A REPETIÇÃO, A VINGANÇA E A BANALIZAÇÃO DO MAL NA
SOCIEDADE BRASILEIRA
Josfâm Antunes de Macêdo, Natal/RN
Manchete do Jornal do Commercio de 17/07/2006: Bala perdida
fere uma criança. O texto é sobre uma bala perdida que atingiu um menino
de quatro anos de idade e o feriu, se encontrando o mesmo fora de risco de
vida. Entretanto, no teor do texto, é assinalado, sem maior importância, que a
bala perdida foi fruto de um tiroteio no qual morreram duas pessoas. Ou seja,
as mortes em si foi o banal, a bala perdida que atingiu a criança inocente é o
que interessa. Isto retrata um pouco da sociedade brasileira hoje: morte de
adulto é banal, não dá destaque.
A manchete acima apresenta um descompasso entre o título e o
conteúdo, pois o conteúdo da reportagem não reflete exatamente o título. Um
pouco desta alternativa é este trabalho que agora inicio a leitura. Pois nele há
também um descompasso entre o título do trabalho e o conteúdo. Já que
partindo do tema violência no Brasil questionarei se é possível comparar este
tema com aquele trazido por Arendt, em Eichmann em Jerusalém, referindose à banalidade do mal no nazismo. Desde logo responderei à pergunta: não é
possível esta comparação! É por aí que caminhará este trabalho.
Mas de onde partiu a possibilidade de encontrar uma banalização do
mal no Brasil? Partiu mesmo do medo e descrença que me assola frente ao
que está a acontecer em nosso país. De tempos para cá a sociedade brasileira
vem sendo palco de cenas de violência e desonestidade que se repetem
assustadoramente sem uma reação forte e indignada da população. Citaríamos
desde a violência que no Brasil é cotidiana, como: seqüestro; assalto;
assassinato; etc. Violentos também foram os atentados organizados que
amedrontaram São Paulo duas vezes durante este ano. Também a destacar a
violenta invasão do Congresso Nacional por centenas de pessoas. No âmbito
da desonestidade as CPIs não dão resultado; há notícias de negociações
clandestinas: entre militares e bandidos no episódio do desaparecimento de
armas no Rio de Janeiro; e entre governantes paulistas e bandidos nos
atentados orquestrados em São Paulo. Como se uma compulsão à repetição
impulsionasse esta desonestidade e violência. A reação da população frente a
esta violência e desonestidade é de perplexidade e, para alguns, a saída é a
própria Lei de Talião: se ele pode fazer eu também posso! Por aí dar-se-ia a
vingança, já que a justiça não é feita a contento. Este foi o raciocínio que me
parecia pôr frente a uma banalização do mal na sociedade brasileira. Os meios
de comunicação falam insistentemente da violência no Brasil e a população
muito fala também da doença da corrupção no país. Conclui-se: o mal por
aqui se tornou banal. E é como se estivéssemos diante de uma patologia
social, uma sociedade brasileira doente. Mas logo um movimento oposto deuse em mim após esta precipitada conclusão, e me indaguei: será que por aqui
não há nada bom? Será que não há, por nossa parte, um descaso com o que há
de bom em nosso país? Será que não há aí uma visão meio que melancólica e
irreal sobre a nossa sociedade? Será que não há um certo exagero, do qual sou
cúmplice, de considerar o Brasil vazio de qualidades e onde a banalização do
mal aterrisou? Há um exagero sim nesta comparação. Nada há em comum
entre a sociedade atual brasileira e a vida militar alemã na Segunda Guerra,
aquilo que motivou Arendt (1963) a escrever: No Terceiro Reich, o Mal
perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhecem. É
como se a opção do brasileiro, e em parte minha também, fosse só ver o ruim
e nada encontrar de bom por aqui. E é este movimento de saída de uma visão
meio que melancólica sobre o país para uma visão que considere a
possibilidade de aqui existirem todo tipo de situações, inclusive as prazerosas
e as desprazerosas, que resume o percurso deste trabalho. Busco assim
perceber a sociedade como um todo integrado, e não fragmentá-la em partes
boas e ruins, e, ao mesmo tempo, busco retirar-me deste lugar trágico e
pessimista. Lembro Contardo Calligaris, em recente entrevista para Reinaldo
Azevedo na revista Primeira Leitura, falando em combater a vulgaridade. Me
interessa combater a vulgaridade sem cair na esperança hipócrita. Nem ser o
impotente ressentido vítima de um país desonesto nem ser o onipotente
carismático pronto para mostrar as soluções simplistas e poderosas do
salvador da pátria. Diz Jurandir Freire Costa (1999) que a questão da
onipotência e da impotência são lances do mesmo jogo de linguagem.
A Psicanálise possui suas raízes trágicas e pessimistas. É de Freud
no Mal Estar da Civilização (1930): Ficamos inclinados a dizer que a
intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha incluída no plano da
‘Criação’; noutro trecho: Aqui, porém, a voz da crítica pessimista se faz ouvir
e nos adverte ... Enfim, de que nos vale uma vida longa se ela se revela difícil
e estéril em alegrias, e tão cheia de desgraças que só a morte é por nós
recebida como uma libertação?. Encontro em trabalhos de psicanalistas frases
como: 1) a quebra de valores está criando um mundo sem pontos de
identificação; 2) vivemos numa sociedade depressiva; 3) a melancolia
contemporânea; 4) o mal-estar cada vez mais se amplia; 5) a sociedade
ocidental caracterizada pelo individualismo do consumismo narcísico
centrado no endeusamento do corpo; 6) destroem-se ideais tradicionais,
alicerces simbólicos que funcionavam como aplacadores das angústias
conseqüentes do desamparo humano; etc. Na linha trágica quase tudo é
doença: chorar, não chorar, insônia, dormir demais, tristeza, alegria, perda de
apetite, apetite demais, se preocupar com a aparência, não se preocupar com a
aparência, estar só, só viver acompanhado, nunca sair de casa, viver fora de
casa, etc. Sobra o que?
A Psicanálise também possui boas raízes fincadas na idéia da gênese
humana ligada à violência. A essência de algumas das hipóteses freudianas
possui o caráter da origem humana como algo violento. Para Freud, o
crescimento do bebê dá-se em meio à sedução do mesmo pela mãe, ou babá,
por exemplo através dos cuidados higiênicos, o levando a uma maturidade
sexual precipitada. Esta sedução invariavelmente perturba o curso natural dos
processos de desenvolvimento e com freqüência deixa atrás de si
conseqüências amplas e duradouras. (Sexualidade Feminina, 1931)
Para Freud, o início da civilização, tema trabalhado no texto de
1913, Totem e tabu, também se daria com a violência, através do mito do
assassinato do pai primitivo no início dos tempos. A violência, assim, também
estaria na gênese da civilização.
Por fim, a entrada da criança na cultura dar-se-ia através do Complexo
de Édipo, referindo-se à tragédia grega O Édipo rei, de Sófocles, tratada
na Interpretação dos sonhos (1900). Nesta tragédia, Édipo mata o pai (Laio)
e cega a si próprio, apunhalando os olhos. Ou seja, a violência estaria na
gênese da entrada do homem na cultura.
E se a violência está na nossa origem ela também está no nosso
destino, nesta visão freudiana da violência. Em Reflexões para os tempos de
guerra e morte (1915), texto contemporâneo à Primeira Grande Guerra,
Freud aconselha: Se queres suportar a vida, prepara-te para a morte ou Sem
dúvida, constituem mistério os motivos pelos quais, na coletividade de
indivíduos, estes devem de fato desprezar-se, odiar-se e detestar-se
mutuamente — cada nação contra outra nação —, inclusive em épocas de
paz. Não posso dizer por que isso é assim. Escreve ainda Não somos nós que
devemos ceder, que nos devemos adaptar à guerra? Não devemos confessar
que em nossa atitude civilizada para com a morte estamos mais uma vez
vivendo psicologicamente acima de nossos meios, e não devemos, antes,
voltar atrás e reconhecer a verdade?
Em resumo: somos seres violentos! E o que isto tem a ver com o
trabalho que apresento? Será que esta visão de que somos violentos, em nossa
gênese e em nosso destino, não nos faz ressentidos diante da impotência de
mudarmos aquilo que veio e aquilo que está por vir?
Esta visão freudiana podemos encontrar influenciando a cultura e direta
ou indiretamente presente em boa parte da intelectualidade, quase que
banalizando a idéia de violência, como diz Jurandir Freire Costa (1986).
Como se pensássemos: somos violentos e pronto, não há o que fazermos, só
aceitarmos. Como diz Jurandir, a Psicanálise acaba por capitular diante da
violência. Ele indaga: por que seria violento o aporte de investimento da mãe
para com seu filho? Seguindo o raciocínio do psicanalista Jurandir Freire
Costa, é como se a violência fosse o destino biológico do ser humano. Como a
Psicanálise pôde concluir que a violência é o solo da humanização?,
questiona Jurandir. A violência estaria no berço da cultura e sendo assim todo
ato de reprodução cultural é simbolicamente violento, pensa Jurandir. Para
ele Esta banalização da violência é, talvez, um dos aliados mais fortes de sua
perpetuação. Para Hannah Arendt (1973 apud Costa, 2003) se faz do
comportamento violento uma reação ainda mais “natural” do que estaríamos
preparados para admitir.
No campo literário, por vezes, encontramos a fórmula: o passado é
brilhante, o presente é melancólico e o futuro é pessimista. Alguns grandes
clássicos Ocidentais trazem esta marca. Na Bíblia Sagrada, o Gênesis foi o
luminoso parto da vida e o futuro será o apocalíptico escuro palco da barbárie.
No lindo poema épico Odisséia, o passado do divo Odisseu foi brilhante, o
presente do herói e sofredor de trabalhos é lento e melancólico e o futuro do
esposo de Penélope é incerto e tenebroso.
Dizem as pessoas em coro lamuriento cotidianamente: no meu tempo
não era assim, tudo agora é sem limite. Cada vez as coisas estão pior. CDs e
livros sobre as décadas passadas vendem cada um querendo mais fazer crer
que o período do seu produto é a época de ouro.
Uma reportagem de Okky de Souza noticia que a ONG inglesa The
New Economics Foundation realizou pesquisa visando descobrir o país com o
povo mais feliz da Terra. O resultado foi divulgado este ano, e o país eleito foi
Vanuatu, pequeno país do Pacífico Sul. Na visão do autor, este resultado não
traduz mais do que o retorno à figura romântica do bom selvagem de
Rousseau.
Sílvio de Abreu, famoso novelista brasileiro, autor do recente sucesso
televisivo Belíssima, em recente entrevista, declara: a moral está torta. Assim
conclui baseando-se na relação sua com os telespectadores, onde, ao ver dele,
os valores morais modificaram-se e a cultura do ‘jeitinho brasileiro’ é a plena
vitoriosa na atualidade. Será que Sílvio de Abreu pode, a partir de sua relação
com os telespectadores, fazer tal conclusão sobre a sociedade brasileira? Já
Calligaris
(2006)
reage
completamente
diferente: Esse
discurso
do
Armagedon dos valores morais me provoca alergia. Não podemos aceitar a
definição da cultura ocidental moderna como uma cultura sem valores. Não!
Pelo contrário: é uma cultura da liberdade. Isso não é um valor?
Será que esta visão de que o passado era melhor não carrega em si um
certo ressentimento ao presente? Por que não podemos desabafar: “Chega de
saudade!” ?
O ressentimento de que o Brasil não tem jeito e nada mais se pode
fazer, o ressentimento de que somos violentos na nossa origem e no nosso
destino e nada podemos fazer, o ressentimento de que o passado era a época
de ouro a o presente não presta e nada podemos fazer, parece revelar um certo
ar melancólico. Para Maria Rita Kehl (2004) este ressentimento pode ser visto
como um meio de gozo. Este ressentido nada faz e, quando muito, se coloca na
posição da vingança imaginária, como diria Nietzsche, e a fraqueza torna-se
um mérito. Por que ao invés da lamúria não usar a potência de nossa ação e de
nosso pensar? Ironiza Nietzsche:Nós, os fracos, não podemos sair de fracos,
não façamos, pois, nada que não possamos fazer. Nietzsche reage, e forte, à
opinião dos que acreditam que o mal reina, que o desprazer é maior que o
prazer, que o mundo é uma obra malfeita.
É evidente que o mundo não é bom nem mau, lembra Nietzsche. Apesar
de reconhecermos que não somos perfeitos é como se os nossos defeitos, as
nossas diferenças, fossem inaceitáveis. É como se errar fosse errado. O acerto
e o erro está no presente, passado e futuro. Recordemos as lembranças
encobridoras, que cobrem com sutis criações aquilo que não queremos ou não
podemos ver. Em Moisés e o monoteísmo(1939) Freud aponta: Sempre que
estamos insatisfeitos com nosso ambiente atual — e isso acontece quase
sempre — nos voltamos para o passado e esperamos ser agora capazes de
demonstrar a verdade do imperecível sonho de uma Idade de Ouro. Recordo
Winnicott falando da importância da agressividade no livro Privação e
delinqüência que trata do positivo do ato anti-social.
Quando comecei este trabalho falei de uma aparente banalidade do mal
na sociedade brasileira, uma patologia social, o que logo concluí como
exagero. Este exagero viria de uma certa melancolia em relação ao social, na
realidade uma reação narcísica de fechar-me para o meu gozo sem ver o todo
social integrado e onde eu posso agir e pensar como sujeito, longe da cultura
do individualismo que apregoa o eu narcísico a-social como fórmula de
sucesso e felicidade. No entanto, a cultura do individualismo não é o mesmo
que individualismo.
Lembra Calligaris (2006): o individualismo não tem nada a ver com o
egoísmo. Ser um indivíduo é um negócio complicado, pesado. Reinaldo
Azevedo comenta: Há uma demonização do indivíduo hoje.E acrescenta: O
indivíduo é o lugar privilegiado da resistência. Para alguns seria até
inconciliável uma abordagem que levasse em conta uma fundamentação em
Nietzsche e Arendt ao mesmo tempo. Pois o primeiro seria o mestre do
privado enquanto a segunda seria a mestre do público, o que não concordo.
Penso que os dois transitam entre os dois mundos, até porque o privado está
no público e vice-versa.
Se o jeitinho brasileiro trata de um lugar comum, algo convencionado à
cultura brasileira, para Calligaris a contrapartida do jeitinho é o recurso ao
foro íntimo acima da convenção. A única coisa que coloca limites ao horror é
o foro íntimo. Para Arendt (1958) numa tirania, é muito mais fácil agir do que
pensar. Pois, se nenhum outro critério senão a experiência de se estar ativo,
nenhum outro gabarito senão a medida de pura atividade fosse aplicado às
várias atividades compreendidas pela ‘vita activa’ , bem poderia ser que a
atividade de pensar levasse a palma a todas as demais. Quem quer que tenha
alguma experiência neste particular sabe o quanto eram verdadeiras as
palavras de Catão: ‘Nunca ele está mais ativo do que quando nada faz, nunca
está menos só que quando a sós consigo mesmo.’
Reflete Calligaris: Como é que um bom pai de família da Bavária, um
belo dia, ia matar crianças, fuzilando uma a uma com tiro na cabeça? Isso eu
até podia compreender. Mas eu teria gostado de saber por que havia um que
dizia ‘não’. Onde nasce e como se origina a capacidade de resistir? Na
contramão do foro íntimo, aquilo que permite a criação de uma resistência,
viria a fidelidade ao grupo. Qualquer tipo de fidelidade que passa na frente do
foro íntimo é a definição do mal. A coletividade é a raiz do mal. O conceito da
vontade geral é verdadeiramente uma das raízes ideológicas do que
aconteceu de pior no século 20, comenta Calligaris. Arendt (1958) escreve
que A humanidade socializada é aquele estado social no qual impera somente
um interesse, e o sujeito desse interesse são as classes ou a espécie humana,
mas não o homem nem os homens.
Ainda diz Calligaris: Porque pagar e corromper é muito fácil. O difícil
é construir uma coletividade em que haja leis, institucionalidade. Isto sim, em
nome do interesse público, da coisa pública. Para Lafer (1981) Hannah
Arendt mostra como ação, palavra e liberdade não são coisas dadas, mas
requerem, para surgirem, a construção e a manutenção do espaço público. A
vocação da liberdade, que assegura o espaço público, exige, por isso mesmo,
coragem para expor o ser em público. Para ele, o trabalho de Arendt está a
serviço da esperança de democracia.
Não daria para se ver como esperança democrática esses recentes
episódios de corrupção revelados? Para alguns os escândalos deveriam ser
escondidos. Para outros eles representam o fim do mundo. Uma terceira visão
poderia ser: Que bom! O Brasil está amadurecendo e mais transparente do
que nunca! Mas quanto ainda falta para o Brasil melhorar!
Numa recente coluna intitulada A cumplicidade acabou, sobre os
episódios de violência generalizada na capital paulista, Paulo Guedes diz
trabalhar com uma hipótese alternativa. E escreve: Acredito que o clima de
enfrentamento seja uma reação do crime ao início de mobilização de forças
para combatê-lo. Velhas alianças estão sendo rompidas, sob pressão da
opinião pública. São batalhas episódicas de uma longa guerra deflagrada por
uma sociedade que diagnosticou o problema e exige sua solução. A violência
pode ser um dos atos finais do intolerável clima de cumplicidade com o crime
organizado.
Para Arendt (1958) A condição humana compreende algo mais que as
condições nas quais a vida foi dada ao homem. É simples dizer que o mal se
enraizou sem trégua e sem retorno em nossa sociedade ou vender uma
esperança vazia. No entanto, parece criativo olhar para si e para o mundo, de
uma maneira dinâmica e dialética, sem parar na estática vulgar mesmice de
opiniões e ações, e em seu lugar expor o ser por inteiro na esfera pública.
Olhar para a vida por inteiro é deparar-se com o comentário de Lacan
(1986): morte invadindo o domínio da vida, vida invadindo a morte. É
perceber com Arendt (1963) que qualquer um pode virar um Eichmann.
Winnicott (1946) acredita que um sentimento de vingança pública aparece nos
episódios em que a sociedade clama por justiça. Isto age como impedimento a
fazermos justiça com as próprias mãos ou nos tornarmos uns ressentidos. Isto
age como impedimento a sermos tentados a nos tornar um Eichmann. A
palavra que clama liberta e repara. A potência de clamar, agir e pensar não
estagna no ressentimento.
Se a condição humana é sempre uma condição e não algo dado, o
estado de luta necessita estar sempre em alerta, o que não quer dizer que
sejamos desamparados sempre. Para Jurandir Freire Costa (1999) O "estado
de desamparo" não é um fato do mundo mas o produto de uma determinada
leitura do mundo. O estado de desamparo parece falar do lugar do ressentido
que apenas vê a essência da alma humana como violenta, onde tudo está
perdido e onde aquilo que é construído fora do espaço da desgraça
conveniente é remetido ao lugar de descaso. Mexer nisso é a minha condição
humana.
A título de desabafo trago duas respostas à cultura do trágico. Elas
estão fora do contexto deste trabalho que agora apresento, mas valem a pena
serem citadas pois são de autoria de psicanalistas que reconheço e referencio
neste meu artigo.
Uma é de Calligaris, sobre a adolescência. Pois, para muitos, a
adolescência é em si uma tragédia. São até aborrecentes. A adolescência
presta-se excelentemente à cultura do trágico. Profissionais estão sempre a
relacionar adolescência com drogas, descontrole sexual, bebida, imprudência
no trânsito, violência, etc. Indo na contramão, diz Calligaris: Eu tive uma
história atrapalhada, fugi de casa, fiz essas coisas que todos os adolescentes
não devem fazer, mas que, ao mesmo tempo, provam que não se trata do fim
do mundo.
A outra resposta à cultura do trágico é de Maria Rita Kehl (2004),
sobre as tensões no meio psicanalítico, os conflitos de relações nas sociedades
psicanalíticas. Para alguns, essas tensões são a própria tragédia e decadência
da Psicanálise e não algo intrínseco às relações humanas. Indo na contramão,
diz Maria Rita Kehl: Eu acho que é tensão mesmo, ela é bem vinda entre nós,
entre nós psicanalistas que lidamos com isto o tempo todo.
São desabafos sem culpa. O ressentido pela cultura do trágico está
sempre a culpar. Seja culpar a si próprio seja culpar o outro seja culpar a
sociedade. Comenta Maria Rita Kehl (2004): O sacrifício de Cristo, em vez
de expiar a culpa dos homens, só faz eternizá-la. Em ‘Ecce homo’, Nietzsche
propõe, ironicamente, que um novo Deus viesse à Terra para reparar a
injustiça: ‘tomar a si não o castigo, mas a culpa, é que seria divino.’
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