas por recursos financeiros e com o preenchimento de formulários que permitem atestar não competências cognitivas, mas habilidades de controle e administração”. Nos anos noventa a CAPES passa a rever seus critérios de avaliação dos programas de pós-graduação e a partir do biênio 1996/1997 introduz um novo paradigma de avaliação para o país. O texto “Avaliação na pós-graduação brasileira: novos paradigmas, 232 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 229-234, 2003 antigas controvérsias” de Maria Célia M. de Moraes, pontua e analisa os principais aspectos das mudanças efetivadas no âmbito da CAPES e que estão em curso, tornando sua leitura obrigatória para que nós orientandos possamos compreender em que contexto institucional estamos nos formando pesquisadores. Na verdade, a análise crítica das mudanças em curso no processo institucional de produção científica no país, a partir da década de 90 torna-se até mesmo um alento para os estudantes de pós-graduação, à medida em que passamos a compreender nossa situação específica (e massacrante) num contexto mais amplo e que requer inclusive um posicionamento crítico, porém coletivo de nossa parte. Por fim, além do que já foi pontuado nesta resenha, o livro em questão apresenta ainda verdadeiras pérolas sobre as venturas e desventuras de ser um pesquisador/orientador neste país. Por meio de uma linguagem coloquial, em alguns momentos próxima da narrativa de crônica, com toques de humor e sutilezas irônicas, alguns textos são um verdadeiro deleite. Os “tipos de revisão bibliográfica” elencados no texto – A “revisão da bibliografia” em teses e dissertações: meus tipos inesquecíveis – o retorno, de Alda Judith Alves Mazzotti são hilários! E não há como deixar de reconhecer naqueles tipos algumas produções científicas que conhecemos ao longo de nossa trajetória acadêmica. Ou mesmo o “Diário de um orientador”, texto escrito em 1978 por Cláudio Moura e Castro que mantém na atualidade o mesmo espírito crítico e a mesma refinada ironia. Não há também como não se sentir especialmente vingado com a crônica (acho que assim o posso classificá-lo) “Publicar ou morrer”, escrita por Olinda Evangelista que descreve as agruras de publicarmos a qualquer custo e o que isto pode estar custando para a formação de novos pesquisadores e professores universitários. Não resisto a tentação de reproduzir um trecho que considero emblemático: Confesso que esse clima me aborrece. Eu estava confiante em que a publicação era um resultado de estudos, de pesquisa, de reflexões, de maturações teóricas, de inquirições intelectuais, de contribuições significativas, de respostas políticas, de preocupações sociais, de compromisso com o saber, de respeito à opinião pública, de amor ao leitor anônimo, de explicitação de idéias alémindivíduo. ‘Romance’, afirmaram. Não é. Publicar é publicar. Que explicação mais tautológica. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 229-234, 2003 233 E a partir deste trecho a autora passa a descrever seu “delírio” no qual encontrava pelos corredores da Universidade, os mais diferentes professores atabalhoados com a urgência e a premência em publicar. Imperdível! É esta a palavra certa para “classificar” o livro: imperdível. Inclusive para nós estudantes de pós-graduação que estamos começando a descobrir a “dor e a delícia” de ser um pesquisador neste nosso país. 234 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 229-234, 2003 RESENHA MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à Educação do Futuro. 5.ed. (Trad. Catarina E. F. da Silva e Jeanne Sawaya. São Paulo: Cortez / UNESCO, 2002. Sira Napolitano* Introdução Em um relatório da Comissão Internacional sobre a Educação para o Século XXI, coordenada por Jacque Delors, ficou estabelecido que a Educação Contemporânea deve contemplar 4 eixos fundamentais: aprender a ser, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a conhecer. Esses eixos precisam estar presentes nas políticas educacionais de todos os países, porque centrais para a constituição dos seres humanos. Edgar Morin como um pensador comprometido com a Educação do amanhã empreende um desafio através dessa obra, cuja reflexão deve nos chamar a atenção pelo caráter de avaliação de nossa práxis educadora. Nossa missão enquanto educadores, será velar pela informação, pelo conhecimento e pela cultura, deve ser o de educar para a qualidade e a integridade do ser humano que estará vivendo nessa sociedade no futuro. Para que possamos atingir os 4 eixos da Educação para o futuro, Edgar Morin aponta para um caminho fecundo que ele nomeia como “Os setes saberes necessários à Educação do Futuro”, cujo sonho foi abraçado pertinentemente pela UNESCO e Editora Cortez do Brasil. O texto não pareceu-me pretender uma doutrina da teoria do conhecimento, mas uma proposta reflexiva para as políticas educacionais, a ser realizada em todos os segmentos da sociedade. Capítulo I - As Cegueiras do Conhecimento: o Erro e a Ilusão Partindo do princípio de que a Educação é transmissora de conhecimento, o autor pensa ser importante examinar a Natureza do conceito “conhecimento”. Quando analisado, o conhecimento revela uma dupla identidade: o erro e a ilusão. Isso porque todo saber é a tradução e construção mental de conceitos por meio de captadores sensoriais, revelando que conhecer é um fenômeno que só tem sentido para um sujeito que no ato de conhecer, envolvido por subjetividades, desejos, medos, visão do mundo e princípios de informação e cultura, corre riscos de errar nas percepções e iludir-se quanto às concepções que faz de si e do mundo. * Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social - UNESP - Franca/SP. Psicóloga. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 235-240, 2003 235 Se é verdade que existe uma estreita relação entre o Homo Sapiens e a Noosfera (esfera das coisas do espírito), que explica a domesticação dos indivíduos e da sociedade por meio de mitos e idéias provocadores do erro e da ilusão, temos então como função e papel da Educação que ministramos, levarmo-nos e levarmos o outro a tomar consciência da importância de avaliar a verdade e o erro de nossos paradigmas, de nossas idéias ou de nossas teorias. Para o autor a ferramenta que nos levará a lutar contra as idéias só pode ser idéias, um paradoxo que pode ser explicado pelo fato de que a realidade está impregnada de erros e ilusões, princípio da incerteza e do inesperado. Enfrentar o novo, crer que as fontes do conhecimento devem ser renovadas constantemente, principalmente quanto às possibilidades de conhecer, poderá nos levar a ser sujeitos de nossa inconsciência e não objetos da mentira ou da ilusão. A lucidez deve ser fruto do esforço entre a Gnosiologia e uma educação libertadora que nos ajudará a dialogar o tempo todo com o real. Capítulo II – Os Princípios do Conhecimento Pertinente A epistemologia tem fragmentado o conhecimento em disciplinas e especializações que impede-nos de articular as partes e o todo. Existe na atualidade uma reflexão sobre o planeta, sobre a ecologia, sobre a vida e sobre o ser humano. A necessidade maior agora parece ser de que, o conhecimento tem que fazer sentido para o sujeito. O conhecimento do mundo e do universo é necessidade vital e intelectual, que nos convida a organizar os conhecimentos afim de reforçar nossos pensamentos ou a forma como pensamos o mundo e a vida do ser humano. Toda a informação precisa estar unificada ou sintonizada com o sujeito. Para que o conhecimento seja pertinente, a Educação deve evidenciar discussões sobre o contexto, o global, o multidimensional e o complexo, como dimensões totalizantes da vida. É preciso informar, analisar a conjugação entre as partes daquilo que conhecemos, com o todo a ser conhecido. O ser humano é parte de algo maior que é o planeta cujo sistema maior é o universo, num balé de esferas que unificam a vida e o conhecimento. Capítulo III – Ensinar a Condição Humana Na ontogênese humana há a junção das dimensões: física, biológica, psíquica, cultural, social e histórica. Nessa constituição complexa da natureza humana perdemos, através de uma educação desintegrada pelas várias disciplinas, a noção do significado do que é ser humano. É imprescindível que ao analisarmos a Educação para o século XXI, 236 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 235-240, 2003 adotemos a idéia de conhecermos antes de tudo o ser humano em sua identidade e condição. Penso na atualidade das questões colocadas por Hanna Arendt em “A condição humana”: Quem és? De onde vens? O que pretendes? Mais do que caracterizar o dilema existencial, é a própria definição do ser humano em relação a si e ao mundo. Trata-se de, na busca pelo entendimento de quem é o ser humano, dialogar com várias áreas do saber como a filosofia, a história, a literatura, a poesia, as artes, a psicologia, a sociologia, as ciências naturais como a física e a química, afim de compreender a multiplicidade de aspectos e complexidades presentes na condição humana. Ensinar a condição humana é contemplar, admirar e respeitar o indivíduo e a variedade de povos e culturas que nos fizeram e nos fazem ser o que somos. Somos então, cidadãos do mundo! Capítulo IV – Ensinar a Identidade Terrena O outro objeto da Educação futura diz respeito ao destino do planeta com todos os seus questionamentos sobre desenvolvimento sustentável. Segundo Morin, desde o século XVI iniciamos a era planetária, onde os povos dos vários continentes passaram a ter uma comunicação, a fase da mundialização. Desenvolvemos meios cada vez mais sofisticados de comunicação desde então, e apesar disso tem sido difícil a inteligibilidade entre os povos. Devemos, mais do que nunca, estar envolvidos com a complexidade do mundo e por conseqüência do humano. Por meio da educação que ministramos, temos que levar a informação da história da era planetária, sobretudo sem ocultar as opressões, a dominação e a exploração que devastaram a natureza e a humanidade, cujos vestígios ainda estão presentes em nós. Temos que indicar as raízes da crise que estamos vivendo e da urgência de se trabalhar a solidariedade, o respeito e a consciência das diferenças, da diversidade, mas também da unidade de cada povo comprometido com o processo de humanização do planeta através da reciprocidade de atitudes de uns para com os outros. A tarefa de ensinar a identidade terrena será um elemento constituitivo da vida no planeta, contra o perecimento da humanidade, buscando formas sustentáveis de convivência e interação. Capítulo V – Enfrentar as Incertezas Construímos muitos conhecimentos e muitas certezas desde o advento da ciência positivista no século XIX; apesar das ciências terem feito promessas de Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 235-240, 2003 237 responder aos questionamentos sobre a vida, temos vivido no século XX e início do século XXI o princípio da incerteza. É imperativo então, que a Educação busque estratégias de enfrentamento das inúmeras incertezas, da provisoriedade das coisas, da imprevisibilidade do futuro. Morin crê que a história humana foi e é uma aventura desconhecida e, essa verdade precisa ser levada em conta para que sejamos capazes de perder ou libertar-nos da ilusão de que somos capazes de prever o destino. Epicuro também pensava assim, mostrando nossa responsabilidade no enfrentamento da realidade e a tomada das rédeas da vida como sujeitos e não objetos do destino. Viver é arriscar-se, é o lançamento dos projetos pessoais, das ações que nos capacitam à conquista desses projetos, mas sobretudo da consciência de que pelo caminho temos que adequar nossos desejos e projetos às possibilidades, e mais, aceitar e entender as impossibilidades, as incertezas no desafio de poder viver melhor com a adversidade. Capítulo VI – Ensinar a Compreensão A Educação deve se ocupar da compreensão porque ela prevê a reforma das mentalidades. O caminho para essa reforma segundo Edgar Morin é o estudo aprofundado da incompreensão desde as raízes até seus efeitos. Percorrendo esse estudo nosso encontro será com a causa do racismo, da xenofobia, do desprezo às diferenças, do preconceito, do sexismo, da intolerância religiosa, do imperalismo de um povo sobre o outro. Levar um sujeito a compreender significa trabalhar para a paz e para harmonia entre as pessoas. Para o autor existe uma diferença entre educar para saber ou compreender uma informação sobre uma disciplina, e educar para a compreensão humana. A compreensão humana implica em garantia do encontro entre as pessoas, aquilo que Enrique Dussel chama de consciência intelectual e emocional; não é só olhar, mas perceber o outro, rostos individuais e coletivos que me ajudaram a organizar o ser e a existência, essência do ser humano. A compreensão é uma possibilidade ou um importante equipamento na aprendizagem e aquisição da convivência entre as pessoas, uma sabedoria para compor nosso material didático-pedagógico. Capítulo VII – A Ética do Gênero Humano Nossas ferramentas em Educação não podem mais dispensar a contribuição da Ética como categoria do conhecimento capaz de oferecer um saber ao tripé da condição humana que é: o indivíduo / a sociedade / e a espécie. 238 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 235-240, 2003 A Ética hoje desmisturou-se da moral para ser a consciência de que somos mulheres e homens individuais, que participamos da comunidade, dos grupos e instituições e de que pertencemos à espécie humana. Nossas ações precisam estar fundamentadas no bem comum, na partilha de espaço, na construção de uma cidadania terrestre. Como educadores, temos que estar envolvidos com o sentido e significado da democracia, da responsabilidade, da liberdade... Aristóteles em “Ética a Nicômaco” mostrou que a ciência maior é a política, sendo a Ética uma dimensão dessa política, entendida como organização da vida social, arranjo das comunidades em torno da possibilidade con-viver. A Ética portanto, pode ser um importante recurso para a política planetária, de finalmente, chamar o ser humano à consciência de que Terra é Pátria e Pátria é humanidade, nossa realidade maior. Agir para a preservação, eis o ensinamento de uma Educação para o futuro. Considerações Finais Viver e não ter vergonha de ser feliz. Cantar e cantar e cantar, a beleza de ser um eterno aprendiz ... Gonzaguinha A fecunda reflexão de Edgar Morin, mais do que nos iniciar à teoria da complexidade, fez-me pensar no quanto somos guardiões de nossa vida e da vida de nossos semelhantes. A única ressalva que faria em seu texto, diz respeito à troca do termo ensinar por educar. Como tantos educadores envolvidos com a sala de aula, penso que devemos educar (algo ativo que envolve a participação e relação professor/aluno) e não ensinar (ato de depositar o conhecimento sem a participação ou relação do aluno). Pensei até num erro de tradução, mas como não foi possível verificar essa hipótese, fica aqui a minha reflexão. Percebi no livro que Edgar Morin faz uma trajetória que percorre desde o desvendamento do real, com seus erros e implicações, análise da teoria do conhecimento, revelando a variedade da identidade humana e a do planeta, procurando enfrentar a adversidade, buscando a compreensão para finalmente atingir o êxtase na Ética do gênero. Cada um desses sete saberes nos localiza diante do pensamento do poeta romântico Novalis: “Cada ser humano é uma sociedade”, pelo caráter múltiplo e complexo da comunidade de homens e mulheres que pertencem a esse planeta. Os sete saberes são a um só e mesmo tempo a forma como nos relacionamos uns com os outros, material e ontologicamente. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 235-240, 2003 239 Creio como o autor, no sistema provisório do saber e, que não podemos nos fechar no antigo e no novo, por isso quero encerrar com a certeza de que devo colocar-me como aprendiz diante do conhecimento, como alguém que tem uma longa jornada a ser empreendida como educadora, com a responsabilidade de buscar sempre ser sujeito e não objeto do inconsciente. A educação não é a única e mais importante categoria de nossa práxis humana, mas pode ser um dos meios mais propícios para a confecção de uma vida melhor. 240 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 235-240, 2003 ÍNDICE DE ASSUNTOS Agentes Multiplicadores, p.21 Assentamento/Sem-terra, p.111 Assistência Social, p.159 Carta da Terra, p.111 Cidadania, p.111 Conceito, p.101 Desafios, p.159, 197 Educação Continuada, p.69 Educação, p.87 Eqüidade, p.159 Escola Pública, p.87 Estrutura fundiária, p.111 Ética, p.111 Exclusão Social, p.9 Fissura Lábio-palatal, p.45 Formação Continuada, p.69 Globalização, p.111, 129 Instituição, p.151 Linguagem, p.101 LOAS, p.159 Luta pela terra, p.111 Materialismo Dialético, p.169 Mediação, p.101 Organização, p.129 Pais Coordenadores, p.21 Pais-Associações, p.45 Participação, p.87 Particularidade, p.169 Prática, p.197 Profissional, p.129 Questão Agrária, p.111 Questão Social, p.197 Reforma Psiquiátrica, p.9 Representatividade, p.87 Saúde Mental, p.151 Seguridade Social, p.159 Serviço Social, p.21, 45, 69, 197 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 241-242, 2003 241 Singularidade, p.169 Totalidade, p.169 Trabalho, p.129, 151 Tratamento, p.9 Universalidade, p.169 Vínculos, p.151 242 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 235-240, 2003 SUBJETC INDEX Agrarian question, p.111 Agrarian Structure, p.111 Citizenship, p.111 Cleft lip and palate, p.45 Concept, p.101 Defiances, p.159, 197 Dialectic Materialism, p.159 Education, p.87 Entails, p.151 Equality, p.159 Ethics, p.111 Globalization, p.111, 129 Institutin, p.151 Labour, p.151 Language, p.101 LOAS, p.159 Mediation, p.101 Mental Health, p.151 Mulipliers agents, p.21 Organization, p.129 Parents – association, p.45 Parents co-ordinating, p.21 Participation, p.87 Particularity, p.169 Practices, p.197 Professional, p.129 Psychiatric Reform, p.9 Public School, p.87 Representation, p.87 Settling/Sem-Terra, p.111 Singularity, p.169 Social Assistance, p.159 Social Exclusion, p.9 Social Question, p.197 Social Security, p.159 Social Work, p.21, 45, 69, 197 Soil’s Letter, p.111 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 243-244, 2003 243 Struggles for soil, p.111 Totality, p.169 Treatment, p.9 Universality, p.169 Work (job), p.129 244 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 243-244, 2003 ÍNDICE DE AUTORES/AUTHORS INDEX ALMEIDA, D. S. O., p.101 BARRETO, S. A. P., p.151 BERTANI, I. F., p.151 BRANDÃO, R. C. C., p.225 CARVALHO, D. O., p.129 CHADDAD, M. C., p.21 CUSTÓDIO, S. A. M., p.21 GIAQUETO, A., p.159 GRACIANO, M. I. G., p.45 JAMUR, M., p.197 MARCHIS, E. C., p.9 MARTINS, E. B. C., p.87 MARTINS, L. C. O., p.21, 159 MARTINS, R. A. S., p. 69 MATTHES, N. A., p. 111 NAPOLITANO, S., p.235 OLIVEIRA, A. P. B. I., p.129 PINHEIRO, A. G. M., p.9 RODRIGUES, J. A., p.169 SILVEIRA, U., p.111 SIMÃO, M. O., p.9 SOUSA, M. I. N. F., p. 159 SOUZA, S. C. A., p.229 STAMATO, J. S. T., p.159 TASSINARI, A. M., p.159 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 245-246, 2003 245 NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS Informações gerais SERVIÇO SOCIAL & REALIDADE publica trabalhos originais de autores da UNESP e de outras instituições nacionais ou internacionais, na forma de artigos, revisões, comunicações, notas prévias, resenhas e traduções. Só serão aceitas resenhas de livros que tenham sido publicados no Brasil, nos dois últimos anos, e no exterior, nos quatro últimos anos. Os trabalhos poderão ser redigidos em português ou outro idioma. O Resumo (de até 200 palavras) e as Palavras-chave, que precedem o texto, escritos no idioma do artigo, os que sucedem o texto, em inglês (Abstract/Keywords). É vedada a reprodução dos trabalhos em outras publicações ou sua tradução para outro idioma sem a autorização da Comissão Editorial. Os originais submetidos à apreciação da Comissão Editorial deverão ser acompanhados de documento de transferência de direitos autorais, contendo a assinatura do(s) autor(es). Preparação dos originais Apresentação. Os trabalhos devem ser apresentados em duas vias, com cópia das ilustrações. Textos em disquetes serão acompanhados do printer (cópia impressa, fiel, do disquete), em Word 8.0; letra 12, tipo Arial Narrow, os textos devem ter de 15 a 30 páginas, no máximo. Estrutura do trabalho. Os trabalhos devem obedecer à seguinte seqüência: Título; Autor(es) (por extenso e apenas o sobrenome em maiúscula); Filiação científica do(s) autor(es) (indicar em nota de rodapé: Departamento, Instituto ou Faculdade, Universidade-sigla, CEP, Cidade, Estado, País); Resumo (com máximo de 200 palavras); Palavras-chave (com até 7 palavras retiradas de Thesaurus da área, quando houver); Texto; Agradecimentos; Abstract e Keywords (versão para o inglês do Resumo e Palavras-chave precedida pela Referência bibliográfica do próprio artigo); Referências Bibliográficas (somente trabalhos citados no texto). Referências bibliográficas. Devem ser dispostas em ordem alfabética pelo sobrenome do primeiro autor e seguir a NBR 6023 da ABNT. Exemplos: • Livros e outras monografias LAKATOS, E. M., MARCONI, M. A. Metodologia do trabalho científico. 2.ed. São Paulo: Atlas, 1986. 198p. • Capítulos de livros JOHNSON, W. Palavras e não palavras. In: STEINBERG, C.S. Meios de Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 247-250, 2003 247 comunicação de massa. São Paulo: Cultrix, 1972. p. 47-66. • Dissertações e teses BITENCOURT, C.M.F. Pátria, civilização e trabalho: O ensino nas escolas paulistas (1917-1939). 1988. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. • Artigos de periódicos SCHONS, Selma Maria. Assistência social na perspectiva do neoliberalismo. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 49, p. 5-19, nov. 1995. • Trabalho apresentado e publicado em Eventos (Congressos, Simpósios, etc.) MARIN, A. J. Educação continuada: sair do informalismo? In: CONGRESSO ESTADUAL PAULISTA SOBRE FORMAÇÃO DE EDUCADORES, 1, 1990, Anais... São Paulo: UNESP, 1990. p. 114-8. DOCUMENTOS ELETRÔNICOS • Eventos em Meio eletrônico SILVA, R. N.; OLIVEIRA, R. Os limites pedagógicos do paradigma da qualidade total na educação. In: CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA ufpe, 4, 1996, Recife. Anais eletrônicos... Recife: UFPe, 1996. Disponível em: <http://www.propesq.ufpe.br/anais/anais/educ/ce04.htm>. Acesso em 21 já.1997. • Artigo de Periódico em Meio eletrônico RIBEIRO, P. S. G. Adoção à brasileira: uma análise sócio-jurídica. Datavenia, São Paulo, ano 3, n.18, ago.1998. Disponível em: <http://www.datavenia.inf.br/frameartig.html>. Acesso em: 10 set. 1998. Citação no texto. O autor deve ser citado entre parênteses pelo sobrenome, separado por vírgula da data de publicação (BARBOSA, 1980). Se o nome do autor estiver citado no texto, indica-se apenas a data entre parênteses: Morais (1955) assinala... Quando for necessário especificar página(s), esta(s) deverá(ão) seguir a data, separada(s) por vírgula e precedida(s) de p. (Mumford, 1949, p. 513). As citações de diversas obras de um mesmo autor, publicadas no mesmo ano, devem ser discriminadas no texto e nas Ref.Bibliográficas, por letras minúsculas após a data, sem espacejamento (PESIDE, 1927a) (PESIDE, 1927b). Quando a obra tiver dois autores, ambos são indicados, ligados por & (OLIVEIRA & LEONARDO, 1943), e quando tiver três ou mais, indica-se o primeiro seguido de et al (GILLE et al, 1960). Notas. Devem ser reduzidas ao mínimo e colocadas no pé da página. As 248 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 247-250, 2003 remissões para o rodapé devem ser feitas por números, na entrelinha superior. Anexos e/ou Apêndices. Serão incluídos somente quando imprescindíveis para a compreensão do texto. Tabelas. Devem ser numeradas consecutivamente com algarismos arábicos e encabeçadas pelo título. Figuras. Desenhos, gráficos, mapas, esquemas, fórmulas, modelos (em papel vegetal e tinta nanquim, ou computador); fotografias (em papel brilhante); radiografias e cromos (em forma de fotografia). As figuras e suas legendas devem ser claramente legíveis após sua redução no texto impresso de 11,5x18 cm. Devem-se indicar, a lápis, no verso: autor, título abreviado e sentido da figura. Legenda das ilustrações nos locais em que aparecerão as figuras, numeradas consecutivamente em algarismos arábicos e iniciadas pelo termo FIGURA. Os dados e conceitos emitidos nos trabalhos, bem como a exatidão das referências bibliográficas, são de inteira responsabilidade dos autores. Os trabalhos que não se enquadrarem nessas normas* serão devolvidos aos autores, ou serão solicitadas adaptações, indicadas em carta pessoal. * Esclarecimentos adicionais sobre as normas para apresentação dos originais, constam do manual Normas para publicações da UNESP. Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 247-250, 2003 249 SOBRE O VOLUME Formato: 15 x 21 cm Mancha: 27 x 45 paicas Tipologia: Arial Narrow Papel: Offset 75 g/m² Couchê 60 g/m² (capa) Matriz: eletrostática Tiragem: 200 EQUIPE DE REALIZAÇÃO Diagramação e Composição Cláudio Riguetti Aparecida Fátima Vieira Guiraldelli Assessoria Técnica Profa. Dra. Íris Fenner Bertani Profa. Dra. Maria Ângela Rodrigues Alves de Andrade Prof. Dr. Mário José Filho Prof. Dr. Ubaldo Silveira Responsável pela Revisão Prof. Dr. Mário José Filho Tradução de Inglês Lucas Miranda Pinheiro 250 Serviço Social & Realidade, Franca, 12(1): 247-250, 2003