1 Íleo Adinâmico e Obstrução Intestinal Flavio Antonio Quilici Lisandra Carolina Marques Quilici 1. ÍLEO ADINÂMICO O íleo adinâmico, também denominado íleo paralítico, reflexo, por inibição ou pós-operatório, é definido como uma atonia reflexa gastrintestinal, onde o conteúdo não é propelido através do lúmen, devido à parada da atividade peristáltica, sem uma causa mecânica1,2. É distúrbio comum do pós-operatório podendo-se afirmar que ocorre após toda cirurgia abdominal, como resposta "fisiológica" à intervenção, variando somente sua intensidade, afetando todo o aparelho digestivo ou parte dele3. A recuperação da função motora no pós-operatório varia nos diferentes segmentos. O intestino delgado é o menos afetado, normalizando-se a motilidade e a absorção em aproximadamente 24 horas após a operação. Já o esvaziamento gástrico fica prejudicado entre 24 a 48 horas. O peristaltismo colorretal, o de recuperação mais lenta, vai desde 24 até 72 horas. Assim, o retorno da motilidade, com expulsão de gases pelo reto, pode ser mais tardio após uma ressecção do cólon, quando comparado a outras cirurgias abdominais. Esta ocorrência é normal, e o cirurgião precisa conhecê-la para saber interpretá-la2,3,4,6. Quando o íleo adinâmico se torna anormalmente prolongado, pode representar um problema pós-operatório, por vezes de grande magnitude1,2,5. Nesse momento, é importante diferenciá-lo da obstrução mecânica1,4,7. 2 A fisiopatologia do íleo adinâmico está relacionada a alterações de vários fatores: neural, humoral e o metabólico8,9. Os de origem neural decorrem da hiperatividade do sistema simpático; o hormonal, da presença, no pós-operatório, de uma substância plasmática inibidora da motilidade, e o metabólico, de alterações hidreletrolíticas ou isquêmicas, que rapidamente interferem, inibindo a motilidade do trato digestivo8,9. A multiplicidade de situações nas quais podem ocorrer e sua concomitância, muitas vezes, impossibilitam a definição de uma causa específica. No entanto, os principais agentes etiopatogênicos, causadores do íleo adinâmico, podem ser relacionados ao trauma cirúrgico, às infecções pós-operatórias e a alterações bioquímicas (Tabela 32.1). Tabela 32.1 Agentes Etiopatogênicos do Íleo Adinâmico Trauma Intra-Operatório — manipulação intestinal — tempo de exposição intestinal — cirurgias alargadas — tração excessiva intestinal — tração excessiva mesenterial — resposta metabólica ao trauma Infecções Abdominais — peritonite — abscessos — deiscência de anastornose — pancreatite Infecções Extra-Abdominais — retroperitoneal — pulmonar — urinária — septicemia 3 Bioquímicos — distúrbios hidreletrolíticos — hemorragia intra-abdominal — anestesia Diversos — atonia gástrica — atonia vagal — retenção urinária — imobilidade no leito — deiscência da parede abdominal Com relação ao trauma intra-operatório, são várias as suas causas, tais como: • A maneira como o intestino é manipulado durante a cirurgia; o tempo de sua exposição, ocasionando o ressecamento das alças quando fora da cavidade peritoneal; • A tração excessiva ou intempestiva do intestino ou de seu meso, traumatizando a vascularização e podendo provocar uma isquemia intestinal que rapidamente inibe a sua motilidade; • A resposta metabólica ao trauma operatório, principalmente nas cirurgias alargadas e • O tempo para a realização da cirurgia As infecções abdominais pós-operatórias são causas importantes do íleo adinâmico. São originadas pela contaminação da cavidade abdominal ainda no intra-operatório, desencadeando uma peritonite, pela presença abscessos cavitários, deiscência da anastomose e pela pancreatite.P.O de 4 As infecções extra-abdominais podem, também, causar o íleo adinâmico. As mais freqüentes, no pós-operatório, são a septicemia, a infecção retroperitonal, a pulmonar e a urinária. Os fatores bioquímicos que alteram a motilidade do trato intestinal são: distúrbios graves hidreletrolíticos (hipopotassemia), irritações químicas provocadas pela presença de sangue na cavidade abdominal e a toxicidade das drogas anestésicas. Outros agentes que contribuem para a parada do peristaltismo são: • A atonia gástrica, por paralisia reflexa; • A atonia vagal, principalmente após as vagotomias tronculares; • A retenção urinária, pela presença dos bexigomas; • A imobilidade do paciente no leito e • A deiscência da sutura da parede abdominal. 2. OBSTRUÇÃO INTESTINAL A obstrução intestinal mecânica ocorre quando o conteúdo gastrintestinal é impedido de progredir pelo do lúmen, por qualquer obstáculo mecânico permanente. No pós-operatório, sua incidência é rara, podendo estar relacionada com falhas técnicas no intra-operatório. Em estudo retrospectivo do Hospital São Marcos, em Londres, numa série de 1.302 casos de cirurgia retal, ela ocorreu em 3%10. As causas da obstrução intestinal no pós-operatório das cirurgias abdominais são (Tabela 32.2): • Aderências que ocorrem com mais freqüência nas cirurgias colorretais e pélvicas2,4 • Hérnias internas como, por exemplo, as herniações de alça do delgado por brecha mesentérica não fechada ou herniações através do assoalho pélvico, nas cirurgias retais 5 • Vólvulo com a torção do pedículo vascular da alça (rotação inadvertida do mesentério do intestino) • Estenose das anastomoses • Inversão de alça interposta, • Drenos mal posicionados e • Fechamento inadvertido da boca proximal durante a realização de estornias intestinais. Tabela 32.2 Agentes Etiopatogênicos da Obstrução Mecânica Pós-Operatória Aderências Hérnias internas Vólvulo Torção do pedículo vascular Rotação do mesentério do intestino Edema e/ou estenose da anastomose Inversão de alça interposta Drenos mal posicionados Fechamento da boca proxirnal de estomia 3. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL O diagnóstico diferencial entre o íleo adinâmico e a obstrução intestinal pode, muitas vezes, ser difícil8,9. Para realizá-lo, é necessário avaliar, criteriosamente, o quadro evolutivo e os exames complementares; mesmo assim, a diferenciação nem sempre é possível, daí a importância o cirurgião acompanhar integralmente o 6 pós-operatório de todo paciente. Essa dificuldade aumenta quanto mais precoce forem os seus sinais e sintomas pós-operatórios. O quadro clínico do íleo adinâmico é muito semelhante ao da obstrução na sua fase inicial. À inspeção, já se observa a distensão abdominal, geralmente uniforme, freqüentemente por estarem envolvidos todos os segmentos intestinais. A palpação abdominal não revela tumorações ou endurecimentos. No íleo adinâmico, geralmente, não há dor à palpação, exceto na região da incisão cirúrgica. Quando há dor, ela se deve a irritação peritoneal, fazendo-se suspeitar de infecção intracavitária. No entanto, a dor com característica de cólica, com períodos de remissão e intensidade progressiva, sugere uma obstrução mecânica. Todavia, a ausência de dor não permite afastar-se a obstrução intestinal. À percussão, há timpanismo generalizado, e à ausculta, silêncio abdominal, com ausência dos ruídos hidroaéreos, mas ambos são de pouco valor nesse diagnóstico diferencial. Vômitos podem ou não ocorrer, mas quando o paciente realiza qualquer ingestão, geralmente não autorizada pelo cirurgião, há o aparecimento de náusea, regurgitação e distensão gástrica acentuada, tanto no íleo adinâmico quanto na obstrução. A presença, no pós-operatório, de taquicardia, taquisfigmia, oligúria e diminuição da pressão venosa central podem significar um quadro de obstrução mecânica. O acompanhamento evolutivo do paciente é, também, muito importante na diferenciação diagnóstica entre as duas síndromes. O tempo de persistência da distensão, da dor abdominal, dos vômitos, da parada da eliminação de gases e fezes etc., no pós-operatório, principalmente após o quarto dia, pode caracterizar a obstrução mecânica2,4. Quando o paciente apresenta esses sintomas, não no pós-operatório imediato, mas alguns dias depois, melhorando com o tratamento conservador 7 para recomeçarem os sintomas mais tarde, são sugestivos de obstrução intestinal4. O exame complementar mais importante para o diagnóstico diferencial é o radiológico. A radiologia simples de abdome, no íleo paralítico, revela alças distendidas difusamente, distensão gástrica, presença de ar no reto e discreta retenção hidroaérea no delgado e no cólon. O espessamento de alças intestinais, indicativo de edema da mucosa intestinal, o nível líquido escalonado e a retenção hidroaérea, ou no delgado ou no cólon, são sinais sugestivos de obstrução mecânica. A radiologia contrastada também pode auxiliar nessa diferenciação, empregando-se contraste por via oral ou retal. No íleo adinâmico, por exemplo, o contraste por via oral geralmente pode chegar ao ceco em até quatro horas, e na obstrução mecânica, a coluna de contraste fica estacionária, permanentemente, num único local do trato intestinal. Os exames laboratoriais pouco contribuem para essa diferenciação. A leucocitose no pós-operatório indica complicação infecciosa; a anemia aguda pode contribuir para o diagnóstico de hemorragia intra-abdominal, e a dosagem plasmática demonstra hipopotassemia, hiponatremia e diminuição da osmolaridade, caracterizando e quantificando o distúrbio hidreletrolítico. 4. TRATAMENTO CLÍNICO A conduta no íleo paralítico é eminentemente conservadora. Inclui o tratamento clínico dos principais sintomas e a busca da identificação e eliminação de qualquer agente etiológico específico. A intubação nasogátstrica, com aspiração contínua ou intermitente, é muito eficaz, a tal ponto que alguns cirurgiões a usam como parte da terapia de toda operação abdominal, na tentativa de minimizar a associação de distensão e desconforto. A intubação duodenal também é indicada, porém é difícil realizá-la, pela ausência de peristaltismo para a sua introdução. 8 O tratamento clínico também inclui o suporte hidreletrolítico, com reposição rigorosa das perdas, a prevenção da infecção pela antibioticoterapia e, em casos especiais, o uso da nutrição parenteral. Os enemas retais são de pequeno valor para estimular o peristaltismo, nunca devendo ser empregados nas cirurgias com anastomoses colorretais, colo-anais ou ileorretais4,6. Pelo mesmo motivo, a sondagem retal é contra-indicada. Esse estímulo também pode ser conseguido através de supositório de glicerina. Há grande variedade de drogas empregadas na tentativa de estimular o peristaltismo1,2,5. O cloreto de potássio na dose de 2 a 4g endovenoso, nas 24 horas, quando a diurese está mantida, é um estímulo importante para a motilidade intestinal. A metoclopramida, por ser antagonista da dopamina, incrementa a motilidade intestinal, sem provocar espasmos na musculatura e, como tal, é empregada no pós-operatório por alguns cirurgiões2,7. O brometo de prostigmina (neostigmina), por ser colinérgico, produz uma vigorosa atividade peristáltica, restabelecendo a motilidade intestinal entre 10 e 30 minutos, na dose de 0,5 a 1,0mg por via subcutânea. Esse estímulo é temporário e, após, o paciente tem agravada sua adinamia muscular11,12. Por isso, associado ao risco que representa para as suturas do trato digestivo e ao agravamento dos enfermos portadores de peritonite ou obstrução, não é utilizado. Goligher usou-o, excepcionalmente, com bons resultados, quando diagnosticou o íleo dramaticamente prolongado4. Os hormônios estimulantes da contração da musculatura lisa, como a motilina, ceruleína e colecistocinina, não têm utilidade, e os laxativos e colinérgicos são contra-indicados2,11,12. Assim, além do tratamento conservador apropriado, há que se observar um tempo de pós-operatório para a resolução do íleo adinâmico, sendo fundamental que o cirurgião tenha acompanhando a evolução de cada paciente13. bom senso, aguardando e 9 5. TRATAMENTO CIRÚRGICO A cirurgia no íleo adinâmico é indicada somente sob clrcunstâncias incomuns, como nas distensões maciças com risco de ruptura intestinal e na presença de infecção abdominal. Como regra de conduta, num primeiro instante, o tratamento é conservador até a definição da possibilidade de obstrução mecânica, quando então a cirurgia se impõe. A laparotomia não pode nem deve ser encarada como última solução. A reoperação, não raro, pode ser a primeira decisão a ser tomada. Pacientes reoperados em estado muito grave não suportam cirurgias extensas; nesses casos, deve-se fazer o menor trauma operatório para aliviar a obstrução, como uma ileostomia ou colostomia. O prognóstico da obstrução intestinal pós-operatória é grave, sendo os índices de mortalidade, em serviços de alto padrão, de até 20%2,4,6,7. O fator que mais agrava o prognóstico é a decisão de relaparotomia feita tardiamente. BIBLIOGRAFIA 1. Bockus HL. Gastroenterology. 3. ed, Philadelphia. Saunders, 1976. 2. Rocha PRS & Souza C. Abdome agudo. 1a ed, Rio de Janeiro. Guanabara Koogan, 1982. 3. Schwartz SI. Princípios de cirurgia. 4a ed, Rio de Janeiro. Guanabara Koogan, 1984. 4. Goligher JC. Surgery of the anus, rectum and colon. 3a ed, London. Bailliere Tindall, 1976. 5. Sleisenger MH & Fordtran JS. Gastrointestinal disease. 2a ed, Philadelphia. Saunders, 1978. 10 6. Corman ML. Colon and rectal surgery. 1a ed, Philadelphia. Lippincott, 1984. 7. 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