A lógica do segredo e a clínica analítica com crianças Renan Lacerda Lima1 "A quem confiaste segredo, fizeste-o senhor de ti." Provérbio português Introdução A prática clínica com crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual nos tem levado a observar2 que esses casos são muitas vezes afetados pela construção de uma rede de segredos. Esta característica levanta algumas questões teóricas e técnicas da prática analítica. Que implicações traz para a clínica a profusão de segredos tantas vezes encontrada nas famílias de nossos clientes? Que efeitos podemos esperar, para o sujeito, de uma vida infantil repleta de segredos? Criar segredos seria uma forma de a família preservar o psiquismo da vítima? Estas são questões que nos interessam e queremos investigar. O Segredo Perverso Lana, uma cliente de 5 anos, foi até os 3 anos vítima de abuso sexual por parte de um familiar que, até então, mantinha-se acima de suspeitas. Embora não falasse sobre estes episódios em análise, em casa ela os relembrava com relativa freqüência. Para desconcerto dos familiares, que queriam que a história se tornasse um passado esquecido, Lana descrevia as recordações como cheias de prazer e de afetividade. Ao fim de uma das primeiras sessões, a sós com o analista, Lana pediu uma bala (exposta na sala de espera). No início da sessão ganhara uma, combinando que seria a única do dia. Ela insistiu e o analista a relembrou do “trato”. Lana respondeu, em tom de ameaça, que se não recebesse a bala, contaria a todo mundo que o analista havia feito uma coisa errada. O analista perguntou o que contaria e ela com naturalidade que inventaria uma coisa qualquer. Como a chantagem não foi aceita, ela pareceu irritada por alguns segundos, atitude que se desvaneceu tão rapidamente quanto a de ameaça que havia assumido anteriormente. Este episódio chamou a atenção por denunciar o que passamos a chamar de “lógica do segredo”. 1 Técnico do Projeto CAVAS da UFMG. Bolsista de pesquisa e extensão BIC/FAPEMIG Endereço: R. Flor de Fogo 65, 804 B6 – Liberdade – Belo Horizonte – MG – CEP: 31270-217 Telefone: 3427-6958 E-mail: [email protected] 2 Este texto é fruto de reflexões surgidas no projeto de pesquisa e atendimento clínico do CAVAS (Crianças e Adolescentes Vítimas de Abuso Sexual), do Departamento de Psicologia da UFMG. Segredo e escravidão Logo percebemos que o arranjo que Lana tentava reconstruir ali era a repetição de um outro, arquitetado anteriormente para encobrir as ações do abusador. Em troca dos favores sexuais da criança eram oferecidos agrados, passeios, doces e manifestações de afeto. O silêncio de ambas as partes era essencial na barganha. Uma troca havia sido efetuada, vinculando-os de forma muito poderosa, com a criação de um segredo. O vínculo torna-se especialmente forte porque, como no mercado do segredo correm moedas de troca proibidas, seu funcionamento não se aproxima do comércio e sim do tráfico, em que o acordo tem que ser rearranjado a cada momento e sem qualquer possibilidade de intermediação externa. Embora essa lógica favoreça indiscutivelmente quem detém o poder da violência, nela impera a condição da escravidão. Tanto vítima quanto abusador tornam-se, por um lado, senhores um do outro e, por outro lado, escravos do segredo. Para a criança, ela própria detém metade do segredo e, portanto, da culpa. Vendo que o agressor, com quem se identifica, não encontra limites para sua satisfação, é convidada a fazer o mesmo. Presa na armadilha que protege o adulto perverso e a constrange a manter o pacto, a única forma de tentar se libertar é cobrar pelo silêncio o preço mais alto que puder. Não tão alto, porém, que não possa ser pago, pois ela sabe que o preço final será definido pelo agressor, que tem o recurso da violência. Toda troca de afeto passa a ser marcada pela criação de segredos, pela cobrança por sempre mais do que lhe é oferecem e pela insatisfação. Para a criança, a condição de senhorio e escravidão é duplamente nociva. Lana, nossa pequena cliente, desenvolveu uma disposição para a dominação implacável e desrespeito à privacidade alheia, lógica a que depois muitas vezes tentou submeter também o analista, berrando em momentos de ira: “Você é meu empregado, tem que fazer tudo o que eu quiser!”. Aqui, como no jogo do segredo não há juiz, ou seja, não há um terceiro a quem recorrer, a onipotência infantil não encontra as barreiras que permitirão a resolução posterior do Complexo de Édipo e são tão caras ao seu desenvolvimento. O Segredo e a família É comum ver famílias de crianças e adolescentes violadas sexualmente com dificuldades imensas para lidar com um segredo que será adjetivado como “terrível” ou “constrangedor”. Uma escuta atenciosa poderá revelar que há mais neste segredo do que apenas o episódio do abuso. Nestes casos, a cada vez que voltarmos com os familiares ao assunto, o conteúdo total do segredo parecerá ter raízes ainda mais profundas, que mergulham no campo do recalcado e não podem ser plenamente manifestas em palavras. Assim, falar dele faz com que olhares desconfiados sejam lançados ao vazio, a voz se torne sussurro e as palavras escolhidas nunca pareçam ser completamente adequadas. O analista de crianças sabe que seu ofício não pode ficar restrito aos pequenos clientes pois sobre o processo vão intrometer-se, necessariamente, questões não ditas, de ordem familiar, algumas com origens tão remotas que ganham status quase mítico e de tabu. Questões assim, muitas cronologicamente anteriores ao nascimento da criança, constituem o universo em que ela está imersa e que compõe a sua pré-história. É importante, portanto, conhecermos esse panorama originário. É através dos modelos identificatórios nele presentes que a criança encontrará os aportes que orientarão sua constituição psíquica na realidade que a circunda. A existência de um segredo familiar, ou seja, da tentativa de silenciar determinada parcela da realidade, certamente deixará marcas sobre este processo. O segredo familiar é comumente composto por conteúdos que, antes de condenados ao silêncio, são às pressas censurados sem que se faça sobre eles maiores considerações. Como se carregassem em si uma “semente do mal” e o risco de um enigma esfíngico, são afastados e sufocados por aqueles que os detém, geralmente em um acordo tácito. Nesses casos, a clareza sobre o conteúdo do segredo é prejudicada, pois não se fala sobre ele. Sabe-se apenas tratar de algo tenebroso, cuja simples menção perturba e gera reações imprevisíveis. Pertencem a um dos mais terríveis tipos de segredo. Crescem subterraneamente tornando-se, muitas vezes, assombros que, por serem espectros disformes, projetam as sombras mais descomunais. O silêncio do segredo familiar reforçará a manutenção do segredo perverso do qual a criança foi vítima. A impossibilidade de falar sobre o segredo faz com que conteúdos e afetos a ele relacionados fiquem retidos, impedindo as tentativas de elaboração do trauma. Se este segredo pode ser, por um lado, consciente e deliberado, por outro é inconsciente e sujeito à formação de compromisso. Será na criança, pela sua percepção dos modelos familiares, que então o não-dito emergirá como sintoma. Um esforço analítico deve tentar ajudar a criança a identificar, a tempo, brechas nas leis e na estrutura da realidade que gera o sintoma, ou a própria gênese de seu superego estará em jogo e seu desenvolvimento será, talvez para sempre, comprometido. Se temos esperança de facilitar a desobstrução do fluxo do desenvolvimento psíquico dessa criança, haveremos de considerar o trabalho sobre as incoerências perturbadoras e os possíveis segredos que espreitam a família. Conclusão Embora tenhamos enfatizado os efeitos nocivos que podem advir da experiência de criar e manter segredos, admitimos no entanto, a possibilidade de que ela possa até mesmo ter desdobramentos positivos em outros contextos. Não fazemos, assim, uma recomendação inflexível com relação aos segredos, lembrando que a privacidade, definição que facilmente se confunde à de segredo, tem em sua manutenção a importante função de proteger a criança do acesso indesejado por outros. O tema do segredo é rico e vasto, o que justifica o grande interesse que as ciências humanas, especialmente as psicológicas, têm dedicado ao assunto. Não tivemos aqui a pretensão de abordá-lo exaustiva e integralmente, mas apenas iluminar alguns aspectos surgidos da experiência clínica. ***