DESTA VEZ, A ÚLTIMA
A casa às escuras. A luz que vem do poste da rua, espionando
pelo vidro da janela, são olhos embaçados fitos nele. Caminha escorregando
os pés para não topar em nada. Apalpando os móveis, correndo a mão pela
parede, encontra a maçaneta. Uma porta. Faz pressão, devagarinho, torcendo,
plec. Um quarto. A luz azulada fluorescente que irradia da imagem de Nossa
Senhora sobre a mesinha no canto tira-lhe a respiração e o assusta. Uma
visão? Foi só um segundo. Rapidamente se recompõe. Milagres não
acontecem. Era só um abajur em forma de santa entre mais três ou quatro
imagens. Na cama, uma senhora encolhida, como se sentisse frio, dormindo
idosamente. Lembrou da mãe, àquela hora dormindo no barraco, sem proteção
de santo algum. Na outra cama, do outro lado do quarto, o desgraçado do
sargento, de cuecas samba-canção e meias, roncando alto. Sente medo
apesar de há dias vir planejando essa invasão.No quarto não entra. Sabe que
ali não encontrará o que procura. Foi só curiosidade. Afasta-se com cuidado
mesmo sabendo que aqueles não acordariam. Têm o sono pesado das
comilanças, da ociosidade, da despreocupação. Sono leve tem a mãe,
sobressaltada, a qualquer chuva a água invadindo o barraco, a qualquer hora,
uma bala perdida procurando sangue. Além disso, noite curta. O dia para ela
começa às quatro para cuidar da vida, pegar duas conduções, chegar na casa
da patroa antes das sete.
Tinha raiva do sargento. Sujeito ignorante, prepotente: “esses
meninos são uns delinqüentes. Esses pivetes”. Para ele toda mulher sem
marido era vadia. Todo pobre era indigente, vagabundo.
Pela sala alcança a área da casa protegida por uma grade
trabalhada, cheia de arabescos. Muitos vasos de plantas, samambaias
penduradas nos xaxins, e num canto, coberta por uma toalha, a gaiola
pendurada, como um troféu.
Era comum ouvir as conversas do sargento com outros
aposentados que viviam, feito lagartos, tomando sol na pracinha. Assim foi que
num dia em que engraxava os sapatos dele ouviu-lhe a gabolice: um pássaro.
Tinha um pássaro raro, maravilhoso, vindo da Amazônia debaixo de sete
capas. Na realidade poucos tinham o tal pássaro cantador, linda plumagem,
custou uma nota.
Ficou tão curioso que nesse dia mesmo resolveu dar uma espiada
no tal pássaro. Era só subir na amendoeira da rua, rente ao muro. Avistava o
jardim, a casa, a varanda, a área. E o viu. Era um pássaro pequenino,
engaiolado, sozinho! Era um pássaro triste! Era só um passarinho. Naquele
mesmo dia decidiu-se:
Com cuidado pega a gaiola e vai saindo. A casa dorme, respira e
ronca. Saiu por onde entrou. pelos fundos. Os meninos já lhe tinham ensinado
uns truques. Entravam nas residências e faziam pequenos furtos. Tênis, calças
jeans. Um dia dois deles pegaram uma bicicleta. Foram parar na casa de
detenção de menores. Desde esse dia, afastou-se da turma e já prometera à
mãe que nunca mais ia roubar nada, nadinha. Dessa vez... dessa vez era a
última.
Difícil era caminhar pelas ruas com aquele trambolho. E se o
vissem? Livra-se da gaiola, põe o passarinho debaixo da blusa. De lá para o
barraco não era longe. As ruas estavam praticamente desertas àquela hora.
Atravessou a pracinha, seguiu as quadras da rua pavimentada fugindo da luz
dos postes, entrou pela rua de barro. A partir dali, não tinha mais problemas.
Estava em casa. Maior cuidado deveria ter para não acordar a mãe. Era capaz
de levá-lo pela orelha para devolver o passarinho. Coisinha de nada ela
acordava. Vai para o fundo do quintal onde começa o mato e por onde passa o
canal. Pega o passarinho com cuidado e carinho. Afaga-lhe a cabeça. Pensa
soltá-lo ao vôo livre - Vai amigo, agora é com você. –mas acha que à noite ele
não voará. Enfia-se no mato, coloca-o no entroncamento de uma árvore: - Te
cuida garoto!.
Entra no barraco, como um gato. Diacho que essa porta é
rangedeira.
-
Zeca?
-
Senhora!
-
Fazendo, menino?
-
Nada não, mãe. Fui só urinar.
Pela manhã, a notícia. O sargento alardeava. Deu até no jornal:
“Ladrão invade casa do sargento aposentado Fulano de Tal, (64).
Misteriosamente leva somente um pássaro na gaiola. Suspeita-se de uma
quadrilha que rouba pássaros para vendê-los a preço de ouro a estrangeiros.
Um crime inafiançável.
- Mãe, hoje vou engraxar lá pros lados da Estação. Na pracinha
não tá dando nada.
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Desta vez, a última