537 IV Mostra de Pesquisa da Pós-Graduação PUCRS Normas infraconstitucionais e o direito fundamental à saúde: eficácia e legitimidade ANA HELENA KARNAS HOEFEL, Carlos Alberto Molinaro (orientador) Programa de Pós-graduação Stricto Sensu - Mestrado, Faculdade de Direito, PUCRS, Resumo No artigo 6º da Constituição Federal estão elencados os direitos sociais. Dentre eles o direito à saúde. Ainda, no Título VIII (Da ordem social), a Seção II é intitulada “Da saúde”. O artigo 196 da Constituição Federal1 dispõe: “A saúde é direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Os preceitos antes mencionados são apenas alguns exemplos de como a Constituição Federal trata do tema saúde. Entretanto, muitas regulamentações infraconstitucionais são necessárias para o funcionamento do sistema. São realizadas leis, medias provisórias, resoluções, instruções normativas, portarias e etc. Trata-se de um grande sistema normativo que objetiva a garantia do bem maior: a saúde. Um sistema normativo, nada mais é do que um sistema global, coeso, onde a variação numa parte afeta o todo e vice-versa2. Dentro do sistema normativo, a categoria mais importante de direitos é a categoria dos direitos fundamentais. O reconhecimento da saúde, como direito fundamental, encontra legitimidade material por ser parte integrante do mínimo existencial e por ser elemento essencial da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, vale lembrar a lição de Ingo 1 2 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 1º de maio. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Teoria da norma jurídica. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 142. IV Mostra de Pesquisa da Pós-Graduação – PUCRS, 2009 538 Wolfgang Sarlet3 ao tratar de dignidade da pessoa humana. Para o autor, dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano. Dessa forma, o ser humano é merecedor de respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade. A pessoa humana é assegurada contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano e deve ter garantidas as condições existenciais mínimas para uma vida saudável. Por outro lado, vale lembrar que a saúde também é formalmente direito fundamental, pois encontra-se positivada no texto constitucional e em tratados internacionais. Mais do que um direito a ser protegido, o direito à saúde é “cláusula pétrea constitucional”. Questiona-se, então, o que é saúde. Julio Cesar de Sá Rocha4 entende que é a concretização da sadia qualidade de vida, uma vida com dignidade. José Afonso da Silva5, ao tratar de saúde, lembra que “nos casos de doença cada um tem o direito a um tratamento condignido de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas constitucionais”. A efetividade e a valorização da saúde são dois aspectos de fundamental importância. Dessa forma, é necessário que regulamentem-se as diversas situações dessa área. A legislação no âmbito da saúde é de competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (inciso I do artigo 23 da Constituição Federal). Por outra lado, no que tange a proteção e defesa da saúde, a competência é concorrente dos entes federativos, excluído os Municípios, limitando-se a União a editação de normas gerais (parágrafo 1º e inciso XII do artigo 24 da Constituição Federal). Vale lembrar que os Municípios podem legislar sobre assuntos locais (inciso II do artigo 23 e inciso I do artigo 30 da Constituição Federal). Entretanto, a Lei 8.080 de 1990 instituiu o sistema único de saúde e determinou a descentralização da saúde, ficando a cargo dos municípios a sua administração. 3 4 5 SARLET, Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3ª Ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 59-60 ROCHA, Julio César de Sá. Direito da saúde: direito sanitário na perspectiva dos interesses difusos e coletivos. São Paulo: Ltr, 1999, p. 43. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 18ª Ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 311. IV Mostra de Pesquisa da Pós-Graduação – PUCRS, 2009 539 Por outro lado, no âmbito da saúde também existe um número expressivo de normas de natureza infralegal, como instruções normativas e portarias, que regulam uma série de fatores nessa seara. Essas disposições normativas na maioria das vezes têm um grau de respeitabilidade muito grande pelos profissionais da área da saúde. Entretanto, nem sempre o respeito a esses preceitos tem por objetivo a valorização do bem maior que é a saúde. Questiona-se, então, se este tipo de regulação teria um grau de eficácia superior ao da Constituição Federal no âmbito da saúde. Em julgado antigo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, os desembargadores lembraram que o direito fundamental à saúde deve prevalecer no caso de risco de vida do paciente, mesmo que em contraponto a normas procedimentais como a necessidade de autorização de paciente ou familiar6. Muito embora tenha-se encontrado este julgado, dificilmente questões de escolhas médicas e atendimento aos preceitos das normas infralegais vão parar no Judiciário, o que torna mais difícil a análise sobre a eficácia de tais dispositivos normativos. Introdução 6 EMENTA: CAUTELAR. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. NÃO CABE AO PODER JUDICIÁRIO, NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO, AUTORIZAR OU ORDENAR TRATAMENTO MÉDICO-CIRÚRGICOS E/OU HOSPITALARES, SALVO CASOS EXCEPCIONALÍSSIMOS E SALVO QUANDO ENVOLVIDOS OS INTERESSES DE MENORES. SE IMINENTE O PERIGO DE VIDA, É DIREITO E DEVER DO MÉDICO EMPREGAR TODOS OS TRATAMENTOS, INCLUSIVE CIRÚRGICOS, PARA SALVAR O PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DESTE, E DE SEUS FAMILIARES E DE QUEM QUER QUE SEJA, AINDA QUE A OPOSIÇÃO SEJA DITADA POR MOTIVOS RELIGIOSOS. IMPORTA AO MÉDICO E AO HOSPITAL E DEMONSTRAR QUE UTILIZARAM A CIÊNCIA E A TÉCNICA APOIADAS EM SÉRIA LITERATURA MÉDICA, MESMO QUE HAJA DIVERGÊNCIAS QUANTO AO MELHOR TRATAMENTO. O JUDICIÁRIO NÃO SERVE PARA DIMINUIR OS RISCOS DA PROFISSÃO MÉDICA OU DA ATIVIDADE HOSPITALAR. SE TRANSFUSÃO DE SANGUE FOR TIDA COMO IMPRESCINDÍVEL, CONFORME SÓLIDA LITERATURA MÉDICO-CIENTÍFICA (NÃO IMPORTANDO NATURAIS DIVERGÊNCIAS), DEVE SER CONCRETIZADA, SE PARA SALVAR A VIDA DO PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, MAS DESDE QUE HAJA URGÊNCIA E PERIGO IMINENTE DE VIDA (ART. 146, § 3º, INC. I, DO CÓDIGO PENAL). CASO CONCRETO EM QUE NÃO SE VERIFICAVA TAL URGÊNCIA. O DIREITO À VIDA ANTECEDE O DIREITO À LIBERDADE, AQUI INCLUÍDA A LIBERDADE DE RELIGIÃO; É FALÁCIA ARGUMENTAR COM OS QUE MORREM PELA LIBERDADE POIS, AÍ SE TRATA DE CONTEXTO FÁTICO TOTALMENTE DIVERSO. NÃO CONSTA QUE MORTO POSSA SER LIVRE OU LUTAR POR SUA LIBERDADE. HÁ PRINCÍPIOS GERAIS DE ÉTICA E DE DIREITO, QUE ALIÁS NORTEIAM A CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, QUE PRECISAM SE SOBREPOR AS ESPECIFICIDADES CULTURAIS E RELIGIOSAS; SOB PENA DE SE HOMOLOGAREM AS MAIORES BRUTALIDADES; ENTRE ELES ESTÃO OS PRINCÍPIOS QUE RESGUARDAM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS RELACIONADOS COM A VIDA E A DIGNIDADE HUMANAS. RELIGIÕES DEVEM PRESERVAR A VIDA E NÃO EXTERMINÁ-LA. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 595000373, SEXTA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: SÉRGIO GISCHKOW PEREIRA, JULGADO EM 28/03/1995) IV Mostra de Pesquisa da Pós-Graduação – PUCRS, 2009 540 Um dos princípios básicos do sistema jurídico brasileiro é a Supremacia da Constituição. Esse princípio objetiva garantir que todas as demais normas do sistema estejam em consonância com a Carta Magna, ou seja, o total respeito pelas normas constitucionais. Na área da saúde, existem inúmeras normas infraconstitucionais como portarias e instruções normativas que objetivam reger as relações referentes a hospitais, clínicas, profissionais da área da saúde, medicamentos, etc. Entretanto, essas normas nem sempre respeitam os ditames da Constituição Federal ou, em determinadas situações, devem ser afastadas objetivando o bem maior que é a “saúde”. Dessa forma, questionam-se quais são os tipos de regulamentações infraconstitucionais que existem na área da saúde e a sua função no sistema jurídico brasileiro. Nessa perspectiva, a análise do grau eficácia dessas normas em contraponto com o direito fundamental à saúde é de fundamental relevo. Metodologia O presente trabalho terá como metodologia a revisão bibliográfica tradicional, buscando-se, a partir da doutrina existente na área do Direito Constitucional, o conhecimento disponível, identificando e analisando as teorias existentes, na tentativa de expor o melhor entendimento do tema a ser discutido. Para tanto, o método de abordagem será o dedutivo, o qual, segundo Lakatos “tem o propósito de explicitar o conteúdo das premissas”7. Também será desenvolvida na estratégia hipotética, vez que se busca a comprovação e a negação de dados. Da hipótese formulada, deduzem-se conseqüências que deverão ser testadas ou falseadas. A investigação levará em conta os aspectos de sua natureza básica; do ponto de vista da forma de abordagem será quantitativo-qualitativa; em decorrência destes aspectos será importante compreender a concepção da pesquisa sobre os objetivos traçados no que tange a possibilidade de trabalhar de forma exploratória e explicativa; já do ponto de vista dos 7 LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia científica. Ciência do Conhecimento científico, métodos, teoria, hipóteses e variáveis. Metodologia Jurídica. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 64. IV Mostra de Pesquisa da Pós-Graduação – PUCRS, 2009 541 procedimentos técnicos se desenvolverá levando em conta a revisão bibliográfica, experimental, documental e de levantamento de procedimentos. Primeiramente, será analisado o sistema normativo jurídico brasileiro, dando enfoque às normas referentes à área da saúde. A seguir, será analisado o tratamento dado à saúde no direito brasileiro, objetivando uma comparação entre a eficácia dos diferentes tipos de normas relativas ao tema. Serão, ainda, demonstrados os subsídios legais para o exercício desse direito, através da legislação e da doutrina, com a utilização do método dedutivo, ao mesmo tempo em que se tentarão responder o problema e se confirmar ou não a hipótese de pesquisa, através de uma análise pelo método hipotético-dedutivo. Resultados (ou Resultados e Discussão) Como o trabalho encontra-se em desenvolvimento, os resultados ainda são parciais. Entretanto, pode-se observar, até o presente momento, que as normas infraconstitucionais por serem mais específicas e próximas aos profissionais da área da saúde, acabam tendo um grande grau de eficácia. Por outro lado, ainda questiona-se se essas normas são sempre respeitadas ou se elas são afastadas quando o objetivo final é a preservação da saúde. Conclusão Em virtude da fase inicial da pesquisa não são possíveis informações conclusivas. Entretanto, já é possível vislumbrar uma tendência de maior valorização ao direito à saúde, mesmo que para isso seja necessário sacrificar certos ditames previstos nas normas infraconstitucionais. Referências ASSIS, Araken de (coord.). Aspectos Polêmicos e Atuais dos Limites da Jurisdição e do Direito à Saúde. Porto Alegre: Notadez, 2007. IV Mostra de Pesquisa da Pós-Graduação – PUCRS, 2009 542 ÁVILA, Humberto Ávila, Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008. BALERA, Wagner . O direito constitucional a saúde. Revista de Previdência Social - v. 16 n. 134 jan 1992, p. 17-21. BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia dos Princípios Constitucionais. Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. BARROSO, Luis Roberto. 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