“Em 2020 eu ainda vou gostar dele”: contribuições da
etnosemântica no estudo de vínculos afetivos
“In 2020 I'll still like it”: contributions of ethnosemantics in the study of affective bonds
Cardoso, Cristina Luz; Doutoranda; Universidade Federal de Santa Catarina
[email protected]
Gontijo, Leila Amaral; Doutora; Universidade Federal de Santa Catarina
[email protected]
Resumo
O estudo dos vínculos afetivos revela que as características intrínsecas de um objeto não são
exclusivamente responsáveis pelas respostas emocionais em sua interação com o homem, pois
também dependem da maneira como ele é significado. Este artigo apresenta o método
etnosemântico na abordagem de vínculos afetivos entre usuários e seus produtos em
ambientes domésticos, por meio de entrevistas. O método mostrou-se adequado para desvelar
o conhecimento de micro-culturas e o significado atribuído aos produtos. Nos resultados
parciais dos testes piloto, produtos pelos quais um usuário mantém-se vinculado podem ser
considerados insubstituíveis, podem atuar como lembretes de memórias afetivas, representar
auto-identidade e extensões de seu proprietário.
Palavras Chave: afeto; vínculos afetivos; etnosemântica.
Abstract
The study of affective bonds shows that intrinsic characteristics of an object is not solely
responsible for emotional responses in their interaction with humans, they also depend on
how it is meant. This paper presents the ethnosemantics method for addressing affective ties
between users and their products in domestic environments through interviews. The method
was adequate to reveal the knowledge of micro-cultures and the meaning attributed to the
products. In partial results of the pilot tests products for which a user remain bound can be
considered irreplaceable, can act as reminders of emotional memories, represent self-identity
and extensions of their owner.
Keywords: Affect; affective bonds; ethnosemantics.
“Em 2020 eu ainda vou gostar dele”: contribuições da etnosemântica no estudo de vínculos afetivos
Introdução
O estudo do afeto vinculado aos interesses do marketing, pesquisa do consumidor,
ergonomia, economia e engenharia vem sendo desenvolvido desde os anos 1960. Com o
avanço nos estudos sobre as emoções, observa-se que seu campo de conhecimento envolve
várias disciplinas caracterizando-se por uma visão holística do homem e seu ambiente. Após
um longo período em que prevaleceu a abordagem funcionalista e racional, verifica-se que
razão e emoção são inseparáveis e que revelam a mesma importância na significação do
homem.
O cenário do design na atualidade demonstra um número crescente de pesquisas que
privilegiam fatores emocionais presentes na relação entre usuário e produto. Na visão de
NIEMEYER (2008), nas últimas décadas do século XX ganha relevância a importância da
significação no desenvolvimento de objetos e sistemas de informação. Esse fato estaria
alinhado com o pensamento de teóricos da sociedade pós-tradicional, para quem a ordem
social vigente preenche de complexidade todos os aspectos da vida social e da cultura. Assim,
os estudos focando os aspectos afetivos podem ser vistos tanto como resultados das tentativas
de lidar com essa complexidade, quanto no sentido de reação a essa mesma nova ordem
social.
Nessas pesquisas, várias ferramentas vêm sendo criadas visando mensurar dados
subjetivos, assim como conhecimentos e práticas de psicologia, neurociência, sociologia e
antropologia vêm sendo incorporados, contribuindo para o melhor entendimento das relações
do homem com seu mundo material. No entanto, o foco em geral aborda principalmente o
momento de compra – aquisição inicial e a escolha entre diferentes alternativas. Aspectos tais
como a relação dos usuários com seus produtos no contexto de uso, organização e
hierarquização dos produtos entre si, razões pelas quais o produto é mantido mesmo quando
não funciona mais e as razões pelas quais ele é descartado, são estudados com menos
freqüência.
Ao priorizar o cotidiano, os estudos sobre vínculos afetivos em design sugerem que o
pesquisador observe o usuário e seu produto no contexto de uso. Sob esse mote, a presente
pesquisa de Doutorado em andamento aborda, entre outros aspectos, a relação afetiva entre o
usuário e o produto em seu ambiente doméstico, procurando evidenciar os principais fatores
responsáveis pela manutenção do vínculo afetivo.
Foi focalizado o ambiente doméstico, tendo em vista que representa um espaço rico
em referências de identidade e cultura. Quando entendida no sentido de lar, uma casa contém
elementos que fazem lembrar a infância das pessoas, suas raízes e que fornecem segurança,
privacidade e liberdade. Uma casa abriga não somente seus membros e seus objetos – função
prática -, mas é também palco de relações sociais, relações afetivas, preferências estéticas,
hábitos e costumes – funções estéticas e simbólicas. Até certo ponto, seus membros
permanecem isolados de uma platéia que pode fazer julgamentos, exclusões, atribuir valores
estranhos, entre outros. (CSIKSZENTMIHALYI; ROCHBERG-HALTON, 2002, p. 122).
Na visão de Baudrillard (1973), os móveis dentro de um ambiente familiar ordenam-se
na casa de acordo com sua função e sua dignidade simbólica, demonstrando a relação afetiva
que liga seus membros. “Os objetos domésticos encarnam no espaço os laços afetivos do
grupo familiar até que uma geração mais moderna os afaste ou às vezes os reinstaure em uma
atualidade nostálgica de velhos objetos”.
Utilizando recursos provenientes da etnografia, mais especificamente da
etnosemântica, a pesquisa vem encontrando suporte para a coleta e análise de dados
subjetivos capazes de propiciar esse entendimento. Baseado em resultados preliminares
provenientes de testes piloto, este artigo apresenta as contribuições do método etnosemântico
na descoberta de significados presentes nas relações afetivas de três informantes com seus
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objetos. Alguns resultados parciais são ressaltados, demonstrando a adequação do método em
atingir os objetivos de pesquisa.
Afeto
Em psicologia, o termo afeto é geralmente usado para se referir a todos os tipos de
experiências subjetivas que envolvem a percepção de uma coisa boa ou ruim, prazerosa e não
prazerosa. (DESMET; HEKKERT, 2007). Apesar das lacunas encontradas para sua
conceituação, o afeto pode agrupar as emoções e o humor. (DAMÁSIO, 1998; BIANCHIBERTHOUZE; LISETTI, 2002).
A taxonomia apresentada por Bianchi-Berthouze e Lisetti (2002) sugere uma
combinação de aspectos encontrados na maioria das correntes teóricas sobre o afeto, humor e
emoção. Neste modelo, o afeto é considerado mensurável e é definido em duas dimensões:
valência - positiva ou negativa; e intensidade - que varia em diversos níveis. O humor é um
estado afetivo também sujeito à valência e intensidade. É caracterizado pelo fato de não ser
desencadeado por um estímulo específico e pode durar dias. A emoção é um fenômeno mais
refinado, se comparado ao humor, uma vez que contém mais informação e é associado com
estímulos do sistema nervoso autônomo, expressão e experiência subjetiva.
Para Damásio (1998, p. 16), os sentimentos são tão cognitivos como qualquer outra
percepção. No entanto, o autor deixa claro que essa visão não deve diminuir o estatuto dos
sentimentos e emoções como fenômenos humanos, pois “A emoção e os sentimentos
constituem a base daquilo que os seres humanos têm descrito há milênios como alma ou
espírito humano”. Para Ledoux (1998, p. 113), os sentimentos também são processos
conscientes, uma vez que “[...] a capacidade de ter sentimentos está diretamente vinculada à
capacidade de estar consciente do próprio ser e da relação de si mesmo com o resto do
mundo”. No entanto, cada sentimento tem um diferente repertório de pensamentos, de reações
e mesmo de memórias.
Em suas pesquisas, Damásio (1998) concluiu que os sentimentos se tornam
qualificadores – positivos ou negativos - daquilo que é percebido ou recordado. Esse processo
é acompanhado e completado por alterações rápidas e ricas em idéias quando a qualificação é
positiva e por alterações lentas e repetitivas quando a qualificação é negativa.
Sob essa perspectiva, faz sentido ressaltar a afirmativa de que “pessoas diferentes, que
determinam significados diferentes para um produto em particular, muito provavelmente têm
respostas emocionais diferentes”. (DESMET; HEKKERT, 2007). Assim, cada evento é
experienciado e traduzido pela lente do próprio sujeito, tornando-se também difícil de
verbalizar experiências tais como tristeza, alegria, ou melancolia.
Dessa maneira, as características intrínsecas de um objeto não são exclusivamente
responsáveis pelas respostas emocionais em sua interação com o indivíduo. Do ponto de vista
da emoção, as características de um objeto dependem de como ele é percebido. Estão
envolvidos nesse processo aspectos relacionados à individualidade, ao ambiente em que
ocorre a interação, a experiências passadas e aspectos influenciados pela sociedade. Os
estados afetivos, portanto, são bases confiáveis para a pesquisa em design centrada no
homem, considerando que a cultura, nesse cenário, é o pano de fundo que permeia esses
processos e relações.
Vínculos afetivos e design
Vínculos afetivos desenvolvidos entre usuários e seus produtos podem ser
conceituados como “a união emocional experienciada pelo consumidor com um produto”.
Esse conceito sugere que, quando uma pessoa se vincula a um produto, é porque o produto
tem um significado especial para ela e é capaz de despertar reações emocionais. O termo
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“consumer-product attachment” vem a significar também o sentimento de apego a
determinados produtos. (SCHIFFERSTEIN; ZWARTKRUIS-PELGRIM, 2008).
O vínculo afetivo a determinados produtos não está relacionado necessariamente as
suas funções práticas e utilitárias, pois fatores mais subjetivos exercem maior influência. Os
significados simbólicos apresentam-se como os principais determinantes do vínculo afetivo.
Quando uma pessoa especial toca fisicamente um produto ou o produto foi obtido em um
contexto especial e o tornou exclusivo para seu proprietário, esse produto pode ser
considerado insubstituível. A percepção de que um produto é considerado indispensável, por
exemplo, muitas vezes é assim não por razões práticas, mas por razões emocionais. Um
produto também pode ser considerado como uma extensão do usuário, quando seu
proprietário exerce poder ou controle sobre ele. Um carpinteiro pode perceber suas
ferramentas como auto-extensões porque ele precisa delas para executar seu trabalho, elas são
parte de sua identidade. (SCHIFFERSTEIN; ZWARTKRUIS-PELGRIM, 2008).
Para Wallendorf e Arnould (1988), um objeto é considerado favorito porque é uma
lembrança de um amigo ou membro da família, de uma viagem de férias, ou um evento do
passado. Além disso, a maior parte dos indivíduos da pesquisa empreendida pelos autores
recebeu seus objetos favoritos como um presente. Os indivíduos que selecionaram objetos
funcionais como seus favoritos, tais como relógios ou cadeiras, o fizeram porque haviam
compartilhado uma história pessoal com o objeto.
As pessoas experimentam emoções positivas para os produtos a que se sentem
apegadas, tais como felicidade, amor, orgulho, segurança e conforto. No entanto, em certos
casos, as emoções também podem ser negativas como a tristeza, por exemplo, quando o
objeto é uma lembrança de tempos difíceis. (SCHULTZ; KLEINE; KERNAN, 1989).
A representação de vínculos afetivos nos objetos, portanto, pode ser análoga a relações
interpessoais, sendo que as pessoas se referem a objetos queridos utilizando, por exemplo, a
palavra amor. A experiência amorosa em relação aos objetos é real e não simplesmente
metafórica, podendo ser dividida em cinco princípios básicos, de acordo com Russo e Hekkert
(2008). No princípio da interação fluída, as pessoas sentem prazer em usar produtos com os
quais interagem fluentemente; no princípio da recordação de memórias afetivas as pessoas
gostam de usar produtos portadores de memórias afetivas que funcionam como lembretes
dessas memórias; no princípio do significado simbólico social, as pessoas gostam de usar
produtos que compõem os significados simbólicos que podem ser expostos e/ou percebidos
por outros, em um ambiente social; no princípio de valores morais compartilhados, as pessoas
gostam de usar produtos por meio dos quais podem compartilhar valores morais e éticos; no
princípio da interação física prazerosa, as pessoas gostam de interagir com os produtos que
são fisicamente prazerosos.
As pesquisas apresentadas oferecem guias para o desenvolvimento de produtos
capazes de despertar afetos intencionalmente em seus usuários, mesmo sabendo-se que não é
possível prever todas as maneiras de como um objeto vai ser utilizado, em todos os contextos
e para todas as pessoas. Ao reinserir valores humanos e de sensibilidade humana no mundo
material, o design propicia “interações com o produto menos impessoais e estritamente
funcionais, e mais relacionais, agradáveis e confiáveis”. O design se torna capaz também de
resolver problemas de diálogo do homem com os outros e consigo mesmo, tendo em vista que
estão em jogo questões de significação. (NIEMEYER, 2008, p. 52).
No âmbito dessa pesquisa a abordagem do vínculo afetivo entre usuário e produto é
considerada um desafio e uma oportunidade para o designer. Ao serem consideradas as várias
possibilidades de estímulos ao vínculo afetivo entre usuário e produto e os resultados que essa
questão suscitará no processo de desenvolvimento de produtos, esperam-se reflexos positivos
no cotidiano do usuário e no ciclo de vida do produto.
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Etnosemântica
Proveniente da antropologia, o método etnográfico é caracterizado pela mínima
interpretação e conceitualização, sendo que o pesquisador conta a história não por meio de
conceitos, mas pela descrição de eventos. Na etnografia descritiva, os pesquisadores tentam
pintar um quadro do que as pessoas dizem e como elas atuam em seu cotidiano, descobrindo e
revelando sua cultura. (TAYLOR; BOGDAN, 1998).
Uma variação do método etnográfico é a etnosemântica, apresentada por McCurdy,
Spradley e Shandy (2005), baseado em entrevistas e estratégias do discurso para planejar e
realizar um estudo etnográfico de campo. A etnosemântica infere o conhecimento cultural a
partir do discurso - considerado uma forma de comportamento - e a partir dos artefatos
culturais. Do ponto de vista do design, o estudo do discurso e de categorias culturais
possibilita revelar o viés do usuário, o significado de seus desejos, o significado atribuído a
seu produto e o significado de suas relações com o mundo material.
O grupo estudado normalmente se caracteriza como uma micro-cultura que é
encontrada dentro de uma grande sociedade, mas que não define um estilo de vida nas vinte e
quatro horas de um informante. Deve se caracterizar por ser pequena, estruturada e marcada
pela rotina; acessível, atual e não extinta; explícita, não ideológica, não familiar e fora do
mundo social do pesquisador.
Para McCurdy, Spradley e Shandy (2005), o significado total de uma categoria
cultural consiste no conjunto de todas as categorias com as quais está relacionada nas mentes
dos membros da micro-cultura e os relacionamentos que vinculam estas categorias à categoria
que está sendo definida. A confirmação de dados com o informante o torna um agente ativo
na obtenção de atributos ou categorias relacionadas à micro-cultura e na subseqüente
construção de dimensões de contrastes e conjuntos contrastantes que fornecerão paradigmas,
ou matrizes, capazes de esclarecer os significados culturais atribuídos.
O método mostra-se adequado na descoberta de significados culturais com base no
“princípio do contraste”, pois é difícil para os informantes lembrarem o que eles sabem sobre
suas culturas. A geração de taxonomias vai relacionar os termos utilizados pelos informantes
(termos nativos).
Coleta e análise de dados
Em etnografia, um dos instrumentos mais utilizados para coleta de dados é a entrevista
em profundidade, direcionada ao aprendizado sobre os eventos e atividades que não podem
ser observados diretamente. As pessoas que estão sendo entrevistadas são informantes no
sentido mais verdadeiro da palavra, pois atuam como observadores para o pesquisador.
(TAYLOR; BOGDAN, 1998).
A coleta de dados ocorre simultaneamente à análise dos mesmos, promovendo a
formulação da teoria principal ou de outras teorias secundárias. Na análise, os dados
descritivos se referem às próprias palavras das pessoas, escritas ou verbalizadas, à descrição
dos seus artefatos e às atividades possíveis de serem observadas. É dada especial importância
às respostas ou afirmações dos informantes solicitadas pelo pesquisador e aquelas que não
foram solicitadas; ao papel do pesquisador no ambiente de pesquisa, que pode vir a
influenciar o resultado; às pessoas presentes no momento da pesquisa; à natureza dos dados
em relação a sua fonte direta ou indireta e à clara identificação das fontes de dados ou dos
informantes, em prol de evitar uma generalização a partir da perspectiva de um informante. A
checagem dos dados pelos informantes possibilita refinar as interpretações e dar credibilidade
ao estudo, ao mesmo tempo em que permite um enriquecimento da interpretação dos dados.
(TAYLOR; BOGDAN, 1998).
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Para a descoberta dos significados atribuídos pelos informantes, são identificados
primeiramente os termos nativos que possibilitam a obtenção da estrutura de taxonomias. As
taxonomias são geradas a partir de uma relação semântica existente entre uma sub-categoria e
o domínio ou categoria. (Quadro I). O objetivo central dessa técnica é exibir visualmente
idéias a partir dos dados como uma ajuda no desenvolvimento e teste de
interpretações. Indiretamente, esclarece os termos do informante e desmembra idéias gerais
em idéias específicas.
Quadro I – Relações semânticas entre subcategorias e domínios
Tipo de relação
Diagrama relacional
Declaração relacional
Inclusão
X é um tipo de Y
“tipos de”
Sequência
X é um passo de Y
“passos para”
Parte de um todo
X é uma parte de Y
“partes de”
Modo para uma finalidade X é um modo para alcançar Y
“modo para”
Fonte: Adaptado de McCurdy, Spradley e Shandy (2005).
A partir das taxonomias, são gerados paradigmas que auxiliam na descoberta do
significado atribuído. Os paradigmas são matrizes que agrupam conjuntos contrastantes de
categorias culturais, as quais são relacionadas a dimensões de contraste reveladas nas
entrevistas. Essas dimensões de contrastes são culturais, pois os informantes avaliam as
dimensões usando o conhecimento pessoal. (ver Quadro III).
A escrita etnográfica
É importante observar que são construídas várias taxonomias e paradigmas para cada
informante, procurando abranger os temas principais. Na escrita etnográfica, no entanto, não é
obrigatória a apresentação de todas as taxonomias e paradigmas, para não tornar o texto
maçante. Seguindo a orientação de Goodall (2000), a escrita acadêmica pode ser criativa
como uma forma de conversação ampliada, por meio de um tratamento mais pessoal do que
público e de um processo mais interpessoal, progressivo e dialógico. A credibilidade na
conversação não é limitada às fontes que são citadas como autoridades, ela é também somada
a quem o pesquisador é como pessoa.
Todas as observações são filtradas pelas lentes seletivas do pesquisador que, por sua vez,
procura transmitir aos leitores um sentido de ter estado no local, experienciando as situações
em primeira mão e um sentimento de que o leitor pode ver as coisas do ponto de vista do
informante, respectivamente. Muito embora os pesquisadores em estudos descritivos tentem
levar os leitores a certas conclusões pela qualidade do que eles escolhem para reportar e como
eles reportam esses dados, os leitores ficam livres para construir suas próprias interpretações e
generalizações. (TAYLOR; BOGDAN, 1998).
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Resultados preliminares do teste piloto
A aplicação de testes piloto teve como objetivo refinar o método a ser empreendido no
trabalho de campo da presente pesquisa em andamento. Os testes piloto são apresentados
neste artigo a fim de proporcionar melhor entendimento na aplicação do método
etnosemântico nas pesquisas qualitativas em design, principalmente na construção das
taxonomias e paradigmas.
Foram realizados três testes piloto com três informantes do sexo feminino e idades
variando entre 49 e 56 anos. As Informantes chamadas I, II e III não possuíam laços de
parentesco. A Informante I morava em Florianópolis (SC) e as Informante II e III moram em
Salvador (BA).
Foram realizadas duas entrevistas com cada informante, seguindo um roteiro que sofreu
adaptações para cada caso. Um dos critérios utilizados foi a seleção de móveis e objetos
presentes em seus espaços domésticos, pelos quais as informantes mantinham um vínculo
afetivo. Os móveis e objetos não foram previamente selecionados e tampouco quantificados
pela pesquisadora. As informantes foram incentivadas à descrição de objetos ou móveis que
fossem de alguma maneira importante para elas.
A cada teste foram corrigidas as distorções na aplicação do método. Posteriormente foi
dado prosseguimento à análise dos dados obtidos nos testes por meio de comparações entre os
resultados obtidos, bem como por meio de confrontação com a revisão bibliográfica.
Várias taxonomias foram construídas juntamente com as Informantes, empregando mais
de uma relação semântica. O Quadro II exemplifica uma taxonomia parcial com relação
semântica “Partes de” da Informante III. A leitura da taxonomia segue o seguinte método: “A
espuma é uma parte dos estofados, que é uma parte do sofá, que é uma parte de móveis e
objetos que eu já tinha”.
Partes de móveis e objetos que eu já tinha
Quadro II:Taxonomia parcial “Partes de” da Informante III
Moedas antigas
Mesa
Sentar (substituto de cadeira)
Prancha de surf
Aço inoxidável
Madeira de demolição
Banquinho de balcão
de bar
Camurção de couro
Estofamento
Estofado por dentro
Alma
Estofados
Espuma
Sofá
Capa por fora
Recosto
Assento
Bancadinha
Mini deck de piscina
Cepo de madeira
Pezinhos de madeira
Lustre da sala
A taxonomia “Partes de” permitiu categorizar os objetos descritos pela Informante III e
desmembrar seus componentes, possibilitando a exploração nas entrevistas, por exemplo, do
momento de aquisição de cada um, dos procedimentos para as reformas, da importância dos
materiais de que eram feitos e das ligações afetivas materializadas pelos mesmos. Os termos
adotados foram utilizados pela própria informante – termos nativos.
9º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design
“Em 2020 eu ainda vou gostar dele”: contribuições da etnosemântica no estudo de vínculos afetivos
Tipos de
composição
da minha
morada
Quadro III: Taxonomia parcial “Tipos de” da Informante III
Aproveitamento (sala)
Não descartar, não modificar
Alegrada (banquinho de bar)
Dar um colorido
Transformação (cepo de madeira)
Vai ficando furadinho
Incrementada (luminária da sl)
Vou colocar uns cordões de cristal
Upgrade (sofá)
Reformada
A taxonomia “Tipos de” apresentada no Quadro III, permitiu reunir dados a respeito do
hábito da Informante III em empreender transformações em seus objetos, revelando prazer,
dedicação e orgulho nesse empreendimento. A taxonomia é lida da seguinte maneira:
“Reformada é um tipo de upgrade que é um tipo de composição da minha morada”. Assim, o
termo composição envolve ações de aproveitar, alegrar, transformar, incrementar, fazer um
upgrade, não descartar, dar um colorido, etc.
Quadro IV: Paradigma parcial Informante III
Objeto
Origem
Data de aquisição
Feito para mim;
Mesa
1988
Mandei executar
Banquinho
Mandei executar 1981, 1982
Sofá
Feito por mim
Lembra o quê
Momento de liberdade; a
família; eu, minhas filha; o surf
Sela de cavalo
O paradigma parcial da Informante III (Quadro IV) permitiu revelar o significado
atribuído a cada objeto por meio das avaliações das dimensões de contrates (objeto, origem,
data de aquisição, lembra o quê) pelo próprio informante. Nessa avaliação o informante se
utiliza de seu próprio conhecimento cultural e pode hierarquizar a importância de cada objeto
selecionado. (Figuras 1, 2 e 3).
Figura 1: Mesa
Figura 2: Banquinho
Figura 3: Sofá
Para demonstrar a possibilidade de hierarquização das dimensões de contraste, foram
resumidos no Quadro V paradigmas obtidos com as Informantes. Cada Informante selecionou
os três objetos mais importantes em ordem decrescente. Esses objetos foram categorizados de
acordo com os atributos relacionados aos vínculos afetivos pelas três informantes.
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Quadro V – Resumo parcial de paradigmas de três informantes
Vínculo afetivo
Objeto 1
Objeto 2
Ciúmes
Ciúmes
Informante I
Eu gosto; Tem a ver Tem a ver com a
Informante II
com a mãe
separação da mãe
Eu amo minha mesa; Em 2020 eu ainda vou
Informante III
me dei de presente
gostar dele
Objeto 3
Conexão familiar
Eu amo prata; minha
mãe adorava
Peça exclusiva
A partir dos paradigmas foi possível revelar que os atributos relacionados aos objetos
selecionados pelas Informantes I e II representam um forte vínculo materno, mesmo após a
morte de suas mães. Assim, esses objetos atuam como “lembretes de memórias afetivas”.
(RUSSO; HEKKERT, 2007).
Para a Informante III, o vínculo afetivo com os objetos selecionados representa sua autoidentidade e o próprio self, corroborando com os pensamentos de Csikszentmihalyi e
Rochberg-Halton (2002), Schultz, Kleine e Kernan (1989) e Wallendorf e Arnould (1988).
Ferramentas de trabalho foram selecionadas pelas Informantes I e II, representando uma
“extensão de seu ‘Eu’”. (SCHIFFERSTEIN; ZWARTKRUIS-PELGRIM, 2008).
Os atributos de ciúmes da Informante I em relação aos Objetos 1 e 2 demonstram um
forte apego aos mesmos. O sentimento de ciúmes leva a Informante I a esconder e proteger o
Objeto 1 de pessoas amigas que freqüentam sua casa, bem como de sua faxineira (diarista).
As entrevistas realizadas no local de utilização dos produtos possibilitaram a verificação
mais próxima da realidade vivida pelas informantes e da importância que cada produto
desempenha em suas vidas. Pode-se concluir que as Informantes selecionaram objetos
considerados insubstituíveis.
Considerações finais
Os artefatos, além de serem elos entre as pessoas, são também elos entre as pessoas e
os lugares que habitam, que visitam, que nascem, estudam e toda sorte de atividades vividas,
desempenhadas ou lembradas naquele lugar.
Não se pode ignorar, sobretudo, que as relações dos homens com seus objetos são
intensas em afetividades, negativas ou positivas, sendo que seu estudo vem sedimentar
conhecimento para que a prática do design possa se desenvolver com mais segurança diante
da crescente complexidade sócio-cultural. Esse entendimento permitirá o desenvolvimento de
produtos mais integrados aos seus espaços culturais ou universos mercadológicos, abrindo a
possibilidade de uma importante evolução na maneira de desenvolver projetos de produto.
A vantagem da utilização do método etnosemântico em pesquisas em design consiste
na obtenção de dados em menos tempo do que perguntando questões menos diretas e mais
gerais, como é observado no método etnográfico tradicional. Para a pesquisa de Doutorado
em andamento, foi possível verificar com os testes piloto que o método mostra-se adequado
para iniciar o trabalho de campo propriamente dito e dar continuidade à pesquisa.
Agradecimentos
Agradecemos ao CNPQ por apoiar esta pesquisa.
9º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design
“Em 2020 eu ainda vou gostar dele”: contribuições da etnosemântica no estudo de vínculos afetivos
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