2014 ENTRE EUROPA, ÁFRICA E AMÉRICA: O IMPÉRIO PORTUGUÊS NO ATLÂNTICO-SUL Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul EXPEDIENTE ENTRE EUROPA, ÁFRICA E AMÉRICA: O IMPÉRIO PORTUGUÊS NO ATLÂNTICO-SUL ANAIS | VOLUME 1, NÚMERO 1, 2014 ISSN 2358-7148 EDITOR PROF. DR. FERNANDO LOBO LEMES (PUC-GO/CAPES) COMISSÃO EDITORIAL PROF. DR. EDUARDO GUSMÃO DE QUADROS (PUC-GO/UEG) PROF. DR. EDUARDO JOSÉ REINATO (PUC-GO) PROF. DR. FERNANDO LOBO LEMES (PUC-GO/CAPES) PROFª DRª RENATA CRISTINA DE S. NASCIMENTO (UFG/UEG/PUC-GO) COMISSÃO CIENTÍFICA DRª. ANA TERESA MARQUES GONÇALVES (UFG) DR. ADAÍLSON JOSÉ RUI (UNIFAL) DR. ADEMIR LUIZ DA SILVA (UEG) DRª. ALINE DIAS DA SILVEIRA (UFSC) DRª. ARMÊNIA MARIA DE SOUZA (UFG) DRª. DIANE VALDEZ (UFG) DR. EDUARDO GUSMÃO DE QUADROS (PUC-GO) DR. EDUARDO JOSÉ REINATO (PUC-GO) DR. FLÁVIO FERREIRA PAES FILHO (UFMT) DR. GILBERTO CÉSAR DE NORONHA (UFU) DRª. IVONI RICHTER REIMER (PUC-GO) DRª. MARIA CRISTINA NUNES FERREIRA NETO (PUC-GO) DRª. MÔNICA MARTINS DA SILVA (UFSC) MS. MURILO BORGES SILVA (UFG) PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS ESCOLA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES E HUMANIDADES PROGRAMA DE MESTRADO EM HISTÓRIA CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA 2 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul SUMÁRIO TEXTOS COMPLETOS ADOLPHO RANDES MESQUITA FERREIRA ALAN RICARDO DUARTE PEREIRA ALEXANDRE FRANCISCO DE OLIVEIRA ANDRÉ MARIANO NERI BRUNA DE OLIVEIRA SANTOS CHRISTIANE FIGUEIREDO PAGANO DE MELLO CLEIGINALDO PEREIRA DOS SANTOS DALVA PEDRO SILVA EDNA MARA FERREIRA DA SILVA ÉRICA DANIELLE MESQUITA FABIANE DA SILVA ANDRADE FERNANDO BUENO OLIVEIRA GUSTAVO VELLOSO HAMILTON MATOS CARDOSO JÚNIOR HILMA APARECIDA BRANDÃO ISABELLA NOGUEIRA JACIELY SOARES DA SILVA JAEL FLÁVIA DE PAIVA ARAÚJO JOÃO GUILHERME CURADO JOÃO PEDRO PEREIRA ROCHA JOELMA GONÇALVES MARÇAL JOILSON DE SOUZA TOLEDO JOSÉ CORDEIRO MENEZES NETTO LEO CARRER NOGUEIRA MARCELO RODRIGUES SIQUEIRA MARCOS ROBERTO PEREIRA MOURA MAX LANIO MARTINS PINA MAYARA PAIVA DE SOUZA NAYARA KATIUCIA DE LIMA DOMINGUES DIAS NILTON RABELO URURAHY PATRÍCIA DA SILVA SOARES PEPITA DE SOUZA AFIUNE RACHEL SILVEIRA WREGE ROBERVAL AMARAL NETO ROGÉRIO CHAVES DA SILVA ROSANA ROMENIA FERNANDES LEAL ROSEMEIRE APARECIDA MATEUS SUZANA RODRIGUES FLORESTA TEREZA CAROLINE LÔBO TIAGO KRAMER DE OLIVEIRA 3 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul COZINHA: ESPAÇO FESTIVO – FOLIA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO EM PIRENÓPOLIS/GO1 Adolpho Randes Mesquita Ferreira UEG - Câmpus Pirenópolis [email protected] A produção aurífera em Meia Ponte foi uma atividade realizada em área urbana, como na maioria dos demais núcleos auríferos dos séculos XVII e XVIII que existiram no Brasil. Findando este período dedicado à extração do ouro em Goiás, a ruralização foi intensificada, com produções agrícolas voltadas para a subsistência. Produções estas que foram intensificadas no século XIX, destacando-se principalmente o Comendador Joaquim Alves de Oliveira, com sua significativa produção no Engenho de São Joaquim, que não era voltado apenas ao cultivo da cana-de-açúcar, havendo outras produções agrícolas em sua propriedade (COSTA, 1978). Meia Ponte sendo uma localidade colonizada por portugueses manteve muitas das influências lusitanas, especialmente as culturais e devocionais que se fixavam com grande força e foram se adaptando às conformidades locais, com ênfase para a festividade ao Divino Espírito Santo, que segundo Jayme (1971) teve o primeiro documento em 1819, mas, no entanto não há registro até os dias de hoje de quando ocorreu a primeira Folia do Divino, que provavelmente anteriormente ao ano de 1819. Dentro das comemorações ao Divino Espírito Santo, outras festividades foram também se destacando, tais como as Cavalhadas com suas encenações equestres representando a batalha entre os mouros e os cristãos e as Folias com ênfase na ruralidade, festejos estes que ocorrem durante a celebração de Pentecostes, e que são assimilados ao 1 Fomento: PrP/UEG por meio do Projeto de Pesquisa: Pesquisa Girando Folia: apontamentos turísticos e gastronômicos em um das devoções ao Divino Espírito Santo – Pirenópolis/Goiás, do qual é bolsista PVIC/UEG. Integrante do Grupo de Pesquisa Saberes e Sabores Goianos. Orientador: João Guilherme Curado. 4 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul período das colheitas. Tais manifestações foram implantadas no mesmo período em que Meia Ponte despontava para a agricultura. As Folias do Divino são realizadas por pirenopolinos há quase dois séculos e receberam no ano de 2010 o reconhecimento institucional, via Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), junto com as demais manifestações que constituem a Festa do Divino de Pirenópolis, quando passou a ser considerada como Patrimônio Cultural do Brasil, enquanto uma celebração de extrema significação para a compreensão da cultura nacional. Vale destacar que outras festas de maior porte ainda não possuem tal reconhecimento, o que acaba por fortalecer ainda mais a devoção e a tradição anual dos festejos ao Divino. Gastronomia de Folia Para um profissional ser reconhecido no mercado de trabalho é exigido um padrão de qualidade nos serviços prestados, entretanto para que tal qualidade exista necessita-se de um conhecimento ou aptidão para desempenhar a função pretendida. Na gastronomia de Folia não é diferente, essa premissa é indispensável, por isso para que aquela cozinheira faça uma quantidade imensa de comida é necessário que disponha a tal tarefa e que conheça algumas técnicas de trabalho exigidas em cozinhas de grande porte e improvisadas. Também as habilidades básicas são fundamentais e estas foram em algum momento da vida os cozinheiros de Folia foram ensinados e/ou aprenderam no dia-a-dia com suas mães ou antepassados. O ato de temperar as grandes panelas ou tachas exigem padrões a serem seguidos, e como se trata de uma festa tradicional talvez as receitas ali reproduzidas tenham significâncias diversas para quem as prepara, oferece ou se alimente de tal refeição. Para se ter uma dimensão da quantidade de comida servida em cada pouso de folia, seguem algumas informações do servente Adão Soares “Gaúcho”, responsável pela equipe de três cozinheiras e oito serventes que trabalhavam na fazenda Santa Rita, por três dias seguidos, durante 5 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul a folia do ano 2000. Na ocasião, foram cozidos 100 quilos de arroz, 30 quilos de feijão com 20 de pele de porco, 120 de costela de boi com a mesma quantidade de mandioca para janta e almoço do dia seguinte, além dos 60 quilos de tomate e de igual porção de repolho (VEIGA, 2008, p. 5). Sendo de uma família com tradição em Folia de Reis na cidade de Anápolis, que ainda não foi estuda e acadêmico de gastronomia em Pirenópolis, mantive o interesse pelas festas de folia, em especial pelas cozinhas de folias. Aqui em especial, abordaremos a Folia do Divino Espírito Santo realizada pelos pirenopolinos que é uma festa de renome nacional. Assim, associando os conhecimentos adquiridos desde a infância pela participação familiar na produção da Folia de Reis e as técnicas e experiências aprendidas no Curso de Gastronomia, fomos desenvolvendo pesquisas sobre comidas de folias no decorrer da formação acadêmica e que buscamos aprofundar em nossas investigações. Inicialmente buscamos contextualizar historicamente as origens da Festa do Divino Espírito Santo: as primeiras devoções ao Divino datam de 1321 em Portugal. A folia foi trazida ao Brasil no início da colonização portuguesa. Apesar de ser realizada em vários estados brasileiros, foi em Pirenópolis que encontrou maior força. A primeira Folia realizada na cidade goiana foi em 1819, promovida pelo Coronel Joaquim da Costa Teixeira, consagrado Imperador do Divino (PERES, 2010, p. 36). A Folia do Divino Espírito Santo rural de Pirenópolis é um grande nicho de pesquisa, além de ser uma das principais festas contidas no calendário na cidade, relembrando ainda que foi a Festa do Divino é considerada desde 2010, como Patrimônio Cultural do Brasil, aumentando desta maneira a importância de estudos sobre esta temática. Nos dedicamos, 6 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul especialmente, às pesquisas sobre a produção de comidas que envolvem saberes e fazeres transmitidos há várias gerações. Além de ser um atrativo para centenas de pessoas todos os anos que se deleitam com as comidas ofertadas. Uma grande dificuldade na pesquisa que envolve o estudo de folia é a sazonalidade. Assim como as demais folias a Folia do Divino Espírito Santo de Pirenópolis ocorre apenas uma vez a cada ano, criando uma dificuldade na coleta de informações, agravada ainda pelo fato desta festividade ser realizada na área rural e alguns locais serem muito distante da cidade, como foi percebido nos diversos pousos visitados nos anos de 2013 e 2014, o que não foi empecilho para que a pesquisa fosse realizada. Uma percepção gastronômica indica que tais refeições servidas são de grande importância, pois nas comidas de folia é possível perceber que estão agregados aromas e sabores únicos. Mas, no entanto, no momento do preparo agregar todos estes valores é um desafio quando se considera que os alimentos são preparados em enormes panelas e tachas. Portanto, vivenciar tal produção é de uma riqueza cultural e didática inestimável para um profissional da gastronomia. Cozinhar é algo necessário, seja você um consumidor ou mesmo um cozinheiro, a gastronomia está ligada diretamente a nossa história, pois sem ela nem seríamos capazes de contar nossa trajetória. Diferentemente de outras áreas do conhecimento a gastronomia prima pela prática. Enquanto um historiador não precisa ter vivido a ascensão do Império Romano para falar de sua imponência, o gastrônomo necessita cozinhar para aprender as habilidades básicas para preparações dos alimentos, ou seja, ele precisa praticar. Todas as pessoas comem (e isso é quase sempre feito algumas vezes por dia), e a maioria está frequentemente, se não diariamente, envolvida na preparação de uma refeição, mesmo que simplesmente arrumando diferentes alimentos no prato, ou realmente os combinando como ingredientes de uma receita (ALLHOFF; MONROE, 2012, p. 297) 7 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Considerando que “a alimentação é o combustível para nossa vida, uma vez que nos fornece subsídios para a realização de nossas tarefas diárias” (www.sermelhor.com), foi iniciada uma investigação sobre a importância da comida que é preparada e servida em um Pouso de Folia, daí nos deparamos com o seguinte dilema: por que os devotos foliões deixam seus acampamentos, com a comida que trouxeram e que preferem consumir, saciando suas fomes junto à mesa com a comida de folia oferecida pelo anfitrião. No entanto, logo este dilema se torna obsoleto, pois os foliões são movidos pela devoção ao Divino, e cear junto à mesa e uma forma de agradecimento, alem de comunhão com os demais foliões presentes no giro da Folia. Trazendo conhecimento outrora vivenciado em Anápolis na Folia de Reis, somados às informações de estudos e pesquisas bibliográficas sobre folias, fomos acrescentado dados e direcionando a pesquisa desenvolvida sobre Folia do Divino Espírito Santo de Pirenópolis, como pode ser evidenciado em uma de nossas investigações: o “giro” da Folia do Divino Espírito Santo em Pirenópolis tem por característica ritual a promoção de Pousos de Folia, quando os foliões são recebidos em casas ou fazendas pré-determinadas realizando ali uma parada noturna a cada noite para descanso, mas que implica em diversas manifestações populares, como: orações, cantorias e alimentação (FERREIRA; OLIVEIRA, 2013, p.1). Dentre os conhecimentos adquiridos pela pesquisa vale ressaltar que foi de extrema importância o ato de vivenciar os rituais de alimentação passo a passo, desde seu preparo até o consumo pelos foliões, pois neste ínterim foram vivenciadas as práticas utilizadas por cozinheiras e cozinheiros, sendo que pudemos catalogar as práticas na cozinha por meio de fotos, vídeos e principalmente por entrevistas direcionadas que foram concedidas por eles enquanto preparavam as comidas a serem degustadas posteriormente pelos foliões. Portanto, metodologicamente salientamos que 8 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul existem dois instrumentos do tipo lápis-e-papel: questionário e formulário. A origem de ambos reside numa forma de coleta denominada entrevista – que consiste em fazer interagir verbalmente, cara a cara, pesquisador (entrevistador) e interlocutor (entrevistado) (COSTA, 2001, p. 75). Assim, por ocasião dos trabalhos de campo durante os pousos de folia, realizamos também diversas conversas informais com algumas cozinheiras e cozinheiros, quando foram feitas trocas de experiências e promovida uma breve coleta de informações visando o aprimoramento das informações sobre as cozinhas de pousos de folias. Informações estas que depois foram sistematizadas. Informações coletadas em livros e artigos foram de grande importância como suporte bibliográfico, especialmente as que citam a Folia do Divino Espírito Santo de Pirenópolis. Assim seguimos as orientações da condução de pesquisas, quando as fases da pesquisa de campo requerem, em primeiro lugar, a realização de uma pesquisa bibliográfica sobre o tema em questão. Ela servirá, como primeiro passo, para se saber em que estado se encontra atualmente o problema, que trabalhos já foram realizados a respeito e quais são as opiniões reinantes sobre o assunto. Como segundo passo, permitirá que se estabeleça um modelo teórico inicial de referência, da mesma forma que auxiliará na determinação das variáveis e elaboração do plano geral da pesquisa (LAKATOS; MARCONI, 2003, p. 186). Com as orientações das referidas autoras, partimos para uma pesquisa de campo mais elaborada e aprofundada em 2014, devido às leituras direcionadas realizadas posteriores ao campo do ano de 2013. Assim, chegamos a um dos pontos máximos do pouso: a janta, que é prepara com significativa antecedência, em relação à chegada dos foliões que ocorre no final da tarde de 9 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul cada dia do giro. A janta se constitui em enormes quantidades de comidas. Em conversas informais com uma das cozinheiras de pousos, ela nos relatou que a preparação da comida de alguns pousos é iniciada até com um dia de antecedência. O momento da janta é por numerosos foliões esperado com ansiedade, pois a janta é servida em uma grande mesa e serve para agregar as pessoas e promover orações conjuntas, uma verdadeira comunhão abençoada pelo Divino, para quem os foliões promovem, posteriormente o rito de agradecimento de mesa. Tachas que comportam mais de cinquenta quilos de alimentos são utilizadas na preparação do cardápio que pouca variação apresenta na maioria dos pousos. Existem casos em que o dono da casa, não possui posses para ofertar os alimentos aos foliões, nestas situações pedem ajuda a políticos, comerciantes e até mesmo aos organizadores da Folia. Estas pessoas normalmente são pagadoras de promessas, que ao receberem as graças solicitadas, oferecem pouso em devoção ao Divino. Para a preparação dos alimentos a serem servidos durante os pousos, os cozinheiros contam com uma cozinha quase toda improvisada. Nestes locais evidenciamos a precariedade de trabalho, sendo que faltam desde mesas até mesmo equipamentos comuns que auxiliariam na condução dos trabalhos. Visando sanar as deficiências os proprietários das fazendas fazem fornalhas que sustentam as grandes tachas, sendo, no entanto, o calor excessivamente alto. Com isto transformar um alimento em comida saborosa torna-se um grande desafio, mas os empenhos de todos suprem todos estes reveses. Questões como as mencionadas foram evidenciadas durante a preparação da janta no Pouso de folia promovido no povoado de Caxambú, quando nos propusemos a atuar efetivamente na cozinha. Aprendemos então que não existem limites para atuação, e que o conhecimento pode ser repassado mesmo por alguém que nunca esteve na academia, mas que possui significativa prática acumulada em décadas de preparação de comidas em festas como nos Pousos. Ser um pesquisador participante e atuante na cozinha de um pouso proporcionou conhecimentos e experiências impossíveis de serem capturados por meio de entrevistas ou só de observações. Logo após os rituais junto à mesa e com o fim da janta, a festa que atrai o grande público aos pousos de folias começa, e se caracterizam por muita música mecânica, danças, 10 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul bebidas e ainda muita comida comercializada pelos vendedores temporários, se estendendo madrugada adentro. A quantidade de pessoas aumenta consideravelmente, havendo pousos que recebem cerca de 10 mil participantes. Dessa maneira, as folias possuem características de agregação, como observou Jurkevics (2005) em relação às festas religiosas pelo Brasil, quando nessas ocasiões, era comum a participação não apenas dos moradores locais, como também dos arredores que, compondo as diversas irmandades e ordens terceiras, organizavam os eventos, sobretudo para celebrar seus santos protetores. As festas organizadas pelas confrarias mesclavam as missas, os sermões, os te-deuns, as novenas e procissões com danças, coretos, fogos de artifício, barracas de comida e bebidas (JURKEVICS, 2005, p. 75). Na etapa da festa, em que os rituais já se cessaram após a janta, agradecimento, pedido de esmola e dança de catira, é que os cata-pouso entram em cena. São aqueles personagens que vão apenas à parte da festa onde o som mecânico e a ebriedade predominam, não tendo estes instantes nenhuma ritualidade, conforme observou Pinto (2009). Neste ensejo, chegam também as barracas de comerciantes temporários onde se pode encontrar as mais diversas bebidas e comidas. Mas se ainda houver um folião desavisado que queria a comida de pouso, é possível conseguir um bom caldo de mandioca com carne ou mesmo sobras da comida servida, na cozinha da casa em que acontece o pouso. Tendo findado o som e ocorrido a dispersão da multidão que se junta no pouso temporariamente por volta das quatro da madrugada, os foliões vão se recolher em seus acampamentos, enquanto os cata-pouso tomam seus carros ou vans e destinam a volta para casa. Não demora muito e é possível ouvir sons dos instrumentos dos músicos da Folia, realizando a alvorada que anuncia que mais um dia da Folia está chegando, assim vários foliões se levantam para o café da manhã. Comumente o café é bem forte, para ajudar a 11 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul acordar. Um complemento comum é o pão francês com molho de carne. Em alguns pousos são servidas quitandas e bolos no lugar do pão. Logo após o café, chega a hora daqueles foliões que são os responsáveis pelos acampamentos de cada turma desmontá-los, para seguir para o próximo pouso. Paralelamente o pessoal da cozinha que havia levantado para o preparo do desjejum, começam as atividades para aprontar o almoço. O cardápio do almoço é bastante parecido com o da janta servido na noite anterior, só que em menor quantidade, pois vários foliões já estão na estrada levando o acampamento para o outro pouso, organizando, assim, mais uma migração durante o giro da Folia. Considerações Finais O simples ato de cozinhar já é considerado por muitos como uma forma de agradecimento e também uma maneira de exteriorizar tudo aquilo que se gostaria de transmitir. A comida traz consigo todo sentimento que o cozinheiro tem dentro de si, temática esta reproduzida em vários livros e filmes, mas que se aplicado à Folia desvenda a devoção e a religiosidade de um povo como o pirenopolino. Discussões anteriores nos indicam que a comida é considerada como um meio de transmissão de mensagens, e percebemos que na Folia ela se preta como fonte de alimentação física e espiritual, pois é reverenciada e agradecida, como uma forma de comunhão entre os foliões e destes com o Divino Espírito Santo. Mesmo diante do improviso que geralmente caracteriza uma cozinha de folia, que se constitui em uma ampliação improvisada da cozinha da fazenda, onde poucos são os utensílios ou mesmo equipamentos que poderiam facilitar a preparação de alimentos em grandes quantidades e em pouco tempo, há um contentamento nítido entre as cozinheiras, os cozinheiros e demais auxiliares, que promovem uma verdadeira festa enquanto preparam as refeições. Assim, a satisfação dos devotos diante da mesa posta se torna nítida no momento em que se entoa um canto específico, antes de se servirem, cujo refrão é reproduzido no intuito de demonstrar parte da religiosidade devocional dos foliões e dos demais presentes: 12 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Ao Senhor oferecemos, aleluia! O alimento que teremos, aleluia! Referências Bibliográficas ALLHOFF, Fritz; MONROE, Dave (Orgs.). Comida & filosofia: coma, pense e seja feliz. Trad. Mariana Hermann. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2012. 364p. COSTA, Lena Castello Branco Ferreira. Arraial e coronel: dois estudos de história social. São Paulo: Cultrix, 1978. 206p. COSTA, Sérgio Francisco. Método científico: os caminhos da investigação. São Paulo – SP; Ed. Harbra; 2001. 104p FERREIRA, Adolpho Randes Mesquita; OLIVEIRA, Alexandre Francisco de. Pouso de Folia e suas comidas. In: Anais do VI Simpósio Internacional de História: Culturas e Identidades. Goiânia: UFG, 2013. 1p. JAYME, Jarbas. Esboço Histórico de Pirenópolis. Goiânia: UFG, 1971. 624p. JURKEVICS, Vera Irene. Festas religiosas: a materialidade da fé. In: História: Questões e Debates, Curitiba: Ed. UFPR, n. 43, 2005. pp. 73-86. LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003. 310p PERES, Eraldo. Festa Brasileira: folias, romarias e congadas. São Paulo - SP; Senac Editoras/ Impresão Oficial, 2010. 160p PINTO, Divino da Silva. A Folia do Divino como atrativo turístico. Pirenópolis: UEGUnU/Pirenópolis, 2009. 30f. (Graduação em Tecnologia em Gestão de Turismo). VEIGA, Felipe Berocan. Os gostos do Divino: análise do código alimentar da festa do Espírito Santo em Pirenópolis, Goiás. In: Candelária: Revista do Instituto de Humanidades, Rio de Janeiro: IH-UCAM, ano V, Jan-Jun, 2008, pp. 135-150. 13 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul AMÉRICA PORTUGUESA E O PROCESSO DE COLONIZAÇÃO: O CONCEITO DE NOBREZA DA TERRA E O ENRAIZAMENTO EM UMA SOCIEDADE DE ANCIEN RÉGIME Alan Ricardo Duarte Pereira2 Introdução Em 1778, o juiz ordinário e presidente da Câmara de Vila Boa na Capitania de Goiás, José Cardoso da Fonseca escrevia a rainha D. Maria I sobre o governo de José Almeida Vasconcelos, o Barão de Mossâmedes3. O juiz ordinário acusava-o, categoricamente, de nepotismo, arbítrio e, especialmente, de colocar na Casa de Fundição seus familiares e desprezando “as Reaes Ordens, e o disposto no Regimento respectivo, mudando uns, e tirando outros fora do devido tempo”. O governador de Goiás também era criticado por rematar, sem nenhuma consulta aos oficiais da Câmara, a carne por contrato – “por payzoens e affectos particulares”, escrevia o juiz ordinário. Todo o seu nepotismo e arbítrio era reforçado, ademais, com a ajuda de duas figuras importantes na capitania: os corregedores e os ouvidores. Os corregedores, juntamente com o governador da capitania, eram responsáveis por cobrar e receber os rendimentos do Conselho e, nessa tarefa, a Câmara não era senhora alguma – isto é, tanto o corregedor como o governador não procuravam, de antemão, a Câmara para a aprovação de suas ações. Por sua vez, os ouvidores eram acusados de camuflar as leis e ordens régias que foram enviadas a capitania. Essa situação gerou, segundo o juiz ordinário, a necessidade de enviar algumas pessoas a outras capitanias – provavelmente em Minas Gerais ou Mato Grosso – para se informarem, em detalhes, das principais leis e ordens régias da Coroa portuguesa. 2 Mestrando em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Tutor a distância no curso de especialização (lato senso) “História e cultura afro-brasileira e africana”. Membro da Associação Brasileira de Estudos do Século XVIII. E-mail: [email protected]. 3 Ver: AHU-Goiás. ACL_CU_008, Cx. 30, D. 1925. 14 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Para além dessas críticas e conflitos entre o juiz ordinário, José Cardoso da Fonseca, e o governador de Goiás, José Almeida Vasconcelos, um aspecto sobressai: ao escrever sobre a entrega do governo, o juiz ordinário utiliza, muito rapidamente, uma expressão peculiar: a nobreza da terra. Assim, segundo o documento escrito pelo juiz ordinário, em presença do corregedor e da nobreza da terra, o Barão de Mossâmedes entregou, no ano de 1778, o governo de Goiás. Tratando dos documentos de Goiás presente no Arquivo Histórico Ultramarino, esse documento de 1778 talvez seja o primeiro – e, certamente, o único – a utilizar, explicitamente, o termo nobreza da terra para a região de Goiás. Para tanto, ao deparamo-nos com esse tipo de expressão, subitamente, um emaranhando de questões aparecem. Se o conceito de nobreza é, antes, proveniente da Europa – e, nesse caso, um título que somente governadores e reinóis portugueses detinham – como utilizá-los para caracterizar, na América portuguesa, a elite regional que angariava, com o passar do tempo, privilégios concedidos pelo rei português? O termo indicava que essa nobreza detinha somente terras – resultado da distribuição de sesmarias – ou implicava, necessariamente, em outros elementos? Se existiam outros elementos que conferiram, na América portuguesa, o status de nobre quais seriam? De que forma estes elementos relacionavam, direita ou indiretamente, com as políticas e ações da Coroa nas suas possessões de além-mar? Trata-se, portanto, de uma regra geral – todos poderiam ser nobres ao prestarem serviços a Coroa portuguesa – ou, na verdade, era uma camada da sociedade colonial restrita? Em regiões auríferas – como em Goiás, Minas Gerais e Mato Grosso – a nobreza da terra se destacou e, portanto, se tornou um dos principais grupos sociais ou, na verdade, só podemos encontrar efetivamente nobreza na região nordeste em que os senhores de engenho, ao possuírem escravos e cabedais volumosos, puderam, com efeito, adquirir o status de nobreza? Sem dúvida, esses questionamentos são importantes para uma compreensão elementar da nobreza na América portuguesa. Em geral, ao levar em consideração a possessões de alémmar observa-se que nos setecentos a contabilidade que regia a relação rei/vassalo no Ancien Régime se resumia, basicamente, na recompensa dos serviços prestados pelos súditos. Faziase necessário o incentivo ao prêmio para o vassalo se prontificar a realizar feitos em benefício da Coroa portuguesa. Para tanto, no estudo da América portuguesa a concessão de mercês aos 15 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul súditos tornou-se, com o passar do tempo, fundamental para efetivar a conquistar. Assim, para explicar esse processo, o conceito de nobreza da terra é, sem dúvida, uma chave-interpretativa utilizada, atualmente, pela historiografia. Desse modo, o presente trabalho tem como objetivo fulcral analisar, a partir da contribuição de alguns autores (Fragoso, Bicalho, Monteiro, Olival), o conceito de nobreza da terra na América portuguesa no século XVIII. A nobreza da terra e a colonização da América portuguesa Ademais, em relação à profícua e variada produção historiográfica do Brasil Colonial4 vem esquivando-se, nos últimos anos, de uma visão dicotômica de sociedade apenas Qual o sentido da expressão ‘Brasil Colonial/Colônia’ no debate historiográfico? Ao realizar essa pergunta, verifica-se que o termo Brasil Colonial/Colônia apresenta, desde sua utilização no século XVIII, uma variedade de significados, mas que reflete, historiograficamente, determinadas concepções que vigoraram na academia (no Brasil e, não raro, no exterior). O trabalho – muito incipiente, infelizmente – produzido em meados de 1996 pela historiadora Loraine Slomp Giron e Heloisa Eberle Bergamasch intitulado Colônia: um conceito controverso sumariza, em poucas linhas e muito brevemente, a trajetória desse conceito no Brasil Colonial e, por conseguinte, na criação de colônias feita pelos (e para os) imigrantes no período Imperial ao longo de todo século XIX (especificamente de 1756 a 1895). O objetivo do trabalho dessas historiadoras é, tão somente, analisar o conceito de colônia na História do Brasil, mas, acima de tudo, verificar como o conceito e o processo de imigração andaram, no século XIX e XX, diuturnamente unidos. Segundo as autoras, o conceito de colônia – conforme o próprio titulo da obra evoca – é, sem dúvida, polissêmico e, no decorrer do tempo, foi permeado por mudanças que, na verdade, correspondem às transformações de cunho social e econômicas. Em termos gerais, o conceito de colônia é dividido, embora passível de questionamento e flexibilização, em quatros momentos da história brasileira: primeiramente, de 1530 até 1822; num segundo momento, de 1822 a 1850; depois de 1850 até 1889 e, por último, de 1889 a 1914. Para nosso estudo, o período de 1530 até 1822 (mais especificamente, a chegada da família da Real em 1808) é, além de importante, o ponto privilegiado de nossa análise. Para as autoras, o conceito de colônia pode ser pensado, em suma, através da contribuição de alguns historiadores que, ao analisarem esse período em suas investigações, elaboraram, com efeito, um aporte teórico-metodológico capaz de fornecer integibilidade ao processo de colonização e toda a engrenagem organizada por Portugal. Assim, antes de 1822, segundo essa concepção historiográfica, o termo Colônia refere-se, exclusivamente, ao Brasil e a relação estabelecida com a Metrópole (Portugal). Nesse sentido, a colônia é, então, submetida a Coroa portuguesa de caráter centralizador e a criação de órgãos de exploração e extração de riquezas. A produção agrícola e a escravidão tornaram-se imprescindíveis para manter o funcionamento da colônia. A partir disso, o chamado sistema colonial tem como base a submissão, por completo, da colônia aos interesses (meramente econômicos) da metrópole. O Império português, nesse sentido, é o centro administrativo responsável, não somente por manter a colônia, mas, sobretudo, a razão para a existência da colônia. A função da colônia é, simplesmente, de uma economia completar, por isso, sujeita ao poder centralizador de sua metrópole. Tanto Novais, como Alfredo Bosi são unânimes em afirmar, ademais que a colônia é “[...] parte de um binômio, não podendo existir sem a Metrópole” (GIRO; BERGAMASCH, 1996, p. 15). Percebe-se, nesse contexto, que entre a Metrópole e a Colônia estabeleceram, em comum acordo, o ‘pacto colonial’, ou seja, o mecanismo usado pela Coroa portuguesa com o fulcro de favorecê-la economicamente e, por consequência, deixar a Colônia dependente. Assim, a relação entre os dois mundos configura-se em dois planos: um centro que decide (metrópole) e, por outro lado, o outro que obedece (colônia). Para Bosi (1993, p. 26), o conceito de colônia refere-se, etimologicamente, a ideia “Colo significou na língua de Roma, eu moro, eu ocupo a terra e, por 4 16 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul fundamentada no comércio e na escravidão e discutindo, nesse contexto, o estudo de elites coloniais5 como uma forma de compreender – para além de uma visão externalista e/ou econômica – o Brasil a partir da expansão portuguesa. Acrescentou, grosso modo, que nos domínios ultramarinos desenvolveram práticas administrativas e sociais complexas, pois, a conquista ultramarina abriu um campo extenso de prestação de serviços à coroa, o que, por sua vez, criou com a remuneração desses serviços uma nobreza da terra, ou seja, sem dignidades ou hereditária, mas, de superfície fluída e volátil. Portanto, se no debate historiográfico do Brasil Colônia surgiram obras que, de certa forma, elaboraram uma dicotomização entre a relação Brasil e Portugal (com frequência, Portugal era tido como a metrópole desenvolvida em discrepância do Brasil Colônia dependente em todos os sentidos)6, por outro lado, e mais atualmente, os historiados7 que estudam com afinco e profundidade o período colonial, demonstram que nos domínios ultramarinos desenvolveram, por sua vez, práticas administrativas complexas e, nem sempre a estrutura social aqui implantada seguiu, de fato , as mesmas formas. Acrescenta que, Nos últimos anos, a historiografia sobre a América lusa – em estreito diálogo com a historiográfica portuguesa sobre a sociedade de Antigo extensão, eu trabalho, eu cultivo o campo [...]. Colo é matriz de colônia enquanto espaço que está ocupando, terra ou povo que se pode trabalhar e sujeita”. 5 Para tanto, considera-se que “Essa ampliação na perspectiva das análises históricas é bastante importante em termos historiográficos. Elas significam, em primeiro lugar, que a análise das relações de poder no universo colonial ultrapassou a visão liberal que impunha uma avaliação depreciativa do que então era nomeado como “ineficiência”, “desgoverno” e “caos administrativo”. Na tentativa de compreender a lógica da distribuição e da concorrência entre os diversos poderes na metrópole e nas áreas coloniais, temas clássicos como a administração colonial, que antes apareciam secundariamente em obras de caráter geral, ganharam historicidade e passaram a ser examinados em conjunturas específicas e na relação com as dinâmicas imperiais (...). Em segundo lugar, mas simultaneamente, a dualidade Brasil-Portugal, que havia presidido boa parte de nossa produção historiográfica, pôde ganhar outras dimensões e conectar-se a outras regiões do Império. As trocas atlânticas passaram a ser compreendidas também a partir de suas conexões com os mercados asiáticos, e os mecanismos do poder podiam ser agora estudados na sua dimensão imperial. Em vários sentidos, não se trata mais de pressupor uma separação irredutível entre Portugal e o Brasil, nem de considerar uma “realidade” colonial que, desde o início, como uma semente a germinar, se contrapunha ao domínio metropolitano”. (LARA, 2005, p.32-33). 6 Na historiografia brasileira destacam-se, de fato, duas obras fundamentais que influenciaram e, ao mesmo tempo serviram, certamente, como base explicativa para o Brasil Colonial (sobretudo a explicação para o fenômeno classificado de ‘crise do sistema colonial’): Padro (1977), em Formação do Brasil Contemporâneo e, do mesmo modo, a obra de Novais (1979) em Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (17771808). 7 Para um entendimento do Brasil Colônia a partir da perspectiva dos domínios ultramarinos ver, por exemplo, as seguintes obras:, Bicalho (2005), Fragoso (2007, 2000, 1998), Hespanha (1994), , Olival (2001) e Mello ( 2000). 17 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Regime – tem dado grande destaque às discussões acerca das elites coloniais. Em meio a estes estudos sobre as elites, um dos problemas bastante discutido diz respeito ao emprego do conceito de nobreza para as elites coloniais. Nos estudos sobre a nobreza no reino, coloca-se em meio às discussões uma questão, que diz respeito ao grande alargamento que o conceito de nobreza passa a sofrer ao longo do tempo (sobretudo a partir do século XV), o que fez com que, em certa medida, tal conceito não se configurasse exatamente como um circuito de classificação social tão restrito no reino lusitano, se for visto níveis comparativos com seu emprego em outros Estados modernos como o espanhol e o francês. Deixando de ser um atributo diretamente ligado ao desempenho de uma função (no caso militar, ligado ao contexto de constituição do reino, e formação do Estado Nacional) – o conceito de nobreza, a partir do século XV, passa a ser, antes de tudo, um designativo de qualidade daquele que o detinha. (NOGUEIRA, 2008, p. 5). Nesse sentido, ao estudar o Brasil no período da expansão portuguesa e o processo de colonização de outras áreas ultramarinas, é fundamental constatar que a estrutura social criada na América portuguesa não foi, de maneira exata, uma cópia fiel do modelo hierárquico e econômico de Portugal. Por conseguinte, encontramos a coexistência de aspectos similares e discrepantes, mas que, sem dúvida, constituíram como estruturantes da sociedade colonial resultando, segundo Jancsó (2000), na conjugação simultânea de aspectos ‘replicantes e desviantes’. O termo ‘nobreza da terra’8 no Brasil Colonial é seguido, evidentemente, de variações 8 No estudo sobre as elites coloniais e a nobreza da terra, a historiadora Bicalho assinala, de maneira esclarecedora, que “Há historiadores que afirmam que a designação qualidade nobreza da terra só pode ser usada ao nos referirmos à açucarocracia pernambucana. Alguns argumentam que, de toda a América portuguesa, só tem Pernambuco colonial o termo nobreza da terra aparece na documentação. Daí ser legitima a utilização do termo no que concerne às demais capitanias da América portuguesa. O termo, no entanto, aparece em diferentes fontes da época . Só a título de exemplo, na carta 5º das Cartas Chilenas, de autoria de Thomas Antónia Gonzaga, lemos entre os versos 201 e 205. Acaba-se a função e o nosso chefe / à casa, com bispo recolhe/ A 18 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul semânticas e , portanto, de caráter polissêmico – em alguns casos esse termo é polêmico. Para ter uma ideia concreta do conceito e não utilizá-lo inadequadamente, seguem-se, em geral e atualmente, três perspectivas de interpretação nomeadamente no período colonial. No Nordeste, e, principalmente, a região do Pernambuco, o historiador Mello (2008, 1995, 1989) caracteriza a nobreza da terra a partir de três aspectos: uso orgânico da palavra, discurso genealógico e, por último, um imaginário nativista. Ao utilizar o termo nobreza da terra, pretende-se, garante o respectivo historiador, alagar tal conceito para outras camadas da sociedade – além dos indivíduos do Reino – mas, acima de tudo, os descendentes (filhos e netos) que participaram da luta contra os holandeses. Em contraposição a Pernambuco, nos últimos anos e em decorrência dos estudos para a região do Rio de Janeiro, o historiador Fragoso ( 2007, 2000, 1998) concebe a nobreza da terra, dentre outras coisas, pela noção de ‘elites locais’, poder municipal, origem de um oficial ou régio, concessão de mercês, cargos administrativos, etc. No entanto, o ponto de fundador – historicamente e socialmente – é, para Fragoso (1998), o ‘ideário da conquista’,resultado, afinal, da luta contra os franceses e tamoios em 1566 e 1620. Dentro da ampla produção historiográfica sobre a nobreza da terra, as regiões do Nordeste e Rio de Janeiro são, até o presente momento, o epicentro e, em certa medida, o nobreza da terra os acompanha / Até que montam a dourada sege). No entanto, o que se pretende aqui não é discutir se o termo encontra-se ou não documentação e, sim a construção a partir de certos atributos das elites coloniais de diferentes capitanias.” (BICALHO, 2005a, p. 24). Diante dessa constatação e de acordo com Koselleck (2006), considera-se que a formulação de conceitos no conhecimento histórico corresponde, em linhas gerais, a dois níveis: com expressões de uma época que são transmitidas em documentos (oficiais ou não) para refletir sobre si própria que, mais adiante, o historiador utilizar-se-á como recurso heurístico de acesso ao passado e, segundamente, os conceitos e categorias criadas pela comunidade científica ou, mais precisamente, pelo saber historiográfico. Desse modo, podemos inferir que o conceito de ‘nobreza da terra’circula, ademais, nos dois níveis, mas de acordo com a região (no caso de Pernambuco) e o período histórico, como também, pela formulação dos historiadores no presente, com o objetivo de acessar o passado (mesmo que tais formulações não encontrem existência nas fontes). Assim, com relação aos conceitos, podemos inferir, em última análise, que “Quando o historiador mergulha no passado, ultrapassando suas próprias vivencias e recordação, conduzidos por perguntas, mas também por desejos e inquietações, ele se confronta primeiramente com vestígios que se conservaram até hoje, e que em maior ou menor número chegaram até nós. Ao transformar esses vestígios em fontes que dão testemunho da história que deseja apreender, o historiador sempre se movimenta em dois planos. Ou ele analisa fatos que já foram anteriormente articulados na linguagem ou então, com a ajuda de hipóteses e métodos, reconstrói fatos que ainda não chegaram a ser articulados, mas que ele revela a partir desses vestígios. No primeiro, os conceitos tradicionais da linguagem das fontes servem-lhe de acesso heurístico para compreender a realidade passada. No segundo, o historiador serve-se de conceitos formados e definidos posteriormente, isto é, de categorias científicas que ‘são empregados sem que sua existência nas fontes possa ser provadas.” (KOSELLECK, 2006, p. 305 ). 19 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul ponto privilegiado e configurador das análises. No entanto, nos últimos anos, os trabalhos de historiadores para a região de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás ganham, paulatinamente, uma contribuição significativa. Para Minas Gerais, a tese de doutoramento na Universidade de Brasília da Stumpf (2009) é, em linhas gerais, a tentativa de entender a nobreza na sociedade mineira pela solicitação de mercês régias e hábito das ordens militares. Afirmar que A renovação historiográfica sobre as formas de integração das diferentes partes da América na monarquia portuguesa trouxe novas perspectivas analíticas acerca das elites coloniais, em particular no que se refere às suas esferas de atuação e às estratégias percorridas para a consolidação do seu prestígio local. O pressuposto de que as relações entre o centro político e os domínios ultramarinos pautaram-se também pela negociação tem contribuído para que alternativas de engrandecimento social específicas do contexto americano passassem a dividir a atenção dos historiadores com aquelas que percorriam as vias oficiais. Não surpreende, portanto, a ênfase dada ao impacto gerado pelo sistema de doação de mercês régias na consolidação das hierarquias sociais na América e a sua importância na formação de uma nobreza reconhecida jurídica e oficialmente, tema que nos interessa em particular. Não se trata de analisar esta conquista como um imenso Portugal, mas de considerar que seus habitantes também acolheram os critérios hierárquicos trazidos pelos colonizadores [...]. A recente historiografia brasileira tem atentado para isso e, não obstante as pesquisas versem sobre territórios específicos que compunham a América, elas permitem concluir que em todos os cantos desta conquista estratégias de afirmação social se repetiam, embora ganhassem relevâncias distintas a depender das realidades locais (STUMPF, 2009, p. 119-121). 20 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul É necessário pontuar, nesse quadro historiográfico, que a nobreza da terra foi caracteriza, quase sempre, como os ‘senhores de engenho e dono de escravos’ (especialmente na região de Pernambuco), o que, por sua vez, remete a associação da nobreza da terra com dois aspectos: poder e riqueza. Segundo Silva (2005), a riqueza, para muitos historiadores, constitui um dos aspectos latentes da nobreza. Porém, a nobreza no período moderno e, de igual modo, mas num contexto histórico diferente, nos domínios ultramarinos no Brasil, foi-se abrindo paulatinamente. Por consequência, admite-se que nem sempre riqueza e nobreza estavam relacionadas, uma vez que o fundamental, no período moderno, eram as ações dos indivíduos e não seu poder material. A dificuldade de entender o termo nobreza da terra ou, mais exatamente, a dinâmica que envolvia o enobrecimento de certo indivíduos recai, em linhas gerais, no fato que, Veja-se assim que a historiografia ao utilizar conceitos generalizantes para denominar os grupos que possuíam hegemonia social, elites ou nobrezas da terra, acaba por minimizar a hierarquia entre as nobrezas e, paradoxalmente, por desconsiderar o que ela própria enfatiza: também na América portuguesa o monarca era a instância máxima de ordenação social e a importância de um indivíduo à escala local era mais acentuada quando se baseava na influência da monarquia na definição e na estruturação dos grupos sociais. Observa-se assim que é justamente porque distintos padrões societários (local e reinol) coexistiam que podemos afirmar que a nobreza colonial era heterogênea, hierarquizada em distintos patamares cujo acesso dependia, fundamentalmente, das estratégias ascensionais percorridas. Se a notoriedade atribuída localmente era uma forma de nobilitação 32, aquela advinda da anuência régia explícita ainda era mais importante, razão pela qual no interior das nobrezas coloniais um grupo se sobressaía por ser portador dos mesmos atributos que definiam as nobrezas civis na monarquia portuguesa em todos os seus quadrantes (STUMPF, 2009, p. 125-126). 21 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Portanto, nesse contexto, o conceito de ‘economia da mercê’ 9é imprescindível para o estudo da nobreza no Brasil. Segundo a perspectiva da autora portuguesa Olival (2001), a economia da mercê éintegrante de uma sociedade de ultramar baseada, não somente em relações escravista e comercial, mas, principalmente, nas ideias e práticas de Antigo Regime. Trata-se, nesse sentido, de uma economia moral de regras não escritas formalmente, mas que, na América portuguesa, resultaram “[...] numa série de compromissos com as elites locais e com concepções enraizadas de uma distribuição adequada [...]” (MENDES, 2010, p. 11). Essa abordagem ressalta – oriunda, em grande parte, da contribuição de autores portugueses, como Olival (2001) e Hespanha (1993, 1994, 2009) e, sobretudo, Monteiro (2011, 2007 e 1988) – que, no caso ibérico, o paradigma jurisdicional do século XVI a XVIII (viés corporativo da sociedade) conferia a figura do monarca seu papel no corpo social e político de manter a ordem em Portugal e nos domínios ultramarinos através da concessão de privilégios (economia da mercê) aos serviços prestados (ou seja, dar a cada um o que é seu). De modo geral, constata-se que “A economia da mercê era relevante não só para os reinóis que habitavam as diversas colônias que compunham o império português, mas também para os nativos e até mesmo indígenas (...)”. (FERREIRA, 2012, p. 7). Segundo Olival (2001, p. 25), no período moderno, a remuneração dos serviços prestados à Coroa representou, ademais, as reverberação de ideias do Antigo Regime, pois “(...) liberalidade, o gesto de dar era considerado, na cultura política do Antigo Regime, como virtude própria dos reis, quer em Portugal, quer no resto da Europa Ocidental”10. Assim, o estudo da nobreza concentra-se, ademais, na redefinição do próprio conceito na América portuguesa e, portanto, seguido de um atrativo (além do ouro e a sociabilidade Para tanto, o autor brasileiro, Fragoso (2007) utiliza-se o ‘conceito de economia do bem comum’ e, em paralelo, o autor português, Hespanha (2009) aventa o termo ‘graça’, ou ‘economia da graça’, assim, “O autor trabalhou [Fragoso] com o conceito do bem comum, para demonstrar que a velha prática de conceder mercês também foi estendida aos domínios ultramarinos portugueses, nos quais o rei concedia cargos, honras e privilégios àqueles que lhes prestassem serviço algum tipo de serviço, conferindo-lhe vantagens econômicas e prestígio social [...]. António Manuel Hespanha demonstrou-nos um conceito central [...]. Tal conceito era o de graça, característico da tradição jurídica européia medieval. Graças está relacionado ao ato de dar (liberalidade régia) e de gratidão ao rei, que tinha como dever com uma recompensa [...]” (FERREIRA, 2012, p. 7). 10 A chamada liberalidade régia formulada, então, desde Aristóteles, porém ressignificada constantemente foi onipresente na cultura cristã e, especialmente, nos domínios ultramarinos. 9 22 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul religiosa) de ascensão social – ou, mais especificamente e socialmente, da nobilitação pelos serviços prestados. Por conseguinte, o que foi definido por Caio Padro Júnior como sentido dacolonização no livro Formação do Brasil Contemporâneo (1977) implica dizer – mas numa lógica diferenciada que preconiza não somente o caráter meramente econômico/comercial e escravista – o projeto de colonização da América Portuguesa abriu, então, um campo incomensurável de prestações de serviços que, ao serem executados, permitiu o estabelecimento de nobres – acompanhando, por sua vez, de privilégios nobilitantes. Ao se verificar essa dinâmica de nobilitação podemos inferir que a nobreza da terra possuiu características bastante específicas. Em contraposição ao que predominava em Portugal – a dita “nobreza de sangue” – nos domínios ultramarinos a nobreza da terrafoi, ademais, se fixando paulatinamente em consonância com o desenvolvimento também gradual da sociedade. Observa-se que a riqueza e, mais raramente, o poder dos indivíduos não puderam conferir a tais indivíduos o tratamento de nobre. Segundo Silva (2005), é interessante perceber que, se tratando da nobreza da terra é, Um dos temas preferidos da historiografia do Brasil colonial é a relação entre riqueza e poder, convencionando-se chamar ‘nobreza da terra’ aqueles que, por oposição ao grupo mercantil, assentavam nas sesmarias recebidas, destinadas a engenhos ou fazendas de criatório, e no número de escravos possuídos os esteios de seu prestígio social [...] nobreza e fortuna nem sempre se conjugaram no Brasil colonial, muito embora a riqueza de alguns indivíduos lhes tenham permitido o ‘tratamento’ nobre, ou seja, viverem à lei da nobreza. Mas, se eles efetivamente foram nobres, de acordo com o código honorífico da época, é porque conseguiram formalizar as honras por meios vários: foros de fidalgo da Casa Real, hábitos das ordens militares, instituições de morgados (mas não de capelas, insuficientes para tal fim), ocupações dos cargos camarários ou dos postos da oficialidade das ordenanças. O tratamento nobre só por si não chegava para fazer um 23 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul nobre; era preciso algo mais, um enquadramento nas graças honoríficas existentes (SILVA, 2005, p. 131-132). Além disso, a autora pontua que (...) nobreza e riqueza não eram sinônimos na sociedade colonial. Podia haver indivíduos de condição nobre sem grandes meios de fortuna e conservando apenas aqueles mínimos sinais exteriores de nobreza (cavalo, armas, criados) para não serem socialmente desclassificados, e indivíduos de fortunas avantajadas sem cargos, postos ou honras que os elevassem acima dos plebeus (SILVA, 2005, p. 256). Desse modo, o fato de relacionar nobreza da terra com poder e riqueza, levou, segundo a respectiva autora, identificar a nobreza da terra, unicamente, com senhores de engenho e dono de escravos e terras. Entretanto, a nobreza da terra pode, de fato, apresentar certas características exteriores (como o próprio poder e dinheiro), mas, a um só momento, possuiu outras evidências profícuas (quer simbólica e/ou o poder de atuação nos principais órgãos da administração ultramarina, por exemplo, na câmara). Conclusão Ao realizar um pormenorizado estudo sobre a nobreza no Brasil Colonial, Silva (2005) concluiu que estudar a nobreza, independente de qual período e lugar, é uma tarefa difícil de pensar e, acima de tudo, de escrevê-la. Para além de uma análise quantitativa, baseada em dados altamente estatísticos e genealógicos de famílias, a preocupação é analisar – e, sobremaneira, problematizar – a redefinição do estatuto de nobre na América portuguesa. Desse modo, pode-se constatar que, em cada capitania da América portuguesa – que, à primeira vista, parece ser um grupo social fechado e, portanto, destinado somente aos grandes e detentores de prestígio social – se desvanece e assume outras evidências. Ao estudá-la, 24 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul notamos, de maneira mais elementar, que nem sempre riqueza e poder estiveram entrelaçadas ao estatuto de nobre. Referências Bibliográficas Arquivo Histórico Ultramarino-AHU-Goiás. Códices avulsos de Goiás. Caixa 04, Lisboa, 1778. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. BICALHO, M. F. B. Conquista, mercês e poder local: a nobreza da terra e a cultura política do antigo regime. Revista Almanack Braziliense, v. 7 , n. 2, p. 21-34, 2005. FERREIRA, J. M. 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(Grande Sertão Veredas, Guimarães Rosa) Os primeiros registros do culto ao Espírito Santo dão datados do século XII em Portugal quando a Rainha D. Isabel cria a Igreja do Espírito Santo em Alenquer. De início era uma festa de pequenas proporções, quando em gestos de caridade a população distribuía esmolas aos pobres, somente mais tarde no século XVII que a festa ganha maior notoriedade (CARVALHO, 2008). Apesar das inúmeras e conhecidas contradições sobre a criação da festa do Divino, a mesma se espalhou pelo Brasil e está presente em quase todas as regiões, principalmente em cidades do interior como é o caso de Pirenópolis – GO onde a celebração é tida como a Festa 11 Fomento: PrP/UEG por meio do Projeto de Pesquisa: Pesquisa Girando Folia: apontamentos turísticos e gastronômicos em um das devoções ao Divino Espírito Santo – Pirenópolis/Goiás, do qual é bolsista PVIC/UEG. Integrante do Grupo de Pesquisa Saberes e Sabores Goianos. Orientador: João Guilherme Curado. 27 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul do Divino com maior significância para o Brasil, sendo por isso registrada em 2010 como Patrimônio Cultural do Brasil, pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan). O Divino Espírito Santo em Pirenópolis Pirenópolis fundada em 1727, ainda nos dias atuais mantém viva parte significativa das tradições ali implantadas há quase três séculos pelos colonizadores portugueses. Dentre estas manifestações destacamos as Folias presentes na cidade por quase dois séculos e realizadas a cada ano em homenagem ao Divino Espírito Santo por ocasião de Pentecostes, quando ocorre “a descida do céu do Espírito Santo, em forma de línguas de fogo, sob os apóstolos de Jesus, transmitindo-lhes sabedoria e força, de modo que eles, homens simples, passaram a pregar o Evangelho em várias línguas” (Atos dos Apóstolos, capítulo 2, 1-13). Enquanto no Velho Testamento, Pentecostes era considerada uma festa judaica referente à colheita do trigo (Chawuot), celebrando sua maturação e também a colheita deste cereal sete domingos ou cinquenta dias após a Páscoa, com oferendas e sacrifícios, compondo uma grande festa, conforme observou Veiga (2002). A festa teve o seu primeiro registro em 1819, sendo promovida pelo Coronel Joaquim da Costa Teixeira, consagrado como Imperador do Divino. Ao Imperador cabe a responsabilidade de promover e cuidar para que tudo se realize com ordem, incentivando, angariando fundos e mobilizando a população nos afazeres da festa. O prestígio social e político do Imperador é tão grande que, naqueles tempos, possuía inquestionável autoridade, a ponto de libertar da cadeia presos políticos, o que realmente era feito (VEIGA, 2002). Poucos anos após, em maio de 1826, o Festeiro, como também é chamado o Imperador do Divino Espírito Santo em Pirenópolis, Padre Manuel Amâncio da Luz, introduziu as Cavalhadas e mandou confeccionar uma coroa de pura prata, a Coroa do Divino, oferecendo-a à Igreja Matriz. Distribuiu, de casa em casa, pãezinhos e alfenins, docinhos feitos de açúcar puro chamados de Verônicas, à população, o que foi de bom grado, tanto que virou tradição e até hoje se distribui, além destes, salgadinhos e refrigerantes. 28 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul A cada ano, para cada festa, um novo Imperador é eleito, por sorteio (BRANDÃO, 1978). Segundo a tradição qualquer cidadão, sendo de qualquer idade ou classe social pode se candidatar ao encargo de Imperador (SILVA, 2001). Mas hoje, devido aos interesses de autopromoção política e ao fato de boa parte da população não ser mais católica, o sorteio é restringido aos integrantes da Irmandade do Santíssimo Sacramento. O sorteio é realizado na presença de todos no Domingo de Pentecostes, o Domingo do Divino. O Imperador do Divino retrata, com toda sua simbologia, o Rei, a Rainha e a Corte portuguesa, destacados por portarem a Coroa, o Cetro e pelas meninas virgens vestidas de branco que os antecedem na Procissão do Divino, onde com toda pompa, caminham pelas ruas da cidade, circundados por quatro varas sustentadas por quatro virgens, seguidos pela Banda de Música à frente dos partícipes. Folias: Um universo popular de saberes e fazeres As Folias foram trazidas ao Brasil pelos padres jesuítas e serviram como um instrumento na catequização dos índios e, posteriormente, dos negros escravos. Existentes até hoje as folias celebram diversos santos em todas as regiões do país. Na cidade de Pirenópolis as Folias que celebram o Divino Espírito Santo foram criadas a quase dois séculos e visavam a integração da área urbana com a rural por meio da passagem das bandeiras do Divino. Assim os devotos se reuniam e se locomoviam a cavalo até as localidades em que ocorriam as paradas da Folia, conhecidas como “pousos de folia” e ali pernoitavam, recebiam alimentação e entoavam cantos e dançavam até o horário da partida. As Folias em louvor ao Divino Espírito Santo antecedem as tradicionais Cavalhadas (encenação de batalha entre Mouros e Cristãos) que acontecem 45 dias após a Páscoa. As Folias do Divino em Pirenópolis, atualmente, são compostas por três grupos distintos: os que participam da Folia da Zona Rural (Folia Tradicional); a Folia da Renovação Cristã (denominada como Folia do padre e que também percorre a Zona Rural) e Folia da Rua, que gira pelos bairros da cidade. O que difere as Folias: Tradicional e Renovação Cristã (SIQUEIRA, 2013), que giram pela área rural é que na primeira permiti-se a venda de bebidas alcoólicas e possui tendas de 29 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul som; enquanto na segunda é celebrada uma missa a cada pouso e o público presente é mais religioso. Já a Folia da Rua é bastante semelhante com a Folia Tradicional, só que o giro dos foliões acontece pelos bairros da cidade e a pé. Tradicionalmente acontecem nove pousos durante a Folia, sendo que o giro é feito em 360º; reza a tradição que se a sequência de pousos não for feita obedecendo à circularidade alguns dos integrantes vem a falecer durante ou logo após o giro. Na zona rural as pessoas participam dos deslocamentos da Folia em sua maioria montadas a cavalos e acampam nas fazendas girando em todos os pousos. Outras utilizam veículos e participam por um determinado horário e depois retornam à cidade, estes são considerados como “cata pousos”; na Folia da Rua o giro é feito a pé. Os foliões portam bandeiras do Divino Espírito Santo que são altamente veneradas pelos fiéis. Os cantos rituais acontecem de acordo com cada momento: ao chegar cantam pedindo permissão para adentrar a propriedade onde está preparado um arco que simboliza a delimitação do espaço sagrado e profano (ao passar pelo arco os foliões deixam a terra e vislumbram o céu); mais tarde os cantos são utilizados para oferecem o jantar e logo em seguida à refeição em conjunto, os foliões agradecem a mesa cantando. A música embala ainda quando os foliões dançam catira, fazem alvorada com tambores na madrugada antes de tomar café, quando ofertam o almoço e fazem o agradecimento da mesa, e agradecem a família que os acolheu e lhes ofereceu pouso e alimentação. Estes últimos momentos consistem no enceramento daquele pouso, e acontece antes de prosseguir para o próximo destino. As casas que abrigam os pousos de Folia costumam ser decoradas com bandeirolas e cartazes. Há a necessidade de se providenciar altares que são enfeitados para receberem as Bandeiras que ali pernoitarão. Próximo às cozinhas são montadas tendas de palha ou de lona onde são colocadas as várias refeições servidas aos foliões durante o pouso. As tendas montadas ao lado de fora fazem alusão a arquitetura das casas-grandes onde habitavam os portugueses no Brasil Colônia que possuíam uma cozinha suja na parte externa onde ficavam os fogões, despensas etc., e onde se preparavam comidas mais pesadas e que gerassem sujeira, sendo que as 30 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul cozinheiras eram as índias e escravas, deixando a cozinha interna para os doces e comidas mais delicadas que produzissem menos bagunça e que eram feitos pelas mãos das portuguesas. No contexto gastronômico entre as senhoras português, índias e escravas criouse a grande e rica miscigenação alimentar brasileira, com contribuições riquíssimas advindas desse trio. Para as cantorias são utilizados: violões, sanfonas, pandeiros, chocalhos, instrumentos comumente utilizados também nas folias de Reis de Portugal e em diversas outras folias Brasil afora. As famílias vizinhas ajudam com doações de alimentos para as refeições, e na preparação de quitandas e de doces que serão servidas. Autoridades e policiais marcam presença na tentativa de garantir a segurança dos foliões e dos cata pousos (pessoas que não costumam perder as festividades da Folia) que chegam a ser milhares dependo do local em que é realizado o pouso. Dádivas: O elo entre Deus e o Homem e o banquete para celebrar o Espírito Santo Em pesquisas anteriores, abordamos as relações alimentos com a Festa do Divino, principalmente com as comidas de pousos (FERREIRA; OLIVEIRA, 2013). Assim como a fartura que se põe a mesa durante as Folias (CURADO; FERREIRA; OLIVEIRA, 2014), que são elementos que por meio das inúmeras refeições servidas durante os pousos, possibilitam a manutenção de elos entre o terreno e o celeste. As celebrações presentes na Folia permitem, de certa maneira, renovar os laços dos foliões com seus ancestrais que realizavam no passado esses mesmos rituais. As Folias do Divino Espírito Santo em Pirenópolis possui a capacidade de agregar crianças, jovens, adultos e idosos, atualmente mulheres também vêm participando da maioria das etapas ritualísticas. As cozinheiras em quase todos os pousos são devotas e doam trabalho por devoção ao Divino. As comunidades próximas se unem para ajudar o dono da casa na realização por ocasião da promoção do pouso de folia. Concordamos que as Folias do Divino que acontecem em Pirenópolis podem ser consideradas como festas reveladoras da forma singular e eclética adquirida pelo catolicismo 31 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul no Brasil, um catolicismo pragmático, tolerante, pouco dogmático de grande proximidade entre o devoto e a santidade o que lhes autoriza uma relação íntima e pessoal (VEIGA, 2002). Na Festa do Divino se realizam grandes distribuições e compartilhamento de alimentos para celebrar a fartura e as bênçãos, como retrata Veiga (2008) ao explicar que quando as folias percorrem grandes distâncias a cavalo em um circuito de fazendas pela zona rural de Pirenópolis (folia da roça) ou seguem a pé pelas casas da periferia da cidade (folia da cidade). Os donos da casa, na posição de anfitriões e muitas vezes cumprindo promessa recebem tanto os devotos foliões, que giram com a bandeira e dormem de modo improvisado, quanto os cata-pousos, que formam o grande público que vai às fazendas para festar, voltando à cidade a cada noite. Fé e diversão se conjugam no mesmo ritual, em que a fartura alimentar é notavelmente um dos principais atributos (p. 04). Os cardápios variam de acordo com a condição de cada anfitrião e com a quantidade de alimentos conseguidos, porém, o caldo de mandioca com carne está sempre presente, tornando-se prato quase que obrigatório. A comida preparada e servida durante um pouso de Folia do Divino Espírito Santo tem várias funções simbólicas, desde alimentar a quem tem fome de alimentos como também pode ser compreendida como uma comunhão entre o homem e Deus, por meio da reciprocidade da dádiva. Considerações Finais A tradição ao Divino traduz-se na fé de um povo, que recebeu a festa como herança de seus colonizadores e a adaptou de acordo com suas possibilidades e necessidades, cuidando de cada detalhe de tal forma que quase 200 anos após sua criação continua a cativar crianças, jovens, adultos e idosos, assim como pessoas de todos os lugares, causando lágrimas e emoções ao som do Hino do Divino. 32 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Vinde, Ó Espírito Divino Consolador, descei lá do Céu A dar-nos riquezas de Vosso amor. (Música de Antônio da Costa Nascimento) Referências Bibliográficas BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O Divino, o Santo e a Senhora. Rio de Janeiro: Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1978. 163p. CARVALHO, Maria Michol Pinho de. Divino Espírito (re)ligando Portugal/Brasil no imaginário religioso popular. In: VI CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA: Mundos sociais, saberes e Práticas, 2008. CURADO, João Guilherme; FERREIRA, Adolpho Randes Mesquita; OLIVEIRA, Alexandre Francisco. Fartura à mesa: Folia do Divino Espírito Santo em Pirenópolis/GO. In: Anais do II Seminário Sobre Alimentos e Manifestações Culturais Tradicionais I Simpósio Internacional Alimentação e Cultura: aproximando o diálogo entre produção e consumo. Aracajú: Universidade Federal de Sergipe, 2014. ISBN: 978-85-7822-429-5. Disponível em: http://www.grupam.net/news/gt-02-os-alimentos-nas-festas-tradicionais-e-religiosas/ FERREIRA, Adolpho Randes Mesquita; OLIVEIRA, Alexandre Francisco de. Pouso de Folia e suas comidas. In: Anais do VI Simpósio Internacional de História: Cultura e Identidades. Goiânia: UFG, 2013. 1p. ISSN: 2177-4706. SILVA, Mônica Martins da. A festa do Divino: Romanização, patrimônio e tradição em Pirenópolis (1890-1988). Goiânia: Agepel, 2001. 229p. SIQUEIRA, Marcos Antônio de Melo. 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Ano V, jan-jun/2008. p. 135-150. 34 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul OS VÍNCULOS DOS ESCRAVOS COM A TERRA E SENTIMENTOS DE PERTENCIMENTO AO LUGAR (ENGENHO DE SANTANA DOS ILHÉUS, SÉCULOS XVII E XVIII)12 André Mariano Neri13 Introdução Localizava-se em Ilhéus, (território da antiga Capitania de São Jorge dos Ilhéus), região do sul do atual território do Estado da Bahia, um dos engenhos de açúcar mais antigos do Brasil Colonial, o Engenho de Santana que fora criado no século XVI pelo então governador geral Mem de Sá. Após o seu falecimento, em 1572, o empreendimento foi herdado pela sua filha Felipa de Sá que posteriormente se casou com Dom Fernando de Noronha (Conde de Linhares). Em 1618, Felipa morreu e sem herdeiros deixou suas propriedades entre elas o Engenho de Santana para o Colégio de Santo Antão de Lisboa14. Devemos atentar para o fato do Engenho de Santana figurar nos séculos XVII e XVIII, como o único de uma vila deslocada do eixo açucareiro que era o Recôncavo Baiano. Precisamos ainda destacar que a área do Recôncavo constituiu um berço propício à economia açucareira por vários motivos dentre eles: terras férteis entrecortadas de rios e abrigo para navios que faziam o transporte oceânico. A rede hidrográfica proporcionava transporte barato e fácil para a cana das lavouras para o engenho, e o açúcar dos engenhos para o porto de Salvador. Além 12Este trabalho é fruto do projeto de Iniciação Científica intitulado: “Administração jesuítica, relações escravistas e territorialidades no Engenho de Santana dos Ilhéus (séculos XVII e XVIII)”, desenvolvido no Centro de Documentação e História Regional (CEDOC) da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, Bahia, sob a coordenação do Professor Doutor Marcelo Henrique Dias (Departamento de Filosofia e Ciências Humanas – DFCH) financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). 13Graduando do 8º semestre em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). E-mail: [email protected]. 14Instituição de Ensino fundada em Portugal em 1553. Foi o segundo colégio fundado sob a direção dos Jesuítas, o primeiro é o de Messina (Sicília), em 1548, e após o Colégio de Santo Antão de Lisboa, seguiram-se o Real Colégio das Artes em Coimbra, sob a administração dos jesuítas a partir de 1555, e uma universidade em Évora em 1559.Disponível em: <http://www.snpcultura.org/jesuitas_e_investigacao_cientifica_em_portugal_factos_e_enganos.html> Acesso em: 28 jun. 2014. 35 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul da abundância de vias fluviais, o Recôncavo beneficiava-se de bons solos, clima propício e boa taxa pluviométrica. (FERLINI, 1988, p. 159, 160). Enquanto o Engenho de Santana era atípico nesses quesitos. Encontrava-se longe das rodas fluviais e isso acabava aumentando o custo da produção devido à dificuldade de transportar o açúcar produzido até a Bahia (Salvador) para que de lá fosse enviado para a Europa e, ao mesmo tempo, trazer o necessário para o funcionamento do engenho, por exemplo, maquinário, novos escravos, ainda com tantas adversidades conseguiu se consolidar como um grande centro de produção açucareira. Um dos objetivos desta pesquisa foi refletir sobre quais são as especificidades da chamada brecha camponesa ou economia autônoma dos escravos no Engenho de Santana, no período que esteve na administração dos padres da Companhia de Jesus, considerando o que as fontes documentais revelam. Sendo que tal prática consistia na oferta ao escravo de um pedaço de terra e de uma folga semanal para cultivá-lo para sua subsistência, incluindo o direito de vender o excedente ao mercado. Tal investigação serviu também para dialogar com a historiografia que estuda a região onde estava localizado o referido engenho. As conclusões que ora se apresentam foram construídas a partir do confronto cotidiano entre as fontes transcritas e o referencial teóricometodológico que norteou a pesquisa. A partir dessa pesquisa, pode-se concluir que, dentre os mecanismos de barganhas presente no Santana, o mais importante e amplamente praticado consistia na oferta ao escravo de um pedaço de terra e de uma folga semanal para cultivá-lo para a sua subsistência, incluindo o direito de vender o excedente nos mercados locais, gerando renda para os produtores. Além de identificar as práticas dos cativos em relação às experiências afetivas, independentes da legitimação ou não do casamento, o que contribuiu para o fortalecimento dos vínculos com a terra. É preciso salientar, desde já, que há uma escassez de estudos sobre a escravidão negra na capitania de Ilhéus no período colonial15. Mas, esse caso de negligência por parte da 15Sobre a escravidão em Ilhéus, os trabalhos mais conhecidos entre outros são os de Stuart Schwartz sobre o Engenho de Santana (SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos da sociedade colonial 1550 – 1835; Td. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.). João José Reis sobre o Quilombo do Oitizeiro. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (org.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 36 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul bibliografia dedicada à escravidão não é específico dessa região. Daí a importância e necessidade de novas pesquisas. Segundo Silvia Hunold Lara, a partir da década de 1980, a produção historiográfica brasileira dedicada à escravidão dos africanos e seus descendentes passaram por transformações que redimensionaram a abordagem do tema. Os valores e as ações dos escravos foram incorporados como elementos importantes para a compreensão da própria escravidão e de suas transformações (LARA, 2005, p. 25). Todavia, conforme ressalta Lara, a historiografia brasileira mais recente sobre o período colonial tem se voltado para o estudo das camadas dominantes. Cada vez mais conhecemos os modos de governar, os homens bons, o mundo dos letrados e as formas de ler e sentir, os poderes locais, a nobreza e as elites coloniais, mas continuamos a saber pouco sobre a história social dos séculos XVII e XVIII. Assim, propomos discutir as práticas sociais e culturais de um determinado grupo subalterno, até pouco tempo ignorado pela historiografia. Entendemos que há a necessidade de enfatizar as múltiplas formas pelas quais os sujeitos sociais se constituem, relacionam-se, dominam, resistem, reagem, constroem/destroem uma ordem social vigente. Assim, devemos chamar a atenção para o corpo documental que utilizamos nesta pesquisa pois, trata-se de um conjunto de cartas, dos administradores jesuíticos do Engenho de Santana, que escreviam para os seus Superiores em Portugal relatando as dificuldades e o andamento das atividades que estavam sendo realizadas neste lado do Atlântico. Outro tipo de fonte que estamos utilizando são os documentos já publicados que são riquíssimos de informações e que dialogam com o nosso objeto de estudo. Trata-se de trabalhos que há tempos vem sendo utilizados por pesquisadores das mais diversas áreas das ciências humanas. Aqui, iremos elencar apenas uma delas: a obra Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos (1700),do padre jesuíta Jorge Benci, que escreveu com o objetivo de estabelecer certas normas de conduta para os senhores no tratamento dos escravos. Fugindo ao simples arrolamento de regras ideais a serem cumpridas segundo a boa vontade dos senhores, Benci não só discute os fundamentos teológicos e filosóficos de suas 37 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul proposições, como não oculta as dificuldades em se conseguir um relacionamento harmônico entre senhores e escravos. Longe de ser uma condenação do escravismo, o livro de Benci é, antes, a tentativa – hoje sabemos que frustrada – de regular a relação senhor/ escravo (FIGUEIRA; MENDES, 1977). Desse modo, Economia cristã aponta para os deveres recíprocos entre senhores e escravos, pois “assim como o servo está obrigado ao senhor, assim o senhor está obrigado ao servo”. Revisando o Engenho de Santana O elemento decisivo na manufatura do açúcar de toda sociedade colonial foram os escravos. Segundo João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (1996,), “mesmo sobre a ameaça do chicote, o escravo negociava espaços de autonomia com os senhores”. Tal reflexão também é defendida pelo Stuart B. Schwartz: “é quase certo que a existência do direito dos escravos à propriedade e certo grau de autonomia resultassem de uma série constante e mutável de acordos e negociações...” (SCHWARTZ, 2001, p.105). As novas abordagens de estudos apontam que os cativos não se submeteram passivamente aos desmandos senhoriais, a chamada resistência física (fugas, quilombos, revoltas, rebeliões) além da resistência do dia-adia (roubos, desobediência, sabotagens, assassinatos, suicídios, diminuição do ritmo de trabalho, entre outros) demonstra muito bem a participação ativa destes atores sociais durante todo o período escravista. Considerando a flexibilidade e a criatividade das pessoas que resistiram à escravidão e de demonstrar como diversos aspectos de sua vida e de sua cultura foram reações criativas à situação em que viviam, os historiadores das escravaturas americanas vem escrevendo uma nova etnografia das culturas escravas. Os estudos das religiões, artes, famílias e comunidades de escravos, escritos com empatia e convicção, ampliaram e enriqueceram nosso conhecimento acerca da vida no cativeiro. Todavia, como alerta Schwartz, mesmo considerando a flexibilidade do sistema, não se pode negligenciar a condição básica dos cativos, os escravos eram uma força de trabalho, “[...] e os trabalhos forçados prestados a outros orientavam praticamente todos os aspectos da sua situação. Discutir a vida dos 38 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul escravos sem reconhecer essa realidade é um exercício de fantasia etnográfica” (SCWHARTZ, 2001, p. 89). Ao discutir o que venha a ser a “brecha camponesa” ou “economia autônoma dos escravos”, o historiador Ciro Flamarion Cardoso salienta que: Para o escravo a margem de autonomia representada pela possibilidade de dispor de uma autonomia própria era muito importante econômica e psicologicamente. Na consciência social dos senhores de escravos, porém, atribuição de uma parcela de terra e do tempo para cultivá-la era percebida como uma concessão revogável destinada a ligar o escravo à fazenda e evitar a fuga (CARDOSO, 1987, p.59, 60). Para Eduardo Silva, a autonomia escrava era uma forma de manutenção da ordem, como se comprova no fragmento: Um outro mecanismo de controle e manutenção da ordem escravista foi a criação de uma margem de economia própria para o escravo dentro do sistema escravagista. A chamada “brecha camponesa”, ao ceder um pedaço de terra em usufruto e a folga semanal para trabalhála, o senhor aumentava a quantidade de gênero disponível para alimentar a escravaria numerosa, ao mesmo tempo em que fornecia uma válvula de escape para as pressões resultantes da escravidão (SILVA, 1989, p.194). Compreendemos que, no meio rural, a produção própria dos escravos não estava concentrada apenas com o trabalho agrícola. A pesca, a caça, a fiação, a tecelagem, a cestaria, a produção de cerâmica também eram boas opções de renda. Ainda não conseguimos informações se tais práticas, além da produção de alimentos na terra e a pesca, eram atividades realizadas pelos cativos no Santana nas “horas livres”. 39 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Além disso, a adoção de hortas aos escravos pelos senhores acabavam criando certo sentimento de pertencimento por parte dos cativos aquele território, pois “[...] isso os liga à terra pelo amor à propriedade. O escravo que é proprietário não foge nem provoca desordem” (SCHWARTZ, 2001, p.100). Pelo que tudo indica, tal sentimento era comum entre os escravos do Engenho de Santana. Paulo de Assunção, em sua obra Negócios jesuíticos: a administração dos bens divinos, apresenta alguns fragmentos das cartas jesuíticas do Engenho de Santana, nos quais é possível perceber a profunda identidade que os escravos tinham com a terra (ASSUNÇÃO, 2003). Vale chamar atenção para o fato que a maioria dos escravos que constituíam a mão-deobra do Engenho Santana era de negros nascidos da terra (crioulos), o que possibilitava vínculos afetivos entre os cativos, uma vez que desde crianças estes homens e mulheres mantinham relações sejam pela consanguinidade ou não. A separação de um ente querido poderia ocasionar conflitos de toda ordem. Por isso, para entender a dinâmica das relações escravistas no Santana, faz-se necessário compreender tal processo de criolização. Diferentemente de outros engenhos coloniais, a exemplo do Engenho de Sergipe do Conde,16 que estava localizado no Recôncavo Baiano, zona açucareira, as relações entre senhores e escravos tendiam a serem opostas ao Santana. O efetivo repressivo na Vila de Ilhéus era baixo e, consequentemente, alguns escravos faziam a segurança do engenho, principalmente contra os constantes ataques das populações indígenas e até mesmo da própria escravaria. Por isso, precisamos atentar para o fato de que alguns cativos pegavam em armas de fogo, o que demonstra o grau de autonomia que tais negros tinham. Conforme demonstra uma carta datada de 25 de abril de 1738, do padre Antônio Fernandes, administrador do engenho Santana e endereçada ao seu Superior, o padre Gaspar Estevens, na qual pede, entre outras coisas, armas e munições para espantar os gentios: 16“Este engenho situava-se a umas doze léguas da Bahia (Salvador), perto da Vila de São Francisco do Conde, à beira do rio Sergipe, que lhe deu o nome. Fundado pelo governador Mém de Sá, entre 1560 e 1569, foi herdado, no ano de 1572, por sua filha D. Filipa de Sá, casada com o Conde de Linhares. Foi em 1573 que começaram a dar ao engenho o nome de Sergipe do Conde, que veio substituir o nome primitivo de engenho de Sergipe, provavelmente porque, tendo-se incendiado o engenho de Mem de Sá, o Conde de Linhares mandou construir um novo engenho. Quando D.Filipa veio a falecer, em 1618, o engenho de Sergipe do Conde foi parar nas mãos dos jesuítas do Colégio de Santo Antão de Lisboa, por disposição testamentária”.In: ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas; introdução e notas por Andrée Mansuy Diniz Silva. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007 (Documenta Uspiana II), p. 38. 40 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Aqui deu o gentio nas terras do nosso Engo e nos frechou huo escravo, e por milagre de Deos e S. Anna não matou agente toda e a min com ellas q. todos estávamos juntos pujando huo pao, foi necessario mandar hua esquadra de gente atras delles, e agora me valleo mto a pólvora, e balas q. Vossa Reverendíssima me mandou e lhe agradeço mto mto; se Vossa Reverendíssima me pudesse mandar 4, ou 5 espingardas, ainda q. não sejão escolhidas são mto. necessarias, pa os asaltos destes barbaros, e elles tem mto medo de espingardas, nisto fará Vossa Reverendíssima o q. julgar ser convenientes17. Na citação acima há a referência que quando os gentis atacaram as terras do engenho “uma esquadra de gente” foi à procura dos índios, supomos que se trata dos próprios escravos fazendo a proteção do empreendimento jesuítico. Assim, compreendemos que as atuações dos cativos nestas incursões só ocorriam pela ausência de um sistema repressivo capaz de dar conta de tais ações. Além disso, encontramos outras formas de autonomia que os escravos tinham no interior do Santana como, por exemplo, tinham acesso às chaves da casa de purgar e de onde fica armazenado todo o açúcar produzido. Todavia, um dos religiosos que passou pelo engenho criticou bastante essa liberdade que os padres anteriores davam aos negros: Por hultimo peço a Vossa Reverendíssima ordene ao Pe Supor não se fie dos Negros, e não lhes dé tantas comfianças e autoridade, e as has chaves das cazas, do pezo, e de purgar, adonde se guarda todo o asçucar, mel e agoardente as quais os outros Pes Supres sô as fiavão de si e de seus compros q. as não fie dos Negros q. com isto lhe da autoridade e comfianças pa furtarem se quizerem.18 17Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (IANTT), Cartório Jesuítico, maço 69, doc. nº 177. 18Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (IANTT), Cartório Jesuítico, maço 69, doc. nº 175. 41 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Em 12 de junho de 1750, o padre Manoel Carrilho, do Engenho de Sergipe do Conde, escreve ao superior Francisco Guerra, relatando a situação que se encontrava o Engenho de Santana. Em sua análise, os escravos estão muito mal criados e desaforados a ponto de tentarem tirar a vida do feitor com uma espingarda. Além disso, deram duas facadas em um dos religiosos que ali estava. E tudo isso nasce da maneira branda com que o Padre Cortes lida com os cativos, a ponto de ceder facas, facões e espingardas. Sugere ainda que mandasse para o Engenho do Conde os escravos mais arrojados e valentões que lá os amansaria. Em um caso que se sucedeu antes da tentativa de assassinato, tanto do feitor quanto do religioso, o padre Cortes amarrou os escravos para enviá-los ao Sergipe do Conde, mas por petições dos próprios escravos acabou desistindo. Segundo Manoel Carrilho, o Padre Antônio Francisco que passou pelo engenho de Santana mandou19 um desses escravos valentões, e que ele o tornou tão manso que não só ele, mas todos os negros dos Ilhéus pela notícia que este levou se benzem e fogem deste engenho como o diabo foge da cruz. O padre Cortes querendo intimidar, amedrontar os escravos mais revoltosos diz que vai mandá-los para o Conde.20 No terceiro discurso da obra Economia cristã dos senhores no governo dos escravos, Benci aponta as normas corretas para a aplicação dos castigos. Os escravos são “rebeldes e viciosos”, e para mantê-los “domados e disciplinados” os castigos e a disciplina são essenciais. Escreveu Benci: A obrigação dos senhores é dar ao escravo o castigo, para que se não acostume a errar, vendo que seus erros passam sem castigo. Porém porque no castigo dos servos sucede haver muitas faltas, é necessário que saibam os senhores como e quando se hão-de castigar, para que não pequem os mesmo senhores ou por defeito ou por excesso; pois qualquer destes extremos pode ser pecaminoso. [...] Assim como o ginete necessita da espora o jumento do freio, para serem governados; 19Não especifica a data. 20Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (IANTT), Cartório Jesuítico, maço 69, doc. nº 162. 42 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul assim os imprudentes e maus necessitam da vara e do castigo, para que sejam morigerados como devem, e não faltem à sua obrigação (BENCI, 1977, p. 125, 126). Todavia, precisamos salientar que as relações entre senhores e escravos, que ocorriam no interior dos engenhos de Ilhéus não eram as mesmas de outras regiões do Brasil e até mesmo de outras áreas da Bahia, pois é preciso levar em consideração as especificidades locais. As atitudes dos administradores do Santana refletem muito bem o protagonismo que os escravos mantinham naquele contexto do qual estavam inseridos. Tratar os escravos de maneira mais humanizada pode não significar a bondade em si do Padre Cortes, mas consequência das necessidades momentâneas e, principalmente, das pressões que enfrentava por parte da escravaria. Entendemos que a ameaça de transferência dos escravos para outro lugar acabava abalando o psicológico do cativo, uma vez que isto representava deixar para trás suas esposas, filhos, amigos, irmãos, enfim, toda uma vida e, por isso, o administrador utilizava tais meios de tentar acalmar os ânimos dos mais resistentes. Dentre os castigos mais temidos pela escravaria estava o “desterro”, pois significava a perda dos laços familiares. Como muito bem salientou Sidney Chalhoub, “as feridas dos açoites provavelmente cicatrizavam com o tempo; as separações afetivas, ou a constante ameaça de separação, eram as chagas eternamente abertas no cativeiro” (CHALHOUB, 1990, p. 244). A constituição e os laços familiares são fundamentais na análise das relações entre senhores e escravos, principalmente por estarmos trabalhando com um engenho administrado por religiosos. O padre Jorge Benci, ao comentar a respeito do matrimônio entre os cativos, no segundo sermão intitulado: Em que se trata da segunda obrigação dos senhores para com os servos, afirma que: E não devendo os senhores impedir o matrimônio aos servos, também lhes não devem impedir o uso dele depois de casados apartando o marido da mulher e deixando a um em casa, e mandando vender ou viver o outro em partes tão remotas, que não possam fazer vida conjugal. [...] porque apartando os servos casados um do outro, vindes 43 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul a privá-los do bem do matrimônio, no que lhes causais dano mui grave, que a caridade proíbe se faça ao próximo sem urgentíssima causa. [...] E no caso em que determinem que há causa bastante, sendo o marido o que merece este degredo, deveis perguntar à mulher se o quer seguir. E querendo ela acompanhar o marido, vá ela também com ele, e corra a mesma fortuna, que ele correr; e se o não seguir, por razão grave incómodo que nisto haja de padecer, então vá embora a vender só o marido. E sendo a mulher a delinquente, se há-de proceder com o marido do mesmo modo, que acabamos de dizer da mulher (BENCI, 1977, p. 103-105). Autores como Stuart B. Schwartz (1988; 2001) e Paulo de Assunção (2003), afirmam que alguns administradores do Engenho de Santana, a exemplo do Padre Manoel de Figueiredo, que administrou o engenho na primeira metade do século XVIII, de 1704 a 1731, não colocou em prática o estímulo ao casamento entre os cativos; praticamente não eram autorizados. Isso contribuía para uma taxa de natalidade diminuta e, consequentemente, a escassez de mão-de-obra. Entretanto, outros religiosos que administraram o Santana defendiam melhores condições físicas para os escravos e a formação familiar através do matrimônio, assim evitaria os escravos viver em pecado, principalmente por se tratar de uma propriedade religiosa. Todavia, estas informações foram obtidas de uma carta enviada pelo sucessor de Manoel de Figueiredo aos seus superiores. Considero importante ressaltar, que mais do que simples relatórios dando informações financeiras do referido engenho, as correspondências trocadas entre os religiosos que estavam em Ilhéus e seus superiores em Portugal, estão nas entrelinhas marcadas de confissão, confidência e até de intrigas. Por isso, compreendemos que tal fonte é passível de novas interpretações. Talvez o sucessor quisesse desmoralizar o trabalho. Além disso, a ligação do escravo a terra, pelo amor à “propriedade” e à família, configurava um meio eficaz de conter a indisciplina e elevar a moral do cativo (Cf. SCHWARTZ, 1988, p. 329; SCHWARTZ, 2001, p. 100). Os escravos procuravam criar formas sociais e culturais que lhes proporcionasse apoio e consolo, naquele contexto tão 44 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul adverso que viviam. Corroborando com essa perspectiva, nos afirma Robert Slenes que “a família escrava provavelmente ajudou muitos cativos a conservar sua identidade e a lidar eficazmente com as pressões psicológicas da escravidão” (SLENES, 1976, p. 180). Há um caso interessante que ocorreu no engenho de Santana no ano de 1713, que nos permite afirmar que a constituição de núcleos familiares se fazia presente naquela localidade. Há informações de Piratas Franceses atacando à costa da Bahia e, consequentemente, trazendo grandes prejuízos para a região. Em um desses ataques acabaram capturando uma Lanchinha que levava abordo sete negros do engenho de Santana, sendo que três deles eram casados e tinham filhos. Motivo este que levou o padre Manoel de Figueiredo, administrador do engenho, a escrever relatando o acontecido e pedindo ajuda ao Padre Procurador Bento de Oliveira na tentativa de libertação destes escravos, principalmente por serem casados e teremos filhos. Os Piratas Francezes, tem feito grandes extorsões, nesta Costa, e dado grandes perdas; e nós entramos tambem nellas, porque nos apanharao huã Lanchinha, que tinha sahido a pescar, e nos levarão_7_ negros, que nella hião: hum, porem, se lhe botou ao mar de noite, e nadando legoas, chegou a terra; os outros levarão comsigo; e como isto succedeo em janeiro passado, tempo, em que estavaõ tratadas as tregoas, ando tirando huma justificaçaõ, para mandar a Vossa Reverendíssima, para ver se pode fazer, com que se restituão, ainda que naõ sei se se consegurâ; por que elles observaõ pouco este tratado, por que depois delle apregoado, e mostrandolhe o mesmo tratado, nem por isso deixão de fazer varias prezas: mas V.R. faça todo o possivel, neste particular; não somente pello, que tocca â conveniencia deste Engenho; mas tambem à charidade; por que tres delles saõ cazados, e deixaraõcâ molheres, e filhos. Vale ressaltar ainda que a perda de seis cativos de uma só vez era prejudicial para o andamento dos trabalhos no engenho. Como já foi dito anteriormente a localização do 45 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul engenho não permitia que o plantel de escravos fosse renovado constantemente. Outro ponto a ser destacado é o fato de estes escravos terem sido capturados em momento de trabalho. Referências Bibliográficas ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios Jesuíticos: a administração dos bens divinos. São Paulo: Edusp, 2003. CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Escravo ou camponês: o protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 2004. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das ultimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Terra, Trabalho e Poder: O mundo dos engenhos no nordeste colonial. São Paulo: Brasiliense, 1988. LARA, Silvia Hunold. Conectando historiografias: a escravidão africana e o Antigo Regime na América portuguesa. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (Org.). Modos de governar: ideias e práticas políticas no império português- séculos XVI – XIX. São Paulo: Alameda, 2005. MACHADO, Maria Helena P. Toledo. Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a história social da escravidão. Revista Brasileira de História. V.8 n.16, p. 143 -160, março/agosto, 1988. REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Cia das Letras, 1989. REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (org.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1996. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenho e escravos na sociedade colonial, 1550 – 1835. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Cia das Letras, 1988. SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Trad. Jussara Simões. Bauru: Edusc, 2001. SLENES, Robert. Na senzala, uma flor:as esperanças e recordações na formação da família escrava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 46 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Fontes Impressas BENCI, Jorge. Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos (livro brasileiro de 1700) (Estudo preliminar) Pedro de Alcântara Figueira; Claudinei M.M. Mendes. São Paulo: Grijalbo, 1977. 47 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul O LIVRO DOS MORTOS: UMA ANÁLISE SOBRE A PRESENÇA DE OSÍRIS NO CAPÍTULO CLIV Bruna de Oliveira Santos21 Introdução Este artigo possui como principal objetivo analisar Osíris no contexto do capítulo CLIV do Livro dos Mortos. Este capítulo contém as súplicas do falecido para que seu corpo permanecesse preservado, desta forma, acreditava-se que era a esse deus que o morto recorria e se identificava, devido a toda mitologia de caráter ressurreto que envolvia Osíris. Assim, a prática da mumificação se fazia importante para que o corpo permanecesse livre da putrefação. Outros ritos fúnebres se faziam presentes na cultura egípcia e o Livro dos Mortos era utilizado para que o morto conseguisse enfrentar possíveis obstáculos no Mundo Inferior e desta forma pudesse viver eternamente. Para fazer essas observações acerca do deus no Livro dos Mortos, utilizamos duas traduções diferentes desta obra, ambas para o português. A primeira é a publicação de E. A. Wallis Budge, escrita originalmente no inglês e traduzida para o nosso idioma por Octavio Mendes Cajado. A segunda tradução do Livro dos Mortos aqui utilizada é a de Maria Helena Trindade Lopes, que utilizou de certa parte do trabalho de Budge para produzi-la. Origem do Livro dos Mortos O Livro dos Mortos trata-se de um conjunto de fórmulas mágicas que tinham como objetivo livrar o falecido das ameaças que este poderia enfrentar após a morte. Os textos são variados, contendo orações, hinos, prescrições, etc. Quando feito em papiros, era colocado junto com o falecido no sarcófago, no intuito de, se por acaso o morto se esquecesse de alguma fórmula, o mesmo poderia consultar a sua cópia da obra. A cópia mais antiga do Livro 21 Graduanda do curso de Licenciatura em História da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail: [email protected]. 48 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul dos Mortos feita em papiro que se conhece foi a produzida para Nu, “filho do ‘intendente da casa do selo, Amen-hetep, e da dona da casa, Senseneb’”.22 Esse documento foi produzido provavelmente no início da XVIII dinastia. O termo Livro dos Mortos sugere uma denominação já moderna. Segundo Maria Helena Trindade Lopes (1991), foi o egiptólogo alemão Richard Lepsius quem deu este nome a esses conjuntos de textos funerários. De acordo com Budge (1993), o título utilizado atualmente para designar essas obras é insatisfatório, não traduzindo o antigo título egípcio, que significaria “Capítulos do Sair à Luz” (BUDGE, 1993: 13). A origem desses escritos é incerta, provavelmente surgiram ainda no Período Prédinástico, sendo transmitidos de forma oral. A partir das V e VI dinastias passaram a ser escritas nas paredes das câmaras mortuárias das pirâmides. Devido a isso, esses escritos são chamados de Textos das Pirâmides. A religião dos faraós do Antigo Império e de sua corte era solar, portanto, percebemos a importância do deus Rá no culto funerário, pois o falecido ascendia aos céus para juntar-se a esse deus. Vale ressaltar que no Antigo Império apenas a família real e a nobreza desfrutavam desse rito fúnebre. Após o Primeiro Período Intermediário e mais especificamente no Médio Império esses rituais fúnebres passaram a se popularizar, deixando de ser prerrogativa apenas da família real. As camadas mais populares passaram a aderir a tais ritos, portanto, a crença na imortalidade não mais era exclusivamente para os ricos. Tal crença acompanhava a expansão da popularidade de Osíris. Esse deus deixou de ser importante apenas nos rituais de coroação dos reis e passou a adquirir cada vez mais relevância nos ritos funerários, pois Osíris oferecia vida eterna também às pessoas comuns. Durante o Médio Império os textos funerários que antes eram escritos nas paredes das câmaras mortuárias das pirâmides, passaram a ser escritos nos ataúdes, sendo denominados atualmente de Textos dos Ataúdes ou Textos dos Sarcófagos. Mas as compilações que atualmente são chamadas de Livro dos Mortos foram aquelas escritas em papiros a partir da XVIII dinastia, ou seja, já no Novo Império. Segundo Budge, a economia se fez importante para que tais inscrições funerárias passassem a ser escritas em papiros: 22 Budge, E. A. W. O Livro Egípcio dos Mortos. Trad. Octavio Mendes Cajado. 9. ed. São Paulo: Editora Pensamento, 1993, p. 21. 49 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Pirâmides, sarcófagos e esquifes providos de inscrições só deviam ser construídos, por força, para personagens reais e para os grandes e os ricos, mas um rolo de papiro, em comparação com aqueles, era barato, mormente se se empregasse na sua transcrição um escriba comum, ou se um homem fizesse sua própria cópia do Livro dos Mortos. (BUDGE, 1993: 24-25) Ainda de acordo com Budge (1993), seguindo os fatos citados acima sobre as transformações sofridas por esses escritos, as diversas recensões do Livro dos Mortos se deram com o passar dos séculos e com transições de poder entre as dinastias, podendo ser resumidas da seguinte forma: 1 - Recensão Heliopolitana: era a usada na V e VI dinastias, se encontra escrita em hieróglifos nas paredes e câmaras das Pirâmides de Sacara e a que era escrita em hieróglifos cursivos em ataúdes da XI e XII dinastias; 2 - Recensão Tebana23: era a escrita em papiros e pintadas em cofres, em hieróglifos, desde a XVIII até a XXII dinastias e a que era escrita em caracteres hieráticos, em papiros, na XXI e XXII dinastias; 3 - Recensão Saíta: tratou-se da escrita em papiros, ataúdes, etc., em caracteres hieroglíficos, hieráticos e demóticos, durante a XXVI dinastia e as seguintes, muito usada no Período Ptolemaico, essa recensão pode ser considerada a última forma do Livro dos Mortos. Os capítulos do Livro dos Mortos não possuem uma ordem fixa nas Recensões Heliopolitana e Tebana, até mesmo porque os capítulos foram surgindo e sendo agregados com o passar dos séculos. Apenas na Recensão Saíta os capítulos possuem uma ordem relativa (BUDGE, 1993: 28). O Capítulo CLIV é proveniente do Papiro de Nu, sendo, portanto, da XVIII dinastia e da Recensão Tebana da obra. De acordo com as obras consultadas, foi possível percebermos que dois deuses se fazem de extrema importância no Livro dos Mortos: Osíris e Rá. Essas divindades eram 23 Essa recensão é assim denominada devido ao fato de que a maioria dos papiros desta época foram encontrados nas necrópoles de Tebas. 50 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul relacionadas com a eternidade e com a imortalidade e, assim, o falecido tentava se identificar com ambas. Rá era a divindade solar, o morto aspirava subir aos céus para juntar-se a ele. Porém, como já citamos, a popularidade de Osíris expandiu-se a partir do Médio Império e durante o Novo Império. Além disso, Osíris era a divindade relacionada à mumificação e à ressurreição, devido ao fato da lenda de sua morte. Osíris, deus da ressurreição Quando falamos em deuses egípcios, Osíris e sua esposa Ísis24 talvez sejam as duas divindades das quais as pessoas mais se lembram ao ouvirem sobre o assunto. Eram deuses populares no Antigo Egito e posteriormente foram conhecidos também em outras civilizações, como Grécia e Roma (especialmente Ísis). É importante ressaltar aqui sobre a sua trajetória, os mitos que envolvem esse deus. De acordo com Silverman25, antes de Osíris ser associado às divindades funerárias ele estava relacionado com a terra e a vegetação. Anúbis era a divindade relacionada ao mundo inferior, mas gradativamente Osíris ocupou a posição de maior destaque. Os mitos que envolvem este deus nos fazem perceber sua relação com a morte e com a ressurreição. Apesar de existirem variadas versões em torno dos mitos de Osíris, sua narrativa básica se constrói em torno do assassinato do deus por seu irmão invejoso Seth26. Isis encontra o corpo do marido em Biblos e o leva de volta à sua terra. Porém, Seth o descobre e o esquarteja, espalhando os pedaços por todo o Egito. Ísis, representada sempre como a leal esposa, juntamente com Néftis27, novamente vai em busca do marido, recupera as partes de seu corpo (com exceção do falo) e o mumifica. Ajudada por outros deuses e utilizando-se da magia, ela reconstruiu seu membro perdido trazendo Osíris à vida por tempo suficiente para que gerassem um filho: Hórus. Este, ao crescer, luta contra Seth pelo trono do Egito e vence. Osíris não recuperou o seu trono terrestre, porém passou a reinar no Mundo Inferior. “Esse 24 Uma das deusas mais importantes do panteão egípcio, irmã e esposa de Osíris. Personifica a magia, a fidelidade conjugal e a figura da “Grande Mãe”. 25 SILVERMAN, D. P. O Divino e as divindades no Antigo Egito. In: SHAFER, B. E. As religiões no Egito Antigo: deuses, mitos e rituais domésticos. Trad. Luis S. Krausz. São Paulo: Nova Alexandria, 2002, p. 60. 26 Deus irmão de Osíris, é representado como invejoso e assassino do mesmo. 27 Irmã de Ísis e Osíris, também era a deusa irmã/esposa de Seth. 51 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul mito evidentemente estava relacionado à passagem do poder real do Egito: o faraó moribundo era identificado com Osíris e o novo regente era identificado com Hórus” (SILVERMAN, 2002: 61). Por ser uma divindade de caráter funerário, Osíris é um deus de forte presença nos capítulos do Livro dos Mortos. Nestes textos o falecido era sempre identificado com o deus, sendo chamado pelo nome dessa divindade e em seguida pelo seu: “Osíris Ani”, “Osíris Nu”. Nesse contexto, o capítulo CLIV do Livro dos Mortos refere-se a Osíris como deus que não viu a corrupção, ou seja, seu corpo não se deteriorou, mas sim continuou preservado. Um dos maiores temores para o falecido era que seu corpo apodrecesse, pois desta forma não poderia gozar da vida eterna: E o rei, como todos os mais seguidores de Osíris, acreditava que gozaria a vida e a felicidade eternas num corpo perfeitamente constituído porque Osíris vencera a morte, ressurgira dos mortos, e vivia num corpo perfeito em todos os seus membros; além disso, por gerações sem conta, Osíris foi o tipo e o emblema da ressurreição e, fiadas no seu poder de conferir imortalidade ao homem, incontáveis gerações viveram e morreram. (BUDGE, 1993: 32). A mumificação se fazia de fundamental importância na preservação do corpo, por isso, era um dos ritos fúnebres mais relevante. Além disso, Osíris era considerado a primeira múmia. Segundo Ciro Flamarion Cardoso: A mumificação dos cadáveres com o fito de impedir sua putrefação e consequente desaparecimento decorreu da crença em ser preciso manter o corpo para poder garantir a vida eterna; como as estátuas divinas dos templos, a múmia e as efígies do morto se transformavam, de meros objetos inanimados que eram, em receptáculos para o ba28 e 28 Espécie de elemento que permitia a mobilidade do morto e, consequentemente, a passagem de um mundo a outro. 52 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul o ka29 mediante o ritual da ‘abertura da boca’, efetuado no momento de depositar a múmia na tumba e operado também em estátuas e outras imagens do falecido (CARDOSO, 1999: 104-105). Apesar da crença na vida eterna, o egípcio antigo provavelmente encarava a morte como algo terrível, evitando até mencioná-la, segundo Cardoso (1999). Porém, um dos maiores medos dos egípcios, ainda de acordo com este autor, era “o de uma morte – definitiva – dentro da morte” (CARDOSO, 1999: 110). A morte eterna era temida, desta forma, o Livro dos Mortos se fazia importante, pois era uma espécie de “guia”. Através das inúmeras fórmulas, o falecido poderia utilizar-se delas para que pudesse se beneficiar com a eternidade. Nas vinhetas das cópias melhor produzidas, são mostradas cenas do Tribunal de Osíris, composto por ele como principal juiz e outros 42 juízes que o ajudavam no momento do julgamento do morto. Essa passagem do Livro dos Mortos era de extrema importância, pois era o momento da decisão do destino do falecido, a obra, portanto, continha fórmulas para ajudá-lo neste instante. O capítulo CLIV intitula-se: “De como não deixar que pereça o corpo” e inicia com o falecido homenageando Osíris. O morto pede para ser embalsamado, no intuito de que seu corpo não apodreça. A forma como tais petições se repetem nos leva a confirmar o quão importante se fazia que o cadáver permanecesse imperecível, assim como o de Osíris. Esse deus era representado no Livro dos Mortos algumas vezes enfaixado como uma múmia e utilizando emblemas reais, outras vezes vestido de forma comum, sem estar enfaixado.30 Considerações provisórias A forma como Osíris é representado no Livro dos Mortos nos confirma sua relação com a ressurreição no contexto de seus mitos, como primeira múmia e, principalmente, como aquele deus que sofreu a morte, porém conseguiu a vida eterna. Para o antigo egípcio era um deus indispensável ao tratar-se do perecimento do corpo, pois os acontecimentos que envolvem essa divindade são de caráter humano, aproximando o deus de seus súditos no que se refere ao inevitável: a morte. O indivíduo desejava que o seu destino após o falecimento se 29 Elemento relacionado com a vitalidade e saúde moral de um indivíduo. Papiro de Ani e Papiro de Hunefer (Museu Britânico). 30 53 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul assemelhasse com o do deus, pois este conseguiu se livrar daquilo que era mais temido pelos egípcios, ou seja, a morte definitiva dentro da morte. Deste modo, a partir das considerações apresentadas, entendemos a necessidade de uma continuidade mais minuciosa e de alternativas acerca do tema estudado. Outros recortes são necessários para uma melhor reflexão do tema proposto em torno das crenças, da importância de Osíris e da relevância do Livro dos Mortos para os egípcios. Referências Bibliográficas BUDGE, E. A. W. O Livro Egípcio dos Mortos. Trad. Octavio Mendes Cajado. 9. ed. São Paulo: Editora Pensamento, 1993. CARDOSO, C. F. Deuses, Múmias e Ziggurats: uma comparação das religiões antigas do Egito e da Mesopotâmia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. CASTEL, E. 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Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995. 54 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul OS SENHORES, OS ESCRAVOS E A GUERRA Christiane Figueiredo Pagano de Mello UFOP31 Introdução: O contexto histórico Na segunda metade do século XVIII eram imperativas as necessidades de uma intensa reorganização militar, tanto no Reino de Portugal, como, também, no Estado do Brasil, sua principal terra colonial, onde se fazia indispensável aumentar a capacidade defensiva. Tais necessidades decorriam das crescentes tensões vividas na Europa, resultantes da celebração, em agosto de 1761, do Pacto de Família, em que os vários Bourbons então reinantes se comprometiam a defender mutuamente seus Estados. Na ocasião, embora D. José fosse casado com uma princesa Bourbon, não podiam os pactuantes esperar que Portugal aderisse ao Pacto, aliado como era da Inglaterra, então adversária da França e da Espanha na chamada Guerra dos Sete Anos, luta armada que foi travada de 1756 até 1763. Assim, a Coroa portuguesa, foi forçada a abandonar sua posição de neutralidade e a participar da fase final da Guerra dos Sete Anos. Após o estabelecimento dos Estados Ibéricos em campos opostos nesse conflito europeu, a contenda entre Portugal e Espanha logo se prolongaria avançando para as indefinidas regiões fronteiriças sulinas. Vale notar que, como observa o historiador Fernando Novais, “ao lado das zonas de tensão entre as potencias dominantes em luta pela hegemonia, França e Inglaterra, entre os países coloniais ibéricos se vão formando ao mesmo tempo outras zonas de tensão (sobretudo a Professora efetiva da Universidade Federal de Ouro Preto –UFOP. Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF. 31 55 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul região platina). Os dois tipos de conflitos correm paralelos, e se interrelacionam continuamente (...)”32. No caso português, especificamente, o conflito com a Espanha pelos territórios às margens do rio Uruguai havia demonstrado claramente a precária capacidade de resistência de seu exército, sobretudo quando da invasão e conquista pelo governador de Buenos Aires, D. Pedro de Cevallos, da Colônia do Sacramento, em dezembro de 1762, bem como da vila do Rio Grande e da margem norte do canal que conectava a Lagoa dos Patos ao mar. Não obstante assinado o Tratado de Paz que havia de pôr termo à Guerra dos Sete Anos, restituindo a Portugal tudo o que fora ocupado pelos espanhóis, D. Pedro de Cevallos dispôs-se a devolver, dez meses após assinado o Tratado, apenas a Praça da Colônia, retendo o restante do território – as ilhas de São Gabriel, Martim Garcia e das Duas Irmãs e o Rio Grande de São Pedro com o seu território – e não permitindo à Colônia do Sacramento qualquer contato com o território contíguo. Tensionavam-se, portanto, as questões da delimitação das fronteiras das possessões portuguesas ao sul da América; a perspectiva de guerra era flagrante, e notória a necessidade de reavaliar o sistema defensivo até então utilizado O Recrutamento Militar Em decorrência do agravamento das tensões hispano-portuguesas nas regiões limítrofes sulinas a Coroa viu-se obrigada a exigir que se alistassem, “sem exceção (...), nobres, brancos, mestiços, pretos, ingenuos, e libertos”33, enfim, todos os homens válidos para o cumprimento do serviço militar, formando assim o maior contingente possível de Corpos de Auxiliares e de Ordenanças. 32 Novais, Fernando Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), SP, Hucitec, 1983, p.51. 33 “Edital para se alistarem todos os moradores das terras da jurisdição desta Capitania, sem excepção de Nobres, Plebeus, Mistiços, Pretos, Ingenuos, e Libertos e formar dos mesmos Terços de Auxiliares, e Ordenanças, assim de Cavallaria, como Infantaria’. ANRJ, RJ, Cod. 73, vol.1, fl. 143. 56 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Nesse sentido, detenhamo-nos na Capitania de Minas Gerais. Para cumprir as determinações régias, o Governador de Minas Gerais, Luiz Diogo Lobo da Silva, envia, em 25 de fevereiro de 1766, uma carta circular aos Capitães-Mores da Capitania, contendo várias exigências julgadas essenciais para que as Tropas estivessem prontas, na “contingencia de se fazer perciza uma expedição p.a marchar q.do e p.a onde necessario fosse por bem do Real Serviço de S.Mage”34. Luiz Diogo ordenou aos Capitães-Mores uma missão extremamente delicada. Ele determinou a retirada de um quinto dos escravos que houvesse nas jurisdições de cada Capitão-Mor, “sem excepção dos occupados em lavouras, rossas, ou particulares serviços”. No entanto, advertia que só deveriam ser escolhidos aqueles “de melhor saude e robustos”35, e que os respectivos senhores teriam a obrigação de equipá-los com armas de fogo ou, pelo menos, de um dardo “com ferro e ponta de dous cortes”36. Tentando evitar a possível fuga desses escravos, o governador prometia recompensas aos que se distinguissem na defesa do Estado: “não só se adientará nos empregos da Milicia, mas consiguirá em premio a liberdade”37. As ordens estavam de acordo com o plano militar traçado nas Instruções Régias, que previa a utilização de negros e pardos, vistos como forças irregulares, mas estrategicamente importantes, jamais devendo ser desprezadas na guerra contra os espanhóis. A Coroa reconhecia a já presente tradição de emprego dos negros nas guerras, exemplificada pelo uso dessas forças na reação às tentativas de ocupação holandesa no Nordeste: na Bahia, em 1624, que teve fim no ano seguinte; em Pernambuco, em 1630; e nas batalhas dos Guararapes, em 1648 e 1649, com a capitulação holandesa em 165438. “Cópia da Carta Circular aos Cap.ns Mores de Luiz Diogo da Silva” AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, doc. 36.(anexo) 35 Idem. 36 Idem. 37 Idem. 38 Para maiores detalhes sobre as invasões holandesas e as batalhas dos Guararapes, ver: Arno Wehling, “Padrões Europeus e Conflitos Coloniais – A Questão da Guerra Brasílica” In, Actas do XXIV Congresso Internacional de História Militar, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 1998; Evaldo Cabral de Melo, Olinda Restaurada, SP., Edusp, 1975, do mesmo autor, Rubro Veio. O Imaginário da Restauração Pernambucana, RJ, Nova Fronteira, 1986; José Miralles, História Militar do Brasil – Desde o ano de 1549 em que teve principio a fundação da Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos até o de 1762, In Anais da Biblioteca Nacional, RJ, Leuzinger, vol. XXII, 1900; Frei Manoel Calado, O Valeroso Lucideno, SP, EDUSP, 1945, vol. I; Pierre 34 57 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul As exigências militares feitas pelo governador de Minas Gerais Luiz Diogo da Silva para atender o recrutamento militar, expressas na carta régia geraram a reação dos poderes locais – o Corpo das Ordenanças e a Câmara Municipal. As resistências se evidenciaram logo após o envio da carta circular aos capitães-mores da capitania com as determinações do governador sobre a expedição dos Corpos de Ordenanças e a arregimentação de negros cativos. As exigências de recrutamento militar para a expedição em defesa dos reais domínios atingiam diretamente dois pilares fundamentais para o funcionamento dos patrimônios pertencentes àqueles definidos no documento 39 como “Lavradores de Fabricas tanto de Rossas como de mineração” – os senhores e seus escravos. A principal justificativa utilizada pelo governador para convencer roceiros e mineiros da necessária colaboração na expedição militar, nos termos então exigidos, era a defesa de seus próprios bens: “não haverá rosseiro que refletindo ser indispensável o sobredito meio p.a continuarem na posse e logro das suas Fazendas, escravatura, e mais haveres, que possuem”40. Mais adiante, ao advertir sobre os eventuais perigos no caso de os espanhóis virem a dominar a América portuguesa, Luiz Diogo utiliza metáforas tão expressivas quanto sugestivas, prevendo uma situação ainda pior para os lesados: “passarão da liberdade que gozão a ignominioza escravidão, em q´ lhes será menos custoza a perda da propria vida, familia e referidos fundos”41. Os “Lavradores de Fabricas tanto de Rossas como de mineração” sabiam que, colaborando ou resistindo às exigências militares, viriam a perder. Se, com a intenção de manter seus patrimônios, dificultassem a tarefa do governador na defesa do Estado, poderiam acabar “na irremediavel perdição de tudo”42. Se satisfizessem as providências por ele determinadas para a organização militar da expedição, a fim “de rebater, utilizar, e destruir qualq.er nação Inimiga q´ nos intente envadir”43, também assim sofreriam perdas em seus Moreau e Roulox Baro, História das Últimas Lutas no Brasil entre holandeses e portugueses, SP, EDUSP, 1979; Francisco Adolfo de Varnhagen, História das Lutas com os holandeses no Brasil, Salvador, Progresso, 1955; Carlos Selvagem, Portugal Militar, Lisboa, Casa da Moeda, 1994; Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, Brasília, UNB, 1963. 39 “Cópia da Carta Circular aos Cap.ns Mores de Luiz Diogo da Silva” AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, doc. 36. 40 Idem. 41 Idem. 42 Idem. 43 Idem. 58 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul patrimônios, que, na verdade, eram o tema principal das representações feitas pelos CapitãesMores ao governador Luiz Diogo da Silva. A única – e infeliz – certeza deles era a de que, de qualquer forma, teriam algum tipo de prejuízo. A Reação das Elites Locais A exigência do quinto dos escravos para a dita expedição podia provocar perdas importantes no patrimônio dos roceiros e mineiros. Havia a dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de conservar os escravos na marcha, sem que fugissem pelos matos ou passassem aos arraiais inimigos, já "que a ambição da liberdade e pouca concideração os rezolverá a excutarem o que por muitas vezes tem intentado”44. Ameaça ainda maior, mas inevitável pelas circunstancias, vinha da necessidade de fornecer armas aos escravos, porque só assim poderiam destruir os inimigos externos. Indignados diante de tal ordem, os senhores de escravos, através do capitão-mor, que exercia o papel de seu porta-voz, notificam ao governador a posição final que assumem: "não nomeão nem armão inimigos dentro de suas cazas”45. A desobediência às ordens militares fica ainda mais evidente quando o capitão-mor, após receber as listas dos homensque deveriam formar os Terços, informa ao governador que elas estavam “tão diminutas e de homens incapazes”46; e também quando os capitães, ao requisitarem a lista do número de escravos, constatam que os “Snrs´ delles não querem dar o Rol”47. Embora o governador houvesse determinado aos capitães-mores e seus capitães que coibissem, e mesmo proibissem, toda e qualquer saída dos limites dos distritos sem a devida apresentação do bilhete de licença, a fim de impedir as fugas ao recrutamento, pode-se constatar, pela apreciação do capitão-mor, que as fugas continuavam a ocorrer com todo o vigor, fosse pela ineficiência da medida propriamente dita, fosse pela passiva resistência dos oficiais às ordem recebidas: “vão-se refugiando alguns brancos mossos e pardos e só deixão de o fazer os q´ tem impedimento de familias ou fazenda e ainda muitos destes estão athé ver 44 Idem. Idem. 46 Idem. 47 Idem. 45 59 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul para onde se encaminhão estes preparos”. O capitão-mor chega a assumir sua incapacidade para cumprir as medidas exigidas pelo Governador: “Em fim Ex.mo Snr´ como couza nova neste paiz todos andão admirados e confuzos e não me sei rezolver para dar inteiro cumprimento as Ordens”48. Com base nos mesmos argumentos apresentados pelos capitães-mores, algumas das Câmaras Municipais de Minas também se manifestaram, através de representações, contrárias ao método utilizado pelo governador Luiz Diogo da Silva para o recrutamento das Tropas. Afinal, os interesses sociais e econômicos daqueles Senhores Oficiais das Ordenanças coincidiam com os das Câmaras, e todos tinham o mesmo temor: “que Deus não permita que seja precizo a VaExa retrosseder a marxa; para vir restaurar os Povos do cativeiro dos mesmos negros, q´ trarão consequencias mais lamentaveis”49. A resistência às medidas determinadas pelo Governador iria assumir dimensões ainda mais perigosas, considerando-se os efeitos que poderia produzir nos “animos dos Povos”: o estímulo à repugnância das “Tropas a devida Obediencia”50. As vozes mais expressivas dessa resistência eram as dos Oficiais de Ordenanças e das Câmaras, que se manifestavam em representações dirigidas ao Governador de Minas Gerais. Vozes que se multiplicaram e alastraram pela Capitania, alcançaram São Paulo, e pela repercussão que geraram, passaram a ser qualificadas pelos governantes como “vozes horrorosas, escandalosas e sidiciozas”51. Os Oficiais de Ordenanças e os das Câmaras foram acusados de não interpretar corretamente o ponto de vista da “conservação dos Reais Dominios”52 e de não “animar os povos para tão justo e necessario fim”. Para o governo, eles ficavam conjecturando “duvidas impeditivas das prevenções que podem não admitir demora pelo irreparavel prejuizo que dela pode seguir-se”53 em vez de “executarem os sobreditos com o zelo q´ se devia esperar da honra com q´ sempre se destinguirão os povos de Minas como fieis vassalos do mesmo 48 Idem. “Representação dos oficiais da Câmara de Vila Rica para o Rei, 27/10/1766”, AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, doc. 36 (anexo) 50 “Oficio de Morgado de Mateus para o Conde de Oeiras, SP, 21/6/1766”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 25, doc. 2409. 51 “Carta de Luiz Diogo da Silva para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Vila Rica, 4/9/1766” AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, doc. 36. 52 “Bando lançado pelo Governador de Minas Gerais, 26/4/1766”, AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, doc. 36 (anexo). 53 Idem. 49 60 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Senhor”54. Contudo, a mesma “conservação dos Reais Dominios” era uma ameaça ao patrimônio das elites locais. Dessa forma, não é de se estranhar que o mesmo indivíduo que tem sua posição social reforçada através de um posto militar que lhe confere honras e privilégios, tente "impedir os meios dispostos para a Expedição”55 para escapar da ameaça da perda de seu patrimônio56. Resultado: a ‘moderação’ das exigências Apesar das severas censuras ao comportamento dos Oficiais de Ordenanças e das Câmaras, é perceptível uma significativa mudança no discurso do Governador, demonstrada no anúncio público lançado em Minas Gerais por Luiz Diogo da Silva em 26 de abril de 1766. Ao dispor suas ordens militares, com definidos limites de alcance, ele aponta para um efetivo reconhecimento dos patrimônios em questão, mudando a atitude sustentada na carta circular de 25 de fevereiro de 1766, enviada aos Capitães-Mores. Os resultados provocados pela circular o impeliram a reconsiderar não só o tom de seu discurso, que ganhou em prudência e cautela, como seu teor, ao estabelecer as suas exigências. Essas alterações, claramente sine qua non, transformaram-se em seu “salvo-conduto” para angariar a necessária colaboração militar de determinados setores da comunidade local. Com relação à escolha do quinto dos escravos, o Governador afirmava no Bando: “(…)ficando na inteligencia os Senhores dos ditos escravos que o 5º destes ha de ser da sua eleição para que possão rezervar os que mais convenientes lhes foram para o trabalho das suas lavouras, e lavras”57. Portanto, havia o reconhecimento de que o poder de escolha pertencia aos Senhores, medida necessária para a preservação de seus patrimônios. Quanto à liberdade que prometera àqueles escravos que se distinguissem em suas ações de combate, agora ela só seria concedida “sem prejuizo de seus senhores que serão satisfeitos do seu justo valor pela Real Fazenda da mesma sorte que para com os que morrerem na expedição”. Até 54 Idem. Idem. 56 Costa, Fernando Dores, “Os Métodos efetivos de Recrutamento” In Nova História Militar de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 2004, p.79. 57 Idem 55 61 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul o casos de alguns senhores quererem “livrar o 5º dos seus escravos” seria possível, desde que eles aceitassem “concorrer com quantia proporcionada”58. Ao contrário do que fizera anteriormente, o governador mostra-se bastante prudente em relação ao alistamento de mineiros e roceiros para a expedição militar. Pesando a importância de suas presenças na administração de seus patrimônios, ele ponderou: “para que assim experimentem menor incomodo, e não sintão as suas familias, e cazas a falta da sua pessoal assistencia,aqueles Mineiros, e Rosseiros (...) q´ sem legitima cauza não podem ser escuzos poderão dar per si pessoa capaz que supra a sua falta”.59 Não há outras exigências, nem as ameaças proferidas na circular. Em Representação de 27 de outubro de 1766 ao Rei D.José I, os oficiais da Câmara de Vila Rica reconheceram a ‘moderação’ das exigências anteriormente apresentadas, em que o “Governador e Capitão General, em tudo prudente soube dar-lhes”60. Longe de uma passividade que as deixasse sempre de acordo com as ordens superiores, as elites locais, alocadas nos Corpos de Ordenanças e nas Câmaras Municipais, criaram uma resistência que demonstra o poder de que dispunham, a extensão de sua influência, e a possibilidade de interferir no que julgassem necessário – fosse a favor ou contra as exigências feitas a elas. Referências Bibliograficas COSTA, Fernando Dores, “Recrutamento” In Nova História Militar de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 2004. MIRALLES, José, História Militar do Brasil – Desde o ano de 1549 em que teve principio a fundação da Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos até o de 1762. In Anais da Biblioteca Nacional, RJ, Leuzinger, vol. XXII, 1900. NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), SP, Hucitec, 1983. 58 Idem Idem. 60 “Representação dos oficiais da Câmara de Vila Rica para o Rei, 27/10/1766”, AHU, MG, Avulsos, Cx: 89, doc: 32. 59 62 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul SELVAGEM, Carlos, Portugal Militar, Lisboa, Casa da Moeda, 1994 Fontes “Cópia da Carta Circular aos Cap.ns Mores de Luiz Diogo da Silva” AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, doc. 36 “Representação dos oficiais da Câmara de Vila Rica para o Rei, 27/10/1766”, AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, doc. 36 (anexo) “Oficio de Morgado de Mateus para o Conde de Oeiras, SP, 21/6/1766”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 25, doc. 2409. “Carta de Luiz Diogo da Silva para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Vila Rica, 4/9/1766” AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, doc. 36. “Bando lançado pelo Governador de Minas Gerais, 26/4/1766”, AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, doc. 36 63 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul FORÇAS MILITARES E A HIERARQUIA SOCIAL Christiane Figueiredo Pagano de Mello UFOP61 Introdução: o contexto histórico A segunda metade do século XVIII é um período especialmente interessante para o estudo das forças militares. Eram imperativas as necessidades de uma intensa reorganização militar, tanto no Reino de Portugal, como, também, no Estado do Brasil, sua principal terra colonial, onde se fazia indispensável aumentar a capacidade defensiva. Tais necessidades decorriam das crescentes tensões vividas na Europa, resultantes da celebração, em agosto de 1761, do Pacto de Família, em que os vários Bourbons então reinantes se comprometiam a defender mutuamente seus Estados. Na ocasião, embora D. José fosse casado com uma princesa Bourbon, não podiam os pactuantes esperar que Portugal aderisse ao Pacto, aliado como era da Inglaterra, então adversária da França e da Espanha na chamada Guerra dos Sete Anos, luta armada que foi travada de 1756 até 1763. Assim, a Coroa portuguesa, foi forçada a abandonar sua posição de neutralidade e a participar da fase final da Guerra dos Sete Anos. Após o estabelecimento dos Estados Ibéricos em campos opostos nesse conflito europeu, a contenda entre Portugal e Espanha logo se prolongaria avançando para as indefinidas regiões fronteiriças sulinas. Vale notar que, como observa o historiador Fernando Novais, “ao lado das zonas de tensão entre as potencias dominantes em luta pela hegemonia, França e Inglaterra, entre os países coloniais ibéricos se vão formando ao mesmo tempo outras Professora efetiva da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP. Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF. 61 64 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul zonas de tensão (sobretudo a região platina). Os dois tipos de conflitos correm paralelos, e se inter-relacionam continuamente (...)”62. No caso português, especificamente, o conflito com a Espanha pelos territórios às margens do rio Uruguai havia demonstrado claramente a precária capacidade de resistência de seu exército, sobretudo quando da invasão e conquista pelo governador de Buenos Aires, D. Pedro de Cevallos, da Colônia do Sacramento, em dezembro de 1762, bem como da vila do Rio Grande e da margem norte do canal que conectava a Lagoa dos Patos ao mar. Não obstante assinado em fevereiro de 1763 o Tratado de Paz que havia de pôr termo à Guerra dos Sete Anos, restituindo a Portugal tudo o que fora ocupado pelos espanhóis, D. Pedro de Cevallos dispôs-se a devolver, dez meses após assinado o Tratado, apenas a Praça da Colônia, retendo o restante do território – as ilhas de São Gabriel, Martim Garcia e das Duas Irmãs e o Rio Grande de São Pedro com o seu território – e não permitindo à Colônia do Sacramento qualquer contato com o território contíguo. Tensionavam-se, portanto, as questões da delimitação das fronteiras das possessões portuguesas ao sul da América; a perspectiva de guerra era flagrante, e notória a necessidade de reavaliar o sistema defensivo até então utilizado As Tropas de Pardos Libertos Neste ponto abordaremos as Tropas de Auxiliares de pardos libertos constituídas nas Capitanias do Rio de Janeiro e São Paulo. Considerando tais Tropas como resultado das especificidades vividas na realidade social da Colônia, propomo-nos observar alguns dos procedimentos das autoridades coloniais com relação a essa qualidade de Tropas. No que concerne aos oficiais maiores a compor o Terço de Auxiliares de homens pardos libertos, são cabíveis duas colocações: a primeira é que, em nenhuma das cartas patentes consultadas consta o posto de Mestre de Campo, mas, sim, apenas o de Sargento-Mor como posto máximo, agregado ao termo de Comandante, isto é, Sargento-Mor Comandante. A segunda: os Sargentos-Mores, bem como os Ajudantes, deveriam vir das tropas pagas, 62 Novais, Fernando Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), SP, Hucitec, 1983, p.51. 65 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul assim como nos demais Terços de Auxiliares, posto que os Auxiliares pardos libertos deveriam estar tão bem regulados e disciplinados quanto aqueles, e igualmente aptos à defesa. Assim, pode-se verificar tais preocupações por sua presença no enunciado de uma das cartas patentes consultadas: “(...) que sendo S.Mag.e servido ordenar por Ordem de 22 de Março de 1766 formassem novos terços de Auxiliares e Ordenanças (...) e querendo em execução da mesma Real Ordem regular os terço de Auxiliares de Infantaria dos Homens Pardos Libertos, que se formou nesta cidade[Rio de Janeiro], para a defensa della, nomeando lhe os officiais competentes (...)”63. Temos, assim, no ano de 1775, o Terço de Auxiliares dos homens pardos libertos “de que he Sargento Maior Comandante Joze de Almeida e Mello”64, o qual ocupara, anteriormente, conforme se pode verificar através da carta patente daquele que o viria substituir após sua transferência, o posto de Ajudante do segundo Regimento pago da praça do Rio de Janeiro: “Hei por bem prover no posto de Ajudante do Segundo Regimento de Infantaria desta praça de que he Coronel Gregório Moraes de Castro Pimentel, que vagou por promoção de Joze de Almeida e Mello, que o era, para o posto de Sargendo Maior do Terço de Auxiliares de Infantaria dos Homens Pardos Libertos desta cidade (...)”65. Quanto ao posto de Ajudante, percebe-se a exigência do mesmo pré-requisito, isto é, que procedessem das tropas pagas: “e atendendo a não se haver ainda nomeado officiaes alguns das tropas [pagas] para Ajudante do terço de pardos, que na conformidade da mesma real ordem se levantou nesta cidade, como se tem praticado com os mais terços de auxiliares (...) e tendo consideração aos merecimentos e mais partes de Manoel Francisco de Oliveira (...)”66. Interessante é notar que, especificamente com relação aos pardos, limitava-se oficialmente seu alcance hierárquico aos postos superiores da Tropa de Auxiliares, pois que estes só alçavam até o posto de Sargento, oficial inferior localizado acima dos Cabos de Esquadra e abaixo do Alferes. Justificava-se, assim, a solicitação feita pelo Marquês do 63 Idem. “Carta patente, RJ, 11/5/1776”, AHU, RJ, Avulsos, Cx.108, doc.45. 65 “Carta patente, RJ, 17/8/1776”, AHU, RJ, Avulsos, Cx.109, doc.53. 66 “Carta patente, RJ, 22/7/1775”, AHU, RJ, Avulsos, Cx.109, doc.9. 64 66 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Lavradio a Martinho de Mello e Castro: “Os Pardos e Mullatos ficarião m.to satisfeitos de se poderem adientar athé os postos de Alferes (...)”67. Considerados hierarquicamente inferiores por sua condição racial, muito expressivo é o fato de o acesso ao posto de Alferes dos Auxiliares ser vetado aos pardos libertos, significando explicitamente a interdição social imposta a esse grupo. Tal posto lhes possibilitaria receber as régias mercês: seus inúmeros privilégios e honras. Por outro lado, merece especial atenção a significativa estratégia empregada a fim de suprir a necessidade de militarização daquele contingente: desde que conseguissem levantá-las, concedia-se-lhes o direito do exercício dos postos de Capitães das Companhias de Auxiliares, muito embora não lhes fosse permitido, a qualquer momento, obter a patente do respectivo posto. Embora não nos tenha sido materializada enquanto documento, uma referência passível de verificação, conforme abaixo sugerido, indicava haver um determinado modelo de patente que se costumava passar na cidade do Rio de Janeiro especialmente para os Capitães pardos, cuja menção encontra-se em um ofício de Morgado de Mateus ao Conde de Oeiras. Nele, o Governador de São Paulo afirmava ter expedido uma patente, “que he a mesma que se costuma passar no Rio de Janeiro aos capitães dos homens pardos forros q’ há naquela cidade”68, a um pardo que desempenhava a função de Capitão. Acrescenta, ainda: “passei somente hua patente, sem o declarar Capitão dos Auxiliares pardos (...)”. Tais excusas comprovavam o descumprimento da promessa que este Governador fizera a um pardo, Capitão de fato, embora não de patente -, que, se este aumentasse o número de homens de sua companhia, dar-lhe-ia “patente de Capitão Auxiliar com graduação de Ten.te de infantaria paga”. Entretanto, parece não ter honrado sua palavra, “considerando q’ isto não poderia ser do agrado de Sua Magestade e q’ o não devia fazer sem primeiro lhe dar conta”69. Interessante notar a manipulação da expectativa da honra e dos privilégios como fator de ativação daqueles elementos que, despossuídos de uma herança que lhes garantisse posição “Carta do Marquês do Lavradio para Martinho de Mello e Castro, RJ, 23/4/1777”, BNL, Reservados, Códice 10631. 68 “Ofício n.o terceiro do Governador Morgado de Mateus ao Conde de Oeiras, SP, 10/9/1765”, AHU, SP, Avulsos, Cx.23, doc.2255. 69 Idem. 67 67 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul proeminente no seio da sociedade70, para que, voluntariamente, se integrassem no serviço militar da Tropa de Auxiliares, bem como, além disso, se dispusessem a arregimentar os homens necessários para comporem suas respectivas Companhias. Assim, era de sua esperança de ascensão social através dos postos militares, fomentada, inclusive, pelos próprios Governadores, que, por sua vez, alimentavam-se de grande parte de efetivos pardos libertos as Tropas de Auxiliares. Dentre o grupo de homens denominados de pardos libertos, vale destacar que havia variações no que concerne a suas atividades e riquezas, interessante ponto sobre o qual, infelizmente, não nos debruçaremos. Pode-se verificar, entretanto, que o exercício do posto de Capitão das Companhias de Auxiliares, sem patente, estava destinado àqueles de maior fortuna, que eram, conseqüentemente, os que mais ambicionavam verem confirmados pela graduação militar o status social que tanto almejavam atingir. A esse respeito, temos, como exemplo, o depoimento de Morgado de Mateus: “como nesta terra há m.tos homens pardos, e entre estes huns q’ são oficiaes de diferentes of.os e outros homens de cabedais e de prestimo, achei que destes havia hua comp.a com seu Capi.am homem pardo, e rico (...)”71. Nesses termos, outro fator interessante se coloca, qual seja o da necessidade de apropriação de determinados sinais e imagens, símbolos classificadores, por excelência, de um valor social, a conferir distinção, prestígio e poder. Condicionados pelos códigos hierárquicos tradicionais do Antigo Regime, os pardos libertos “aspiravam ao status, títulos e privilégios de aristocracia”72, o que se pode facilmente verificar pela utilização dos uniformes e das armas como forma de visibilizar suas pretensões sociais: “O sobredito capitão e soldados se ficão fardando e armando com todo o empenho para passarem mostra na minha Quanto aos pardos libertos, cabe destacar a análise feita por Stuart Schwartz, “(...) os mestiços livres eram definidos tanto pela cor quanto por categoria funcional ou estado tradicional.As pessoas de cor geralmente arcavam com duas marcas de desvantagem. Primeiro, sua cor indicava claramente ascendência africana e, portanto, condição social inferior, presumivelmente a de escravo, em alguma época do passado. Segundo, havia uma insinuação de ilegitimidade na existência de uma pessoa mestiça, pois supunha-se que o homem branco normalmente não se casava com mulheres de condição racial inferior (...)” No que diz respeito à sua condição jurídica de livres, afirma o autor “que as pessoas de cor livres podiam sofrer com incapacidades legais e ultrajes, estar sujeitas a coerção legal e ser tratadas com desprezo, mas seu status era infinitamente melhor que o dos cativos”. [Stuart Schwartz, Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial, 15501835, SP, Cia das Letras, 1985, p.213 e 214.] 71 Idem. 72 Schwartz, Stuart, Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835, SP, Cia das Letras, 1985, p.210. 70 68 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul presença com os seus uniformes e armas tudo feito a sua custa e querem que lhes mande hum oficial para aprenderem o novo exercício”73. Assim, interessante é observar, nos casos acima analisados, as peculiaridades produzidas pela dinâmica da realidade social da Colônia, resultantes da presença de uma população de origem mestiça, suficientemente significativa para se levantar um Terço de Auxiliares, força importante para a defesa de sua cidade, no caso o Rio de Janeiro. A conjunção do desejo mestiço de ascenção social, pautado nos moldes do Estado Absolutista, com a necessidade imperativa de militarização da população masculina, impunha às autoridades coloniais determinadas adaptações nas categorias tradicionais de preenchimento dos postos militares à realidade da sociedade colonial, a despeito de sua abstenção em reconhecê-los oficialmente através da respectiva patente. Um fator altamente agravante nas relações entre as autoridades metropolitana e colonial e o seu Terço de Pardos livres é que aquelas continuavam a ser profundamente condicionadas pelos estereotipados valores produzidos pela hierarquia do Estado Absolutista em relação aos indivíduos de origem africana, que a desqualificava por sua ascendência, caracterizando seus componentes como insubordinados “dapior educação, de caráter libertino”74, constituindo-se, assim, em perigos potenciais para a preservação da tranqüilidade e da ordem social. Assim, a delegação de responsabilidades militares aos pardos libertos, bem como sua constituição em Companhias nunca deixaram de gerar o temor nos governos coloniais de que esses mesmos homens “pudessem constituir uma ameaça para a segurança da Colônia e o domínio branco”75. Ainda, segundo Russel-Wood, com relação a esses indivíduos livres de origem africana, manifestavam-se as autoridades metropolitana e colonial com uma “atitude ambivalente”, forjada a partir das “percepções e atitudes estereotipadas e negativas (...) em relação aos negros e sobretudo em relação aos mulatos (...) de quem desconfiavam intrinsecamente e sobre a qual não tinham pleno controle, mas de quem dependiam e a quem “Ofício n.o terceiro do Governador Morgado de Mateus ao Conde de Oeiras, SP, 10/9/1765”, AHU, SP, Avulsos, Cx.23, doc.2255. 74 “Relatório do Marquês do Lavradio” inHistória do Brasil, JoãoArmitage, R.J., Zélio Valverde, 1943, p.424. 75 Russell-Wood, “Autoridades Ambivalentes: O Estado do Brasil e a Contribuição Africana para ‘A Boa Ordem na República’”, In: Brasil – Colonização e Escravidão, Organização Maria Beatriz Nizza da Silva, RJ, Nova Fronteira, 2000, p. 117. 73 69 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul deram um certo grau de legitimidade ao reconhecerem a sua relevância funcional para (...) a defesa da Colônia contra os inimigos externos e a preservação da ‘boa ordem na República’”76. Assim, do entrecruzamento dessas duas posições - precisão e temor - que, muito embora, conflitantes, não eram mutuamente excludentes, é que nascia a “atitude ambivalente” com que as autoridades metropolitanas e coloniais pautaram sua relação com os indivíduos de origem africana, no caso, os pardos libertos. A título de conclusão, deve-se ressaltar que, muito embora, a sociedade colonial tivesse produzido, sob a égide absolutista de sua hierarquia, múltiplas subdivisões de honra e apreço, de complexas compartimentações de cor e de diversas formas de mobilidade e mudança, foi também, de acordo com Stuart Schwartz, “uma sociedade com forte tendência a reduzir tais complexidades a dualismos de contraste – senhor/escravo, fidalgo/plebleu (...)” ao buscar escamotear "as múltiplas hierarquias entre si, de modo que a graduação, a classe, a cor e a condição social de cada indivíduo tendessem a convergir”77, reafirmando, direta ou indiretamente, conforme acima demonstrado, os estereótipos e preconceitos que norteavam as relações sociais. Referências Bibliográficas NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), SP, Hucitec, 1983. PRADO JR., Caio. A Evolução Política do Brasil e outros Estudos, S.P, Brasiliense, 1977. RUSSELL-WOOD, A. J. R. “Autoridades Ambivalentes: O Estado do Brasil e a Contribuição Africana para ‘A Boa Ordem na República’”, In: Brasil – Colonização e Escravidão, Organização Maria Beatriz Nizza da Silva, RJ, Nova Fronteira, 2000. SALES, Ernesto Augusto Pereira, “As Observações Militares do Conde Lippe” In O Conde Lippe em Portugal, Vila Nova de Farnalicão, Lisboa, 1936 SOUZA, Laura de Mello, Desclassificados do Ouro, RJ, Graal, 1986. 76 . Idem, Op.cit, p.119. Schwartz, Stuart, Segredos Internos...Op.cit. p.209. 77 70 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul SCHWARTZ , Stuart, Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial, 15501835, SP, Cia das Letras, 1985 Fontes LIPPE, Conde Reinante de Schaumbourg, “Regulamento para o exercício, e disciplina dos Regimentos de Infantaria dos Exércitos de Sua Majestade Fidelíssima”, Régia Oficina, Lisboa, 1794. SILVA, José Justino de Andrade. “Carta Régia sobre a Criação dos Soldados Auxiliares, Lisboa, 7/1/1645”. In “Coleção Cronológica da Legislação Portuguesa vol. de 1640 a 1647. “Carta patente, RJ, 17/8/1776”, AHU, RJ, Avulsos, Cx.109, doc.53. “Carta patente, RJ, 22/7/1775”, AHU, RJ, Avulsos, Cx.109, doc.9. “Carta do Marquês do Lavradio para Martinho de Mello e Castro, RJ, 23/4/1777”, BNL, Reservados, Códice 10631. “Ofício n.o terceiro do Governador Morgado de Mateus ao Conde de Oeiras, SP, 10/9/1765”, AHU, SP, Avulsos, Cx.23, doc.2255 “Relatório do Marquês do Lavradio” inHistória do Brasil, João Armitage, R.J, Zélio Valverde, 1943, p.424. 71 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul HISTÓRIA DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE NA REDE MUNICIPAL DE GOIÂNIA Cleiginaldo Pereira Santos78 [email protected] Os trabalhadores na educação e suas greves Os trabalhadores da educação no Brasil tem uma trajetória de luta em relação às questões pertinentes a educação pública e a própria valorização da sua carreira. Um dos principais instrumentos para essas reivindicações são as greves dessa categoria. De norte a sul do país, em todos os estados os trabalhadores em educação recorrem à greve como forma de pressão em relação ao Estado, no entanto, suas reivindicações na maioria das vezes não são atendidas ou quando são, ficam para os próximos governos que descumprem os compromissos firmados. Qual o motivo para que esse fato ocorra? Para respondermos essa questão precisamos entender a conjuntura e o papel do Estado no capitalismo. O Estado tem uma função associada a reprodução das relações sociais determinadas pela classe dominante, esse é um órgão essencial na manutenção dessas relações. Embora os teóricos do Estado creditem a ele a responsabilidade de administrar para o bem coletivo ou ser um instrumento para diminuir as desigualdades sociais, na realidade o Estado é um dos elementos que provoca a desordem e mantém a desigualdade como fator essencial na lógica do capitalismo. Na análise de Kropotkim (2000), Bakunin (2006) o Estado é uma representação do autoritarismo, um órgão criado para impedir a liberdade, e, somente com a sua aniquilação, juntamente com a ordem econômica capitalista é que será possível concebermos a liberdade na sua plenitude. 78 Docente da Rede Municipal de Educação de Goiânia (SME) 72 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul [...] não hesito em dizer que o Estado é o mal, mas um mal historicamente necessário, tão necessário no passado quanto o será sua extinção completa, cedo ou tarde; tão necessário quanto foram a bestialidade primitiva e as divagações teológicas dos homens. O Estado absolutamente não é a sociedade, é apenas uma forma histórica tão brutal quanto abstrata. Nasceu historicamente, em todos os países, do casamento da violência, da rapina e do saque, isto é da guerra e da conquista, com os deuses criados sucessivamente pela fantasia teológica das nações. Foi desde sua origem e permanece ainda hoje, a sanção divina da força bruta e da iniquidade triunfante ( BAKUNIN 2006, p. 42-43). O Estado, torna-se assim o “mediador dos conflitos” entre a classe trabalhadora e a burguesia. Esta concepção de Marx e Engels acerca do Estado é claramente explicitada em “O manifesto do Partido Comunista”, no qual os citados autores afirmam que “o Estado moderno não passa de um comitê que administra os negócios da classe burguesa como um todo”. (MARX e ENGELS, 1998, p. 10). Para Mendonça (2011), a questão dos sindicatos e o seu papel segundo Pannekoek, mostra claramente que a perda de combatividade dos sindicatos é algo previsto nas obras de Marx e mesmo Lênin, embora esse segundo tenha no sindicato uma visão ligada ao partido revolucionário. Consequentemente, o que Marx e Lênin precisaram sobre o Estado deve valer também para as organizações sindicais, isto é, que apesar da democracia formal, sua organização impossibilita fazer delas um instrumento de revolução. A força contrarrevolucionaria dos sindicatos não pode ser debilitada e destruída por uma mudança de pessoas, pela substituição de dirigentes sindicais ou “revolucionários” em lugar dos chefes reacionários. É justamente a forma desta 73 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul organização que torna as massas pouco menos que impotentes e lhes impede de fazer dos sindicatos órgãos de sua vontade. A revolução somente pode vencer destruindo esta organização, transformando, por assim dizer, a forma da organização para fazer dela algo radicalmente novo: o sistema dos soviets. Sua instauração está em condições de extirpar e eliminar não apenas a burocracia estatal, mas também a do sindicato (PANNEKOEK 2005 apud MENDONÇA 2011, p. 133). Por essa postura, a mudança de um governo pelo outro pode “significar melhorias” para o conjunto dessa categoria, no entanto essa afirmação torna-se uma ilusão, tornando-se um elemento essencial na perpetuação das relações entre a burocracia sindical partidária e os burocratas do estado, que entram em acordo entre si para favorecer seus próprios interesses deixando as reivindicações da categoria como fator de barganha. Por exemplo, no final de uma greve, é a diretoria do sindicato que acaba com a própria greve, indiferente das decisões da categoria em uma assembléia, esse fato é comprovado nas greves em todo o país, bastando apenas acessar o youtube e assistir os desfechos das greves em todo Brasili. Um exemplo recente ocorreu durante a greve da educação municipal em Goiânia no ano de 2010, onde o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Goiás (SINTEGO) acabou com a greve antes mesmo da votação pela assembléia da categoria. Segundo Pannekoek (2007), o sindicalismo dentro do capitalismo é formado por um círculo vicioso, no qual a burocracia sindical é responsável em controlar a classe trabalhadora para que essa não avance nos processos de luta, e as greves não se tornem selvagens, ou seja, sem o controle do sindicato em busca da revolução. [...] Os sindicatos são hoje organizações gigantes, cujo lugar é reconhecido pela sociedade. A sua posição está regulamentada pela lei: acordos que façam têm força legal para toda a indústria. Os seus chefes aspiram fazer parte do poder que determina as condições de trabalho. Para o capital, doravante todo-poderoso, é mais vantajoso disfarçar a sua hegemonia sob formas democráticas e Constitucionais, 74 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul que mostra-la sob forma direta e brutal de ditadura. [...] Assim, as condições que vigoram hoje fizeram que, mais que nunca, os sindicatos se transformassem em órgãos de dominação do capitalismo monopolista sobre a classe operária (PANNEKOEK, 2007, p. 72). Essa perspectiva vai ao encontro ao que Marx e Engels (1986) no seu texto sobre o sindicalismo já percebia em relação aos sindicatos europeus que simplesmente lutavam por remunerações salariais que não rompiam com a questão da abolição da exploração da mais valia, e a cada novo reajuste salarial, novas formas de intensificação da mais valia ocorriam nesse processo. […] Agora os sindicatos são instituições reconhecidas e sua ação é admitida como fator de regulamentação dos salários e da jornada de trabalho, como atesta a legislação fabril. [...] Além disso, as flutuações econômicas, pelo menos uma vez a cada dez anos, anulam tudo que havia conquistado com muita luta esta deve recomeçar desde o principio. È um ciclo vicioso. A classe operária continua sendo o que era e o que nossos predecessores cartistas não temiam chamar de uma classe de escravos assalariados. Esta deve ser sempre a aspiração mais alta dos operários britânicos? Ou devem se esforçar ,pelo menos por romper esse círculo infernal e fixar como objetivo de movimento a luta pela abolição do sistema assalariado? (MARX e ENGELS 1986 pag.40). As perspectivas relatadas pelos referidos autores, não são exclusivas dos sindicatos da classe operária, mas sim de todos os trabalhadores, no setor da educação, o patrão e os sindicatos no formato de acordos que sempre frustam a base da categoria. Segundo Engels (2010), as leis que reconhecem os sindicatos e o direito de greve, acabaram por criar uma limitação na luta dos operários, pois os sindicatos para serem reconhecidos como instituições representantes dos trabalhadores, aceitaram a imposição e regulação dos movimentos, já que na época da lei eram obrigados a comunicar o patrão da 75 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul decisão da greve e essa só poderia ocorrer depois de 92 horas, esse fato mostra claramente que caberia o papel de controle dos dirigentes sindicais nesse processo de negociação direta como patrão. Por exemplo, a lei da greve no Brasil prevê que os sindicatos devem informar com 48 horas de antecedência ao patrão, sobre a deflagração da greve, em que pese que essa lei seja para iniciativa privada, serve de modelo para o funcionalismo público, no entanto esse procedimento não significa garantia nenhuma da legalidade da greve por parte da justiça do Estado. Para Pannekoek (2011) o sindicalismo tornou-se um dos principais inimigos da classe trabalhadora e do seu processo de emancipação, esse cita os exemplos dos sindicatos na Alemanha que durante as revoltas de 1919, aliaram-se ao status quo para reprimir os trabalhadores, além da Hungria que durante esse mesmo ano, teve um processo revolucionário desencadeado pelos trabalhadores, contrariando as determinações dos sindicatos. As lutas sindicais em Goiás envolvendo o maior sindicato do estado, no caso o Sintego, refletem essa prática, um exemplo foi durante a greve de 2010 dos trabalhadores da rede municipal de Goiânia, que sofreram várias sabotagens por parte da direção sindical que não queria uma greve contra o governo da prefeitura de Goiânia, coligação partidária PMDB/PT, já que essa aliança era defendida durante a campanha para o governo do Estado contra o PSDB, perante a tal situação a categoria enfrentou a direção sindical. […] A ação direta é a ação dos próprios trabalhadores sem a mediação da burocracia sindical. Uma greve diz-se “selvagem” (ilegal ou não oficial) por oposição às greves desencadeadas pelos sindicalistas respeitando os regulamentos e as leis. Os trabalhadores sabem que a greve legal carece de efeito; os sindicalistas são forçados a desencadeá-la contra a sua vontade e sem que a tenham previsto, talvez pensando intimamente que uma derrota seria uma lição salutar para os presunçosos operários e sempre tentam pôr-lhes fim o mais rapidamente possível . É por isso que a exasperação explode no meio dos grupos maiores ou menores, de operários e toma a forma de greve 76 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul selvagem, desde que a opressão se torne muito forte ou negociações se arrastem sem resultados (PANNEKOEK, 2011, p. 119). Na greve de 2010, da rede municipal de ensino, foi marcada pela rejeição da base da categoria em relação ao sindicato, as desconfianças em relação a prática desenvolvida pelo sindicato cresciam dentro da categoria e culminaram com a rebelião frente a direção sindical, inclusive realizando a primeira assembleia sem a direção sindical, a perspectiva da ação direta e de enfrentamento em relação as propostas da direção marcaram essa greve, mostrando claramente que é possível a auto-organização e greve sem sindicato. No entanto as posturas de vários professores (as) que assumiram a luta dentro dos comandos de greve divididos por regionais, fazendo ações decididas pela base, sem consultar a cúpula sindical, foram elementos que permitiram que a greve fosse conduzida pela categoria e não pelo sindicato, ao ponto do comando de greve, se tornar um dos interlocutores da greve, passando por cima das determinações do sindicato. No entanto, esse sindicato acabou encerrando com a greve, em uma assembleia que a categoria não votou, e o comando de greve permaneceu mais uma semana encerrando a greve em uma assembleia, auto organizada sem sindicato uma forma de organização na qual a categoria assume a tarefa de criar e executar ações para pressionar o governante, independente dos dirigentes sindicais, foi um fator de surpresa para os burocrata acostumados em fazer greve de gaveta, ou seja, nos escritórios dos governantes. Para o SINTEGO, como qualquer outro sindicato, o medo da perda do patrimônio ou o tempo que dura uma greve, pode significar diminuição dos seus recursos, que segundo a lógica do sindicalismo no capitalismo, esse deve gerir os recursos para ampliar seu próprio patrimônio e capital. […] Quando os dirigentes sindicais negociam com os patrões, já não estão em condições de arrancar grande coisa deles. Não ignorando o crescimento dos capitalistas e pouco interessados em combate-los – já que lutas deste tipo trazem o risco de arruinar financeiramente as organizações e comprometer sua própria existência - estão obrigados 77 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul a aceitar as propostas patronais. A sua principal atividade consiste em acalmar o descontentamento dos operários e apresentar as ofertas dos empregadores sob os mais aspectos mais favoráveis. [...] E se os trabalhadores recusam estas ofertas e declaram greve, os chefes devem ou se opor a eles, ou então tolerar a luta na aparência, com intenção de fazê-la acabar o mais rápido possível (PANNEKOEK, 2011, p.72). Porém, a maior sabotagem sindical, foi não negociar com o governo, sob quais condições os trabalhadores voltariam ao trabalho após a greve, nessa perspectiva os professores tiveram seus salários cortados, (corte de ponto) . o sindicato assim mostrava a sua ‘força “, perante a categoria, mostrando que o corte de ponto, ocorreu pela insistência da categoria em continuar com a greve, frente as advertências da direção sindical, o sentimento de indignação como esse fato cresceu nos professores da rede estadual, no entanto não foi suficiente para um rompimento tão intenso como ocorreu na rede municipal de Goiânia. A atitude do Sintego em 2008, não foi um fato isolado, em todas as greves que ocorreram desde 1979, essa tem sido uma forma utilizada para demonstrar a “força e o controle” que a direção exerce em relação a categoria, as posturas combativas adotadas pelo sindicato variam conforme os interesses partidários que dominam essa estrutura. Por exemplo em 2008 o desgaste em relação ao governo Alcides Rodrigues, favorecia a conjuntura das alianças entre o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e o Partido dos Trabalhadores (PT). Essa relação entre partido e sindicato, é fundamental para entendermos as constantes greves que ocorrem nesse setor, as motivações partidárias são os elementos que levam os burocratas sindicais a deflagrarem as greves. É perceptível no meio sindical a presença de basicamente três concepções que dimensionam a relação entre partido e sindicato. A primeira situa o papel do sindicato como limitado à defesa dos interesses imediatos dos trabalhadores em face do capitalismo e, 78 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul necessariamente, desvinculado das organizações políticas. Na segunda, o sindicato é a expressão das diretrizes postas pelas normas partidárias e, assim, é o partido que exerce ações no interior do sindicato. Na última, é a central sindical que articula nas esfera política e ideológica as reivindicações, substituindo, pois, o partido. Essas concepções, o mais precisamente as duas últimas, estiveram implicitamente presentes quando da filiação da entidade representativa dos professores à CUT, bem como na institucionalização do Sintego. Apesar disso não foram suficientemente discutidas em muitos segmentos da categoria,e, por conseguinte, o então CPG, correu o risco de assumir muito mais o papel de vanguarda do que de representante, já que, para representar a categoria ele deveria ser um espaço de informação e amadurecimento para o encaminhamento das decisões (CANEZIN, 2009, p. 266). A análise feita pela referida autora acima representa uma postura em relação a creditar num papel ainda relevante ao sindicato, desde que esse aja de uma forma a “promover” o debate interno com a categoria, as concepções apresentadas não se diferenciam uma das outras como a autora coloca, mas sim exemplificam as faces que o sindicalismo pode utilizar para iludir com discursos pragmáticos os interesses da burocracia sindical/partidária. Esse fato fica exemplificado pela greve de 2010, que tinha como uma de suas bandeiras a questão do piso salarial nacional, além do enquadramento dos auxiliares educacionais , na prefeitura de Goiânia, onde o sindicato atuou de uma forma a não deflagrar a greve, procurando intimidar qualquer manifestação nesse sentido, esse fato ocorreu por causa da ligação dos burocratas sindicais com o Partido dos Trabalhadores, que nesse momento assumia através do vice- prefeito Paulo Garcia (PT) a administração da prefeitura de Goiania. A presença do PT, na direção do Sintego remonta desde a sua fundação, tendo a corrente denominada Articulação Sindical, a mesma presente na direção da Central Única dos trabalhadores, como sendo dentro do partido a corrente dominante, nessa perspectiva as 79 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul estratégias de luta adotadas pelo sindicato, são sempre pautadas em não desgastar a imagem do partido, principalmente quando este, ocupa os governos. Para Ataides (2005) as relações entre o PT/SINTEGO, são visíveis na representação dos seus presidentes que fazem ou fizeram parte do partido . Lutar sem sindicato é possível, a auto organização é uma realidade. Os exemplos da greve de 2010, na prefeitura de Goiânia e o que aconteceu com os professores da greve do estado em 2008, mostram que em um processo de luta as chamadas garantias evocadas pela organização sindical, não passam de ilusões, já que na luta concreta o enfrentamento e as conquistas são frutos da capacidade de resistência, da categoria através de ações diretas. As greves em educação mostram o descaso que o Estado tem em relação à educação para a classe trabalhadora, os trabalhadores da educação, os alunos e suas famílias são as grandes vitimas desse processo. Embora o enfoque dessas greves sejam os salários e as péssimas condições de trabalho, os movimentos conduzidos pelos sindicatos levam sempre a categoria a depositar ilusões em relação a mudanças de governo dentro do estado, criando uma mistificação que existirão governantes melhores que os outros, sem perceber que os ganhos em um determinado mandato podem ser retirados em outros, conforme a conjuntura econômica e a capacidade de reação da categoria. 79 Referências Bibliográficas Esse fato pode ser percebido na análise de Ataides 2002, que enfoca a “mudança” na administração do governo de Goiás em 1998, com a eleição do governador Marconi Perillo do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que permitiu a efetivação de concursos para professores bem como o plano de cargos e salários, já que durante a administração do PMDB, esse fato não ocorria. O referido autor afirma a alternância do poder na época como um fator positivo, sem perceber que sua análise é superficial, por não notar que as “conquistas” formavam um jogo político para a reeleição do mesmo, pois em 2010 o mesmo Marconi Perillo acaba com o plano de cargos e salários dos professores 79 80 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul ATAIDES, Marcos A. M. SINTEGO: lutas, vitorias e derrotas na década neoliberal. Dissertação de Mestrado. Mestrado em Educação Goiãnia. Universidade Católica de Goiás. 2005BAKUNIM. M.A. O principio do Estado e outros ensaios. Org, e trad. Plinio Augusto Coelho. São Paulo: Hedra; 2008. CANEZIN. Maria Tereza. Sindicatos e Magistério: constituição e crise. Goiânia: UFG,2009. KROPOTKIN, P. O Estado e seu papel histórico. Trad. Alfredo Guerra. São Paulo: Imaginário; 2000. MARX, K.; ENGELS, F. Sindicalismo. Trad. 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Rio de Janeiro: Rizoma; 2011. _____________A Revolução dos Trabalhadores. Editora Barba Ruiva, 2007. 81 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul A INSTITUIÇÃO DAS AULAS RÉGIAS E A FORMAÇÃO DO ESPAÇO POLÍTICO NO SUL DE MINAS GERAIS Edna Mara Ferreira da Silva Universidade do Estado de Minas Gerais UEMG – Campanha O estabelecimento de limites tanto internos quanto externos e a expansão territorial em fins do século XVIII e inicio do século XIX na América portuguesa seguiu ritmos diferentes, e Minas Gerais como região estratégica do império se inseria nesses movimentos territoriais. O processo de demarcação das fronteiras meridionais entre as Américas portuguesa e espanhola teve em Minas um corolário regional, expresso em uma clara política de expansão territorial e de consolidação dos limites da capitania, que foi conduzida por seus governantes na segunda metade do século XVIII. Tal política se apoiou fortemente na criação de vilas, de freguesias e de sedes de julgados nas zonas periféricas de Minas Gerais. (FONSECA, 2010:197) A ocupação territorial e administrativa do sul da capitania de Minas Gerais, assim como em outras regiões da mesma, nas quais o ouro não foi encontrado, ou rapidamente se escasseou, se deu de forma mais lenta do que a percebida nas áreas de mineração. A fronteira sul da capitania era aberta ao trânsito dos paulistas e era habitualmente chamada de “sertões” da comarca do Rio das Mortes. Situando-se à margem do mundo conhecido e regulado, o sertão, como sugere Adriana Romeiro, é um espaço mais simbólico do que geográfico. A rigor, as fronteiras vão se definindo a partir da imposição, pela permanência e posse de terras num movimento das populações que investem sobre o território de forma abrupta ou mais lentamente. “Daí a 82 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul mobilidade de uma fronteira, que oscilava à medida que as terras incógnitas e desconhecidas iam sendo devassadas pelo elemento humano”. (ROMEIRO, 2003: 271) O Sertão do Rio Verde, como era denominado o território antes de se tornar parte constituinte da Comarca do Rio das Mortes, começou a ser percorrido em 1692. (CASADEI, 1989) quando os bandeirantes paulistas deixaram suas terras em busca das riquezas do interior, atravessam a serra da Mantiqueira pela garganta do Embaú e atingiram as cabeceiras do Rio Verde. Esse sertão do Rio Verde era área de fronteira e de disputa entre as autoridades de São Paulo e Minas Gerais. No governo de D. Brás Baltazar da Silveira foram criadas três comarcas para a região das Minas e ficou decretado como limites para a do Rio das Mortes a Serra da Mantiqueira, ao sul, e o sertão desconhecido, a oeste. Como consequência, o termo da vila de São João del Rei foi ampliado, estendendo-se até a Mantiqueira, fazendo com que sua Câmara se tornasse responsável pela administração de toda a região sul do território. A elevação à vila do antigo arraial de Campanha do Rio Verde deve ser entendida como parte de um movimento mais amplo que se inseria no contexto das transformações ocorridas em Minas Gerais na segunda metade do século XVIII, tanto em termos econômicos quanto políticos. Como já se apontou anteriormente, frente às descobertas auríferas e a ocupação do território, o estabelecimento de vilas em Minas Gerais configurou-se como um elemento poderoso de reafirmação da soberania portuguesa, da mesma forma que pode ser percebido também como recurso de organização administrativa. Nesse cenário que se descortina na virada do século XVIII para o XIX, o arraial de Campanha de Santo Antônio da Piedade do Rio Verde, elevado a condição de vila em 1798, com a denominação de vila da Campanha da Princesa, assumiria progressivamente um lugar de destaque, tornando-se, juntamente com as vilas de São João del Rei e Barbacena, um dos mais expressivos núcleos urbanos da região da Comarca do Rio das Mortes, com vigorosa participação na política imperial. Segundo Andrea Slemian, Minas Gerais já passava por várias transformações quando da chegada da corte ao Brasil em 1808. A Comarca do Rio das Mortes foi a que mais cresceu em fins do século XVIII, reflexo do deslocamento demográfico das antigas áreas de mineração para o sul. (SLEMIAN, 2008) 83 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul No contexto da propagação das reformas e princípios ideológicos formulados por D. Rodrigo de Sousa Coutinho – e a despeito da grande distância entre a “mudança socioeconômica e a elaboração da política” reformista -, as elites mineiras, chamadas a participarem ativamente da reorientação da política imperial, deram transparência a estas demandas locais, cuja contemplação fundava, em último caso, as condições da obediência e unidade. (SILVA, A., 2005:107) Muito diferente dos contornos estabelecidos pelos sediciosos de 1789, o que se vê nesse momento, da chegada da Corte são as manifestações de obediência e fidelidade, expressa nas correspondências de várias câmaras mineiras, inclusive a de Campanha, o que demonstra a adaptabilidade da vila, criada no contexto de virada do século XVIII para o século XIX, às novas circunstancias políticas. Buscamos justamente relacionar a conjuntura do inicio do século XIX com o papel das aulas régias, dentro dos incipientes mecanismos de administração no termo de Campanha, de se adaptarem as condições surgidas das mudanças históricas. O estabelecimento das aulas régias cumpria as determinações legais para as reformas educacionais empreendidas no reinado de Dom Jose I, num contexto maior de reformas administrativas e políticas. A educação, ao que parece, foi ministrada nos primeiros tempos do povoamento das Minas através do ensino doméstico ou de alguns poucos professores e escolas particulares. Nesta capitania, a mais urbanizada, outras formas de educação floresceram, independentemente de qualquer modalidade de sistema escolar: educação moral e religiosa no seio das irmandades leigas; educação profissional para o aprendizado dos ofícios mecânicos e das artes, realizado nos ateliês, nas oficinas e nas residências dos mestres e mestras; educação para a formação de bons súditos e bons cristãos, 84 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul nos espaços de sociabilidade próprios dos núcleos urbanos mineiros, envolvendo ora o Estado, ora a Igreja, como as festas, apresentações teatrais, etc. (FONSECA, 2008:3) Não obstante as outras formas de educação, o ensino jesuítico marcante em outros espaços coloniais, mesmo com seu alcance social restrito, foi tardiamente introduzido nas Minas, uma vez que era obstaculizado pela a proibição de se estabelecerem ordens religiosas nesta capitania. Dessa forma somente em meados do século XVIII, através de uma permissão temporária para três jesuítas ministrarem aulas no recém-criado seminário menor de Nossa Senhora da Boa Morte em Mariana (1748) primeira instituição escolar semi-pública de Minas, (VILLALTA, 1998) é que temos um embrionário experimento de educação jesuítica na capitania. Essa experiência educacional jesuítica durou pouco mais de uma década: o Alvara Régio de 28 de junho de 1759 ao mesmo tempo em que estingue os estabelecimentos jesuíticos de instrução, por conta da expulsão da ordem de Portugal e de seus domínios ultramarinos, cria as escolas regias através do sistema de aulas régias. A partir de 1759 com a expulsão dos jesuítas, o Estado assumiu a responsabilidade diretamente pelo ensino escolar. Para financiar esse sistema de educação pública baseado em aulas avulsas de nível primário, as chamadas primeiras letras, ao nível secundário, distribuídas por vilas, arraiais, freguesias e cidades, dadas isoladamente por professores pagos pela Coroa, foi instituído em 1772 um imposto o subsidio literário. Para a cobrança do imposto nas terras do Brasil ficou sendo responsável as Juntas da Real Fazenda instaladas em algumas capitanias. [...]Após realizar a coleta do imposto, pagamento dos mestres e professores, os responsáveis teriam que enviar o saldo existente para Portugal . O sistema de coleta do imposto era realizado semestralmente e os valores eram anotados num caderno no qual constava o nome do produtor, o local em que morava, a quantidade do 85 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul produto manifestado e quando não produziam, os contribuintes também deveriam justificar o fato. (SILVA, D., 2005:3) Segundo Diana Silva tanto em Portugal quanto no Brasil foram observados desvios e fraudes em todo processo da coleta do imposto ao pagamento dos mestres. Dessa forma, no inicio odo século XIX, no Brasil as comarcas passaram a administrar a arrecadação do subsidio literário e pagamento dos funcionários ligados as sistema de ensino régio. (SILVA, D., 2005) Em relação ao pagamento dos subsidio e a ausência de mestres e professores, podemos inferir ainda sobre outras questões que sobressaem no documento do acervo digital da Secretaria de Governo da Capitania (Seção Colonial) do Arquivo Público Mineiro intitulado: Informação de serviço que fazem os oficiais da Câmara da Vila de São João del-Rei ao governador, referente à cobrança do subsídio literário para a conservação dos mestres de primeiras letras, e gramática latina em todas as comarcas, e sugerindo a provisão do reverendo Manuel da Paixão e Paiva, para a cadeira de gramática latina, pois aqueles que pagam o subsídio literário reclamam da falta de professor.80 Nele, em 1804, os oficiais da Câmara de São João del Rei, cabeça da comarca do Rio das Mortes informavam ao governador que observando a ordem da Junta da Real Fazenda continuavam a cobrança do subsídio literário e que diligenciavam ao mesmo tempo “o arrematante do respectivo subsidio as avenças com os senhores de engenho, respeito aos barris de agua ardente que fabricam, assim esta Comarca como aqueles temos encontrado uma incontrastável repugnância nos ditos lavradores”81, que contribuindo com o subsidio para instrução de seus filhos se acham obrigados a pagar mestres que os instruam. Em consequência de que argumentam que devem ser aliviados de um encargo a mais cujos fins não correspondem a natureza de sua imposição; razão por que recorremos a Vossa Excelência afim de 80 Utilizamos para citação de documentos históricos a Norma Geral Internacional de Descrição Arquivística, disponível em <http://www.ica.org/biblio/isad_g_2TXT-POR_2.pdf>. 81 Arquivo Público Mineiro. Acervo da Secretaria de Governo da Capitania. Avulsos, SG - Cx. 62, doc. nº 59, 27/06/1804. 86 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul providenciar este importante negocio, ou, dando meios, que facilitem a cobrança daquele subsidio apesar da escusa oposta; ou provendo de Mestre de Gramatica Latina à cadeira desta Vila, Cabeça de Comarca a qual achando-se vaga por ausência do reverendo Marçal da Cunha Mattos, tem continuado no ensino de alguns estudantes mais abastados o reverendo Manoel da Paixão e Paiva, o qual só por obséquio aos mesmos e a seus pais[...]82 Transparece a necessidade de controle por parte da Comarca como salientado por Diana Silva, mas, além disso, percebemos ainda a necessidade de adequação da sociedade em acomodação no inicio do século XJX com a nova proposta de ensino e velhas formas de se pensar a educação, marcadamente pelo obséquio que fazia o padre Manoel Paiva em ensinar alguns estudantes mais ricos. Assinam os muito submissos oficiais da câmara de São Joao Del Rei. Entre as novas leis e a realidade do ensino, porém, houve grande distancia. Havia poucas aulas régias e as disciplinas, via de regra, não eram oferecidas em todas as vilas e cidades, com o que os interessados em instruir-se tinham que se deslocar por vários locais. Além disso, faltavam professores, manuais e livros sugeridos pelos novos métodos, enquanto os recursos orçamentários foram insuficientes para custear a educação pública, [...]. Com tudo isto, a educação, tornada publica pela lei, continuou em grande parte privatizada. (VILLALTA, 1998: 189) Procuramos enfocar de modo mais detalhado a questão das aulas régias na Comarca do Rio das Mortes onde se erigiu a vila de Campanha da Princesa, mas é possível perceber 82 Arquivo Público Mineiro. Acervo da Secretaria de Governo da Capitania. Avulsos, SG - Cx. 62, doc. nº 59, 1804. 87 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul através de petições83 e documentos semelhantes ao citado acima que outras localidades da capitania tiveram problemas semelhantes quanto a instituição das aulas régias. Nossa analise parte da leitura de dois tipos documentais, pertencentes ao acervo. Primeiro, as petições dos professores leigos e ordenados solicitando ao governo da capitania, através do Senado da Câmara Municipal, que assumissem o cargo de professor de primeiras letras ou de gramática latina. Segundo, os atestados emitidos pelos professores nomeados aos cadetes e/ou candidatos a patentes militares nas tropas de ordenança (de linha e de pé). Os pedidos de provisão para o cargo de professor de primeiras letras e/ou gramática latina, ao longo do período 1794 a 1821, somam 25 documentos. Já os pedidos de renovação de provisão, que se concentram entre os anos de 1814 a 1821 somam 17 documentos. Foram arrolados os pedidos de provisão feitos pelos próprios professores que pretendiam exercer o cargo, excluiu-se dessa listagem os pedidos feitos pelas câmaras ou indicações de outra espécie. Dentre as comarcas, a de Vila Rica tem o maior número de localidades citadas, 10 entre Vila Rica, a cidade de Mariana, freguesias e arraiais, seguida da comarca do Rio das Velhas com 6 localidades citadas nos pedidos de provisão. para o cargo de professor. A comarca do Serro Frio soma 6 pedidos mas 4 são para a mesma localidade a vila de Bom Sucesso de Minas Novas (179484, 1802, 1817e 1818), e por fim os pedidos para a Comarca do Rio das Mortes citam 3 vilas: São João Del Rei, São José Del Rei e Campanha da Princesa. Para Campanha da Princesa o pedido de provisão para o cargo de professor para cadeira de Gramática Latina foi feito pelo padre Francisco José de Sampaio em 1801: Diz o padre Francisco José de Sampaio que se acha exercendo a cadeira de Gramática Latina na Vila da Campanha da Princesa por simples licença do exmo. reverendo prelado e como para poder continuar a receber o competente ordenado necessita de provisão de 83 Encontramos uma petição elaborada pelos oficiais da Câmara de Barbacena em 1815 de igual teor. Arquivo Público Mineiro. Acervo da Secretaria de Governo da Capitania. Avulsos, SG - Cx. 93, doc. nº 32, 1815. 84 Arquivo Público Mineiro. Acervo da Secretaria de Governo da Capitania. Avulsos, SG - Cx. 26, doc. nº 11, 1794. 88 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Vossa Excelência em conformidade das ordens de sua Alteza Real apresentado a aprovação junto ao exmo. prelado85 Padre Francisco Sampaio apresenta a licença concedida pelo prelado juntamente ao pedido de provisão. Essa licença datada de 1800 corresponde a informação apresentada por Ana Cristina Lage sobre os primórdios da educação em Campanha. Segundo a autora, a partir de relatos de memorialistas a primeira cadeira de ler, escrever e gramatica latina teria sido criada em 1800 na Vila de Campanha e os primeiros professores seriam os padres Manuel Coimbra e Francisco José Sampaio. (LAGE, 2007) Nos documentos avulsos do acervo da Secretaria de Governo da Capitania do Arquivo Público Mineiro encontramos ainda um pedido de renovação da provisão do cargo de professor do padre Francisco Sampaio de 1816 e um novo pedido de provisão do mesmo padre para o ano de 1817. Não encontramos petição de provisão ou renovação de provisão do padre Manuel Coimbra nos acervos do APM – Arquivo Público Mineiro. Consultando o Catálogo de Documentos Manuscritos Avulsos referentes à Capitania de Minas Gerais existentes no (AHU) Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, temos duas menções ao padre Manuel Coimbra, ambas juntamente com o Padre Francisco José Sampaio em referencia a solicitação do pagamento de seus ordenados como professores. O primeiro documento citado no catalogo do AHU é um requerimento datado de fevereiro de 1802 dos padres Francisco José Pereira de São Paio e Manuel Joaquim Pereira Coimbra, moradores na Vila da Campanha da Princesa da Comarca de São João Del Rei, sendo o 1º nomeado para o ensino da gramática latina e o 2º para ensinar a ler, a escrever e a contar. Solicitam aviso para o pagamento do seu ordenado desde o início do dito exercício.86 E o segundo documento de 1804 é uma carta de Dom Frei Cipriano, bispo de Mariana dirigida ao príncipe regente D. João, informando com o seu parecer sobre o requerimento dos 85 Arquivo Público Mineiro. Acervo da Secretaria de Governo da Capitania. Avulsos, SG - Cx. 53, doc. nº 05, 1804 86 Arquivo Histórico Ultramarino. Catálogo de documentos manuscritos avulsos referentes à capitania de Minas Gerais. Nº de inventário no catálogo: 11759 AHU-Minas Gerais, cx. 161, doc. 29 89 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul padres Francisco e Manuel, no qual solicitavam o pagamento dos seus ordenados enquanto professores na vila de Campanha da Princesa.87 Até o momento não encontramos outra referência sobre o padre Manuel Coimbra. Já sobre o professor de gramática latina da vila de Campanha, temos além dos pedidos de renovação de provisão outro apontamento feito em ata pelos oficiais da Câmara daquela vila em 1812, transcrito por Julio Bueno em seu Almanach do município da Campanha de 1900: Nesta foram apresentadas umas atestações do reverendo Padre Mestre Francisco José de Sampaio requerendo, que a Câmara lhe fizesse passar outros a respeito do exercício que tem de Mestre Régio de Gramática Latina; mas os oficiais da Câmara ponderando que tendo o dito Professor exercitado a Cadeira de onze para doze anos, e não tendo em todo esse tempo produzido um só estudante que saiba Gramática, e por esta razão já desenganados os pais de famílias desta Villa têm mandado os seus filhos para outras partes, e presentemente para o Arraial da Aiuruoca aprenderem a Gramática Latina com um Mestre particular que lá ensina de nome Esaú dos Santos e pode acontecer, que chegando esta notícia ao Real Trono, seja Sua Alteza Real servido mandar responder a esta Câmara, a razão de passar atestados ao dito Reverendo Padre Mestre Sampaio, depois de ter mostrado a experiência de tantos anos, que ele tem por natureza uma negação total para instruir a mocidade nos Preceitos da Gramática Latina. Acordaram em não assinar mais atestações; e quando o dito Padre Mestre se queixe, servirá este acórdão para com ele se responder, ou a Sua Alteza Real por qualquer dos Tribunais, ou ao 87 Arquivo Histórico Ultramarino. Catálogo de documentos manuscritos avulsos referentes à capitania de Minas Gerais. Nº de inventário no catálogo: 12497 AHU-Minas Gerais, cx. 173, doc. 63 90 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Excelentíssimo General desta Capitania. (Atas da Câmara de Campanha,1812) (LAGE, 2007:54/55) Os pedidos de renovação de provisão e de nova provisão são posteriores a essa anotação dos oficiais da Câmara, o que nos leva a supor que frente a recusa dos senhores vereadores em lhe permitir continuar a atividade de professor de gramatica, teve que recorrem a instancias superiores. Não há anotação no pedido de renovação de provisão que confirme o deferimento do mesmo. No entanto no pedido de nova provisão em 1817 existe um deferimento favorável a solicitação do padre em ministrar as aulas de gramatica latina. Por fim notamos ainda na documentação pesquisada a menção ao padre Francisco em outro documento: um atestado passado ao Cadete João Evangelista de Alvarenga, dizendo que este fora examinado pelo mestre em gramatica latina e se achava bem. Atestados e requerimentos aos mestres no sentido de confirmar a frequências dos cadetes nas aulas tanto de gramática como de primeiras letras e por vezes até de aritmética, parece ter se tornado mais comum a partir da década de 1810. Verificamos num levantamento preliminar cerca de 30 documentos similares no período de 1814 a 1819. Muitas vezes os atestados inferem sobre o acompanhamento dos mestres a irmãos ou primos candidatos a carreira nas topas de linha ou de pé por anos. Os intervalos entre os atestados de frequência podiam ser bimensais ou semestrais, dando conta de um real acompanhando do aluno/cadete pelo professor. Esse escopo documental composto por documentos avulsos em sua maioria, sugere uma interpretação até então pouco avaliada sobre o papel dos professores de aulas régias nesse contexto de mudanças e acomodações pelos quais a sociedade colonial e mineira passava em fins do século XVIII e inicio do século XIX. Referências Bibliográficas CASADEI, Thalita de Oliveira; CASADEI, Antônio. Aspectos Históricos da Cidade da Campanha. Petrópolis: Editora Gráfica Jornal da Cidade, 1989 91 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul FONSECA, Claudia Damasceno. Vila da Campanha da Princesa: A Corte, as Minas, a cidade e a memória. 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O termo “as Folias” é aqui utilizado para explicar que se trata de uma mesma manifestação, mas que recentemente apresenta-se dividida em três: a Folia da Roça, que gira pela área rural e também é conhecida como a Folia Tradicional; A Folia da Rua que gira, a pé, por alguns bairros da cidade. Além destas duas Folias citadas ainda há a Folia do padre que foi criada recentemente pela Igreja no intuito de preservar os aspectos mais religiosos da festa, inclusive com realização de missa durante os pousos. Para melhor compreensão sobre as Folias, enquanto manifestações da cultura popular, recorremos ao fato de que as festas expressam a cultura, são acontecimentos relevantes, dotados de significados que definem comportamentos e constituem a história local. Buscar compreender uma comunidade pelas suas manifestações 88 Fomento: Prp/UEG por meio do Projeto de Pesquisa: Pesquisa Girando Folia: apontamentos turísticos e gastronômicos em um das devoções ao Divino Espírito Santo – Pirenópolis/Goiás do qual é bolsista PBIC/UEG. Integrante do Grupo de Pesquisa Saberes e Sabores Goianos. Orientador: João Guilherme Curado. 93 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul culturais é uma tarefa complicada e contraditória, pois elas são “mutáveis” e refletem os anseios mediatos dos moradores. Os festejos que ocorrem em Pirenópolis são expressão do catolicismo popular, tendo em sua estrutura fundamental uma coletividade multicultural pautada na cooperação e na solidariedade. Partindo de inquirições em relação à caminhada religiosa, presente nessas festividades, verifica-se as significações de comportamentos e práticas ligadas à memória – uma das principais indicadoras das permanências e das alterações ocorridas no dinamismo histórico e nos percursos geográficos dessas festas (CURADO; LÔBO, 2011, p. 82). Partindo das considerações mencionadas acima destacamos a importância da compreensão da dimensão cultural e religiosa que a Folia do Divino Espírito Santo tem para seus participantes, sendo atualmente um desafio manter a tradição dos rituais e costumes realizados durante a Folia, para que os mesmo não se percam com o passar do tempo pela falta de interesse das novas gerações. Temos por intenção compreender um pouco mais sobre esta devoção da qual a comunidade da qual fazemos parte repete a cada ano, com devoção ao Divino Espírito Santo. Outro fator preponderante é buscar divulgar a Folia, que pode ser um importante atrativo do segmento do Turismo Cultural, como expõe Meneses (2004). A Folia da Roça, ou Folia Tradicional, realiza seu giro pela zona rural do município, e é a principal fonte de pesquisa não somente pelo fato de atrair um número maior de participantes ou visitantes, mas pelo fato de envolver uma maior quantidade de pessoas, tanto na sua organização quanto de Foliões (nome dado aos cavaleiros que fazem o giro da Folia). É também, dentre as três folioas citadas, a mais antiga. Outro aspecto relevante da Folia é o fato dos pousos acontecerem na zona rural em fazendas de pequenos agricultores, que antigamente reservavam este período do ano para abrir sua propriedade para receber o Divino Espírito Santo com a intenção de que o Divino abençoasse sua moradia, sua família e ainda representava o momento de agradecer a colheita. Para retribuir as graças alcançadas o proprietário oferecia um jantar tendo como base 94 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul ingredientes produzidos outrora em sua própria fazenda (arroz, feijão, mandioca e carne de vaca). Em algumas propriedades são oferecidas sobremesas como doce de leite, de mamão, de banana dentre outros. O café da manhã é composto por biscoitos a base de polvilho de mandioca, alimento base de todo pequeno produtor rural,ou por pão com cardem dependendo do Pouso. A comida de Folia é uma atração dos pousos. Apesar de seu preparo ser em grandes quantidades e dos vasilhames utilizados serem grandes, existe todo um ritual em seu preparo, sendo que cada tempero é colocado na quantidade certa para não comprometer o gosto da comida. Este é um dos modos de expressão da hospitalidade dramatizado nas Folias do Divino, que conforme Veiga (2008), consiste no o ato de comer junto, de oferecer e compartilhar o alimento. Quando uma família da roça (família que vive na zona rural) recebe alguém em sua casa é servido tudo que a família produz, é a maneira de receber bem um visitante. Foi esse costume que a Folia englobou em seus rituais. Durante todo o giro da Folia acontecem vários rituais, o primeiro deles é na chegada onde os foliões fazem o um “S” que simboliza o Santíssimo, que é feito pelos foliões montados em seus cavalos na entrada da fazenda que se realizará o pouso. Esse movimento inicia quando os cavaleiros se dividem em duas grandes filas que se cruzam e formam um círculo girando em direção contrária. Em cada uma destas filas uma Bandeira segue na frente. No momento em que as bandeiras se aproximam, os cavaleiros tiram os chapéus, em sinal de respeito ao Divino. No final as duas bandeiras se encontram e juntas seguem em direção aos proprietários da fazenda. Todo esse movimento é feito ao som da caixa (instrumento feito de couro de boi, e bastante semelhante ao surdo). Quando a bandeira vai se aproximando da casa os dois embaixadores (nome dado aos cantores principais da Folia) iniciam a primeira de várias outras cantorias da Folia. O verso inicia assim: O Divino vai chegando com seu lindo resplendor! Vai dizendo viva, viva, viva o nobre morador. 95 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Em seguida as bandeiras são passadas para as mãos dos moradores e cabe a eles protege - lá e guarda- lá no altar e em todos os outros rituais que acontecem durante o pouso. Estes outros rituais são o agradecimento da mesa, feito após o jantar e depois do almoço; pedido de esmola ou ajuda dos visitantes, este momento todos podem segurar uma das bandeiras, desde que faça alguma doação para a Folia, esta ajuda é utilizada para despesas e se sobrar é repassado ao Imperador da Festa Do Divino Espírito Santo. Durante as alvoradas, que acontecem de madrugada, às 5 horas da manhã, as bandeiras são retiradas do altar e levadas aos acampamentos dos músicos e em seguida retornam ao altar, onde permanecem até o agradecimento do almoço e a saída. Durante os dias da Folia do Divino a cidade e região respiram a festa. Fato que pode ser comprovado na chegada da Folia na cidade, quando as pessoas se aglomeram durante todo o percurso dos cavaleiros que vão entregar as bandeiras ao Imperador da Festa do Divino Espírito Santo. É o final de uma jornada para os foliões exaustos, que por mais de oito dias montados no lombo de um cavalo, percorrendo mais de 100 km por todo o município da de Pirenópolis. Mas apesar da exaustão provavelmente a maior parte dos foliões já está planejando participar do giro do próximo ano. Folia do Divino em Caxambu Carregada de toda história de religiosidade e de devoção foi que essa Folia chegou ao Povoado de Caxambu, localizado a aproximadamente 25 km da cidade de Pirenópolis. Com uma população de pouco mais de trezentas pessoas que vivem basicamente da agricultura, o povoado situado às margens do Rio Caxambu, que empresta nome à localidade, recebe a cada ano cerca de 5 mil pessoas nos pousos que promove a pelos menos três anos, sendo que para isso há uma significativa transformação na comunidade. Destacamos o fato de que os foliões tomam conta dos arredores da praça central onde está situada a capela local. A praça passa a ser ocupada pelas barracas, carros de apoio e muitos cavalos, além das barracas que comercializam bebidas e comidas durante a cada pouso de Folia. 96 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul O Povoado que foi fundado por volta do ano de 1930, surgiu como patrimônio, pois fazendeiros da redondeza fizeram doação de terra para construir uma capela e consequentemente em volta da mesma foi formando moradias. O Povoado tem uma Festa Tradicional de Carro de Boi em Louvor ao Divino Pai Eterno, o padroeiro local, e por décadas tinha sua própria folia em louvor a este mesmo Santo. No entanto, quando a Folia do Divino Espírito Santo de Pirenópolis chegou ao povoado de caxambu foi a oportunidade que antigos foliões pudessem novamente celebrar uma Folia,já que a do Divino Pai Eterno tinha se encerrado. A Folia no Povoado de Caxambu acontece a três anos (desde 2012), mas o povoado é bastante conhecido pela Festa de Carro de Boi que acontece no primeiro e no segundo final de semana do mês de julho, durante a festa em louvor ao Divino Pai Eterno, que está presente no calendário do povoado a décadas e envolve toda comunidade local e da zona rural circunvizinha. Além da festa ao Divino Pai Eterno existiu por de 30 anos uma folia que antecedia a mesma, e que percorria as fazendas próximas a Caxambu, quando os agricultores abriam suas casas para receberem os foliões e a bandeira para agradecer as bênçãos alcançadas junto ao Divino Pai Eterno. Essa Folia era em menor escala, mas os rituais e canções praticamente eram os mesmos da Folia do Divino Espírito Santo de Pirenópolis que agora passa também pelo povoado nas proximidades de Pentecostes. Com o término da Folia do Divino Pai Eterno alguns moradores ficaram de certa maneira órfãos de folias, pois são devotos do Divino e com o seu fim a bandeira não mais chegaria a suas residências, deixando assim um vazio, pois muitos moradores antigos são extremamente devotos e a folia não significa somente um momento para festejar, mas sim para expressar toda fé e devoção. Para muitos antigos foliões de Caxambu a chegada da Folia do Divino Espírito Santo de Pirenópolis ao povoado renovou e fez renascer este momento de celebração, mesmo com o fato de a Folia acontecer dentro do Povoado e muitos destes agricultores e moradores da zona rural terem que se deslocarem para o povoado para participar da Folia. Nos principais rituais da Folia: chegada, agradecimento da mesa, pedido de esmola, catira é possível perceber a participação das pessoas que participavam da extinta Folia do Divino Pai Eterno de Caxambu. 97 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Outro aspecto importante do pouso de Folia do Divino Espírito Santo em Caxambu é o fato de acontecer dentro do povoado, sendo assim possível visualizar as mudanças e novos comportamentos sociais que a festa vem incorporando à comunidade com o passar do tempo. Exemplo destas mudanças são as barracas que comercializam bebidas e comidas e que chegam ao local do Pouso primeiro que os foliões e ocupam quase todo espaço próximo à casa que receberá as bandeiras. Outra ilustração advém do fato de que a presença marcante dos carros que atrapalham a chegada e dificultam a execução do “S” da chegada ritual. Também chama a atenção o fato de que as cozinheiras são contratadas para fazer as refeições uma vez que a dona casa do pouso não consegue mobilizar a população do povoado e vizinhos para auxiliar na preparação da comida dos foliões. O cardápio servido é praticamente o mesmo dos demais pousos. Os demais participantes que não foliões que realizam o giro (conhecidos também com folião de atalho ou cata pouso) aumentam a cada ano no Pouso de Caxambu, fato que pode ser explicado pela facilidade de acesso, uma vez que a pavimentação colaborou para os deslocamentos que antes se davam por caminhos de chão que eram empoeirados como na maioria dos demais pousos. O aceso a Caxambu é feito pela GO 338 que está toda asfaltada e em perfeitas condições, após passar por uma recente reforma. Os “foliões de atalho” ou “cata-pousos” chegam aos pousos, e em especial ao de Caxambu, a partir da 23 horas, momento que terminam os rituais religiosos e começa a festa dançante, a qual o repertório é selecionado apenas por músicas sertanejas e forró. Esta dança termina às quatro horas da madrugada, pois uma hora depois tem início a alvorada quando as Bandeiras são retiradas do altar e levadas até a cozinha e ao acampamento dos regentes e alferes, lembrando que o percurso das bandeiras segue uma linha paralela, pois as bandeiras não podem retornar ao altar pelo mesmo caminho. Após a alvorada espera-se o dia raiar para servir um café com leite e pão com manteiga. Em seguida a próxima e última refeição é o almoço que acontece por volta das 13h30min. Depois do almoço e do agradecimento a Folia se despede do povoado cantando que: “O Divino vai se embora, mas não é para ninguém chorar”, este trecho faz parte do canto da 98 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul saída da Folia, que é entoado de uma forma triste e bem melancólica, sendo que é possível ver algumas lágrimas marejando nos olhos de alguns moradores mais antigos, que provavelmente trazem à mente toda nostalgia da antiga folia destinada ao outro Divino, o Pai Eterno. Considerações Finais A Folia do Divino Espírito Santo é um campo extenso para pesquisa, são várias as manifestações que ocorrem dentro dela, como: os acampamentos, os cantos, as comidas, os participantes, os foliões e os símbolos. Detivemos-nos, neste artigo, a pensar sobre a representatividade da Folia do Divino Espírito Santo no povoado de Caxambu, uma prática recente, data de três anos, mas que possui um significado bastante importante para a comunidade, principalmente para os mais velhos que vivenciaram outra folia que desapareceu, a do Divino Pai Eterno. Para os mais jovens os significados não pautam muito na devoção, mas na grande festa que acontece após cessarem os rituais da Folia e iniciar as atividades do rancho que é montado nas vizinhanças da casa em que as bandeiras dormem. O fluxo de pessoas da área rural e também de cidades circunvizinhas para Caxambu é grande. Enfim, a Folia do Divino Espírito Santo em Caxambu representa a manutenção de devoções ou apropriações de antigas praticas festivas que passam por ressignificações a cada novo giro. Referências Bibliográficas CURADO, João Guilherme da Trindade; LÔBO, Tereza Caroline. Festas do Catolicismo Popular: expressões identitárias em Pirenópolis-Goiás. In: Ciberteologia (São Paulo. Edição em Português), v. 35, 2011. p. 82-92. JAYME, Jarbas. Esboço Histórico de Pirenópolis. Goiânia: UFG, 1971. 624p. MENESES, José Newton Coelho. História & Turismo cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. 128p. 99 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul VEIGA, Felipe Berocam. A folia continua: vida, morte e revelação na Festa do Divino de Pirenópolis, Goiás. In: CARVALHO, Luciana (Org.). Divino Toque do Maranhão. Rio de Janeiro: IPHAN/CNFCP, 2005. pp. 83-94. ________. Os gostos do Divino: análise do código alimentar da festa do Espírito Santo em Pirenópolis, Goiás. In: Candelária: Revista do Instituto de Humanidades, Rio de Janeiro: IHUCAM, ano V, Jan-Jun, 2008, pp. 135-150. 100 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul TRAJETÓRIAS NEGRAS NO BRASIL E SUAS DINÂMICAS NA FORMAÇÃO DE QUILOMBOS Fernando Bueno Oliveira89 A força escrava como forma de manutenção da riqueza O objetivo desse artigo é o de expressar o decisivo papel dos negros escravizados para a economia brasileira, considerando, para isso, alguns exemplos que ilustram perfeitamente a dependência dos senhores em relação aos seus escravos, importantíssimos, aliás, na produção e na manutenção de suas riquezas. O medo de perdê-los gerava constantemente diferentes formas de opressão e castigo, o que, consequentemente, também gerava, dentre os escravos, diversas formas de resistência à ordem escravista. Goiás não esteve de fora desse cenário, fato que lhe proporcionou o abrigo de um avantajado número de quilombolas. Em leitura a diferentes obras que se referem às características econômicas e sociais do Brasil ao longo do século XIX, apreendemos informações importantes na compreensão da relação entre senhores e africanos escravizados. Em todas elas, observa-se que o negro escravo era sempre avaliado como mera peça para a execução de tarefas. Entretanto, uma “peça” que, na visão de Moura (1981; 1987), era a grande agente responsável pela dinâmica econômica brasileira nos períodos colonial e imperial, o que nos permite concluir que sem ele, o africano escravizado, não haveria a mínima possibilidade de sustentar a implantação dos moldes capitalistas em terras brasileiras. Não poderíamos deixar de considerar a obra do sociólogo Octavio Ianni (1978) que, embora seja antecessora à obra de Moura (1987), pode ser perfeitamente aqui encaixada, por Universidade Estadual de Goiás – Brasil (UNUCSEH/UEG). Mestrando do Programa de Pesquisa e PósGraduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanidades: Territórios e Expressões Culturais no Cerrado – TECCER. E-mail: [email protected]; orientando (no período de 2014 a 2016) da prof. Dr. Maria Idelma Vieira D´Abadia, professora do TECCER. E-mail: [email protected]. 89 101 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul apresentar importantes reflexões acerca da relação entre a escravidão e o capitalismo, temática a ser abordada nesse pequeno capítulo. No Brasil, inicialmente, as famílias advindas da metrópole Portugal contavam com o apoio do Reino e, desde já, com a chance de aquisição de escravizados advindos do continente africano, o que lhes possibilitariam a criação e a manutenção de lavouras de cana-de-açúcar e engenhos. Já ao longo do século XVIII, as famílias provenientes de outros países europeus, encontravam por aqui a possibilidade de enriquecimento a partir da utilização da força escrava nas áreas de mineração e, posteriormente, na produção cafeeira. Ianni (1978) considerando diferentes teóricos, tais como Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Roger Bastide, Gilberto Freyre, admite que “em síntese, foi o capital comercial que gerou as formações sociais construídas nas colônias do Novo Mundo, provocando dessa maneira uma intensa acumulação de capital nos países metropolitanos” (p. 3). Na mesma obra, o autor tece diferentes reflexões, inclusive, acerca do racismo na sociedade escravista, quando o negro escravizado era considerado pelas classes mais abastadas como um ser desprovido de cultura. Critica Gilberto Freyre (1952) e Fogel & Engerman (1974) que, segundo Ianni, para eles, a escravidão aparece como sistemas fechados, encerrados em si, sem movimentos estruturais (pp. 84-85). Fogel e Engerman chegam a defender a ideia que o escravismo americano possibilitou um melhor nível de vida aos escravizados (p. 85). Percebe-se a desumanização do escravizado brasileiro ao se ler, por exemplo, certas literaturas da época escravista e as próprias anotações de diários íntimos de senhores(as) de escravos. A efeito de demonstração ao leitor, elencamos três registros de escritos que consideram o escravo como mera “peça” ou “máquina” de trabalho, sem nenhuma marca de impressão sentimental. Em referência à alta sociedade cafeeira do vale do Paraíba, selecionamos o livro escrito pelo Barão do Paty do Alferes e o diário íntimo da viscondessa de Arcozelo; em marco regional selecionamos anúncios do jornal “Matutina Meiapontense”. Numa perspectiva de análise que se baseia na forma em que os escravos eram tratados e do papel que desempenhavam na economia brasileira, tais trabalhos serão apresentados e discutidos a seguir. 102 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Iniciamos essa discussão tendo como base a obra de Ana Maria Mauad e Marianna Muaze (2004) na qual evidenciam as memórias da viscondessa do Arcozelo, por intermédio de seu diário íntimo. Ao tratarem sobre tal diário, as mesmas autoras abordam, resumidamente, a trajetória do barão do Paty do Alferes, pai da viscondessa. Como coronel da Guarda Nacional, o barão atuou no levante de escravos liderado por Manoel Congo na Fazenda Esperança, também chamada de fazenda Freguesia, em 1838. Tal escravo liderou um movimento de rebelião dentre os escravos da referida fazenda, sendo capturado e enforcado na cidade de Vassouras em seis de setembro de 1839. O mesmo barão, além de ter dado fim a esse movimento atuou, ainda, no cerco do quilombo de Entre-Rios. Antes de prosseguirmos, é importante constar que os escritos que compõem esse diário, objeto de trabalho de Maud e Muaze (2004), caracterizam o estilo de vida dos fazendeiros da região do vale do Paraíba durante a segunda metade do século XIX. A época em que tal diário foi confeccionado era marcada, ainda, pela “consolidação de uma aristocracia cafeicultora, dignitária do Império, cujo poder provinha da posse de terras e escravos” (MAUD & MUAZE, 2004, p. 199). Evidenciam, dessa forma, que os escravos dinamizavam a economia cafeeira e representavam, então, a riqueza de barões do café. Conforme a obra citada, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, o barão do Paty do Alferes, herdou, como único filho do casal Francisco Peixoto de Lacerda e Ana Matilde Werneck, uma imensa riqueza, dentre fazendas e propriedades urbanas. Interessante observar que o mesmo barão, preocupado em repassar ao seu filho os seus conhecimentos que resultaram em tamanha prosperidade, chega a escrever um livro, do qual faremos algumas citações. O livro Memória sobre a fundação e custeio de uma fazenda na província do Rio de Janeiro, primeira edição de 1847, “foi muito bem recebido pelos cafeicultores, atentos aos conselhos de um proprietário tão bem-sucedido, além de ser considerado por Taunay um precioso informativo sobre as fazendas da região” (MAUD & MUAZE, 2004, p. 201). Nesse livro, dentre informações relacionadas à lida diária numa fazenda, o mesmo barão repassa instruções sobre a escravatura, assunto que dedica um capítulo inteiro intitulado com o mesmo nome, orientando ao leitor sobre as melhores maneiras de se aproveitar do trabalho escravo. 103 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Já nas primeiras páginas de seu livro, o barão admite que os escravos representam a máxima parte da fortuna de um fazendeiro, devendo o mesmo refletir que “na conservação desses e na sua saúde e bem-estar, é que consiste a prosperidade da sua indústria” (p. 16). Admitindo que a vitalidade dos escravos representa a produção da riqueza, critica a forma que alguns fazendeiros os tratavam quando diz que “alguns agricultores não atendendo a seus interesses conservam seus escravos em cloacas úmidas e mal ventiladas, onde adquirem moléstias ou incômodos insidiosos que posteriormente os levam ao túmulo” (p. 16). Chama-nos a atenção que o barão instrui a se usar ao máximo da força de seus escravos, inclusive em trabalhos noturnos, colocando que o administrador da fazenda “ordenará então o serão da noite, ou no paiol ou no engenho de mandioca” (p. 35). Em alerta a eventuais prejuízos quanto à aquisição de escravos, o barão coloca que alguns escravos poderiam estar acometidos de enfermidades, portanto, orienta aos fazendeiros a não adquirirem escravos fiados “porque se vos morrem, estão a pagos, e a perda é menos sensível” (p. 39). Outra preocupação do barão dizia respeito à revolta de escravos. Para que isso não ocorresse aconselhava que O escravo deve ter domingo e dia santo, ouvir missa, se a houver na fazenda, saber a doutrina cristã, confessar-se anualmente: é isto um freio que os sujeita muito, principalmente se o confessor sabe cumprir o seu dever, e os exorta para terem moralidade, bons costumes, amor ao trabalho e obediência cega a seus senhores e a quem os governa (p. 39). Em repúdio às revoltas da escravaria, o mesmo livro instrui a importância dos senhores na manutenção de uma postura “equilibrada” diante de seus escravos. Sendo assim, o barão diz que “o extremo aperreamento desseca-lhes o coração, endurece-os e inclina-os para o mal. O senhor deve ser severo, justiceiro e humano” (p. 41). E continua: “Nem se diga que o escravo é sempre inimigo do senhor; isto só sucede com os dois extremos, ou 104 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul demasiada severidade, ou frouxidão excessiva, porque esta os torna irascíveis ao mais pequeno excesso deste senhor frouxo, e aquela leva-os à desesperação” (pág. 42). Com vistas a manter os escravos “sadios” o barão receita que o O escravo trabalhador de roça deve comer três vezes ao dia; almoçar as oito, jantar a uma hora, e cear das oito até nove. Sua comida deve ser simples e sadia. Em serra acima, em geral, não se lhe dá carne; comem os escravos feijão temperado com sal e gordura, e angu de milho, o que é alimento muito substancial (p. 43). Das citações acima, pode-se inferir que não ocorrem, em momento algum, sentimentos de humanidade, mas o interesse em garantir que a força escrava se mantivesse como mantenedora da prosperidade de seus senhores. Era ela, a força escrava, a grande responsável pela dinâmica econômica dos períodos Colonial e Imperial. O segundo exemplo do que nos propomos a tratar diz respeito às anotações da viscondessa do Arcozelo, ou Maria Isabel de Lacerda Werneck, às quais foram, em partes, copiladas e analisadas na obra de Mauad e Muaze (2004). Segundo elas, o hábito de anotar o cotidiano da família foi herdado da sua própria mãe, uma baronesa. Num fragmento do referido diário as autoras ilustram a fortuna da família da viscondessa, grande parte herdada de seu pai, o barão do Paty do Alferes: No Rio de Janeiro – 10 casas na rua da Relação; 2 casas na rua dos Inválidos e a mobília existente no prédio no 5 da rua Almirante Tamandaré. Em Portugal – na cidade do Porto, Freguesia do Arcozelo – várias propriedades. No município de Vassouras as fazendas Arcozelo, Monte Alegre e Piedade, com casa residência com capela e mais dependências, 4 casas em mal estado; um moinho em mal estado; uma casa onde se aça o engenho; um rancho para a tropa; uma casaenfermaria para velhos (PAULA E PONDE ([19-], p. 137) apud MAUAD & MUAZE, 2004, p. 204). 105 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Constata-se, assim, que a força escrava gerava lucros certos e o aumento do volume de posses às famílias dos barões do café. Sabe-se, entretanto, que a segunda metade do século XIX foi marcada pelo processo de libertação dos escravos, tendo seu ponto culminante em 1888, quando é assinada a Lei Áurea. As revoltas de escravos continuam a ocorrer e uma das estratégias das famílias detentoras da força escrava era a da “aproximação”, acompanhada de certa generosidade. Dessa forma, uma das preocupações da viscondessa era a de prestar uma atenção maior em relação aos seus escravos. As mesmas autoras expõem que “todos os itens ligados a gerencia da casa eram anotados detalhadamente [...] O pagamento de mercadorias aos escravos [...] Os escravos libertos e os batizados”. E continuam: “numa terceira camada estão os trabalhadores que sustentam a reprodução da riqueza: nesse caso, a proximidade é a garantia do controle” (MAUAD & MUAZE, 2004, p. 205). Em seu diário, os escravos são constantemente citados, fato que simboliza a preocupação da viscondessa em relação àqueles que se configuravam a força responsável na manutenção da sua fortuna. Além disso, em consonância com as anotações constantes no diário, permite-se inferir que para aquela família, não diferente do que ocorreu com a de outros barões do vale do Paraíba no referido período, o trabalho escravo ingressava numa situação de franco declínio. Conforme as mesmas autoras, Os escravos são presença constante e podem ser denominados pretos, mas também pardos e creoullos, para diferenciá-los dos libertos, da gente da roça e dos feitores. Evidencia-se, no relato, a decadência gradual do trabalho estritamente escravo, que é substituído pelo trabalho remunerado, dentro e fora de casa (IDEM, IBIDEM, p. 206). Outra passagem demonstra com nitidez refinada o prenúncio do fim da escravidão, quando, em ilustração a um fato relacionado ao nascimento da primeira neta da viscondessa e a necessidade de uma ama-de-leite, as autoras expõem que: 106 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul A ama cuidadosamente escolhida foi Agostinha, que partiu acompanhada do empregado Joaquim para o Rio de Janeiro em 23 de dezembro, após ter recebido uma gorjeta de 42$000 pelos serviços a serem prestados. Passados cinco dias, no entanto, Maria Isabel registra que a ama-de-leite escolhida foi comprada e liberta, obrigando-a a continuar a procurar outra para substituí-la. (IDEM, IBIDEM, p. 212). O terceiro exemplo que ilustra a vital importância dos africanos escravizados na dinâmica econômica brasileira está relacionado, principalmente, às formas de tratamento à que eram submetidos, o que expressa o medo dos seus “donos” em perder a sua única fonte de renda. Para que o leitor adquira ou reforce tal visão, consideraremos os ocorridos na província de Goiás por intermédio ao que está registrado nas folhas do Matutina Meiapontense, “primeiro jornal goiano e que circulou na cidade de Pirenópolis, de 1830 a 1834” (ALENCASTRE, 1979, p. 9). A professora Maria de Fátima Oliveira (2013) revisita certos aspectos da história de Goiás por intermédio das edições do Matutina Meiapontense “detectando a incidência dos diversos assuntos tratados no mesmo período e a visão de mundo nele veiculada” (p. 01). Dentre os quinze assuntos principais do referido jornal, está o que faz referência à fuga de escravos que ocorria na região de Pirenópolis. Com a intenção de situar o leitor à época das edições do Matutina Meiapontense, Oliveira (2013) descrevemos, em consonância com a referida autora, os aspectos históricos conjunturais da Província de Goiás: “posição geográfica interiorana, ausência de infraestrutura, escassez de meios de comunicação, economia de subsistência, esgotamento das minas auríferas, constantes confrontos com os povos indígenas etc.” (p. 5). De acordo com a mesma autora, no que diz respeito às fugas de escravos, o Matutina Meiapontense é prioritariamente voltado para anúncios de fugas e as respectivas recompensas para quem encontrar um escravo fugido, como mostra o seguinte exemplo: ...fugiu um escravo de nome José, crioulo estatura ordinária, cheio de corpo, cara redonda, pinta de branco na barba, como na cabeça, com o 107 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul nariz, e beiços feridos de bobas; orelhas grossas da mesma moléstia, com um grande calo de ferida na perna direita, de idade de 40 para 50 anos mais ou menos. O Anunciante promete dar 12$000 rs a quem o pegar, e trouxer, e se for fora da Província dará 30$000 (A Matutina Meiapontense, 1832, n.º 326 apud OLIVEIRA, 2013, p. 8). Sobre esse tipo de anúncio a mesma autora diz que “dois aspectos chamaram a atenção nas notícias sobre esse tema: significativo número de anúncios sobre as fugas, com grande variação no valor das recompensas e a omissão sobre a vida, cotidiano, alimentação e tratamento geral dados aos cativos” (p. 9). Esse anúncio se configura como prova suficiente de que em Goiás a força escrava indubitavelmente mantinha o nível de vida da alta sociedade rural e urbana. Em consideração aos três exemplos sugeridos para o presente artigo, pode-se inferir que a força escrava representava o principal meio de obtenção e manutenção das riquezas de fazendeiros e barões ao longo do século XIX, configurando-se como a energia necessária na dinâmica econômica das províncias, conforme propõe Clóvis Moura (1987). Perdê-la significava o prenúncio do prejuízo financeiro, do declínio econômico e do risco de um desequilíbrio em pleno tapete da alta sociedade. Tais fatos, conforme elencado, são observáveis com bastante limpidez no livro escrito pelo barão do Paty do Alferes, no diário íntimo da viscondessa do Arcozelo e no jornal goiano Matutina Meiapontense. Entretanto, conforme já exposto anteriormente, nem todos os escravos se sujeitavam por muito tempo como mercadorias ou meros animais. Grande parte deles se rebelava na primeira oportunidade que surgisse, o que resultava na fuga e na consequente formação de quilombos. Diferentes formas de resistência e as formações de quilombos Sobre os quilombos brasileiros, não poderíamos deixar de ponderar os trabalhos da historiadora Beatriz Nascimento, uma das pesquisadoras negras que mais se dedicou ao estudo de quilombos brasileiros. “Por quase vinte anos, entre 1976 e 1994, ela esteve às voltas 108 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul com essa temática” (RATTS, 2007, p. 53). Para a mesma autora o quilombo assumia um significado amplo de resistência negra em diversos espaços (não somente físicos) (IDEM, IBIDEM, p. 54). Para a definição de quilombo, Beatriz Nascimento contempla “as formas de resistência que o negro manteve ou incorporou na lua árdua pela manutenção da sua identidade pessoal e histórica” (NASCIMENTO, 1985, p. 41). A formação histórica dos quilombos no território brasileiro perpassa, antes mais nada, pelos sentimentos, dentre os africanos escravizados, de sujeição dolorosa nos navios negreiros, de afastamento mandatório de seus lugares de origem, de tratamento enquanto mercadorias, de servidão forçosa e de alteração forçosa de parte de seus hábitos, originários de suas terras natais. Em contrapartida, permeando-os, as diferentes formas de resistência aos poucos foram se aflorando, resultando, dentre outros eventos, na formação de quilombos, tradicionalmente entendidos como lugares de escravizados em fuga. Clóvis Moura (1987), fazendo referência a Édison Carneiro (1947), esse um dos primeiros autores que analisam criticamente a realidade do quilombo de Palmares, mostra as diferentes formas de luta dos escravizados brasileiros: a) revolta organizada, pela tomada do poder político, que encontrou sua expressão mais visível nos levantes dos negros malês (muçulmanos) na Bahia, entre 1807 e 1835; b) a insurreição armada, especialmente no caso de Manuel Balaio (1839) no Maranhão; c) a fuga para o mato, de que resultaram os quilombos, tão bem exemplificados por Palmares. De fato, essas três formas fundamentais de luta caracterizam, de modo geral, os movimentos rebeldes dos escravos, a quilombagem no Brasil. Devemos nos lembrar, porém, para que a visão não fique incompleta, de outras formas de luta usadas pelos escravos: a) as guerrilhas; b) a participação do escravo em movimentos que, embora não sendo seus, adquirirão novo conteúdo com sua participação. Finalmente, devemos acrescentar o banditismo quilombola. (MOURA, 1987, p.14). 109 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Na mesma obra, o autor descreve diferentes situações resultantes da insatisfação dos negros escravizados: casos de negros bandoleiros (grupos de negros escravizados fugidos que ainda não tinham um lugar fixo de morada) que atacavam nas estradas e nas fazendas; quilombolas que fugiam das bandeiras e se escondiam nas matas; quilombolas que se juntavam aos índios para praticarem desordens, sendo que nesse caso, uma delas, era a destruição repetidas vezes de um instrumento de morte, a forca; negros que atacavam aos próprios senhores; negros que se rebelavam nas fazendas, como foi o caso da revolta de Manuel Congo; negros que praticavam o banditismo individual ou em pequenos grupos. Geralmente, os negros fugiam para as matas e depois de praticarem desordens se aquilombavam (MOURA, 1987, pp.16-17). Muitos saíam dos quilombos para atacar fazendas e povoados mais próximos. O mesmo autor aplica o termo “quilombagem” para se referir aos movimentos rebeldes de escravos brasileiros, fatos ocorridos não somente em São Paulo, mas, também, nas outras capitanias. Luís Palacín e Maria Augusta de Sant´Anna Moraes (1994) autores de História de Goiás nos ajudam a entender a trajetória histórica de Goiás que, juntamente com algumas produções pontuais, tais como a de Martiniano José da Silva em Sombra de quilombos (1974) e a de Karasch com o título Osquilombos do ouro na capitania de Goiás (1996), contribuem valorosamente no estudo do processo de escravismo e a constituição de quilombos em Goiás. Com a decadência da mineração, a atividade agropecuária possibilitou, provavelmente, a continuidade e/ou formação de agrupamentos negros rurais em todo o Estado de Goiás. Em caráter de mera exemplificação de trabalhos acadêmicos concernentes a territórios negros rurais, citamos alguns autores representativos: Cedro em Mineiros (BAIOCCHI, 1983); (SILVA, 2003); Kalunga em Cavalcante, Monte Alegre de Goiás e Teresina de Goiás; Moinho em Alto Paraíso (BAIOCCHI, 1991; 1999); (PAULA, 2005); (MARINHO, 2008), Almeida e Porto Leocárdio (SILVA, 2010), dentre outros trabalhos, cada qual com a sua trajetória de campo e acadêmica. Referências Bibliográficas 110 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul ALENCASTRE, J. M. P. de. Anais da província de Goiás. Goiânia, Secretaria do Planejamento e Coordenação, 1979. BAIOCCHI, M. de N. Kalunga. Povo da terra. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, 1999. 123 p. ______ Kalunga – estórias e textos. Goiânia, SEEG, 1991. 53 p. GUSMÃO, N. M. 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Disponível em: htpp://www.observatoriogeografico americalatina.org.mx/egal10/Teoriaymetodo/Investigacion/28.pdf. Acesso em: 04 abr. 2014. RATTS, A. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Kuanza, 2007. SILVA, J. B. de M. Identidade, territorialidade e ensino nas comunidades Almeida e Porto Leocárdio. Tese de doutoramento apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas da Universidade de Brasília, UnB, 2010. SILVA, J. S. Levantamento etnohistórico da comunidade quilombola do Cedro-GO. Artigo publicado nos Anais do XXI Encontro Nacional de Geografia Agrária. UFU Uberlândia-MG, 2012. SILVA, M. J. da. Sombra dos Quilombos. Introdução ao estudo do negro em Goiás. Goiânia: Cultura Goiana, 1974. 112 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul INDÍGENAS, PAULISTAS E O TEMPO DO TRABALHO COLONIAL: UMA PERSPECTIVA DE INTERPRETAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO (SÃO PAULO, SÉCULO XVII) Gustavo Velloso Mestrando em História Social pela FFLCH-USP Bolsista pela FAPESP As durações e os ritmos de trabalho a que foram submetidas as populações nativas durante o processo de conquista e ocupação do território americano conformam uma dimensão histórica da América Colonial pouco explorada pela historiografia. Com base em uma pesquisa sobre o “tempo do trabalho” realizado no planalto paulista durante o século XVII, esta comunicação pretende ensaiar uma metodologia de análise das estruturas temporais que o trabalho indígena ali experimentou na referida época, a partir de quando se verifica uma ruptura fundamental nas formas de concepção e vivência do tempo do trabalho produtivo experimentado até então pelas sociedades ameríndias locais. Partamos do caso específico de uma propriedade “típica” do tipo de agricultura desenvolvida naquele tempo e espaço (uma agricultura comercial de baixa densidade), para em seguida esboçarmos alguma conclusão. No dia 23 de julho de 1652, por ocasião da morte do proprietário de terras e escravos Antônio de Souza Couto, estiveram em sua fazenda, situada no termo da vila de Santana de Parnaíba (pertencente à Capitania de São Vicente, como as vilas planaltinas de São Paulo de Piratininga e Mogi das Cruzes), o juiz ordinário João Bicudo de Brito, seu escrivão Custódio Nunes Pinto, o procurador Paulo Proença de Abreu e os avaliadores Manuel Paes Ferreira e Pero de Souza Pereira, com o fito de elaborar o inventário dos bens deixados pelo defunto e a repartição dos mesmos entre os seus herdeiros, exigindo da viúva Izabel de Oliveira, conforme prática corrente, a jura de que declararia honestamente todos os bens remanescentes do marido. Ainda que o espólio de Antônio de Souza Couto claramente não apresentasse as características de uma grande propriedade (fosse pelo número de escravos que possuía, fosse 113 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul pelas dimensões de suas terras, ou mesmo pela quantidade de animais e ferramentas registrados), a listagem carrega um nível de detalhamento relativamente grande e, em comparação com outros documentos paulistas da mesma época, uma diversidade de informações privilegiada. Por outro lado, os bens encontrados no seu sítio exemplificam o tipo de propriedade média (menos quantitativa do que qualitativamente) típico do conjunto de instalações rurais do planalto paulista ao longo do século XVII, e o esforço pela reconstituição de sua unidade produtiva pode servir como ponto de partida para compreendermos a dinâmica temporal implícita nas atividades em que as populações indígenas locais, falantes de variantes do tupi,do guarani e do jê, por exemplo, foram inseridas. Ao que tudo indica, Couto era, ao mesmo tempo, comerciante e produtor de trigo. Havia entre seus bens uma variada gama de tecidos e, no testamento narrado ao escrivão em 9 de maio do ano de sua morte, esse morador declarou que algumas pessoas lhe deviam dinheiro, uma das quais “de fazenda que lhe vendi de pano”; e outra, “de fazenda que lhe vendi estando na vila de São Paulo com loja”90. Seu sítio possuía 200 braças de testada (ou seja, de frente) e meia légua de sertão (ou seja, de profundidade, o que equivalia a cerca de 1.500 braças91). A localização exata infelizmente não foi mencionada nem no testamento e nem no inventário daquele morador, mas como estava situado em área pertencente a um termo de jurisdição da vila de Santana do Parnaíba, e dado o tamanho reduzido de sua frente em comparação com a profundidade, suspeita-se que se encontrasse logo nos limites da referida vila, prolongando-se por mato a dentro. Nele, foram encontradas 19 enxadas, 9 machados, 14 foices “de roçar”, 20 foices “de segar trigo”, uma casa de taipa e um “moinho com a casa coberta de telha com dois siconis [possivelmente “ciclones”, as rodas do moinho] e duas picadeiras”, além de instrumentos de carpintaria, ferraria, vestimentas, objetos de uso doméstico etc.92 90 91 92 Inventário e testamento de Antônio de Souza Couto (1652). Publicado pelo Arquivo do Estado de São Paulo em: Inventários e Testamentos (doravante: IT), v. 44, p.236. O valor de uma braça corresponde a algo em torno de 2,20 metros, e o de uma légua, 3.000 braças, ou seja, de 5.000 a 6.000 metros. Cf. COSTA, Iraci Del Nero da. Pesos e Medidas no Período Colonial Brasileiro: denominação e relações. Disponível em: http://historia_demografica.tripod.com; e SILVA, Andrée Mansuy Diniz. “Pesos-Medidas-Moedas”. In: ANDREONI, João Antônio. Cultura e opulência do Brasil por suas Drogas e Minas (1711). São Paulo: Edusp, 2007. (Documenta Uspiana). Inventário e testamento de Antônio de Souza Couto (1652), Op. cit., p. 243-247. 114 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul A mão de obra registrada e repartida entre os herdeiros incluía 33 indivíduos pertencentes à “gente forra” (nome então dado aos trabalhadores indígenas), dos quais 8 eram mulheres empregadas no serviço doméstico e 5 homens fugidos. Somava-se uma tapanhuna (designativo em língua geral para “homem de cor negra”, referindo-se aos escravos de origem africana) da Guiné93. A ocupação dos outros vinte índios, tal como a da negra africana, provavelmente estava relacionada ao cultivo do trigo, pois esta foi arrolada imediatamente junto com uma casa “cheia de trigo em palha”, onde havia cerca de 200 alqueires (por volta de 2.600 litros) de trigo94. E, por outro lado, as quantidades de machados, enxadas e foices encontrados condizem aproximadamente com a quantidade de escravos listados, indicando que poderiam ser utilizados nas atividades de abertura dos campos, plantio e colheita do cereal, respectivamente. É difícil imaginar o tamanho da terra cultivada tendo como informação apenas o volume de trigo em palha colhido naquele ano, até mesmo se considerarmos a estimativa do padre visitador jesuíta Jácome Monteiro, em 1611, de que cada alqueire de terra plantado rendia em São Paulo cerca de cem alqueires de grãos 95, pois não sabemos qual era proporção exata entre os volumes de palha e de grãos de uma plantação de trigo no período. Mas se quisermos arriscar uma estimativa grosseira, projetando para o passado algumas medidas atuais (essencialmente, a altura de uma planta de trigo em torno de 90 cm e o espaçamento entre as plantas correspondendo a algo entre 15 e 20 cm), teríamos uma parte ínfima de terras plantadas (menos de 30 braças em quadra) da fazenda. De tudo isso resulta o esboço de reprodução gráfica dessa propriedade na ilustração abaixo, que não possui o valor de uma planta, já que o formato do terreno e o arranjo real de suas partes nos é desconhecida, e sequer 93 94 95 Idem, ibidem, p. 249. Idem, ibidem, p. 246. MONTEIRO, Jácome. “Relação da Província do Brasil” (1610). Publicado em: LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, tomo VIII. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1949, p. 396. John Manuel Monteiro julgou ser exagerada tal estimativa, justificando que “unidades de pequena produção podiam ter até quinze alqueires de área cultivada, ao passo que uma fazenda grande raramente produzia mais de mil alqueires anuais”. MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra. Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 117. O mesmo autor lamentou a fragilidade dos dados sobre o tamanho das parcelas cultivadas em São Paulo, o que inviabiliza praticar para esse caso a metodologia de análise da produtividade na triticultura pensada por: OVERTON, M. “Estimating crop yields from probate inventories”. Journal of Economic History, 39, n.2, 1979. 115 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul sabemos se existiam nessa propriedade outras parcelas de plantio que não foram lançadas por não possuírem valor comercial. Apesar da subutilização do recurso territorial nessa propriedade, característica compartilhada pelo conjunto da sociedade colonial paulista do período, nota-se a reunião, numa única unidade produtiva, de espaços específicos correspondentes a etapas diferentes do processo de produção agrícola, a saber: plantação (semeadura, cultivo e colheita), armazenamento da colheita e processamento (debulha e moagem) do produto. Essa configuração espacial constitui uma ruptura fundamental nos padrões de assentamento indígena que os europeus encontraram no sul da América durante a conquista, fundados na concentração espacial e contingente dos espaços produtivos, o que é representativo, por sua vez, de uma segunda transformação, qual seja, a dos ritmos de trabalho experimentados pelas populações nativas agora submetidas ao cativeiro96. Os inventários de bens também permitem apontar para alguns padrões temporais sobre as épocas de plantação e colheita dos gêneros cultivados. No caso do trigo, fundamentalmente uma cultura de inverno ou primavera, a julgar pela datação dos levantamentos, podemos encontrar o produto colhido (ou já debulhado em grãos, ou ainda em palha) especialmente durante a primeira metade do ano, ao passo que, conforme se aproximam os meses finais, o produto colhido vai desaparecendo, restando menções aos campos já semeados e às searas em planta. Assim, enquanto a plantação ocorria 96 Infelizmente, não haverá espaço neste texto para uma exploração satisfatória do tipo de regime temporal experimentado pelas populações indígenas da parte setentrional da América do Sul no momento da chegada dos europeus. O desenvolvimento analítico do assunto resultou num capítulo específico da dissertação do autor, prevista para ser defendida em agosto de 2016. 116 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul provavelmente entre fevereiro e abril, a colheita devia acontecer em algum momento entre setembro e janeiro97, algo próximo do padrão seguido pelos plantadores atuais. Sem dúvida, de todas as “etapas” do processo triticultor, duas delas se destacam, respectivamente, pela quantidade de força de trabalho que é capaz de mobilizar e pelo regime temporal implícito no seu desempenho: a colheita e o processamento (especificamente o processo de moagem). Muito já se discutiu sobre o peso da mobilização de mão de obra escrava para a colheita em grandes plantações açucareiras em relação ao tamanho dos plantéis escravistas de diversas partes da América98: durante o curto período em que a cana encontrava-se madura, antes da secagem do seu caldo interior, a colheita devia ser operada de acordo com uma disciplina temporal estrita, empregando nela o máximo de trabalhadores disponíveis na propriedade. No caso do trigo, apesar de as propriedades fisiológicas da planta possibilitarem uma preservação mais duradoura, o mesmo raciocínio mostra-se válido, especialmente se considerarmos que a produção de trigo no planalto paulista concentrou enorme contingente de força de trabalho indígena, sobretudo durante as décadas de 1640 e 1650. Uma hipótese plausível é a de que isso se explique por uma tendência regional ao reaproveitamento das terras plantadas enquanto elas não se esgotassem, para o que as colheitas se deveriam realizar logo com o objetivo de possibilitar as sementeiras do outro ano. Para citar alguns exemplos: em 1642, o inventário de Dona Maria registrava cerca de 11 alqueires de trigo (provavelmente em palha), 35 de trigo malhado e 2 cestas (certamente em grãos), juntamente a 154 almas do gentio forro e 3 tapanhunos99. Diogo Coutinho de Mello, que em 1654 era proprietário de 400 alqueires de trigo e 46 de sementeira, possuía 97 98 99 O presente estudo lida com um conjunto de 568 inventários e testamentos de proprietários rurais paulistas do século XVII (além de outras fontes documentais auxiliares de natureza variada), dos quais 83 apresentam alguma quantidade de trigo no espólio. Nem todos, porém, especificam em qual etapa do processo produtivo o gênero se encontrava (se semeados, em seara, “em palha”, “em grão” ou malhados). Apenas 36 o fazem, e com base neles foram tiradas as conclusões acima. Alguns exemplos: WILLIAMS, Eric. Capitalismo e Escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp.33;212; SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pp. 104;128-9; MINTZ, Sidney. Sweetness and power. The place of sugar in Modern History. New York: Penguin, 1986, xviii; MORENO FRAGINALS, Manuel. O Engenho. Complexo sócio econômico açucareiro cubano, v.1. São Paulo: Hucitec, 1987, p.239-249. TOMICH, Dale W. Pelo Prisma da Escravidão. Trabalho, Capital e Economia Mundial. São Paulo: Edusp, 2011, p. 171-177. Inventário de Dona Maria (1642). AESP, IT, v.28, p. 196-208. 117 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul também 102 escravos indígenas e um negro de Guiné100. No mesmo ano, Hilário Alves tinha registrado em seu espólio 200 alqueires e 108 peças forras101. E, dois anos depois, Luzia Leme tinha 1100 alqueires de trigo e nada menos que 223 trabalhadores indígenas102. Observa-se, a partir desses casos, a dificuldade em se apontar uma relação direta entre o tamanho da colheita e o dos plantéis, isso porque provavelmente muitos inventários não exprimiam a dimensão real das colheitas em seus respectivos anos, já que partes delas poderiam, no momento do levantamento, já ter sido consumidas, vendidas, dadas como pagamento, dotes ou reservadas para o suprimento das custas do processo de inventário. Todavia, na semelhança entre os casos de Diogo Coutinho de Mello e Luzia Leme, onde aparecem as maiores quantidades de trigo colhido, vemos uma média aproximada de cinco alqueires por escravo. Comparando com outros casos, todavia, a variação poderia ser enorme, a julgar, por exemplo, pelo fato de que Maria da Silva, em 1655, tinha posse de 600 alqueires de trigo em grão e “apenas” 44 escravos103 (média de 13 alqueires por escravo). De tudo isso resulta que a concentração de trabalhadores escravos para a realização de uma atividade com duração de poucos meses (como a colheita do trigo) implica a adoção de um ritmo de trabalho prescrito, minimamente programado e, do ponto de vista particular de cada indivíduo inserido na produção, do exercício repetitivo de aplicação da chamada “foice de segar trigo” sobre os ramos já desenvolvidos. Muito recorrente nos inventários post-mortem do século XVII estudados (inclusive naqueles em que não há qualquer menção à colheita ou à plantação do trigo), tal instrumento e o seu uso foram descritos pelo naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire nos arredores do Chuí em 1820: “A colheita do trigo é feita por meio de foicinhas do feitio de uma semi-elipse alongada o oblíqua. O ceifador usa uma luva de palha na mão esquerda e com essa mão segura um punhado de colmos”104. 100 101 102 103 104 Inventário e testamento de Diogo Coutinho de Mello (1654), Idem, v.15, p.370-2. Inventário de Hilária Alves (1654). Idem, v.47, p.87-90. Inventário e testamento de Luzia Leme (1656), Idem, v.15, p.425-7. Inventário e testamento de Maria da Silva (1655), Idem, v. 47, p. 199-200. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul (1820-1). São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, p.96. A referência foi localizada a partir do catálogo Equipamentos, Usos e Costumes da Casa Brasileira, v.5 (Equipamentos). Volume organizado por José Wilton N. Guerra e Renata da Silva Simões. São Paulo: Museu da Casa Brasileira/EDUSP, 2001, p.140. 118 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Um outro objeto presente no espólio de Antônio de Souza Couto, que até o momento não foi discutido, aprofunda ainda mais essa relação entre a força de trabalho humana utilizada e as exigências temporais das atividades que ela realizava: o moinho de trigo. Encontrados em pelo menos 21 inventários105 e bem distribuído entre grandes, médios e até pequenos proprietários, os moinhos foram, não obstante, mais frequentes durante as décadas de 1640 e 1650, época de maior prosperidade da triticultura no planalto106. A maior parte das referências não oferece maior detalhamento de suas características, mas algumas ocorrências demonstram que, como os engenhos de açúcar encontrados em várias localidades da colônia (inclusive em São Paulo) poderiam ser tanto de duas quanto de três rodas. Se nos pautássemos apenas pelas informações presentes nos inventários de Antônio Furtado de Vasconcelos107 e Cornélio de Arzão108, o primeiro feito por ocasião de morte e o segundo por exigência da Inquisição, concluiríamos que os moinhos de trigo deveriam se mover fundamentalmente pela força de água corrente. A ilustração de uma casa de moinho, reproduzida abaixo, feita por Belmonte na primeira metade do século XX com base na mesma documentação que fundamentalmente utilizamos (os inventários e testamentos), apresenta um moinho coberto por uma construção de palha, em uma beira de rio109: 105 106 107 108 109 São eles: Felippa Vicente (IT, v.3, 1615), Antônio Furtado de Vasconcelos (IT, v.7, 1628), Cornélio de Arzão (IT, v.12, 1628), Francisco Bueno (IT, v.14, 1638), Clemente Álvares (IT, v.14, 1641), Isabel Fernandes (IT, v.28, 1641), Manuel João Branco (IT, v.13, 1643), Izabel de Proença (IT, v.37, 1648), Raphael de Oliveira (IT, v.3, 1648)Francisco Bicudo Furtado (IT, v.41, 1651), Antônio de Souza Couto (IT, v.44, 1652), Ana da Costa (IT, v.40, 1653), Maria Leme de Alvarenga (IT, v.47, 1654), João Godoi Moreira (IT, v.43, 1665), Maria de Oliveira (IT, v.17, 1665), Maria da Cunha (IT, v.26, 1667), Domingos Jorge Velho (IT, v.18, 1671), Francisco Pedroso Xavier (IT, v.20, 1680), Marcelino de Camargo (IT, v.21, 1684), Fernando de Camargo (IT, v.22, 1690) e Jeronimo Bueno (IT, v.23, 1693). Não estão incluídos nessa lista as propriedades que possuíam moendas de cana de açúcar e que provavelmente utilizavam esta mesma máquina para a moagem do trigo que também aparecia entre seus bens. MONTEIRO, John Manuel. Op. cit., p. 117. Inventário de Antônio Furtado de Vasconcelos (1628). Idem, v.7, p.18. Suspeita-se que o moinho recentemente localizado por arqueólogos no Sítio do Morro, em área pertencente ao município de Santana de Parnaíba, seja o de Antônio Furtado de Vasconcelos, adquirido em 1658 por Paulo Proença de Abreu das mãos de seu cunhado Baltazar Fernandes, que era irmão da ex-mulher de Vasconcelos, Benta Dias, a qual depois da morte deste teria se casado com Abreu. As pesquisas arqueológicas ainda não foram iniciadas, mas devem ocorrer por ação conjunta do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e da prefeitura de Santana do Parnaíba. Cf. VEIGA, Edison. “Pesquisadores encontram ruína de moinho colonial”. O Estado de São Paulo, edição de 14 de junho de 2014. Inventário de Cornélio de Arzão (1628). Idem, v.12, p.90. BELMONTE. No tempo dos bandeirantes. Edição fac-similada. São Paulo: Governo do Estado, 1980, p. 31. 119 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul No desenho, Belmonte se preocupou em destacar a participação da força de trabalho indígena (ainda que os índios apareçam como portadores de uma fisionomia bastante ocidentalizada) nas várias etapas do processamento do produto agrícola: a alimentação do moinho, que a despeito de movimentar-se por água corrente exigia a participação humana para posicionar a planta entre os dois ou três eixos compressores; o armazenamento do produto em caixotes; e o escoamento destes ao comércio extra local por meio de canoas. Tudo realizado sob a supervisão de um agente estranho, talvez o senhor da propriedade, ou quem sabe um supervisor ou feitor empregado pelo senhor como intermediário entre ele e os seus cativos. As características por vezes mencionadas para os moinhos na documentação disponível permitem supor que o moinho de trigo prevalecente nas fazendas de trigo de São Paulo não diferia em essência do engenho de açúcar (a máquina, não o tipo de propriedade) presente em diferentes capitanias da América Portuguesa no século em questão e no anterior110. Veja-se, por exemplo, a ilustração de uma moenda baiana de dois eixos, reproduzida por Antônio Barros de Castro “segundo maquete do Museu do Açúcar, Recife- 110 Ver, por exemplo, os tipos, vantagens e desvantagens encontrados na investigação de CASTRO, Antônio Barros de. “1610: mudanças técnicas e conflitos sociais”. Pesquisa de Planejamento Econômico, 10 (3). Rio de Janeiro, 1980. Neste texto, o autor apresentou uma interpretação instigante dos conflitos sociais relacionados à mudança nos engenhos açucareiros no início do século XVII. 120 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul PE”, e “fiel à sucinta descrição de Jácome Monteiro”111, que diz: “uma roda como de azenha, que dentro se vem terminar em dous rodetes, cada um da grossura de uma pipa, guarnecidos em roda de verdugos de ferro”112: Se aceitarmos a conclusão de Castro, segundo a qual o termo “trapiche” se referia ao moinho de duas rodas movido por força animal (ver a ilustração seguinte113), concluímos que também esta versão do equipamento foi utilizada por triticultores em São Paulo114. O mesmo podemos dizer da moenda caracterizada pelo uso das entrosas e por possuir três (e não dois) eixos, dispostos não horizontal, mas verticalmente (ver abaixo). A 111 112 113 114 CASTRO, Op. cit., p. 684; 686. MONTEIRO, Jácome, Op.cit., p.404. Também retirada de CASTRO, Op. cit., p. 688. Conforme atestam as referências documentais à “casa de trapiche” de Raphael de Oliveira (IT, v.3, 1648, p.330) e ao “trapiche” de Maria de Oliveira (IT, v.17, 1665, p.14). Não se conta aqui, todavia, os casos em que o termo se encontra em espólios de produtores de açúcar, mas não de trigo. 121 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul cronologia sugerida por Castro para o nordeste açucareiro (de que este terceiro tipo prevaleceria a partir da segunda década do XVII, devido a circunstâncias históricas específicas115), no entanto, não serve para a cultura do trigo paulista, pois aqui os dois primeiros tipos foram predominantes ao longo de todo o século XVII, havendo um único caso em que uma “moenda de três paus” foi lançada em inventário junto a uma quantidade de trigo colhido116. Caminhando já para as considerações finais, podemos levantar algumas hipóteses. Fosse qual fosse o modelo de moinho utilizado, o esforço físico da força de trabalho nele empregado também seguia um tempo que era determinado não diretamente pelas técnicas e tecnologias referidas, mas sobretudo pela lógica social que a elas conferia lugar e importância no interior da sociedade colonial paulista. As técnicas e as tecnologias das quais se fez menção até aqui tornavam-se, então, instrumentos de uma relação histórica total, e não o contrário. Ora, em todas as etapas do processo produtivo do trigo que temos visto em São Paulo do século XVII, mas fundamentalmente na colheita e na moagem, o sentido do trabalho desempenhado pelas populações indígenas submetidas à escravidão encontrava-se, obviamente, não em suas próprias necessidades individuais e coletivas, mas nos ditames de senhores de terras e escravos devidamente conectados a circuitos comerciais mais ou menos distantes (em Santos, Rio de Janeiro, Paraná, Bahia etc.). 115 116 Consultar CASTRO, Op. cit., p. 690-3. Inventário de Clemente Álvares (1641). AESP, Inventários e Testamentos, v.14, p. 103. 122 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul O conjunto das características encontradas (concentração demográfica da mão de obra cativa, divisão social e espacial do trabalho no interior das unidades produtivas, e exercício constante de um ritmo de trabalho do qual estavam alienados os produtores agrícolas diretos, os escravos) foi fruto de um complexo processo de dominação que envolveu ao mesmo tempo violência, cooptação e por vezes adesão velada, mas que talvez tenha em essência efetivado uma condição fundamental para a implantação do regime colonial e, numa perspectiva estrutural, a expansão da economia moderna como um todo: a desestabilização dos contextos tradicionais e dos modos de organização da vida das populações nativas não europeias117. Os grupos indígenas com os quais os paulistas estabeleceram contato, no caso, caracterizavam-se, falando resumidamente, pela contingência e pela ocupação territorial itinerante, conforme as necessidades materiais e simbólicas do próprio grupo, inexistindo neles a centralidade social depois instituída da acumulação. Ao contrário das variações na demanda extra local, das flutuações de preço e da quantidade de terras e cativos disponíveis, o costume dos nativos só interferia nos ritmos de trabalho do planalto (durante o século XVII, já consolidada a conquista territorial) à medida em que os próprios escravos realizavam formas diferentes de resistência (como fugas, assassinatos e até mesmo a atitude que os colonizadores caracterizaram como “preguiça”). Porém, ao fim e ao cabo, a despeito de tais resistências, a ruptura com os padrões temporais do trabalho a que as populações indígenas estiveram anteriormente habituadas se cumpriu. Com isso, tendo partido do exame de uma propriedade historicamente típica e depois apontado alguns elementos compartilhados pelo conjunto de sítios produtores de trigo paulista no século XVII, acreditamos caminhar na fundamentação de uma metodologia de pesquisa sobre o tempo do trabalho nas sociedades coloniais da época moderna, reconhecendo, ao mesmo tempo, que uma visão conjunta do tema exige um esforço investigativo muito maior, o que infelizmente ultrapassa os limites dessa comunicação. Referências bibliográficas e documentais 117 Ver: BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no Novo Mundo: Do Barroco ao Moderno. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 17. 123 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Inventários e Testamentos, 47 vols., 1920-1999. BELMONTE. No tempo dos bandeirantes. Edição fac-similada. 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É importante ressaltar, como nos mostram Gomes, Neto e Barbosa (2004), que o território goiano-tocantinense atual foi constituído sobre antigos territórios de povos e tribos indígenas. Essa institucionalização territorial de Goiás se dá no período colonial, como citamos, pela implantação da atividade aurífera. Inicialmente, a interiorização da ocupação colonial no Brasil se deu com a descoberta de ouro no território do atual estado de Minas Gerais. Posteriormente essa interiorização avança com a descoberta de importantes jazidas na região de Cuiabá. Estando Goiás situado entre esses dois territórios, a descoberta desses recursos minerais em sua porção territorial foi apenas questão de tempo, fato que se deu ainda no século XVIII. Neste contexto, a exploração aurífera exerceu forte influência na criação de povoados, vilas, arraiais e cidades em Minas Gerais, no Mato Grosso e em Goiás, sendo ainda fator importante na formação territorial desses estados. Este artigo mostrará como a extração mineral (colonial) contribuiu para que o território brasileiro e goiano se expandisse rumo ao Graduando do curso de Licenciatura em Geografia, Universidade Estadual de Goiás – Câmpus de Ciências Sócio-Econômicas e Humanas de Anápolis (GO). Orientadora: Dra. Flávia Maria de Assis Paula. Profa. do Curso de Licenciatura em Geografia, Universidade Estadual de Goiás – Câmpus de Ciências Sócio-Econômicas e Humanas de Anápolis (GO). 118 126 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul interior, dando origem a novos núcleos urbanos, sendo principal fator no povoamento de Goiás nesse período. A extração mineral e os processos de interiorização e povoamento do território brasileiro Os primeiros dias de Pedro Álvares Cabral no novo mundo, apesar das tentativas de encontrar ouro e outros minérios e pedras preciosas, não foram suficientes para descobrir ou ter indícios visíveis que lá havia qualquer metal precioso. No entanto, Pero Vaz de Caminha, no início de sua carta ao rei D. João VI, alimenta uma pequena esperança de haver ouro ou prata. Caminha assim escreveu: O capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho. E Aires Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam-se as tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata! (CAMINHA, 1500, p.3) Dessa forma, inicialmente, devido a não descoberta de materiais preciosos diferentemente da Espanha que teve uma precoce descoberta desses metais nas suas porções da América -, a Coroa Portuguesa pouco se interessou pela nova terra, concentrando suas viagens e esforços no Oriente. Becker e Egler (2003) salientam que durante as três primeiras 127 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul décadas do século XVI os portugueses passaram a explorar apenas o Pau Brasil, árvore que veio dar nome à futura nação. A cobiça de outros países, como Inglaterra, França e Holanda, sobre a América Portuguesa foi se acirrando. Devido à necessidade de tomar a posse da terra e desviar os interesses de nações rivais, a Coroa Portuguesa vê-se na necessidade de ocupar o território, mesmo que ainda não tenha descoberto os tão sonhados recursos minerais. Acerca dessa decisão, Furtado (2005) destaca que ela foi: [...] consequência da pressão política exercida sobre Portugal e Espanha pelas demais nações europeias [...] prevalecia o princípio de que portugueses não tinham direito senão àquelas terras que houvessem efetivamente ocupado. Dessa forma, quando, por motivos religiosos, mas com apoio governamental, os franceses organizam sua primeira expedição para criar uma colônia de povoamento nas novas terras [...] é para a costa setentrional do Brasil que voltam suas vistas. Os portugueses acompanhavam de perto esses movimentos e até suborno atuaram na corte francesa para desviar as atenções do Brasil. Contudo tornava-se cada dia mais claro que se perderiam as terras americanas a menos que fosse realizado um esforço de monta para ocupa-las permanentemente. (FURTADO, 2005, p.12) O sonho de encontrar reservas de metais preciosos no interior do Brasil ainda era vivo e pulsante. Dessa forma, a Coroa Portuguesa inicia a colonização das novas terras com o intuído de ocupá-las. O Brasil foi dividido em grandes faixas de terras denominadas de capitanias hereditárias119. Foi nessas faixas de terra que vigorou o primeiro ciclo econômico, para alguns autores como o segundo devido à extração do Pau Brasil, com sua base ligada à cana de 119 No entanto, a expedição de Martin Afonso de Sousa (1530-1533) tinha como objetivo patrulhar a costa do Brasil para estabelecer uma colônia através da concessão não-hereditária tendo em vista a necessidade da coroa na efetiva ocupação da colônia. Possivelmente, Martim Afonso ainda encontrava-se no Brasil quando a Coroa Portuguesa, por representação do rei Dom João III, decidiu instituir as capitanias hereditárias. (FAUSTO, 1994) 128 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul açúcar. É na exploração da cana de açúcar, mesmo que essa atividade não gerasse tanto lucro quanto o Oriente (FURTADO, 2005), que a coroa portuguesa vê como forma de iniciar uma atividade econômica na colônia e por via de fato ocupar, tomar posse e defender o seu vasto território120, só restava saber como despertar interesse em seus súditos. Oferecer-lhe privilégios soberanos dos quais o rei abriria mão foi a forma encontrada (FAUSTO, 1996). O litoral nordestino constituiu-se como o principal centro econômico da colônia. Com terras férteis e localizado mais próximo da Europa, a atividade da cana de açúcar desenvolveu-se facilmente nessa região (FURTADO, 2005). Todavia, a colonização ganhou um caráter litorâneo, onde os engenhos de cana de açúcar, as plantações, as cidades e vilas se concentravam próximo ao mar. Como aponta Frei Vicente do Salvador (1627), “da largura que a terra do Brasil tem para o sertão [...] até agora não houve quem a andasse, por negligência dos portugueses que, sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas concentram-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos” (VICENTE DO SALVADOR, 1627, p. 5). Contrastando com o nordeste, São Vicente, atual São Paulo, possuía atividades mais diversificadas, contudo, constituía-se em uma região periférica na colônia. Fausto (1996) faz uma associação do desenvolvimento das atividades econômicas de São Vicente a existência de um grande número de índios nessa região. Os portugueses que se instalaram ao sul aprenderam com os índios121 sendo capazes de usar até o arco e a flecha. Além disso, os colonos de São Vicente, por meio das expedições bandeirantes, viabilizaram a pesquisa mineral, fator importante futuramente na descoberta das minas gerais, à medida que se embrenhavam na mata virgem do interior da colônia à captura dos nativos que serviriam de mão de obra escrava. 120 Segundo Furtado (2005, p. 13-14), os recursos que Portugal detinha para colocar na terra improdutiva eram limitados e não seriam suficientes para manter a proteção das novas terras por muito tempo. Como não havia descoberto ouro, caberia a Portugal, diferentemente da Espanha que havia encontrado grandes minas de metais preciosos, encontrar uma forma de utilização econômica das novas terras. Somente assim a Coroa Portuguesa poderia cobrir os gastos com a proteção militar do Brasil. 121 Todavia, a captura desse nativo foi de total importância à medida que eram vendidos nos mercados de São Vicente e Rio de Janeiro, sendo utilizados na produção do açúcar, especialmente com a escassez de mão de abra escrava africana dada pela invasão holandesa. (FAUSTO, 1996). 129 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Foi sob as bandeiras paulistas122 que os paulistas da região de São Vicente adentraram o vasto sertão da colônia. Essas bandeiras partiram especialmente durante o século XVII, porém, ocorriam desde o século XVI, e duravam meses e até mesmo anos. Seu principal objetivo era a captura de índios que seriam vendidos no mercado comercial de escravos. Sobre elas Fausto (1994) ressalta: As bandeiras tomaram as direções de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e as regiões onde se localizavam as aldeias de índios guaranis organizadas pelos jesuítas espanhóis. Algumas bandeiras realizaram imensas viagens, em que a atração por uma grande aventura se mesclava com objetivos econômicos. Já veterano, Raposo Tavares percorreu, entre 1648 e 1652, um roteiro de 12 mil quilômetros [...] (FAUSTO, 1994, p. 59) Assim, surgem as primeiras descobertas significativas de ouro no interior do Brasil. A data oficial dos descobrimentos é intensamente discutida entre historiadores, porém, há um consenso que essas descobertas se situaram nas últimas décadas do século XVII123. Porém, seu grande apogeu de produção se deu durante o século XVIII. Sobre esse fato, Fausto (1994) afirma que: Em 1695, no Rio das Velhas, próximo às atuais sabará e Caeté, ocorreram as primeiras descobertas significativas de ouro. A tradição associa a essas primeiras descobertas o nome de Borba Gato, genro de Fernão Dias. Durante os quarenta anos seguintes foi encontrado ouro em Minas Gerais, na Bahia, Goiás e Mato Grosso. Ao lado do ouro, surgiram os diamantes, cuja importância econômica foi menor, 122 As bandeiras eram empresas privadas constituídas com base num sistema de ações, onde cada bandeirante tinha direito ao recebimento dos lucros de acordo com seu investimento. (PALACIN, 1994) 123 “A data e o lugar exatos da primeira descoberta realmente rica, provavelmente jamais serão conhecidos. As narrativas tradicionais variam, e a correspondência oficial dos governadores do Rio de Janeiro e da Bahia só reflete os achados dos dez primeiros anos, ainda assim tardia e impropriamente” (BOXER, 1963, p. 49). 130 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul descobertos no Serro Frio, norte de Minas, por volta de 1730. (FAUSTO, 1994, p. 60) Com essas descobertas se inicia a “corrida ao ouro” colonial e a segunda expansão territorial do Brasil, dessa vez em direção ao interior da colônia. Essa corrida trouxe efeitos tanto para a colônia quanto na metrópole. Uma grande e intensa imigração iniciou-se de Portugal para o Brasil, da mesma forma, dentro da própria colônia a migração também foi considerável. Colonos e seus escravos saiam do nordeste124 para a região das minas. Assim, como na região das Minas Gerais, o território goiano já possuía excursões de bandeiras desde o século XVI. Como aponta Palacin (1994), a primeira bandeira a adentrar as terras goianas data de 1590, que durou três anos e foi comandada por Domingos Luís Grau e Antônio Macedo. Posteriormente, diversas outras expedições adentraram o território vindas, principalmente, de São Paulo e algumas de Belém. Segundo o referido autor: No fim do século XVIII, o território de Goiás era suficientemente conhecido, tanto em São Paulo como em Belém. Os caminhos de penetração se achavam descritos nos roteiros que corriam de mão em mão, e os rumores sobre suas riquezas auríferas não faziam senão avolumar-se, apesar de limitado êxito das Bandeiras neste aspecto. (PALACIN, 1994, p. 19) Anteriormente a descoberta de ouro em Goiás, e posteriormente a descoberta em Minas Gerais, “em 1719, nas remotíssimas paragens de Mato Grosso, jazidas tão ricas que 124 Essa migração dentro da colônia do Nordeste para o sertão (Minas Gerais) leva a supor que a produção de açúcar nordestino estaria fortemente comprometida. Porém, Furtado (1994) nos mostra que a economia açucareira já vinha sofrendo baixas por conta da intensa concorrência no mercado de produtos tropicais advindos das colônias inglesas e francesas. “Em Portugal compreendeu-se claramente que a única saída estava na descoberta de metais preciosos” (FURTADO, 2005, p. 80). 131 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul [...] o ouro se retirava da terra como a nata do leite” (PALACIN, 1994) foram descobertas em Cuiabá. A descoberta do ouro em Goiás e a formação do território goiano e seus primeiros núcleos urbanos Em 21 de outubro de 1725, depois de três anos e três meses de viagem, a Bandeira denominada de Anhanguera, retorna a São Paulo com a notícia do descobrimento das tão procuradas minas em Goiás. Nasce o novo eldorado da colônia e novamente o processo de migração origina-se, só que dessa vez para o centro do território brasileiro. Com a descoberta das minas em Goiás completa-se a interiorização da colônia e as terras da América Portuguesa ampliaram-se ainda mais. Estevam (2004) enumera três motivos para a descoberta de ouro em Goiás: Primeiro, a busca de um caminho por terra “para substituir a longa e difícil via fluvial para Cuiabá”, o que era de interesse “vital” para as autoridades lusitanas; segundo, o “momento psicológico” era adequado para a preparação de uma bandeira exploratória em vistas das descobertas em Mato Grosso e dos rumores da existência de ouro no coração da colônia, e, por último, o momento político também era bastante favorável devido ao desdobramento do território das Minas Gerais. Nesse sentido, “a criação de um novo eixo mineiro seria a melhor resposta”, vindo ao encontro dos interesses da coroa e dos mineradores afastados das Minas Gerais. (ESTEVAM, 2004, p. 21; grifos do autor) Com nos mostra Castro (2006), historicamente a exploração mineral foi principal atrativo para o povoamento do estado de Goiás e fator determinante para a formação territorial do estado. A descoberta de metais preciosos, principalmente o ouro, no interior da colônia foi fator decisivo para a ampliação do território brasileiro. 132 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Podemos apontar que à medida que as reservas de metais preciosos eram descobertas, como já explicitado acima, uma intensa corrente migratória marchava para a região. Além da interiorização das terras brasileiras, a extração mineral era o fator exclusivo no povoamento dos sertões, fazendo com que a colonização deixasse de ser apenas litorânea, apesar de ainda haver, nesse período (e nos dias atuais), grandes vazios populacionais no interior do Brasil. Os primeiros anos que se seguem após 1725 são intensos, do ponto de vista da migração, e caóticos do ponto de vista da organização da sociedade goiana 125. Como nos mostra Palacin (1994), ao retornar de São Paulo, Bartolomeu Bueno funda o primeiro arraial que recebe o nome de Sant´Ana, posteriormente Vila Boa, hoje Cidade de Goiás. Esse recémfundado núcleo tornar-se-ia de suma importância na história goiana sendo a sede do governo em Goiás até a década de 1930 com a transferência da capital para Goiânia. O autor ainda destaca que nas primeiras décadas de ocupação de Goiás, os arraiais seguiam sendo criado pela força da mineração, que se concentrava no centro do estado, no eixo Serra Dourada – Serra dos Pireneus. No entanto, posteriormente as extrações de minerais expandem-se principalmente rumo ao norte goiano e, nos dias atuais, sul do Tocantins. Ainda na primeira década de povoamento do território, novas jazidas foram descobertas no centro do Estado, o que incita a criação, em 1727, do arraial de Meia Ponte, hoje Município de Pirinópolis, junto ao rio das Almas. Como nos aponta Palacin (1994), segue-se um intenso movimento de pessoas para Meia Ponte, o que já era de se esperar, pois os achados em Goiás sempre vinham com promessas de muita riqueza. Devido sua melhor localização, Meia Ponte logo faz frente à Sant´Ana. Sobre esse fato Palacin salienta: Quando em 1737 o Conde Sarzedas vem a Goiás para erigir a primeira vila, são muitos os que pensam que deve ser Meia Ponte e não Sant´Ana a sede do novo município. Preterida nesta ocasião, em 1754 o governo português quer informar-se de Dom Marcos de Noronha se 125 Nos primeiros anos de povoamento de Goiás diversas pessoas foram atraídas pela vontade de enriquecer rápido, assim como teria ocorrido nas Minas Gerais. Bandidos, assassinos, pequenos e poderosos mineiros que fugiam das Minas Gerais de seus credores e do fisco da coroa, fugitivos da justiça e contrabandistas caracterizam os primeiros habitantes de Goiás (PALACIN, 1994; ESTEVAM, 2004). 133 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul não seria oportuno transferir a casa de fundição de Vila Boa para Meia Ponte, por ser esta povoação mais acessível aos mineiros [...] não deveria somente a casa de fundição, mas todo o governo, pois Meia Ponte oferecia melhores comunicações e muito melhor clima; a única dificuldade para a mudança é que precisariam construir de novo todos os edifícios públicos. Para um governo tão ponderado em gastos como o de Lisboa, parece que esta razão foi decisiva e não se tocou mais no assunto. (PALACIN, 1994, p. 26) Na terceira década do século XVIII, outras descobertas de minas 126 são realizadas, porém ao norte do território goiano. Fundam-se os núcleos de extração mineral: Maranhão, em (1730); Água Quente, (1732); Traíras (1735); São José, (1735) e Cachoeira (1736), que constituem a maior densidade mineira do norte. Posteriormente, perdida em meio a mata virgem, descobre-se as minas de Crixás, “outras minas de tão grande rendimento que mereciam igualmente uma taxação especial, oitava e meia mais alta no imposto de taxação” (PALACIN, 1994, p. 26). No entanto, a busca por novas descobertas não cessava. Expedições continuaram adentrando ainda mais ao norte de Goiás. Tarefas aventureiras e perigosas renderam mais algumas descobertas de minas. Durante os últimos anos da terceira década do século XVIII os achados ainda são significantes, principalmente nas montanhas da região norte. Palacin (1994) trata de realizar essa cronologia de descobertas, descobrem-se as minas de: São Luís – mais tarde Natividade, TO – (1734); São Félix (1736), Pontal e Porto Real (1738), Arraias e Cavalcante (1740) e Pilar (1741). Descobertas que vão ocupando o “solitário” sertão do norte de Goiás. Conforme Palacin (1994, p.27) “a partir deste momento começaram a faltar os ‘descobertos’, o mais essencial dos elementos no metabolismo deste tipo de mineração. Continuam as buscas ativamente, e já com uma ponta de desespero, mas o resultado é pequeno, e cada vez menor”. Na segunda metade da década de 1740 realizam-se os últimos “[...] tão ricas que, ao criar-se o importo de capitação, foi-lhes determinada uma tacha muito mais alta por escravo” (PALACIN, 1994, p.26). 126 134 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul descobrimentos de minas importantes, que são: Carmo (1746), Santa Luzia (1746) e Cocal (1749). A partir dai extinguem-se por completo. Pelo exposto podemos perceber a importância da mineração para o povoamento e formação do território goiano. Através da atividade aurífera que as terras centrais da colônia são ocupadas, povoadas, mesmo que de forma desordenada. Os núcleos iam se formando ao sabor dos achados de ouro e outros metais preciosos. Ao mesmo passo que se desintegravam à medida que esses depósitos iam se exaurindo. É importante ressaltar que atualmente o território goiano não possui as mesmas bases que tinha no momento de sua institucionalização como Capitania de Goiás em 1748, através do desmembramento da Capitania de São Paulo. A configuração territorial de Goiás127 como conhecemos nos dias atuais é resultado de transformações/alterações no decorrer de mais de 200 anos. Através do exposto nesta discussão podemos apontar que, primeiramente, o território iniciou-se no centro sul do hoje Estado de Goiás, entre Vila Boa (Goiás) e Meia Ponte (Pirenópolis). Posteriormente, o território goiano se expande para o norte até a confluência do rio Araguaia com o Tocantins à medida que novos depósitos de metais preciosos iam sendo descobertos. Já no fim dos achados, na virada para a segunda metade do século XVIII, o território goiano se estende para leste com a fundação do núcleo de Santa Luzia (Luziânia). Constituindo, dessa forma, atividade aurífera o fator preponderante para a formação territorial de Goiás. Como nos mostra Gomes, Neto e Barbosa (2004), são três fatores que contribuem para o povoamento do território goiano. O primeiro foi a corrida do ouro no período colonial, que iniciou uma intensa migração em direção ao interior da colônia; o segundo foi a atividade agropastoril, iniciada paralela à atividade aurífera e intensificada com a queda da produção do ouro; e o terceiro foram as estradas, antigas e atuais que serviam de via de comunicação com os centros litorâneos. As perdas territoriais da antiga Capitania de Goiás – para Mato Grosso e Mato Grosso do Sul estão sendo computados mais de 160 mil quilômetros quadrados, para Minas Gerais, foi o atual triângulo Mineiro e mais outros “ajustes” menores – totalizam cerca de 250 mil quilômetros quadrados, sem contar com a criação do Estado do Tocantins (GOMES; NETO; BARBOSA, 2004, p.52). 127 135 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul O povoamento das terras goianas possui forte base no período aurífero à medida que atraía grande contingente populacional para a região, movido pelo sonho de enriquecimento rápido. Ao analisarmos a discussão de Estevam (2004), percebemos que mesmo com a queda da atividade aurífera, essa ainda contribuiu para o povoamento de Goiás à medida que os núcleos populacionais, que giravam entorno da extração do ouro, sofriam um súbito esvaziamento e seus habitantes se direcionavam para as zonas rurais, povoando, dessa forma, outras faixas territoriais. Outro fator importante que podemos destacar é que a atividade aurífera, além de proporcionar a interiorização da colônia, a constituição do território goiano e seu povoamento, também iniciou a integração do sertão colonial com o litoral e contribuiu para a formação socioespacial desses territórios. Considerações finais A atividade aurífera no período colonial foi fator preponderante na interiorização da América Portuguesa. A característica colonizadora fixada nas faixas litorâneas brasileiras foi se perdendo a medida que depósitos de minérios e pedras preciosas foram sendo descobertas entre os séculos XVII e XVIII. Achados que proporcionaram o povoamento do sertão da colônia, nos atuais estados de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, principalmente. No entanto, não se pode afirmar que a colonização passou a ser interiorana, pois a maioria da população ainda vivia nas faixas litorâneas, como afirma Prado Júnior (2008). Essa ainda é uma característica da distribuição populacional do Brasil. Porém, pode-se afirmar que a interiorização da colônia e a opulência de suas minas provocaram mudanças econômicas e políticas na América Portuguesa. Fato evidenciado com a transferência da capital colonial para Rio de Janeiro e do eixo econômico do nordeste para as regiões auríferas. Em Goiás, a atividade aurífera foi a base da definição dos primeiros limites territoriais do Estado, sendo estes alteradas nos anos posteriores. Além disso, foi fator principal no povoamento do sertão goiano, seja com a formação dos núcleos urbanos, do povoamento rural do território e na construção das bases da sociedade goiana. Tendo a mesma importância em Minas Gerais e Mato Grosso. 136 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Referências bibliográficas BARBOSA, Altair Sales; TEIXEIRA NETO, Antônio; GOMES, Horieste. Geografia: GoiásTocantins. 2° ed. – Goiânia: Editora da UFG, 2004. BECKER, Bertha Koiffmann; EGLER, Claudio A. G. Brasil: uma nova potência regional na economia-mundo. 4° ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. BOXER, Charles Ralph. A idade de ouro do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1963. CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a El Rei D. Manuel. Disponível em: http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo/perovazcami nha/carta.htm>.Acessado em: maio de 2014. CASTRO, Mário César Gomes. Mineração e Economia de Goiás. In: Economia Goiana: Cadeias Produtivas, Reestruturação, Mineração, Agricultura e Industrialização. 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Acessado em: maio de 2014. 137 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul MEMÓRIAS DE UM TEMPO PERDIDO: A ESTRADA DE FERRO GOIÁS E A CIDADE DE IPAMERI (1920-1930) Hilma Aparecida Brandão O trem foi representado, no Brasil, como nos demais países, como o grande condutor da civilização e veículo de integração nacional. Por onde passava, o trem trazia consigo a ilusão de que através dele seria possível a todas as classes sociais o acesso à instrução, a anulação de preconceitos e a prosperidade. O trem símbolo do progresso e da civilização molda novos hábitos, entre eles o de medir o tempo pelo relógio, colocado nas estações, que substitui o tempo natural, medido pelo sol e pelo sino da igreja. No caso de Ipameri, a chegada da estrada-de-ferro vai acarretar o surgimento da primeira fábrica, da energia elétrica, da primeira agência bancária e outros “pioneirismos”, mas também faz surgir formas novas de exclusão, como os bairros e vilas na cidade e os antigos casarões abandonados, contradições presentes na modernidade. O desenvolvimento do sistema capitalista traz consigo um movimento brusco de construir e destruir. Segundo PAULA: ...quaisquer que sejam as prioridades da economia e/ou dos interesses dos grupos hegemônicos, tudo se justifica, ideologicamente. Ao mesmo tempo, ainda que as manifestações da mudança sejam perceptíveis, na essência, o sistema é o mesmo. Tudo muda para que tudo permaneça como está. (PAULA, 2000:51) Neste sentido, considero pertinente refletir sobre o sentido de modernidade e progresso, comumente empregado, particularmente a partir da implantação da ferrovia como uma maneira de justificar as transformações necessárias ao sustentáculo do capitalismo. Ao escrever Cidades Mortas em Lobato parece referir-se às lamentações das cidades que atingidas pelo progresso em determinado momento de sua história (como Ipameri), já não vivem mais seu tempo de glória. Para LOBATO: Nosso progresso é nômade e sujeito a paralisias súbitas. 138 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Radica-se mal. Conjugado a um grupo de fatores sempre os mesmos, reflui com eles duma região para outra. Não emite peão. Progresso de cigano, vive acampado. migra, deixando atrás de si um rastilho de taperas. (LOBATO,2004:21) Assim, esse movimento do ter e do não ter atende a interesses do sistema capitalista, é necessário para alimentá-lo. O progresso nesta perspectiva está em constante movimento, é cigano e muda-se de um lugar para o outro quando menos se espera. Em relação estreita com o capitalismo, expressões como modernidade, modernização, progresso e, mais recentemente, globalização são comumente utilizadas, em sua maioria para justificar os projetos de transformação desejados pelo setor hegemônico da sociedade. Estes termos são empregados constantemente principalmentenos discursos políticos, servindo de slogan para vários candidatos a cargos representativos. Construir uma cidade, um Estado e um país progressistas, incentivando a grande produção e o desenvolvimento industrial é uma constante nos discursos das classes hegemônicas. A utilização constante desses termos requer do historiador a busca de suas origens. Segundo LE GOFF o termo modernidade é lançado no século XIX por Baudelaire, difundido a essa época pela arte e literatura e como uma forma de reação cultural às transformações em todos os aspectos acaba se generalizando no século XX. Dessa forma, a industrialização traz em seu bojo a modernidade que ao mesmo tempo busca empreender grandes projetos de transformação na esfera da auto-reprodução do capital, mas traz também um processo de exclusão, colocando à margem a maioria da sociedade, que não participa dos benefícios desse projeto. O que é mais intenso em países como o Brasil. O novo assume aqui o papel preponderante. Para LE GOFF, a modernidade ou modernismo é a tomada de consciência das rupturas com o passado e simultaneamente a vontade coletiva de as assumir. Assim, o novo está sempre substituindo o velho, que aparece sempre como uma ruína necessária de destruição. A construção de ferrovias, por onde elas passaram, trouxe consigo essa idéia do novo, em substituição ao que se apresentara como antigo. De maneira lenta e permeada de contradições a ferrovia ia convivendo e, muitas vezes substituindo as longas e penosas viagens feitas a cavalo, em lombo de burro ou em carros de boi. As tropas e boiadas vão dando lugar ao cenário das estações e linhas ferroviárias, a natureza vai sendo “invadida” pela máquina. 139 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Dilma Andrade de Paula escreve sobre a história ferroviária no Brasil destacando os contrastes apresentados pelo Brasil moderno. Segundo a autora, isso de um lado estava ...que havia de mais atual em termos de associação do capital financeiro, as sociedades por ações e, de outro lado, como a outra face da moeda, o trabalho escravo e toda lógica de funcionamento de uma sociedade escravista. (PAULA, 2000:39) A expansão ferroviária se dá para garantir o melhor escoamento da produção cafeeira, mas também como forma de integrar os sertões brasileiros ao centro político e econômico, o Sudeste do país, e garantir a realização do projeto de nação, vislumbrado pelas elites brasileiras, já que ...tornar a nova nação parte da civilização, ao lado das demais nações ‘civilizadas’, foi uma preocupação marcante do pensamento sobre o Brasil no século XIX. (NAXARA, 1999: 2) Assim, ao desenvolver um plano ferroviário havia, além da preocupação econômica, a de melhorar as comunicações inter-regionais, permitindo a integração nacional e a centralização político-administrativa, o que era fundamental para a manutenção da unidade nacional ameaçada pelos movimentos rebeldes separatistas. A construção ferroviária no Brasil, explica-se, assim, pela necessidade de expansão do capital estrangeiro britânico, como forma de acumulação interna e por interesses políticos nacionais. A história desse meio de transporte no cenário nacional é permeada de tensões e contradições, por se iniciar inserida em uma sociedade escravista, respondendo aos anseios de melhoria nos transportes de gêneros das frações agrárias dominantes e, em algumas regiões, pelo fato da linha ser iniciada num momento de decadência da região para a qual estava sendo destinada. O trem, um dos grandes símbolos da “modernidade” atravessa os sertões, trazendo consigo um projeto de civilização, integrando estados interioranos aos grandes centros comerciais, particularmente os Estados de São Paulo e Minas Gerais e transformando os lugares por onde passava. Ressalta-se que, em Goiás, a ferrovia chega no início do século XX e, em 1896, atinge como ponto final a cidade de Araguari, localizada no Triângulo Mineiro. A construção da linha tronco de Formiga a Catalão passou por vários momentos de crise econômica e política, sendo este trecho concluído somente na década de 1940. Por estes motivos a primeira linha a ser concluída foi a que partiu de Araguari, objetivando atingir a cidade de Goiás, capital deste Estado, como um prolongamento da Mogiana. Sua construção iniciou-se em 23 de dezembro de 1909 e em quatro anos já havia atingido a Região conhecida como Roncador 140 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul (município de Ipameri), ficando paralisada nesta região até 15 de julho de 1922, data da conclusão dos serviços de construção da ponte sobre o rio Corumbá. Este trecho ligando Araguari e Roncador incluía o ramal Goiandira a Catalão, de 23 km. É nesse contexto que o trem chega à cidade de Ipameri, na região conhecida como “Roncador”, este trecho permanece como ponto final da linha até o ano de 1922. O trem chega a Ipameri e, além disso, a cidade é por nove anos o ponto final da linha. Com a chegada do trem inicia-se o processo de urbanização na região Sul do Estado de Goiás e algumas cidades vão se tornando significativos centros comerciais, enquanto outros iam surgindo. São exemplos disso as cidades de Catalão, Goiandira, Ipameri e outras pertencentes à região Sul. Além de buscar integrar nacionalmente o Brasil, a ferrovia serve como espécie de “condutor da civilização”, símbolo da modernidade, que chega e acaba por transformar a paisagem urbana das cidades ou mesmo criar núcleos populacionais que mais tarde adquirem estatuto de cidade. Por onde passa acaba surgindo as primeiras fábricas, casas comerciais, bancárias, novos modelos de construções, e outros artefatos da modernidade. A representação da cidade de Ipameri como pioneira nesse processo de transformação das cidades goianas do interior é comum nas imagens tecidas sobre o período, seja nos registros escritos, seja na fala dos moradores locais. Assim, o caminho percorrido pelas linhas ferroviárias trazia em seu bojo a prática de um projeto econômico de integração das regiões interioranas do país ao sistema capitalista, mas também a concretização de um projeto de civilidade para o país pensado no século XIX. O Brasil do século XIX aparece nos escritos sobre este período com características predominantemente agrárias e exportadoras, os símbolos mais visíveis da civilização também deveriam estar associados à produção agrária. Segundo NAXARA: As vias férreas, as novidades em termos dos implementos técnicos agrícolas, a movimentação financeira, e mesmo a própria dinamização do urbano, naquilo que ele tem de mais civilizado. (NAXARA, 1999:09) Assim, embora a modernização, particularmente a técnica, tenha sido introduzida no campo, ele vai permanecer, ao menos no imaginário, como lugar do atraso. Daí a necessidade do desenvolvimento de um projeto que dê uma cara de urbana, particularmente para as cidades interioranas, que tinham um aspecto predominantemente rural. 141 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul No caso de Ipameri essa questão é ainda mais evidente: seria necessário com a chegada dos trilhos “construir a cidade”, torná-la urbana transformando o aspecto rural, dado pelos modelos das casas e estilo de vida das pessoas, em aspecto urbano. Havia, ao menos em nível de discurso a necessidade dessa construção. No campo do imaginário cria-se um momento de ruptura entre Ipameri (parte do sertão), o “antes da Ferrovia”, e Ipameri urbana, o “depois da ferrovia”. A imagem dominante de Ipameri-sertão está presente também nos jornais, que enfatizam o fato da cidade, apesar de suas características rurais, conviver com o desenvolvimento de símbolos da modernidade. Nos dizeres dos jornais: Ipameri é uma cidade feliz. Na sua pacatez de pequeno lugar sertanejo oferece-nos, entretanto, às vezes, espetáculos de invulgar imponência. Espetáculos que, presenciando-os, não podemos deixar de sentir, tocados de um entusiasmo mal contido, percorrer-nos o corpo atingindo até a alma, um arrepio mágico de satisfação e orgulho.128 A imprensa local investe-se nesse momento num discurso que busca a glorificação da cidade. Estão presentes nestes discursos sentimentos como o orgulho, a magia, o entusiasmo mal contido que toca o corpo e atinge a alma. Os sentimentos despertados reforçam a idéia de que o impacto econômico e cultural causado com a chegada da Ferrovia fora intenso. As palavras não conseguem dar a dimensão das transformações. Por onde o trem passa criam-se espetáculos, um clima de magia permeia os discursos. A ferrovia significou para o Estado de Goiás a possibilidade de deixar de ser visto como sertão. E, embora as mudanças ocorressem lentamente, a ferrovia acaba sendo um dos fatores mais expressivos para a “aceleração do processo de mudanças em todos os níveis da sociedade”. (BORGES, 1990:88). Todo o contexto vivido pelo Estado de Goiás no período que antecede a chegada da ferrovia em Ipameri pode ser apreendido na leitura dos grandes escritores “regionalistas” goianos, que escrevem sobre o período, como Hugo de Carvalho Ramos, de modo particular em Tropas e Boiadas, Carmo Bernardes, Bernardo Elis, que caracterizam o Estado como sendo este Sertão. Apontam para a existência de algumas cidades semelhantes às descritas por NAXARA, que passam pelo processo de urbanização com a chegada da Estrada de Ferro Goiás. 128 Jornal O Ipameri, de 19 de maio de 1929. Este artigo foi escrito por ocasião da comemoração do aniversário do 6º Batalhão de Caçadores, inaugurado em Ipameri, em 1922. 142 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Com a chegada dos trilhos à região Sul do Estado de Goiás esse projeto começa a ser colocado em prática, iniciando-se um processo de urbanização. Apesar das transformações em curso não houve mudança significativa no dia a dia das pessoas, que continuam a ter sua vida em função do campo ou de um pequeno e simples comércio, principalmente no que se refere aos antigos moradores da cidade. O que há de novo para essas pessoas é o espaço da estação e o convívio com novos moradores. BORGES enfatiza que: ...algumas cidades se modernizaram e novos centros urbanos surgiram. O movimento migratório iniciado no século passado se intensificou com a melhoria dos meios de transporte. A terra, em algumas regiões do Estado, se valorizou na medida em que a Estrada de Ferro incrementava a produção de uma renda diferencial, desenvolvendo, inclusive, na região da estrada de ferro, uma certa especulação fundiária.(BORGES, 1990:87) Logo, as primeiras décadas do século XX são marcadas por transformações significativas no Estado, o que não chega a alterar radicalmente e nem a quebrar o ritmo de sertão vivido naquele momento, mas parece ter se constituído como um período de euforia e expectativa, de modo particular nas cidades cortadas pelos trilhos, como é o caso de Ipameri. Esse ritmo de sertão se assemelha com o descrito por Monteiro Lobato em Cidades Mortas. Nas cidades do interior de Goiás, no início do século XX, as pessoas vivem “na mesmice do dia a dia”, o curso do tempo corre interrompido pelo badalar do sino da igreja, pelo estalar das palmas do “compadre” para uma visita, e sobretudo pelo apito do trem, que se constituía como a grande novidade. As notícias do mundo chegam pelo trem, através do telégrafo ou pelos jornais locais, aos quais têm acesso uma pequena parte da sociedade que forma a aristocracia intelectual da cidade, “os que sabem”. A cidade é abandonada por seus filhos atraídos por terras novas, em busca de estudo, do diploma de “doutor” e os que ficam pertencem às gerações mais velhas, ou são desprovidos economicamente e não têm disponibilidade de recursos para sair para outras localidades para estudar. 143 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Neste sentido, mesmo com todo o dinamismo, representado pelas interpretações acerca deste período, a cidade de Ipameri apesar de passar por um processo de transformação não tem o ritmo de sertão quebrado. Lobato descreve os habitantes dessas cidades como ...“mesmeiros”, que todos os dias fazem as mesmas coisas, dormem o mesmo sono, sonham os mesmos sonhos, comem as mesmas comidas, comentam os mesmos assuntos, esperamo mesmo correio (...) lamuriam do presente e pitam longos cigarrões de palha, matadores do tempo. (LOBATO, 2004:26) Está presente a idéia do novo, a chegada do trem, do movimento, mas é possível perceber nas narrativas de quem vivem em Ipameri, no início do século XX, que o curso de vida da maioria dos habitantes locais não fora de tudo substituído pelos hábitos modernos. As pessoas permanecem com suas crenças, com suas manias. Entre a mesmice do dia a dia, estava presente a politicagem, as moças esperando na janela, e também a tentativa de alcançar o progresso, oriundo da chegada da ferrovia. Ao falar de uma continuidade, da permanência do ritmo de sertão, não quero dizer que tudo permaneceu como era, mas que não houve mudanças radicais nas mesmas proporções das comentadas pelo senso comum, que fala de Ipameri como se este período (primeiras décadas do século XX) fosse um exemplo e a materialização da modernidade e progresso no sertão goiano. Num primeiro momento, nos jornais contemporâneos do início do século XX o termo “sala de visitas” é utilizado, ainda que de forma inconsciente para apagar a imagem de sertão presente nas narrativas dos viajantes europeus, que se valem da imagem do homem sertanejo, o caipira, atrelada ao ócio, ao referirem-se ao homem goiano, em seus relatos de viagem ao Estado de Goiás. Num segundo momento, nos registros memorialísticos, o termo “sala de visitas” é utilizado como um modelo para se projetar o futuro. Busca-se a criação de expectativas em relação ao futuro, já que a cidade passa por um momento de “decadência” com a quase extinção do tráfego ferroviário e a valorização das rodovias como meio mais rápido de transporte, além da construção de Goiânia, capital de Goiás, e de Brasília, capital do Distrito Federal. 144 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Esse autores buscam construir para Ipameri uma imagem que lhe confira unidade e identidade e que seja capaz de projetar para a cidade um futuro promissor. O tempo do antes da ferrovia deveria ser esquecido, assim como período de “decadência”, para dar lugar a um tempo novo, o do progresso e desenvolvimento. Pode-se dizer que é justamente da imagem do Jeca, que além de tudo mora num lugar sertanejo que a elite local busca “esquecer”, ainda que isto não apareça explicitamente formulada de forma consciente. Nos dizeres de SEIXAS: As figuras do esquecimento e da denegação plasmam e efetivam imagens racionais, sem dúvida, mas também passionais, que fazem aparecer ‘dimensões universais e uma configuração única.’ Razão e afetividade, voluntário e involuntário, intelecto e imaginação, cálculos e automatismos constituem, portanto, combinações imprescindíveis que não podem ser desconsideradas na compreensão do político e seu exercício.(SEIXAS,2002:137) Voltando à questão das transformações advindas da chegada da ferrovia é possível dizer que a população do Estado aumenta consideravelmente. O censo de 1.900 aponta Goiás com 255.284 habitantes; e o de 1920, com 511.919. Mais do dobro em 20 anos, sendo a região mais povoada a sudeste. Catalão, com 35 mil habitantes, se apresenta como o maior município de Goiás em número populacional, em 1920. A pecuária continua a principal atividade econômica, conhecendo, porém, novas formas, como a seleção de melhores raças, resultante da importação de reprodutores do rebanho, aumento das exportações, para os grandes centros do país, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro com a implantação das charqueadas. Da mesma forma, a agricultura também passa por um lento processo de organização em bases capitalistas, resultante principalmente da cultura do arroz, desenvolvida mais eficientemente na região Sul do Estado. Em 1920, Goiás se destacou como o quarto maior produtor nacional desse produto. Nos municípios de Catalão e Ipameri, localizados nesta região e servidos pela Estrada de Ferro Mogiana, concentrava-se a maior produção do Estado, com cerca de 20 mil toneladas, correspondente a aproximadamente 50% da produção total do Estado. Acrescenta-se, ainda, a produção do milho e da cana-de-açúcar, em proporções bem menores. Tal região destacou-se 145 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul também quanto à valorização das terras, processo que se efetiva por sua localização próxima à ferrovia, único meio de transporte considerado “moderno”. Por este motivo, na região Sul do Estado a especulação fundiária foi mais ampla. em Ipameri vendia-se um alqueire de mata em 1915, a 50$000. Com as transformações da economia agrícola do município e o aumento da imigração, a terra da mata própria para cultura era, em 1920, vendida até 300$000 o alqueire, valorizando-se, assim, 600 % em apenas cinco anos.(BORGES, 1990:98). As cidades goianas servidas pelas linhas, neste período, acabam se tornando significativos centros comerciais do Estado. Em 1920 Ipameri contava com 330 estrangeiros, dedicando-se estes às atividades dos setores secundário e terciário, as charqueadas, as fábricas de banhas e as grandes máquinas de beneficiamento de arroz, comércio varejista e ambulante, além da mão de obra qualificada para o trabalho na Companhia Construtora da Estrada de Ferro. Esses estrangeiros vinham da Europa, de países como a Espanha, Síria, Líbano, Alemanha e outros. Ao lado dessas transformações econômicas, outros aspectos da vida social, política e cultural começam a serem alterados, passando essas cidades por um processo de urbanização. Em Ipameri os primeiros indícios da urbanização chegam com a construção da primeira usina hidroelétrica de Goiás, em maio de 1913, inaugurada antes mesmo da E.F. Goiás, que teve sua inauguração no dia 10 de novembro de 1913. O primeiro cinema é instalado em 1915. No mesmo ano inaugura-se a primeira charqueada. Segue-se o curso das inaugurações: em 1914 o primeiro automóvel e, no mesmo ano o ‘serviço público de Telefones’. É fundado em 1917 o primeiro jornal O Pivor, em 1918 a loja maçônica Paz e Amor. Forma-se em 1919 a primeira equipe de futebol e é fundada a “União Esportiva Ipamerina”. Em 1920 inicia-se os serviços de abaulamento de ruas com sarjetas e meiofios. Em 1921 é instalada a Primeira Agência do Banco do Brasil em Goiás. Entre outros são considerados marcos importantes: a transferência do 6º Batalhão de Caçadores, em 1922; o jardim e o coreto da Praça da Liberdade, em 1923; o Colégio Olavo Bilac, em 1927; a Casa de Saúde 146 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Santa Terezinha, em 1927; o Grêmio Espírita “Paz e Fraternidade”, em 1928; o primeiro grupo escolar de Ipameri, em 1929. Essas primeiras escolas deram origem a outras como o Ginásio Municipal (atual CEPEM) em 1933 e o Colégio e Escola Normal “Nossa Senhora Aparecida”, em 1936. A década de 1930 assiste ainda à construção da Igreja Matriz do Divino Espírito Santo, em 1938. A exemplo dessas três décadas a cidade continua assistindo às inaugurações durante toda a década de 1940 e de 1950, passando nas décadas seguintes a um processo inverso, o de fechamento das casas comerciais e bancárias e a mudança de várias famílias para cidades próximas, principalmente com a construção da estrada de rodagem “BR 050” que liga Belém-Pará a BrasíliaDF. Em termos econômicos, a cidade passa por um período que é percebido e por todos representado como sendo de “decadência”.129 O trem que corta campos e cidades no mundo todo chega a Ipameri pela E.F. Goiás, surpreende os habitantes que se vêem diante de novas possibilidades, transforma e passa “ao imaginário como fantasmas”. Assim, o que num instante fora o “o espetáculo privilegiado da civilização capitalista” não o é mais. O trem, símbolo do progresso, deixa para trás as ruínas de uma cidade, que transformada se vê sem chão, a cidade virada pelo avesso, sentindo apenas a vertigem do vazio, pois o trem e todas as significações que o compõe não fazem mais parte do cenário real. Segundo Hardman, a chegada do trem deixou marcas novas, criou novas sensibilidades, que convivem com as antigas e partiu deixando as suas marcas, suscitando inquietações e lembranças, constituindo-se como tema atual das rememorações. Entender o que significou o trem para o sertão goiano implica embarcar numa longa viagem. Referências Bibliográficas BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da Modernidade: São Paulo: Companhia das Letras, 1986. 129 Ler BORGES, Barsanulfo Gomides. 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Até entendermos segundo tal abordagem porque a "Revolução foi brasileira e o imaginário: gaúcho". Sandra Jatahy Pesavento(1946-2009) foi uma importante estudiosa rio-grandense que desenvolveu sua pesquisa sobre História Cultural. Entre seus estudos constam questões envolvendo a Revolução Farroupilha (1835-1845), aonde ela produzindo inúmeros textos sobre tal temática. Em seu livro História e História Cultural (2003), a autora diz: "a História Cultural se torna, assim, uma representação, que se incube de construir uma representação sobre o já representado"(p.43) portanto o jeito da autora pensar na escrita da história se contrapõe a ideia de relatar fatos com uma conotação de verdades absolutas e totalitárias, assim como era proposto pelo cientificismo. Entre as mudanças epistemológicas a caminho, acompanha a ideia de representação o imaginário. 130 Tema retirado da iniciação cientifica de graduação. De forma a incrementar a minha pesquisa. Trabalho ainda em andamento. Projeto Trajetórias, Itinerários e Tramas: histórias de vida e narrativas políticas. Orientação: Profª. Drª Maria Cristina Nunes Ferreira Neto, atualmente é professora adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC GO), no Mestrado de História, nos cursos de graduação de História, Relações Internacionais e Design. 131 Graduanda em História pela Universidade Católica de Goiás. 132 Co-orientadora. 150 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Para a autora imaginário será "um sistema de ideias e imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo." (PESAVENTO;43). É a construção de um mundo paralelo de sinais que se constrói sobre a realidade para conferir um sentido, aonde essa construção é social e histórica. A autora utiliza o pensamento de Bronislaw Baczko(apud, PESAVENTO, 2003; p.43) e sobre o imaginário, aponta que: Essa construção de sentido é ampla uma vez que se expressa por palavras/discursos/sons, por imagens, coisas, materialidade e por praticas, ritos, performances. O imaginário comporta crenças, mitos, ideologias, conceitos, valores, é construtor de identidades e exclusões, hierarquiza, divide, aponta semelhanças e diferenças no social. Ele é um saber-fazer que organiza o mundo, produzindo a coesão ou o conflito. Outro autor utilizado por Pesavento é Cornelius Castoriadis, o qual confere ao imaginário um sentido ontológico e acrescenta que para além de sua dimensão histórica este é uma capacidade humana que forma "um espécie de magma de sentido ou energia criadora"(PESAVENTO;44). Le Goff acrescenta que tudo aquilo que consideramos realidade na verdade é o nosso próprio imaginário, porque este abrange todo o campo da experiência humana. Loiva Otero Félix(1998) aponta que não podemos considerar que o real e o imaginário sejam contrapostos ou antagônicos, ao contrario, são unidos simbolicamente na medida em que o real pressupõe o imaginário. O mesmo autor nos traz a fala de Pierre Ansart, a qual fala possibilitará entender o porque falar de imaginário para a questão indentitária rio-grandense. Toda sociedade cria um conjunto coordenado de representações, um imaginário através do qual ela se reproduz e que designa em particular o grupo a ele próprio, distribui identidades e papeis, expressa as necessidades coletivas e os fins a alcançar. Tanto as sociedades 151 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul modernas, como as sociedades sem escrita produzem estes imaginários sociais, esses sistemas de representação, através dos quais elas se autodesignam, fixam simbolicamente suas normas e valores. (ANSART:1993, apud, FÈLIX, 1998). O imaginário como vimos é um importante elemento para entendermos as relações que tecem no social, este está inteiramente ligado ao real, mas este ultimo não dá a o imaginário seu reflexo ou copia. Pois segundo Pesavento o imaginário remete tanto a coisas prosaicas ou não do cotidiano da vida dos homens, mas também carrega utopias e elaborações mentais que figuram ou pensam sobre as coisas que não existem. Portanto há um lado que remete a vida e o outro ao sonho, os quais são construtores do real. Nessa medida, na construção imaginaria do mundo, o imaginário é capaz de substituir-se ao real concreto, como um seu outro lado, talvez ainda mais real, pois é por ele e nele que as pessoas conduzem a sua existência. (PESAVENTO: 48) A Revolução Farroupilha foi um marco para a historia rio-grandense, foi a entrada do Rio Grande do Sul nos livros didáticos, em discursos políticos nos centros de tradição. Inicialmente chamada de província de São Pedro era um importante ponto estratégico para o acesso ao Prata para o Império português. Fronteira com os castelhanos se tornou desde cedo ponto de conflitos entre o Brasil e o mundo hispânico. O Império português em 1680 fundou a Colônia de Sacramento em frente a Buenos Aires. Ainda nessa época disputavam o gado deixado pelos jesuítas, o gado xucro ou chimarrão, rebanho selvagem caçado no pampa. Para assegurarem seu poder a Coroa então passou a conceder poderes amplos aos senhores de terra e gado, estimulando o crescimento de grandes estâncias no decorrer do século XVIII. Estes estanceiros então defendiam as terras e demarcavam a fronteira. Com a independência houve uma modificação dos papeis, o sul segundo seus habitantes era explorado pelo centro, tornando-a praticamente uma sua "colônia", 152 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul denunciavam: a centralização político-administrativa, as altas taxas para a Coroa e a taxação do charque gaúcho. Havia também uma desvalorização militar da província, porque foram responsabilizados os homens da perda da Província Cisplatina em 1828. Inconformados, os senhores locais junto a seus homens declararam guerra, e em 20 de setembro de 1835, proclamam a Republica Rio-grandense, se dará inicio a mais longa revolução regencial brasileira. Que queria reivindicar seus direitos. O líder do movimento revolucionário farroupilha foi o famoso Bento Gonçalves da Silva, um importante estanceiro do Rio Grande do Sul, o qual também tinha propriedades nas terras do Uruguai, influente em ambos os território era de origens espanholas e se tornou Presidente da Republica Rio-Grandense apenas foi proclamada na sua capital Piratini, mesmo se na época foi capturado e preso pelos imperiais e se encontrava na Bahia, só em 1837 conseguira fugir a nado com a ajuda da maçonaria, retornando ao sul. Pela sua criação de símbolos característicos, como por exemplo, a bandeira e o hino, essas ações mais do que históricas se tornaram segundo Pesavento, "atemporais, eternas, imutáveis, porque integrantes de uma identidade regional altamente agregadora"(PESAVENTO:2003;43). A ideia do justo e sua forte narrativa autônoma deram ingredientes para a construção de um "mito das origens". Isso perpassou a história através da memória, constituída pela oralidade e demarcada pela escrita. Estava além da ideia de uma maneira de ser. Segundo a mesma autora "são episódios contados e recontados de pais para filhos desde o final do conflito"(p.44). Ficou no espírito rio-grandense desde então um "destino manifesto: o de lutar pelas boas causas, sempre alerta, tal como já fora o bravo sentinela da fronteira"(PESAVENTO;45). O que interessa são as causas justas e não para quem se deve lutar, talvez isso seja também a herança de uma mistura de nacionalidades no meio farroupilha, haviam mesmo italianos, franceses, uruguaios, norte-americanos, ingleses. Vale apena ressaltar que mesmo sendo acolhedores e simpáticos, que entre os rio-grandenses, principalmente na elite, existia preconceito com os estrangeiros como também um grande cuidado. Mas isso é para dizer que sempre ao longo da historia, isto é, após a revolução, sempre se posicionaram pelas lutas brasileiras. 153 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Segundo a autora a resposta à pergunta "qual a relação que se estabelecera desde a Revolução Farroupilha entre o todo e a parte, a nação e a região?", está na relação da história com o imaginário, não existe "ninguém tão brasileiro quanto o gaúcho", pois ele escolheu ser brasileiro, na revolução poderia ter se aliado com as republicas do Prata, mas não o fez, e podemos pensar que eles já haviam se apropriado da imagem do gaúcho portanto deixar o Brasil definitivamente não iria ter sido muito difícil. Para entendermos mais, o autor Lindolfo Collor(1977), defende a ideia de que o objetivo da revolução nunca foi a favor realmente de uma republica e o autor Raymundo Faoro(2001, apud, CARTA, 2013) destaca que a ideia de separatismo não passava de uma tática, se queria na verdade uma autonomia local por parte do governo central, uma federação. Ao longo do tempo se proclamou Republica e separação, mas segundo estes autores, esta proclamação não passava de um modo de tentarem ter seus privilégios de volta. Pode surgir em nossas concepções, o fato de que se torna um equilíbrio instável ser gaúcho e brasileiro ao mesmo tempo. Vale destacar que a imagem de gaúcho apropriada pelos senhores de terras era um pouco diferente do que era o verdadeiro gaúcho dos Pampas. Pois, partimos do pressuposto do modo de vida, os senhores só no inicio da guerra começaram a ser, por exemplo, nômades. Podemos pensar a aqueles homens "livres", estes estavam mais próximos do que eram os gaúchos, quase sempre associados a aqueles argentinos e uruguaios. O que estava em jogo segundo Pesavento era o "respeito e reconhecimento pelo "todo", dos valores e direitos da "parte", num ajuste de identidades permanentes entre a região e a nação” (p. 45-46). Mas porque gaúcho? Os gaúchos foram, para termos ideia sempre e por todos considerados de modo pejorativo, o autor Gianni Carta detalha dizendo, como se fossem "vira-latas". Espanhóis, criollos e também pera a elite rio-grandense, esses homens eram fora da lei, aliás Carta falando da obra de Domingo Faustino Sarmiento(1811-1888) destaca que, segundo esse autor os gaúchos se destacavam em quatro categorias, entre as duas melhores havia o rastreador e o cantor, e os piores eram os vaqueanos e principalmente os malo. Gaúchos portanto eram aqueles que trabalhavam para proprietários rurais ou eram "fora da lei", roubavam gados e recorriam a violência. Carta comparando-os aos caubóis norte-americanos os descreve assim: 154 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Passavam os dias sobre a sela do cavalo, tinham poucas posses, dormiam relento, em redes, em casebres de barro ou sapé ou em taperas abandonadas. Os trajes mais típicos eram os ponchos de lã, os chiripas - panos grossos enrolados na cintura como saia ou passados no meio das pernas como um fraldão - e, mais tarde, as bombachas, mais confortáveis para montar. Usavam botas ditas de garrão ou de cano alto. Tinham seus facões, que serviam para a defesa, para carnear animais e comer asados(em espanhol) ou churrascos (no Brasil). Caubóis e gaúchos eram peritos no uso do laço, nos rodeios de marcação, sendo que os últimos eram peritos também no uso das boleadeiras, arma de caça e defesa herdada dos índios da região.(CARTA:2013;75-76) Havia, no entanto uma admiração por parte de muitos enquanto a sua coragem, resistência, disposição e força. Sarmiento de forma leve e entrelinhas ressalta essa admiração pelos gaúchos, mas considera-os o atraso do latino-americano. O outro, segundo Pesavento era para o rio-grandense, de forma quase lógica, o do outro lado da fronteira, os quais se tornaram gaúchos malos133 pelos azares da guerra, "mas parceiros nas lides da paz e no cotidiano de um modo de ser"(p.46). Ela ainda acrescenta: De alguma forma, estes "outros" acabam sendo os "mesmos", a partilharem uma cultura fronteiriça, comungando valores e praticas de um passado mítico: bravura, honra, justiça. Ou em bom castelhano: sobranceria. Vemos então porque se consolidou entre os rio-grandenses o apelido gaúcho, como os chamamos até os dias de hoje. Há ainda entre eles um imaginário repassado ao longo da 133 Fora da lei, intruso, misantropo, aqueles a parte da sociedade. 155 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul história, atingindo o coletivo ainda que de forma inconsciente, mas que este retrabalha sempre o consciente tornando-os ciosos de suas tradições regionais. São brasileiros mas originais e tradicionais de seu passado memorável. Existe a criação de Centro de Tradições Gaúchas, os "CGTs 35", "suas atividades cobrem o campo educativo, que tem recreação e integração social, desde as danças típicas gaúchas, como balaio, chula, fandango, até palestras de cunho popular e erudito, passando por provas campeiras de laço e boleadeiras, tudo acompanhado em intermináveis rodas de chimarrão."(PESAVENTO; 46) Essa tendência vai se contrapor a que na primeira metade do século XX se discutia, através dos seis volumes feitos pelo historiados gaúcho Alfredo Varela, Historia da Grande Revolução (1933), que com sua linguagem poética e dando um sentido epopeico ao acontecimento declara que a Revolução Farroupilha se integra ao ciclo platino, acentuando o caráter separatista do movimento. Já essa tese apresentada pela Pesavento, foi tomando formato com o historiador também gaúcho J.P. Coelho de Souza, na sua obra O sentido e o espírito da Revolução Farroupilha (1944), que dá ênfase ao caráter federalista da revolta e de integração ao Brasil. Por isso Pesavento fala em "vocação brasileira" aonde ela destaca que essa concepção se tornou realmente vitoriosa, e não por acaso, quando o gaúcho Getúlio Vargas, no inicio dos anos 40 governava o Brasil. Bom se isso realmente interfere, já faz parte de outro trabalho. Como considerações provisórias, vê-se então como a história é caracterizada de representações, e como um só movimento adquire varias interpretações. Através da analise feita deparamos então com a ideia de porque o rio-grandense nunca realmente se separou do Brasil, até quando proclamou sua separação, porque sua economia ainda dependia da Coroa. Mas não foi só isso, ele se sentia brasileiro, mas com sua diferença e autonomia ou liberdade. Havia e há em sua essência algo de gaúcho, forma de se diferenciar do que eram os portugueses que constituíram o Brasil e também pela sua proximidade geográfica e clima do Prata e principalmente pelos seu caráter altamente justo, honroso e corajoso. Referências Bibliográficas 156 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul CARTA, Gianni. Garibaldi na América do Sul: o mito do gaúcho. São Paulo:Boitempo, 2013. p. 294. COLLOR, Lindolfo. Garibaldi e a guerra dos Farrapos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p. 457. FAUSTO, Boris. A regência. In:______(Org.). História do Brasil. 8 ed.. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo: 2000. p.164-171. FELIX, Loiva Otero. A História Política hoje: novas abordagens. Revista Catarinense de História. n.5, p. 49-66, 1998. FLORES, Moacyr. Modelo político dos farrapos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2 ed., 1982. p. 208. 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Antero começa a fazer parte da história, da memória e do imaginário religioso de Catalão quando na década de 1930 foi porto violentamente por jagunços e alguns populares da cidade. Pouco se sabe sobre sua a vida. Antero não era nascido em Catalão, residindo na cidade apenas três anos antes do linchamento o qual foi submetido. De acordo com Jornais e relatos orais, Antero exercia a profissão de farmacêutico prático na cidade, - ofício comum para época, boa parte das pessoas que exerciam tal prática a teria adquirido por meio de experiências cotidianas, sem, contudo, terem passado por uma instituição formal –, era também jornalista e poeta. Era procedente da cidade de Jataí – GO, mudando-se ainda na adolescência para Campo Grande – MT. À época de sua morte tinha a idade de 34 anos (Diário de Catalão, 2009), informações essas reafirmada pela população contemporânea a sua história. Segundo o memorialista Cornélio Ramos (1997), Antero chegou em Catalão por indicação de sua mulher de nome Amélia Nazar, de 41 anos de idade, natural da Síria, exmoradora de Catalão. Em princípio sua vinda se deu por ter adquirido em Campo Grande problemas com alguns moradores e com a Justiça local. Ao chegar a Catalão se acomodou na cidade sob a influência do grupo situacionista. Aos poucos foi conquistando espaço e confiança dos moradores, logo a fama de bom farmacêutico cresceu, dando ao mesmo, méritos e prestígio. “Seu nome começou a crescer passando naturalmente a empanar o brilho 159 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul de outros, a constituir uma ameaça” (Diário Dito e Feito, 2002). Contudo, e de acordo com Ramos (1997), a fama de homem bom e prestativo, em especial para as camadas economicamente mais baixas da cidade, logo despertou inquietude por parte das famílias mais tradicionais e alguns fazendeiros e políticos da local. Sendo ele, um grande adversários para as futuras eleições municipais. No ano de 1936 uma reviravolta ocorre na cidade, tendo como principais atores a figura de Antero e de Albino Ferreira do Nascimento. Albino, fazendeiro conhecido na cidade, de 78 anos de idade, casado pela segunda vez com uma jovem senhora foi assassinado por emboscada próximo a sua fazenda denominada Pedra Preta, caminho que seguia para chegar a sua casa na fazenda. O crime, que segundo relatos 134, ocorreu covardemente, abalou toda a cidade, uma vez que, Albino era conhecido por todos, e por não ter, segundo a fala de seu filho João Albino do nascimento, colhida durante o depoimento 135 contido no Processo Criminal, “nenhum problema ou negócios mal resolvidos com ninguém”, sendo ele bem quisto por toda a sociedade catalana. Tal morte abalou de maneira significante toda a sociedade, onde populares, amigos íntimos e os políticos se uniram na tentativa de encontrarem o mais breve possível o assassino do fazendeiro. Todavia, Ramos assinala que as investigações em torno da morte de Albino e posteriormente com o linchamento de Antero, denunciaram o quanto os instrumentos policiais e judiciais eram frágeis em Catalão, com um emaranhado de pistas e suspeitos, os quais se perdiam no ar. Após alguns dias de investigação o primeiro suspeito apontado como autor do crime foi o filho de Albino Felipe, fruto de seu primeiro casamento: João Albino. Como justificativa para a indicação alegavam que o mesmo teria matado o pai por questões em envolviam a divisão da herança. Este, foi preso pelas autoridades locais e, em busca de uma confissão, foi torturado por três dias, contudo, nada puderam arrancar do suspeito. A segunda indicação como mentor do crime recai, então, sobre Antero da Costa Carvalho, onde, 134 Tais informações foram colhidas durante o trabalho de campo desenvolvido durante os anos de 2010 a 2013, para e escrita do trabalho de conclusão de curso, nível graduação, e escrita dissertativa para o mestrado. 135 Inquérito Policial. Delegacia de Polícia do Termo de Catalão. Estado de Goiás, (17 de junho de 1939). 160 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Havia uma coisa que favorecia [a] indicação do seu nome [Antero]: a dívida que tinha para com o fazendeiro, a liberdade com que contava para entrar e sair da estância, a amizade que devotava à família, deliberadamente deturpada por pessoas maldosas, o fato de o invejado poeta não possuir parente aqui; que se dispusesse a defendê-lo, ou posteriormente pudesse reclamar justiça, seu relacionamento com Chico Prateado, que era seu cobrador (1997, p. 106). Ramos em seu livro memorialístico aponta mais duas possibilidades que justificaria a ocorrência do crime cometido por Antero: a primeira é a de que Antero teria contraído com Albino Felipe uma dívida de alta monta; a segunda, diz respeito a uma possível traição da mulher de Albino Felipe com Antero. Este, por possuir um vínculo com o fazendeiro possuía acesso à sua casa, onde teria conhecido sua esposa e por ela se apaixonado. Ambos os relatos constituem um emaranhado de suposições, dúvidas e medos. Estes seriam os principais motivos pelo qual, Antero fora acusado do crime e posteriormente morto. Em busca de um culpado, a família de Albino manteve uma escolta formada por jagunços e amigos a fim de prender o criminoso. Com o decorrer dos depoimentos, entre eles dos filhos, esposa e amigos de Albino as acusações recaem sobre Antero, sendo este preso com o jagunço Chico Prateado. Após alguns dias preso Antero não recebeu julgamento formal, sua morte, foi decretada por jagunços e alguns populares orientados por fazendeiros da região, os quais requeriam da justiça local que medidas fossem tomadas para que o sangue do amigo fosse vingado. Já o jagunço que dividia cela com Antero, foi liberto e obrigado a abandonar o município de Catalão. Tudo foi preparado para o extermínio de Antero. A cela foi previamente aberta e Chico Prateado levado para fora do Estado (Diário de Catalão, 2009). Antero foi mantido na cadeia local. Após certo período, os policiais não conseguiram obter do suspeito a confissão, o que aparentemente irritou ainda mais parte dos populares que almejava por justiça. A mando de seus chefes, jagunços tencionaram fazer “justiça” com as próprias mãos e sem nenhuma resistência do suposto criminoso, ou mesmo das autoridades locais, parte dos populares invadiram a cadeira e da cela Antero foi arrancado: 161 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Amarraram-lhe uma corda ao pescoço, ataram suas mãos e o levaram pelas ruas aos empurrões e pontapés. Durante a caminhada, ele levou inúmeras espetadas de faca pelo corpo. A intenção era fazê-lo sofrer bastante, num sadismo abominável. (RAMOS, 1997, p. 107) No dia 16 de agosto de 1936, Antero caiu morto após seu suplício. Percorreu parte das ruas de Catalão, sem, que, alguma autoridade lhe socorresse. Sua morte foi comemorada pelos jagunços com bebidas, acrobacias e gargalhadas. A festa varou a noite com tiros e carreiras de cavalos pelas ruas da cidade. É interessante ressaltarmos que o episódio da morte de Antero evidencia o contexto na qual a cidade de Catalão estava imersa. A própria historiografia que toma o passado de Catalão como seu tema atribui a mesma possuidora de uma passado marcado por uma mancha de sangue, sendo considerada uma das cidades mais violentas da região, e Antero se encontra como vítima desse período. Historiadores como Nasr Fayad Chaul assinala que “crimes como o de Antero vinham contra o discurso de progresso e modernidade, que implicavam civilidade e o fim da violência em todos os níveis, proferidos pelo movimento de 30” (1994, p.195). Assim, Antero não se constitui como a única vítima desse período, outras pessoas com diferentes motivos também morreram de forma trafica, contudo, o diferencial da morte de Antero ocorre a partir dos caminhos que sua morte tomaram. De suposto criminoso e forasteiro, Antero passa a ser concebido por parte da população local como santo no imaginário religioso. O episódio de sua morte nos remete, em princípio, a duas construções de critérios de santificação no imaginário popular. O primeiro parte da própria Igreja Católica, em que Santos e Santas a fim de manter seu propósito diante de Deus eram alvos das mais diversas atrocidades e castigos; não se sujeitando ao que a sociedade os impunha. O segundo critério, a imitação do Cristo sofredor, a figura máxima do Cristianismo. Segundo a analogia de Ramos (1997) o caminho percorrido por Antero assemelha-se a via crúcis de Cristo, tecendo narrativamente a comparação entre Antero e Cristo. 162 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Ramos ao fazer uso da narrativa e memória coletiva para a escrita de sua obra tendo como tema o martírio de Antero segue por uma perspectiva de sofrimento, morte e santificação, desenvolve uma escrita dando como mérito final a trágica morte de Antero e elevação do mesmo, por parte da população, a condição de santo popular no imaginário catalano. A crença geral é de que o mártir santificou-se. São diárias as orações em sua capelinha e no seu túmulo, presentemente bem cuidados por populares que contam com os dedos da mão, um por um, os culpados pelo massacre, todos eles castigados pela justiça divina (RAMOS, 1997, p. 109). Tal como Ramos, a memorialista Maria das Dores Campos (1979) também ao tratar sobre a história de Catalão, menciona Antero como mártir da cidade, enfatizando uma história marcada pelo sobrenatural e pelo mistério, uma vez que atribui a Antero poderes sobrenaturais. E tais mistérios são ainda mais acentuados quando, mesmo com toda a crueldade a morte de Albino e de Antero nunca foram esclarecidas satisfatoriamente, bailando sobre a cidade dúvidas, medos e silêncios em torno do caso. Questões essas que ainda na atualidade provocam inquietações e tensões. Diante disso, o caso da morte de Antero está nitidamente atravessada por questões que giram em torno do uso e dos abusos da memória individual e coletiva como preservação e manutenção da história sobre o caso e sobre a cidade de Catalão e, os caminhos que a história tomou, chegando no presente com a construção de um santo local. O caso de Antero segue a um emaranhado de mistério e mitos que ganhou ampla dimensão no imaginário popular e, portanto, pode ser pensado a partir das considerações que Burke (2010) assinala sobre cultura. Até hoje o crime é alvo de especulações e medos. Ainda se questiona – aqueles que guardam na memória tal fato -, o que de tão importante Antero insistentemente cogitou contar a João Albino, muitas especulações foram feitas a esse respeito, todavia, nunca se chegou a uma conclusão. 163 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Entre as possíveis explicações, a que mais ganhou espaço e ‘voz’ na sociedade catalana foi o fato de Antero atrair olhares de reprovação e ciúmes de determinadas lideranças políticas da cidade, pois sua reputação de carismático e auxiliador do povo daria ao mesmo, a chance, em curto prazo, de ser eleito como prefeito de Catalão. Aptidões estas, que logo foram elevadas após sua morte. Assim, sua imagem de homem bom passou por um processo de ressignificação, a ponto de o colocarem no panteão de intercessor entre o céu e a terro, ou seja, entre o Divino e o homem. Tais caminhos são trilhados dentro do universo da cultura popular, ganhando espaço e valor na religiosidade local a qual se estabelece e se alimenta no imaginário popular. Essa crenças religiosas dão vozes a narrativas embriagadas de vivências e experiências particulares, ganhando força no cotidiano de dada sociedade. Para Roger Chartier (1988), quando trilhamos o território da História Cultural devemos perceber que o objeto de estudo é o homem e as imagens que esse constrói e reconstrói ao longo de sua história e como as representa. Diante disso, o homem se constitui parte importante de um conjunto de significados construídos e compartilhados, imerso a uma teia, o que já seria a própria cultura. Seguindo este raciocínio, Geertz (1989) assinala que a cultura deve ser vista como um objeto que pertencente ao público, ou seja que sai do individual e ganha espaço no coletivo. Tal cultura constitui uma teia de significados, uma “peça” que possui sentido e valor para aqueles que estão imersos nela. Cabe ao pesquisador, com isso, mediante sua leitura, descrever de forma densa o que ele vê. E, mesmo que essas significações sejam complexas, as mesmas estão interligadas uma a outra. Assim, a cultura dever ser vista como um imenso mosaico, cada peça fundamental sendo complemento uma para a outra. Diante desses apontamentos podemos aqui assinalar que a santificação de Antero, dentro do universo do religiosa e da cultura popular constitui uma peça fundamental para a compreensão de dada sociedade, pensada não apenas em como ocorreu o crime, mas como a população, dentro de suas estratégias constroem sentido as coisas e ao mundo. Entre esses sentido podemos aqui mensurar os lugares que os devotos tomaram como sagrados e pontos de encontro com o santo, que são, o túmulo e capela de Antero. Tais lugares carregam em si não apenas a história de um crime, mas vestígios de uma história e de uma memória contada e 164 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul recontada ao longo dos tempos, as quais passam cotidianamente por um processo de modificações e (re) significações, carregadas de experiência e vivência de quem as conta. Quando adentramos no universo da religiosidade popular devemos entender que as crenças são herdeiras do cristianismo português, o qual insere-se no Brasil com um novo corpo e uma nova dinâmica, passando por um processo de adaptação a realidade brasileira. São devoções que percorrem a imaginação popular, com um caráter próprio e particular de prática e significado do sagrado. Como característica, as religiões populares reconhecem e atribuem a pessoas ‘comuns’, ou, aquelas que não se inserem no padrão canônico de santificação, a imagem de santo. Machado (2007) ao tratar sobre questões acerca da religiosidade popular propõe que, a religiosidade no Brasil contemporâneo dever ser concebida a partir da dinâmica existente entre o deslocamento de práticas culturais populares do mundo rural para o urbano, fato este agravado no Brasil a partir da década de 1950, momento em que, em busca da modernização houve um significativo êxodo rural para a zona urbana. Neste cenário, crenças e tecnologias dialogam no enfrentamento entre tradição e modernidade, instituindo novos investimentos estéticos, rítmicos, perfomáticos, imagnéticos e poéticos. Novos personagens também se encenam ao lado daqueles que trazem na lembrança suas práticas culturais (p. 2). Assim sendo, o catolicismo popular possui em seu formato permanências e recriações das práticas de sociabilidade rurais no espaço urbano. Os santos populares compõe o conjunto dessa relação, inseridos num âmbito local ou regional, respondem as necessidades e vivências dos sujeitos que compartilham o mesmo local e cidades circunvizinhas, tal como a santidade popular de Antero. A devoção aos santos populares se difere da devoção institucionalizada, mesmo que essa última seja tomada como exemplar pela primeira. Seu alicerce é mais amplo, pois práticas, manifestações e objetos de devoção não seguem a uma única forma, essas se inserem 165 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul na dinâmica da cultura popular como uma das possíveis maneiras de diferentes classes ou segmentos sociais se representarem e deixarem suas experiências e vivências. Ao analisar sobre a dimensão da cultura, Peter Burke na tentativa de definir o que é cultura e o que é popular, apresenta-nos, numprimeiro momento, que cultura se constitui como sendo “um sistema de significados, atitudes e valores partilhados” (2010, p.11); já a cultura popular como uma cultura não oficial, pertencente a não elite, abordagem essa também realizada por CHARTIER (2010). Por essas considerações, Irene Van den Berg Silva aponta que, O culto aos santos locais, portanto, pode ser lido, conceitualmente, a partir da noção de popular por estar enraizado enquanto experiência social situada numa classe (classes populares), por ter seu funcionamento regulado a partir de dispositivos mentais ligados a essa classe (mentalidade popular) e por operar sua dinâmica a partir de movimentos que se confrontam a uma estrutura dominante, mesmo que esse processo não seja racionalmente pensado de maneira intencional (oposição cultural e política) (2010, p.39). Retomando as análises de Burke acerca do assunto, o mesmo ainda nos diz que a cultura popular se dá na medida em que os indivíduos inventam e produzem inovações ou variações. É o indivíduo, e não outro, que “determina” o que será imitado e, assim, fazer parte do coletivo, “É nesse sentido (à parte o estímulo que dão durante a apresentação) que o povo participa na criação e transformação da cultura popular” (2010, p.161). Neste viés, a religiosidade popular rompe com a fronteira estabelecida pela religiosidade institucionalizada, estabelecendo uma manifestação de devoção múltipla e diversificada, “Essas práticas populares trapaceiam com a realidade, produzem novos valores e concepções, mantêm um diálogo contínuo entre as categorias do passado e do presente” (MACHADO, 2007, p.3). É por esse fio condutor que é possível perceber as mudanças, em conjunto com as novas formas de culto popular de manifestações múltiplas e diversificadas no Túmulo de Antero. 166 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Como já pontuado anteriormente, Antero é reconhecido por parte dos moradores de Catalão como intercessor entre o homem e o Divino, e/ou a vida terrena e o mundo espiritual. A particularidade de ‘culto’ ao ‘santo’ Antero é declarada em seu Túmulo, local em que devotos se encontram com o “santo’ para ali deixam suas expressões de fé e de religiosidade. O túmulo de Antero localizado no Cemitério Municipal de Catalão se distingue dos demais, pois, cotidianamente e, intensificado durante o Dia dos Finados, existe uma movimentação de devotos no local. Ali, pedidos de graças e agradecimentos são feitos, orações são realizadas silenciosamente. É possível também ouvir a repercussão do episódio contada e recontada através de uma divulgação oral e informal por sujeitos que frequentam o local. É interessante notarmos que a história da religiosidade no Brasil, carrega em si uma herança do catolicismo português, com características de devoção e comemoração aos santos. Todavia, podemos aqui dizer, que o catolicismo quando pensado na cultura popular, passou por novas roupagens, adaptações e modos individuais de se cultuar, ela se apresenta sob diferentes formas e expressões, como: as procissões, as romarias, as congadas, as folias, as benzeções e diversas outras manifestações de cunho religioso (CORREA, 2004). Assim, o campo religioso apresenta-se com uma multiplicidade de crenças e de trajetória do sagrado. A santidade popular é um fenômeno representativo das crenças e tradições religiosas. O culto aos santos populares é mantido por um corpo difuso de agentes religiosos, esses ligados as expressões religiosas católicas, todavia, sem o reconhecimento de tal entidade. A devoção dos fiéis caminha lado a lado com os santos reconhecidos pelo corpo clerical da Igreja Católica, embora com perfis diferenciados, mas com o mesmo poder de “intervenção” e ligação entre o mundo terreno com o espiritual. Podemos aqui citar o estudo realizado por Carlos Alberto Steil (1996), ao abordar o culto ao Bom Jesus da Lapa em Salvador – BA, em que o culto de peregrinação mescla-se a intervenção o poder Clerical. As expressões de fé encontradas na religiosidade popular como mecanismo de contato e troca simbólica com o santo podem ser visualizadas na retribuição da graça aos milagres alcançados. Não há especificamente um “tipo” de objeto ou uma forma engendrada 167 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul de pagar a promessa feita, ela caminha ao lado da intimidade estabelecida entre o devoto com o santo. Para Machado (1998) a religiosidade popular é muito mais imaginativa, imediatista e sensível que a oficial; configura-se pela representação e revelação mágicodevocional; opera através da comemoração, em troca da graça recebida. Caminhando por essa mesma concepção, Pedro Ribeiro de Oliveira (1978) nos aponta que: O santo está ao alcance imediato do fiel: na imagem, na estampa, nos santuários, num cruzeiro à beira da estrada, numa gruta, ou nos arredores do cemitério. O fiel não precisa recorrer a um mediador especializado para contactar o santo; vai diretamente a ele, conversa com ele, expõe seus problemas, agradece as “graças”, ou simplesmente presta seu ato de culto (p. 72). Contudo, é interessante ressaltar que esses depósitos como provas de graça recebida estão intrinsecamente arraigados na crença religiosa em que o indivíduo mantém com o santo. Mesmo, após a dádiva ser recebida, numa relação com o mágico e o sobrenatural, há uma tentativa de se manter uma relação com o santo. Tal relação estabelecida entre devotos e santos ocorre através de pedidos e agradecimentos. É uma crença que se materializa mediante aos símbolos e expressões. Assim, percebemos que a devoção em torno de Antero está imerso nesta prática cultural, onde a memória e história assumem a forma de construção de um dado conhecimento e narrativa histórica, valendo como esteio, para tal, o imaginário criado em torno da santidade de Antero, isso a partir dos vários discursos e imagens expressas por seus devotos; os quais exprimem a relação estabelecida com o santo. Referências Bibliográficas ANDRADE, Solange Ramos. A Identidade Católica: entre a religião e a religiosidade. In: 168 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul BACKO, Bronistaw. Imaginação Social. In. Enciclopédia Einaudi. Vol. 5. Lisboa. Imprensa Nacional. Casa da Moeda, 1985. BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano. Trad. 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Portanto, as produções literárias, por serem criadas pelos homens em seu tempo e não ser possível deixar de repassar os traços de sua existência repletos de imaginários e valores culturais é uma importante fonte histórica137. Gregório de Matos é considerado um dos primeiros escritores brasileiros, por isso deve-se principalmente a ele as primeiras características literárias da cultura brasileira denominada como Barroco ou seiscentismo que durou de 1601 a 1768. Segundo o historiador Sílvio Romero, citado por Ângela MariaDias, Gregório de Matos “Foi filho do país, teve mais talento poético do que Anchieta, foi mais do povo, foi mais desabusado, mais mundano, produziu mais e num sentido mais nacional”138. As influências que marcaram as obras de Gregório de Matos são as de origens ibéricas, como os autores Gôngora e Quevedo. O que não é peculiar, já que durante no século XVII a colônia portuguesa era dependente da Europa em vários seguimentos, principalmente o intelectual. Como assinala Silvio Romero: Como era natural, durante os três primeiros séculos, quando ainda não tínhamos nem autonomia política, nem literária, o modelo que seguimos foi a metrópole, dupla 136 Discente do curso de licenciatura em História da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Sandra Jatahy Pesavento. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. 138 Ângela Maria Dias. Gregório de Matos. 5 ed., Rio de Janeiro: Ed. Agir, 1997. p. 142. (Coleção Nossos Clássicos) 137 171 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul imitação, porque era daquilo que ela fazia e daquilo que ela imitava. Assim, as letras portuguesas em geral nos três séculos, e as espanholas, peculiarmente durante o XVII, e as italianas durante o XVIII, foram o nosso guia139 A organização deste artigo está estabelecida em três partes. Primeiramente, busca-se refletir sobre o uso da literatura como fonte histórica, em seguida a importância de Gregório de Matos é levantada em uma breve biografia. Como uma abordagem primordial, a análise do contexto histórico é o terceiro tópico, em seguida, a análise da obra do escritor maldito que será feita partindo de alguns poemas selecionados. História e literatura: um diálogo metodológico Sandra Jatahy Pesavento (2006) afirma que a literatura, sendo uma ficção, está relacionada com o imaginário, fruto das inquietações do seu criador. Em suas palavras o imaginário “é elemento organizador do mundo que dá coerência, legitimidade e identidade”140. Portanto, segundo a visão dessa autora, a escrita literária é uma abstração do real que influencia as ações, ou seja, é concretizada em uma realidade. Neste artigo o imaginário é entendido como representações que se materializam, dentre outras formas nas artes. A Literatura é uma arte manifesta através da língua, que por sua vez, é histórica. Portanto nas palavras, ou seja, na linguagem, aparecem os valores e os aspectos culturais dado pelo o autor sobre um determinado contexto social. Para entender as representações na literatura, não podemos deixar de lado o tempo da narrativa, pois, todo o imaginário é uma construção social, que assume sentidos diferentes ao longo dos anos (LE GOFF apud PESAVENTO, 2006, p. 13). O historiador partindo dos seus métodos não se afasta da História enquanto trabalha com a Literatura. Neste caso, “é a História que formula as perguntas e coloca as questões, enquanto que a Literatura opera como fonte” (PESAVENTO, 2003, p. 82). A Literatura que 139 Sílvio Romero. História da Literatura Brasileira; Tomo I. Rio de Janeiro: Imago, 2001. p. 115. Sandra jatahyPesavento. História e Literatura: uma velha-nova História. In. Cléria Botelho da Costa e Maria Clara TomazMachado. (orgs.) História e Literatura: identidades e fronteiras. Uberlândia-MG: EDUF, 2006. p. 12. 140 172 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul fornece as pistas que o Historiador deve seguir, enquanto o Historiador se espelha em sua contemporaneidade. A pesquisa Histórica quando se abre para a ficção literária, busca alcançar as concepções e as mentalidades, e não a verdade utópica. A História pode utilizar a literatura para encontrar as verossimilhanças necessárias que subsidiam o ofício do historiador. O “Boca do Inferno”: breve biografia de um poeta colonial do Brasil Apelidado de “boca do inferno” e de “poeta maldito” Gregório de Matos nasceu na Bahia em 1633 ou 1636, não havendo uma datação exata para o seu nascimento, e morreu em 1696 em Pernambuco, após voltar do exílio, a que foi submetido, na Angola. A sua obra é diversa e dividida em trinta códices141 que alfinetam o clero, a administração colonial e a coroa portuguesa. Através do tempo muito de sua obra se perdeu, enquanto as críticas política, social e religiosa que nelas foram colocadas prevaleceram escandalizando deixando um grande legado de informações a respeito do período colonial. Para muitos críticos literários a influência de Gôngora em Gregório de Matos vai além da admiração, pois, segundo eles, alguns de seus poemas chegam a ser verdadeiras releituras das obras do primeiro. Ainda durante sua vida, Gregório de Matos recebeu várias críticas por esta similaridade. Como exemplo disso, podemos observar o posicionamento do vigário Lourenço Ribeiro às suas poesias: O soneto, que mandaste ao Arcebispo elegante é do Gôngora ao Infante Cardeal, e o furtaste: logo mal te apelidaste o Mestre da poesia furtando mais em um dia, 141 Códices são volumes antigos de manuscritos (Cândido de Figueiredo. Novo dicionário da língua portuguesa. Projeto Gutenberg EBOOK Dicionário da Língua Portuguesa, 1913. p. 466). 173 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul que mil ladrões em um ano: não te envergonhas, magano?142 A colônia portuguesa é prosa com padre Vieira e poética com Gregório de Matos143. Gregório de Matos, entretanto, se diferencia de Vieira por não se envolver nas decisões da Igreja, não apoiar os portugueses em seu modelo de colonização e não se interessar pelos índios, e sim por enfatizar a mulher mestiça, com quem teve vários relacionamentos, tendo até mesmo resultado em uma suposta filha. A obra do “poeta maldito” segundo Candido e Castelo144 expressa o sentimento que a vida é breve, e assim como o arcadismo adotou o ideal do carpe diem145, mesmo que superficialmente, porém sem o apego pela vida bucólica e campestre. Depois de reconhecido os pecados humanos, Gregório se redime na poesia sacra, mas não deixa de poetizar a figura da mulher. A crítica ácida de um grande escritor O Período Barroco é caracterizado por momentos de grande importância para a Igreja Católica no contexto europeu como o Concilio de Trento (1545 – 1563), a Contra Reforma portuguesa (1540 – 1700), e pelo surgimento da Companhia de Jesus (15 de agosto de 1534), trata-se da ordem dos jesuítas criada por Inácio de Loyola. Enquanto a fé devia ser restaurada pela Igreja Católica, a literatura expressa às dúvidas de um homem que constrói uma nova mentalidade, rompendo com as certezas passadas e se aventurando em um Novo Mundo. 142 MATOS, Gregório de. Gregório de Matos: Seleção de textos, notas, estudos biográficos, histórico e crítico e exercícios por Antônio Dimas. São Paulo: Abril Educação, 1981. (Literatura Comentada) 143 Inês Cardin Bressan. Afrânio Coutinho, crítico e historiador da literatura brasileira: uma leitura. Assis, 2007. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. p. 108. 144 Antônio Candido; J. Aderaldo Castello. Presença da Literatura Brasileira I: das origens ao Romantismo. 3ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968. 145 É uma expressão latina que significa aproveite o dia ou aproveite o momento presente. A sua origem nos remete as Odes do poeta Horácio (Tenzo Tosi. Dicionário de sentenças gregas e latinas. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 275 - 276). 174 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul O Barroco brasileiro146 surge com uma leve concepção nativista e crítica. O nome da escola literária foi adotado do estilo arquitetônico e das artes plásticas, que segundo Candido e Castelo (1968) os europeus da época consideravam monstruoso e de mau gosto. Uma das primeiras formas de expressão barrocas no Brasil deu-se pela Literatura, constituindo uma escola literária barroca. É a oposição à extravagância do Classicismo, que se estabelecia em um horizonte normativo guiado pela ciência humanística, racional em que tudo estabelecia na busca do equilíbrio entre as proporções. É importante ressaltar, a esse respeito, que a noção de escola literária é apenas uma delimitação de tempo e que não é aceita por unanimidade entre os especialistas, como assegura Hansen: No caso da tradição colonial Gregório de Matos, seu uso unifica todos os estilos de poemas particulares de vários gêneros como exemplos ou ilustrações de características da essência classificatória, não considerando que, no tempo assim etiquetado, coexistem múltiplas temporalidades heterogêneas de modelos artísticos que são imitados diferencialmente pelo suposto autor dos poemas segundo preceitos, técnicas, formas, estilos e finalidades sem correspondência com as categorias evolucionistas e psicologistas pressupostos na classificação. (...) Além disso, o uso naturalizado da noção de “Barroco” para classificar essa poesia e totalizar seu tempo generaliza transistoricamente as definições liberais, às vezes marxistas, das noções de “autor”, “obra” e “público”147 146 O Barroco pode ser considerado muito mais que um estilo que surgiu na Europa Ocidental entre os séculos XVI e XVII. Pois, a sua importância encontra-se além dos traços artísticos, estando também nos costumes e valores da sociedade colonial. O Barroco é caracterizado principalmente pela ostentação e valorização do ócio, já que neste período a Igreja e o Estado Absolutista utilizavam do luxo para manifestar o seu poder. Na Literatura, há uma variação entre temas sacros e mundanos que são realçados por uma estética formalista. (Kalina Vanderlei Silva; Maciel Henrique Silva. Dicionário de conceitos históricos. 2ª ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009. p. 31 - 34) 147 João Adolfo Hansen. Letras coloniais e historiografia literária. Matraga (Rio de Janeiro), v. 18, p. 13-44, 2006. p. 19. 175 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Gregório de Matos, assim como os demais poetas barrocos, procurava utilizar em suas poesias palavras que não pertenciam a sua língua, como o latim, pois era uma forma de declarar a própria intelectualidade. O poeta chegou ao ponto de inventar palavras para garantir a rima na versificação. Porém, mais importante que a estética é o conteúdo de seus poemas, principalmente as sátiras ao contexto histórico no qual viveu e que imortalizou o escritor. O Brasil do século XVII foi marcado pela crise do açúcar, acarretado pela descoberta de prata de Potosi em 1640. Segundo Lima148 a escassez de “dinheiro de contado” diminuiu o preço do açúcar, fazendo-o ser um tipo de moeda, a “moeda de peso”. Este fato causou uma série de atritos entre a Colônia e a Coroa portuguesa, os chamados “motins da moeda”. Diante da fragilidade econômica do Brasil, o “poeta maldito” não se prostra como os administradores provinciais, mas expõe em sua principal sátira denominada Epílogos a indignação despertada pela lentidão nas decisões que tange as necessidades transoceânicas. O açúcar já acabou?... Baixou. E o dinheiro se extinguiu?... Subiu. Logo já convalesceu?... Morreu. À Bahia aconteceu O que a um doente acontece: Cai na cama, e o mal cresce, Baixou, subiu, morreu. A Câmara não acode?... Não pode. Pois não tem todo o poder?... Não quer. É que o Governo a convence?... Não vence. Quem haverá que tal pense, Que uma câmara tão nobre, Por ver-se mísera e pobre, 148 Fernando Carlos G. de Cerqueira Lima. Falta de Moeda, Fixação do Preço do Açúcar e Manipulações Monetárias no Século XVII: Impactos Sobre Produtores e Comerciantes. Mneme – Revista de Humanidades. UFRN. Caicó (RN), v. 9. n. 24, Set/out. 2008. ISSN: 1518-3394. 176 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Não pode, não quer, não vence.149 Encarando a subordinação dos brasileiros aos portugueses e aos impostos que lhe eram cobrados apenas para manter a ostentação de uma nobreza falida, Gregório de Matos ironiza a recepção entusiasta e a relação com as riquezas dos engenhos de açúcar, maior fonte de lucro da Colônia na época. Vá visitar os amigos no engenho de cada qual, e comendo-os por um pé, nunca tire o pé de lá. Que os Brasileiros são bestas, e estarão a trabalhar toda a vida por manter maganos de Portugal. (...) No Brasil a fidalguia no bom sangue nunca está, nem no bom procedimento, pois logo em que pode estar? Consiste em muito dinheiro, e consiste em o guardar, cada um o guarde bem, para ter que gastar mal. Consiste em dá-lo a maganos, que o saibam lisonjear, dizendo, que é descendente da casa do Vila Real.150 149 MATOS, 1981, p. 14. MATOS, 1981, p.29. 150 177 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul As maiores críticas do poeta são direcionadas ao clero. As simonias151 e as usuras dos padres e freiras. Em 1960, o El Rei envia uma carta ao governador da capitania de Pernambuco, Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho. Como um alerta para não permitir o envolvimento das freiras com os civis ou clérigos do sexo oposto dando ordens para a reforma das grades dos conventos (HASSAN, 2003, p. 75)152. Gregório de Matos ilustra esta questão através de suas sátiras embora não englobe todos os integrantes do clero. Ele busca criticar apenas os que se contradiziam em relação à moral vigente, na época, da qual eles eram os difusores. Manas, depois que sou freira Apoleguei mil caralhos, E acho ter os barbicalhos Qualquer de sua maneira: O do casado é lazeira, Com que me canso, em encalmo, O do Frade é como um salmo O maior do breviário: Mas o caralho ordinário É do tamanho de um palmo. Além dessa diferença, Que de palmo a palmo achei, Outra coisa, que encontrei, Me tem absorta, e suspensa: É que discorrendo a imensa Grandeza naquele nabo, Quando o fim vi do diabo, 151 O termo simonia é derivado do nome do discípulo de Cristo, Simão, o Zelote. Simonia é o ato de vender de maneira ilícita ou criminosa benefícios ou objetos eclesiásticos (FIGUEIREDO, 2010, p. 1844). 152 João Adolfo Hansen. Pedra e cal: freiráticos na sátira luso-brasileira do século XVII. REVISTA USP – CRÍTICA A IGREJA, São Paulo, n.57, p. 68-85, março/maio 2003. p. 75. 178 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Achei, que a qualquer jumento Se lhe acaba o comprimento Com dous redondos no cabo.153 As mulheres são sempre um dos alvos preferidos de Gregório de Matos, mas sua visão não foge ao consenso da época. A esse respeito Mary Del Priore, citada por Francisco das Chagas Silva Souza, os autores barrocos a elas se referiam como fossem a “porta do inferno e entrada do Diabo”154. No período colonial as únicas funções que possuíam era a de dona de casa, mãe dos filhos e objeto erotizante. Conclusão Segundo Candido e Castelo (1968), a historiografia brasileira informativa e descritiva surgiu durante o século XVI com as crônicas de viagem dos navegantes Ibéricos, logo podemos refletir sobre a importância da Literatura para a História do Brasil Colonial. Ainda no século XVI, Camões influencia os autores portugueses e serve de base para a criação do Barroco em Portugal. O humano no Barroco não era perfeito segundo a influência helenística do Classicismo, mas um ser repleto de dúvidas e instabilidades em relação a sua própria existência. O homem é demonstrado sempre levantando as suas contradições, em luta constante entre o novo e o antigo, entre o real e o místico. Gregório de Matos não se comportou diferente, em um primeiro tempo em suas poesias barrocas há exaltação a sua fé, em outro estão presentes verdadeiros arranhões à figura da Igreja na América Portuguesa, expondo os seus crimes. Seguindo os moldes Barroco, Gregório de Matos ultrapassou as suas origens abastardas e se imortalizou na cultura e na História do povo brasileiro, sendo um dos poetas 153 Gregório de Matos. Obras I e II: Sonetos, Décimas, Mote, Glosas e Romances. In. MAGALHÃES, Isabel Allegro de (org.). História e Antologia da Literatura Portuguesa: Século XVII. N.º 29. Editora: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. ISSN: 1645-5169. p. 60–61. 154 Mary Del Priore. Histórias Íntimas: Sexualidade e Erotismo na História do Brasil.: Planeta, 2011. p. 32. 179 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul mais polêmicos que já existiu. Gregório de Matos se auto define, em uma de suas poesias, a sátira de tercetos destinada Aos Vícios da seguinte forma: “Eu sou aquêle que os passados anos/Cantei na minha lira maldizente/Torpezas do Brasil, vícios e enganos” (MATOS, 1981, p. 83). 180 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul PIRENÓPOLIS: ESPAÇO E PATRIMÔNIO – FESTA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO155 João Guilherme Curado156 UEG — Câmpus Pirenópolis [email protected] A casa permite ainda a leitura da confluência e do encontro, pois nela se efetiva a convergência de mundos diversos (OLIVEIRA, 2010, p. 15). A ocupação oficial de Goiás, nas décadas iniciais do século XVIII, trouxe para as margens dos rios e demais cursos d’água então existentes, pessoas oriunda de várias localidades (PALACÍN; MORAES, 2008), em especial paulistas e portugueses. Os que chegaram inicialmente à beira do rio que nasce nos Pireneus batizaram-no como Rio das Almas (JAYME, 1971), que se tornou o epicentro de um dos mais importantes núcleos populacionais de Goiás no período. Não só pela quantidade de ouro que encontraram, mas pela localização geográfica estratégica, na confluência de importantes vias que seriam abertas ao longo do tempo (MAGALHÃES; ELEUTÉRIO, 2008). A localidade passou a ser conhecida como Minas de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte, o que indica pelas práticas bandeirantistas e portuguesas que a chegada aconteceu nas proximidades da data comemorativa da santa, para qual foi erigida a Igreja Matriz, espaço de festas e de fé. Fomento: PrP/UEG por meio do Projeto de Pesquisa: “Pesquisa Girando Folia: apontamentos turísticos e gastronômicos em um das devoções ao Divino Espírito Santo — Pirenópolis/Goiás” e Projeto de Pesquisa: “Artes e Saberes nas Manifestações Populares” (Fapeg). 156 Professor da Rede Estadual da Educação e da Universidade Estadual de Goiás — Unidade Universitária de Pirenópolis. Morador de Pirenópolis. [email protected] 155 181 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Inicialmente sobre as festas que aconteciam temos poucos registros referentes ao século XVIII; no entanto, sabemos que a festa da padroeira em outubro era a mais concorrida, seguida pelas festividades de São Benedito, originalmente em abril. As demais ficavam a cargo dos sacramentos cristãos: batismo, casamento e extrema-unção. Os registros paroquiais apontam para as primeiras famílias que habitaram a antiga Meia Ponte, como pode ser vista no estudo genealógico de Jayme: “Famílias Pirenopolinas” (1973), dispostos em cinco volumes e que indica as origens patriarcais, das quais selecionamos algumas: Mendonça (Taubaté), Afonso, Amorim, Pereira Vale, Sá (Braga), Costa e Abreu, Pina, (Lisboa), Curado (Coimbra), Costa Teixeira, Oliveira, Moreira Farinha (Porto). Além de mais de vinte famílias de origem africana. Com a ereção da Igreja Matriz em um ponto mais alto e pouco distante da área de mineração inicial, passa-se a construção das casas. Primeiro nas proximidades do templo religioso e depois no decorrer dos caminhos que levavam à Vila Boa de Goiás (atual Rua Direita) e que acessava a Bahia (Rua do Bonfim). As vias eram largas, de traçado retilíneo e com moradias que seguiam o estilo vigente, o colonial157, que mesclava técnicas portuguesas de construção com materiais construtivos disponíveis, como: barro, madeira e rocha. As casas residenciais eram grandes, simples, geralmente térreas, com quintais enormes, o que configuravam grandes quadras. Com o declínio da produção aurífera por volta de 1750, o espaço urbano para a ser desabitado em detrimento da ampliação de moradores na área rural, uma vez que as grandes propriedades passam a agrupar a população para lidar com as atividades ligadas à agropecuária, geralmente de subsistência. Com a transferência para as fazendas a população perde um pouco do contato que mantinham pelas ruas de Meia Ponte, assim como algumas devoções. São Sebastião, o padroeiro dos fazendeiros, por afastar pragas e pestes passa a ser cultuado. Ao passar por Meia Ponte em 1819, o viajante francês Auguste de Saint-Hilaire tece a seguinte observação: “ainda hoje a maioria dos habitantes de Meia-Ponte se dedica à agricultura e como só vão ao arraial aos domingos, as casas permanecem vazias durante toda a semana” (1978, p. 37). A visita semanal ao arraial caracteriza-se como a manutenção da fé e 157 O período Colonial no Brasil é bastante extenso e por isso não há uma homogeneização do estilo, como é discutido em “Arquitetura e arte no Brasil Colonial” (BURY, 2006). 182 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul a busca por festa, uma vez que a missa dominical da nove era um grande acontecimento para qual havia uma concorrência significativa. Pois representava momentos importantes da sociabilidade meiapontense. A Igreja Matriz passou, assim, a ser e se firmar como importante referencial para as festas locais (LÔBO; CURADO, 2008). A Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis Festa ibérica, transplantada da Europa para as Américas via Atlântico, apresenta-se como uma cultura híbrida, segundo concepções de Cancliní (2006), pois vai aglutinando, adaptando, modificando e até mesmo suprindo aspectos, inclusive ritualísticos da versão europeia. No Brasil a festa de Pentecostes coincidia com o fechamento do calendário agrícola, logo após a colheita, e servia como um mecanismo de agradecimento pela produção, por isso a distribuição farta de alimentos entre os partícipes — o que pode ainda ser observada dentro da tríade: dar-receber-retribuir proposta por Mauss (2003). A Festa do Divino é uma festa de características rurais, mesmo quando acontece na área urbana, o que possibilita a compreensão das identidades rurais que permeiam a cultura pirenopolina ainda nos dias atuais. O primeiro registro encontrado sobre a realização da Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis data de 1819, mas como alerta Jayme (1971) pode ser que a Festa ocorresse anteriormente. Mas partindo das observações apontadas pelo referido autor temos o panorama das mudanças da Festa do Divino: em 1826 é inserida a Coroa do Divino e inseriu na festa a distribuição de Verônicas; 1832 realização das primeiras Cavalhadas; 1836 promoção do primeiro Batalhão de Carlos Magno; 1837 encenação do primeiro drama durante a Festa; 1923 apresentação de “As Pastorinhas” (auto natalino em pleno Pentecostes!). Temos ainda outras festividades que se juntam à Festa do Divino como o Reinado de Nossa Senhora do Rosário e o Juizado de São Benedito que segundo Lôbo (2006) teria ocorrido pelo menos desde o final do século XIX. Talvez sendo estes uns dos poucos santos que tenham mantido devotos fieis no traspassar da Colônia para o Império. 183 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul A Festa do Divino representava momentos de integração e de sociabilidade entre os meiapontenses e depois para os pirenopolinos. Circunscrevia-se por significativa ocupação, mesmo que efêmera, tanto da área urbana quanto da área rural158. Vale a pena ressaltar que mesmo sendo uma festa religiosa a Festa do Divino em Pirenópolis pode ser caracterizada como sendo uma manifestação popular em sua grande parte, pois mesmo tendo a Igreja como fundamental em alguns momentos ritualísticos, a Festa ocorre sem a presença e até mesmo o consentimento institucional do catolicismo. A devoção ao Divino Espírito Santo em Pirenópolis é algo latente e até mesmo imanente para integrantes das famílias mais antigas, pois compõem parte significativa das “memórias coletivas” (HALBWACHS, 2006). O que acaba criando necessidades de participação e envolvimentos com os festejos e com isso contribuindo para a manutenção festiva, por se tratar de um patrimônio para o povo pirenopolino. Durante várias gerações a Festa esteve presente no calendário festivo local, sendo que às vezes aconteciam as principais manifestações outrora não, atendendo as possibilidades de cada grupo em momentos distintos. As Cavalhadas, por exemplo, não eram recorrentes. Situação que se altera em meados da década de 1970, possivelmente em função da criação da Goiastur, empresa goiana que visava o desenvolvimento turístico em algumas cidades goianas, dentre elas Pirenópolis por ocasião da Festa do Divino. Outra influência que merece destaque em relação à divulgação da Festa do Divino é a proximidade com Brasília e o interesse dos moradores da Capital Federal em conhecer esta manifestação cultural mantida em uma cidade bastante próxima, mesmo quando considerando a falta de vias asfaltadas. A Festa do Divino: Patrimônio A continuidade da Festa do Divino Espírito Santo, em Pirenópolis, por quase dois séculos, nos indica a importância e a representatividade de tal manifestação para a comunidade local que se envolve nas inúmeras atividades da Festa, desde a preparação, Consideramos aqui, área urbana como o espaço delimitado como perímetro urbano — a cidade e área rural o espaço compreendido fora do perímetro urbano, mesmo esta delimitação sendo recente. 158 184 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul passando pela Festa em si e em seguida com o seu desmonte, evolvendo-se assim com o que Maia denominou como “ciclo festivo” (2002). O referido autor dimensiona não apenas a extensão temporal que a Festa ocupa no calendário anual, mas ainda o espaço pelo qual se desenrola. Temporalmente a referência pauta-se em Pentecostes e vem se antecipando, como no caso da inserção da Folia da Renovação Cristã aos festejos e também se estendendo para depois de Corpus Christi com a realização da Cavalhadinha do Centro. Consequentemente o espaço também se ampliou e houve ainda uma fortificação dos aspectos patrimoniais. A busca para implementar novas manifestações na Festa do Divino pode ser observada como uma tentativa de inserção, por parte de grupos ou mesmo de pessoas que não tendo o destaque almejado passam a “criar” novas maneiras de atuação. Outra possibilidade é a necessidade de participação e de envolvimento, pois a Festa do Divino Espírito Santo é fundamental na vida de grande parte dos pirenopolinos, que esperam por ela durante todo o intervalo de tempo em que ela não ocorre. Quase todas as famílias mais tradicionais possuem significativo envolvimento com a festa nas mais variadas atividades, e colaboram por devoção ao Divino e não em troca de remunerações terrenas. A festa do Divino é um patrimônio para os pirenopolinos, muito antes de ser reconhecida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como uma Celebração Patrimônio Cultural do Brasil em 2010. Durante as pesquisas para elaboração do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC, 2000) foi possível perceber a dimensão da Festa do Divino a partir dos saberes e fazeres envolvidos nas diversas etapas que compõem as manifestações voltadas para a devoção ao Divino Espírito Santo. É interessante observar que cada família ou grupos específicos participam de momentos distintos da Festa. A grande maioria dos jovens participa dos Pousos de Folia; algumas meninas das Pastorinhas enquanto os meninos saem de mascarados. Tem ainda as alvoradas em que muitos tomam parte, assim como a produção de verônicas. Há maneiras não coletivas de participação como a produção de máscaras, confecção de roupas diversas, produção de flores em papel para ornamentar os cavalos, tanto dos cavaleiros quanto dos mascarados. 185 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul No entanto, faz-se necessário ressaltar que há uma produção cultural bastante intensa no que se refere á Festa do Divino em Pirenópolis, sendo que a apropriação de alguns de sues símbolos por setores público e institucional é evidente, como por exemplo, a figura dos mascarados ou mesmo só da máscara de boi, feita em papel por artesãos pirenopolinos. Sobre as máscaras é interessante notar que alguns modelos caíram em desuso como as de onça e de macaco. Outras eram pouco usadas, sendo que uma delas virou símbolo da festa e de alguns outros setores da cidade: a máscara de boi. A comunidade pirenopolina vem aprimorando mecanismos de educação patrimonial por meio de incentivos às crianças na participação de várias modalidades de manifestações culturais. Atualmente tem destaque as Cavalhadinhas, que de brincadeiras de amigos de rua ou de bairro se transformou em festas bastante concorridas, inclusive por adultos e que contribuem não só para a inserção de crianças nas práticas festivas, mas com elas visam a continuidade das festividades. Duas Cavalhadinhas merecem destaque por ser a reprodução infantil de grande parte da Festa do Divino: a Cavalhadinha da Vila e a Cavalhadinha do Centro. A Festa do Divino: Espaço Em uma breve discussão sobre os espaços da Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis levaremos em consideração algumas edificações como casas e igreja; abordaremos também considerações sobre estradas e vias urbanas. Assim como as liminaridades entre o público e o privado na ocupação espacial pelas manifestações festivas em homenagem ao Divino. A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário possui tombamento individual ocorrido em julho de 1941 e posteriormente, em janeiro de 1990, foi novamente contemplada quando do tombamento do conjunto arquitetônico, urbanístico, paisagístico e histórico do Centro Histórico de Pirenópolis (www.iphan.gov.br). É um importante monumento e local de práticas do catolicismo, dentre elas algumas manifestações que acontecem por ocasião da Festa do Divino, como novena e missas. 186 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul É durante as missas no Domingo de Pentecostes que pela manhã é sorteado o novo imperador, que na missa noturna recebe oficialmente a Coroa do Divino, destarte é na Matriz que ocorre o rito de passagem — recorrendo a Van Gennep (2011) — em que um cidadão comuns passa a ser o Imperador do Divino, figura máxima dentro da hierarquia festiva do Divino Espírito Santo. Durante a Festa do Divino a Igreja Matriz possui importância significativa, mas não é o espaço mais utilizado pelas festividades. Talvez o epicentro festivo seja a residência do Imperador, o responsável pela condução da festa durante o ano de seu mandato, entre o sorteio e a entrega da Coroa. A Casa do Imperador, como passa a ser denominada, mesmo que efemeramente, a casa em que a Coroa do Divino permanecerá durante um ano é o centro da Festa, sendo que é de lá que saem e chegam as principais manifestações que compõem o mosaico de festividades em homenagem ao Divino Espírito Santo. Em um passado não muito distante a Igreja tentou estabelecer um espaço fixo, criando a Casa do Imperador, que ficava na parte mais sul da cidade e onde alguns poucos Imperadores realizaram suas festas, mas tal iniciativa alterou a dinâmica espacial da Festa do Divino de Pirenópolis e desagradou a maioria das pessoas, uma vez que por ser uma festa dinâmica e possuir características da religiosidade popular em que as trocas, por meio das relações da dádiva apontada por Mauss (2003), se estabelecem no seio familiar: a casa. Algumas casas durante a Festa do Divino são espaços utilizados para momentos ritualísticos das festividades. Além da Casa do Imperador, destacamos as casas do rei e rainha do Reinado de Nossa Senhora do Rosário e as casas do juiz e da juíza do Juizado de São Benedito. Há as casas em que são promovidas as farofadas para os cavaleiros das Cavalhadas, as casas dos Pousos de Folia, tanto na cidade quanto na área rural. Mencionando aqui, apenas as principais casas envolvidas nas comemorações ao Divino. De maneira ampla, não recorrendo a especificidades, concordamos que em Pirenópolis, também durante a Festa do Divino, algumas casas, como as mencionadas acima podem ser entendidas “como um universo de fronteira” (OLIVEIRA, 2001, p. 15) por possibilitarem dinâmicas variadas e necessárias para a manutenção das tradições festivas. 187 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Este universo de fronteira aqui pode ser percebido pela transmutação da casa enquanto residência familiar, fechada ao convívio doméstico e privado se abre para a Festa do Divino e ao se transformar em espaço de festa torna-se, simultaneamente, em um espaço híbrido, de passagem, que mesmo mantendo o que Van Gennep (2011) denomina como “fronteiras e marcos”, não consegue estabelecer limites estanques. Assim, a casa passa a ser espaço público, dos convívios com estranhos e até mesmo desconhecidos que se apropriam temporariamente da materialidade da vida dos que ali residem, ao adentrarem o espaço outrora privado. A Festa do Divino em Pirenópolis possui ainda características de apropriação bastante interessantes. A casa de privada para pública estende-se além da soleira da porta e ao ganhar a rua, transforma a via pública e urbana em área privada e festiva, mesmo que por período pouco duradouro e considerando que “não se pode misturar o espaço da rua com o da casa sem criar alguma forma de grave confusão ou até mesmo conflito” (DA MATTA, 1997, p. 50). As festas populares em si são espaços de conflitos, mas mesmo considerando as confusões advindas das manifestações festivas, e que não são poucas, ainda mais atualmente quando, no caso de Pirenópolis, a vocação turística traz para a cidade pessoas que não conhecem ou compreendem as transmutações pelas quais passam o espaço — e até mesmo o tempo —, durante as festas, em especial a do Divino, quando vias públicas são fechadas e cavalos tomam as ruas, dificultando o trânsito de veículos que insistem em se locomover por áreas destinadas à Festa. Mas voltando às relações entre casa e rua, Brandão nos lembra que ao contrário, pelo menos em muitos casos, um lugar e outro se complementam e há entre eles, vivida em seus atores de ambos os lados, uma interação permanente de começar num e acabar noutro e fazer com que tudo o que se festeja oscile entre os dois domínios. Alguns rituais do catolicismo popular fazem isso de uma maneira muito evidente e pode-se até dizer que eles não são outra coisa senão uma viagem entre casas por ruas e estradas (2001, p. 18). 188 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Ampliando a escala, passamos às casas das fazendas pirenopolinas compreendendo-as também como “universo de fronteira” (OLIVEIRA, 2010), em que durante os Pousos de Folia do Divino há uma significativa transformação desde a preparação ao desmonte da parada da Folia na propriedade rural. As casas de fazenda são preparadas para receberem as bandeiras da Folia do Divino, para tanto na sala da frente são elaborados altares que recebem ainda imagens de santos da devoção familiar. Nos fundos, a cozinha é ampliada para a preparação de alimentos que serão ofertados e agradecidos em cerimônias ritualísticas junto a uma grande mesa que conta sempre com algum alimento. O cotidiano rural é alterado para “receber as bandeiras”. A produção é cessada temporariamente, assim como as lidas com o campo e com os animais. Abates de gado e de porcos são antecipadamente realizadas para a preparação da comida. O pasto da frente é limpo para que os foliões promovam o rito da chegada, uma coreografia cavalgada junto ao por do sol. Arcos são dispostos nas entradas da fazenda e da casa e são neles que os rituais de transposição para o mundo festivo das Folias acontecem. As Folias do Divino que circulam por Pirenópolis são três: A Tradicional, a da Rua e a da Renovação Cristã, sendo que a primeira e a última saem da cidade, promovem o giro pela área rural e retonam à cidade para entregar as bandeiras. Portanto a Festa promove a integração entre o rural e o urbano, mediante o giro da Folia. Mas a junção que predomina, ou pelo menos se faz mais evidente, acontece pelas relações provenientes das confluências e liminaridades entre casa e rua durante a realização da festa. Portanto, há concordância de que “o sistema ritual brasileiro é um modo complexo de estabelecer e até mesmo de propor uma relação permanente e forte entre a casa e a rua, entre ‘este mundo’ e o ‘outro mundo’” (DAMATTA, 1997, p. 61). Considerações Finais Compreendemos o mundo festivo como uma continuidade do mundo em que vivemos. Portanto, em especial quando abordamos as festas vislumbramos as não divisões bipolares ou 189 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul estanques, e sim as integrações necessárias e indispensáveis para a realização da festa que perpassam tempo e espaço. Havendo assim um complexo estreitamento temporal com o passado, mediante ações do presente que ocorrem para proporcionar sentido às ações ritualísticas e que por não serem muito evidentes passam despercebidas a pessoas que não participam do grupo. A Festa do Divino Espírito Santo é um patrimônio para a comunidade local há quase dois séculos e sua permanência enquanto manifestação popular ocorre pelos significados que perpassam o tempo e o espaço com as delimitações entre os limites público e privado159, pois se constitui como uma das mais importantes devoções para os pirenopolinos. Diante desta conjugação festiva, bastante característica também do povo pirenopolino, concordamos e fechamos com Brandão, para quem “essa conjunção da casa e da rua através da estrutura do ritual popular da visitação (trazer a rua para a casa e devolver a casa à rua) foi ou é um dos núcleos de sentido de praticamente todos os rituais e celebrações populares no Brasil” (BRANDÃO, 2001, p. 21— grifo no original). Referências Bibliográficas ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Império. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo, Cia. das Letras, 1997. Vol. 02. pp. 11-93. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultura na rua. 2 ed. Campinas: Papirus, 2001. 219p. BURY, John. Arquitetura e Arte no Brasil Colonial. Brasília: Iphan, 2006. 256p. CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Heloísa Pezza Cintrão. 4. ed. São Paulo: Edusp. 2006, 385p. DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. 163p. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Laís Teles Benoir. São Paulo, Centauro, 2006. 197p. 159 Parte desta dicotomia pode ser observada na descrição que diferencia as festas particulares das públicas que aconteciam no Rio de Janeiro durante o Império. Ver Alencastro, 1997. pp. 51-53. 190 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul INVENTÁRIO NACIONAL DE REFERÊNCIAS CULTURAIS. Brasília: Iphan/Departamento de Identificação e Documentação, 2000. 134p. JAYME, Jarbas. Esboço Histórico de Pirenópolis. Goiânia: UFG, 1971. Vols I e II. 624p. ________. Famílias Pirenopolinas. Goiânia: UFG, 1973. Vols: I, 429p; II. 393p; III, 429p; V. 450p. LÔBO, Tereza Caroline. 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Id=3263, acesso em 15/09/2014. 191 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul APROXIMAÇÕES ENTRE LITERATURA E ENSINO DE HISTÓRIA: SOBRE INTERPRETAÇÕES HISTÓRICAS A PARTIR DA OBRA “GERMINAL”160 João Pedro Pereira Rocha161 Introdução Os anos 1980 e 1990 foram decisivos para o ensino de história quando, das novas exigências que eram reclamadas a partir da mudança no campo historiográfico acadêmico, com abordagens diferentes daquelas construídas por professores na Educação Básica. A mudança de paradigma, proposta principalmente pela corrente historiográfica engajada na história cultural, fez com que pesquisadores e estudiosos passassem a criticar, entre outras, o modo como às linguagens eram inseridas nas aulas de história. No caso específico da literatura, a dificuldade de uso em sala de aula, explica-se por uma visão que não via nos textos literários, documentos passíveis de uso didático pelo professor de história. Assim o uso da literatura para estudos históricos, em sala de aula, ocorreu de forma lenta e gradual, sendo que na primeira década do século XXI discussões em torno desta problemática foram e continuam sendo levantadas. O presente trabalho é resultado de pesquisas e reflexões sobre linguagens no ensino de história, desenvolvidas no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), do curso de História da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), Campus Barreiras. O objetivo deste trabalho é verificar a contribuição da literatura para o ensino de história, isso a partir de uma análise acerca da obra literária “Germinal”, do escritor francês Émile Zola. 160 O presente trabalho é fruto de estudo desenvolvido no grupo do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID-História), da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), com coordenação e orientação do professor MsC. Bruno Casseb Pessoti e apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 161 Graduando em História. Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB). Bolsista PIBID [email protected] 192 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul O desenvolvimento deste trabalho ocorreu a partir de uma metodologia que inicialmente reuniu e analisou trabalhos de teóricos que se debruçam sobre os eixos história, literatura e ensino de história. Esse tipo de abordagem se fez necessário, tendo em vista que para pretensões deste trabalho, a interdisciplinaridade é imprescindível. Dessa forma a análise da obra “Germinal” ocorreu de modo a verificar suas contribuições ao ensino de história, para tal foram elencados alguns aspectos do livro que contribuem para discussões sobre as transformações sociais do século XIX, sobretudo aquelas ligadas à exploração do trabalho. Do trabalho, é possível afirmar que sua relevância encontra-se na aproximação entre literatura e ensino de história a partir da análise de uma obra de ficção que tão, bem representa o contexto de sua produção, uma obra que para os críticos desenha uma história como se houvesse apenas o bem e o mal (BRAS, 2013). Revisão teórica metodológica O desenvolvimento do trabalho foi possível graças à reunião de materiais, pensados a partir de duas ordens: que fundamentam as discussões acerca das possibilidades para uso da literatura na história, e os que reforçam as discussões e reflexões feitas a partir da análise da obra “Germinal”, com objetivo de identificar suas potencialidades para o ensino de história. Assim foram reunidos artigos, livros e capítulos de livros que capacitaram às discussões e os resultados a partir do objetivo deste trabalho. As discussões sobre a relação história e literatura foram construídas a partir do pensamento clássico de BAKHTIN (1997) que discute as narrativas literárias em dialogo com as narrativas e interpretações históricas. Uma contribuição interessante aos estudos que se ocupam de analisar obras literárias, tendo em vista que as particularidades dos textos literários são criações não apenas estéticas, mas históricas (BAKHTIN, 1997). Assim a literatura está para história e para o historiador, tendo em vista que as narrativas do passado são como “escombros e entulhos” que levam o historiador a rejeitar o futuro para aproximar-se da desordem posta ao passado (BENJAMIN 1985). Para o campo do ensino de história em sua relação com a literatura como linguagem passível de uso no processo de ensino aprendizagem é possível percebermos que nas duas 193 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul últimas décadas do século XX autores como Circe Bittencourt (1997) e Selva Guimarães (1995) apontaram o importante espaço que as obras literárias poderiam adquirir nas aulas de história. Para Bittencourt (2011) a importância do uso de textos literário, de modo didático, afirmava-se, na medida em que ao aluno eram oferecidos outros objetos que deveriam ser analisados, concomitante a obra de ficção, ampliando a visão do alunado acerca das referências usadas em interpretações do passado. Esse tipo de abordagem metodológica complementa Selva Guimarães: “amplia o campo de estudo, torna o processo de transmissão e produção de conhecimento mais interessante, dinâmico e prazeroso.” (GUIMARÃES, 1995, p.53). Sobre a análise da criação de Émile Zola, pontos mais centrais e julgados como referenciais para o contexto histórico do século XIX, foram destacados para discussão. O reforço teórico para este momento esteve pautado no pensamento de historiadores que teorizam, sobretudo, as mudanças promovidas pela exploração do trabalho nos oitocentos. Assim autores como Eric Hobsbawm (2013), discorrendo sobre o espirito revolucionário francês no século XIX, Karl Marx e Friedrich Engels discutindo o engajamento dos trabalhadores na luta contra a exploração do capital, auxiliaram as discussões e reflexões complementares ao estudo de “Germinal”. A verificação da contribuição presente na obra “Germinal”, enquanto material sujeito ao uso didático para as aulas de história ocorreu a partir do pensamento de Jörn Rüssen (2013) acerca da didática prática da história. Essa praticidade teria uma ligação direta com o papel social de um conhecimento histórico, emancipador, crítico e apto a mudar a realidade dos sujeitos. Assim, a didática da história, como afirma Rüssen, tem o papel de fomentar a consciência histórica, algo que pode ser alcançada a partir do ensino e aprendizagem da História, com aproximações entre passado e presente, sob as mais diversas formas. Literatura no ensino de história Uma análise sobre a natureza dos dois campos do conhecimento, literatura e história, pode encontrar especificidades que geram atritos entre ambos. Assim projetos de fato e de ficção aparecem como pontos fundamentais dessas áreas, conceitos epistemológicos que 194 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul durante algum tempo impossibilitaram o dialogo e uma aproximação entre historiadores e textos literários. O rompimento com a dicotomia, que fora estabelecida entre história e literatura, dependeria do posicionamento que historiadores manteriam em relação às obras literárias. Esse posicionamento, requerido ao historiador, é representado em A estética da criação verbal, onde Bakhtin discorre sobre o oficio do literato: “A escrita (a relação do autor com a língua e a utilização da língua que ela implica) é o reflexo impresso no dado do material por seu estilo artístico (sua relação com a vida e com o mundo da vida e, condicionado por essa relação, sua elaboração do homem e do seu mundo) o estilo artístico não trabalha com as palavras, mas com os componentes do mundo, com os valores do mundo e da vida...” (BAKHTIM, 1997, p. 208). A partir da representação feita por Mikhail Bakhtin, sobre a construção do texto literário e da influência que o mundo exerce sobre aquilo que é produzido no campo textual, foi possível a historiografia aproximar-se das obras literárias como produções culturais, passiveis de abordagens históricas. Essa quebra de paradigma encontrou reforço importante com os estudos de Walter Benjamin (1985), que apontou uma necessária revisão acerca do modo como historiadores investiam sobre a literatura, informando não mais ser possível ao pesquisador do passado, conhecê-lo como ele de fato foi. Assim, por meio de mudanças historiográficas foi possível a introjecção, mesmo que de forma gradual, de textos literários no rol de documentos possíveis para construção do conhecimento histórico. O período que compreende os anos 1990 do século XX e a primeira década do XXI, no Brasil, assistiu uma crescente nos estudos que se ocupavam em discutir o uso das linguagens no ensino de história, por professores da Educação Básica. Neste momento, autores como Circe Bittencourt (1993), Selva Guimarães (1995), Marcos Silva (2009), Rafael Ruiz (2012), entre outros, destacavam a importância de refletir o espaço das diversas linguagens nas aulas de história. Assim as discussões em torno do uso das diversas produções 195 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul artísticas, giravam em torno do uso consciente das ferramentas que circundam o universo docente e no que tange o processo de ensino aprendizagem. A construção de novos canais para debates e reflexões sobre linguagens no ensino de história abriu caminho para edificação de ideias que pensavam a inserção de documentos auxiliares à construção do conhecimento histórico e que por sua vez eram passiveis de uso em sala de aula. Por meio de tais debates as linguagens, transvestidas em documentos e discutidos pela historiografia da segunda metade do século XX, puderam ser analisadas como novos objetos ao ensino de história. Com isso o campo do ensino de história fora enriquecida com novas possibilidades para o trabalho docente, que atentavam entre outras, para o rompimento do uso limitado do livro didático para as aulas (GUIMARÃES, 1995). Esse novo horizonte, que se colocava ao ensino de história, fomentava maiores aproximações com documentos de diversas naturezas. Com isso, a literatura pôde ser vista sob uma ótica que identificava nesta arte, um caminho importante para (re) construções históricas. “Germinal”: possíveis contribuições ao ensino de história Sendo a literatura importante aliado para construção do conhecimento histórico, as obras literárias representam um conjunto de escritos que tomados como documentos e testemunhos do passado, oferecem uma gama de possibilidades ao trabalho do historiador. Dessa forma obras clássicas ou mesmo desconhecidas podem ser referências para pesquisas e estudos preocupados com o modo pelo qual sociedades passadas arquitetaram suas histórias, seja no plano social, político, cultural ou econômico. É nesse contexto que a obra “Germinal” se destaca, ao reunir elementos que denunciam uma sociedade marcada por profundas transformações, e que, portanto, auxiliam maiores interpretações sobre os processos históricos. Em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo o escritor Luiz Braz (2013) resumiu a obra “Germinal”, de Émile Zola, como sendo uma incitação à revolta proletária. Escrito inicialmente em notas de folhetim. De fato, publicado em 1885, Germinal é uma típica obra literária engajada em seu tempo, colocando em evidência os conflitos sociais que colocavam o século XIX em ebulição. Nela o autor fora objetivo em deixar transparecer o conflito entre 196 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul duas classes emergentes, onde o elo dos embates girava em torno da exploração do homem pelo homem, mas, agora, em um período que o capital põe em destaque as disparidades sociais que envolviam o homem moderno. A revolução intelectual, também é a das mentalidades, representada pela consciência de pertencimento a uma determinada classe, a operária, que unida modificaria não apenas o quadro francês, mas o mundial. Se, como bem afirma Eric Hobsbawm (2013), na conturbada Europa dos séculos XVIII e XIX a França fora expoente da “Era das Revoluções”, ao encabeçar uma revolução social de massa, podemos encontrar traços de tal mobilização social na obra de Émile Zola. Assim é possível identificar, por exemplo, no personagem de Étienne Lantier uma militância que não estava apenas reduzida ao ficcional, a uma simples beleza estética e literária, mas à construção de um representante dos exércitos revolucionário de que fala Hobsbawm (2013). Étienne é, dessa forma, a materialização do espirito revolucionário que alimentava a internacional socialista, consciente de sua missão: unir os trabalhadores do mundo, em luta contra a exploração do capital e em busca do bem estar social para todos. Para o universo da história discutida em sala de aula é possível identificarmos em Germinal algumas contribuições pertencentes à exploração do trabalho e do trabalhador no período que compreende a modernidade. Sobre esse aspecto a obra traz uma importante descrição do universo que circundava a vida dos trabalhadores das minas na França do século XIX, ampliando o horizonte dos aspectos históricos constituídos a partir das representações sociais. Dessa forma, em sala de aula, o professor de história pode vir a relacionar modelos sociais de nossos dias, aqueles ligados a questões trabalhistas, com a mensagem contida em “Germinal”, sobre a exploração do trabalho. Com isso o ensino de história estará alicerçando o saber histórico construído em sala de aula, a partir de representações sociais, que no plano coletivo ou individual fomentam no contexto de aprendizagem, possibilitando ao aluno a identificação com determinado grupo social, podendo, como afirma Bittencourt (2011), refletir de forma autônoma a realidade ao qual é inserido. Circe Bittencourt (2011), em seu discurso sobre o uso da literatura por professores de história apontou que a contribuição dos literatos para compreensão histórica do passado ocorre por sua escrita obedecer à determinada cultura, em um dado espaço tempo. Germinal é a representação de um tempo onde, outro componente ideológico, o socialismo, se 197 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul contrapunha à solidificação avassaladora do capitalismo. Essa verificação é exposta no pensamento e na militância de Étienne: Étienne, no entanto, estava muito animado. Uma predisposição para a revolta o impelia à luta do trabalho contra o capital, numa primeira ilusão, que era produto da ignorância. Tratava-se da Associação Internacional dos Trabalhadores, da famosa Internacional que acabava de ser criada em Londres. Não havia nisso um esforço maravilhoso, uma campanha onde a justiça ia enfim triunfar? O fim das fronteiras, os trabalhadores do mundo inteiro levantando-se, unindo-se para assegurar ao operário o pão que ganha. E que organização simples e grandiosa! E que organização simples e grandiosa! Embaixo a seção que representa a comuna, em seguida a federação que agrupa as seções de uma mesma província, depois a nação e por fim, no topo, a humanidade encarnada num conselho geral onde cada nação está representada por um secretário correspondente. Antes de seis meses a terra seria conquistada e ditar-se-iam as leis aos patrões se eles se fizessem de espertos. (ZOLA, 2008, p. 111-112) A consciência sobre a importância na união, na luta de classe, tão viva nas ideologias socialistas, também é algo presente em muitas passagens de Germinal, algo que justifica a crítica feita por Bras (2013) ao tom inquietante usado por Émile Zola. A luta pela união entre os povos é algo que o autor deixa concreto na personalidade de Étienne, fruto direto da consciência acerca das relações de poder que estavam se estabelecendo e, gradualmente deixando o modo de produção feudal cada vez mais na Idade Média. Essa percepção de espaço-tempo e mudanças é algo que torno é Étienne sujeito crítico de seu tempo, algo que pode ser explorado pelo professor de história, que no ato de ensinar pode construir caminhos que levam o alunado a perceber a influência do tempo no trabalho do artista. 198 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul A tentativa de aproximar passado e presente, por meio de uma didática da história prática à vida e ao cotidiano do alunado, é algo que encontra em Germinal, terreno fértil. Se essa aproximação acontece em um programa que situa a história ensinada e aprendida como objeto destinado a uma aplicabilidade, uma orientação para vida (RÜSEN, 2011), o professor de história pode, nesse sentido, explorar não apenas as ações do personagem Étienne, mas, também, os cenários descritos pelo autor, por exemplo. A exploração dos trabalhadores é uma verdadeira denúncia: — Há muito tempo que você trabalha na mina? Boa-Morte abriu muito os braços: — Ah! Sim... Há muito tempo. Não tinha ainda oito anos quando desci, imagine justamente na Voreux, e agora tenho cinqüenta e oito. Veja bem, fiz de tudo lá dentro: primeiro como aprendiz; depois, quando tive forças para puxar, fui operador de vagonetes e, mais tarde, durante dezoito anos, britador. Em seguida, por causa destas malditas pernas, puseram-me para desaterrar, aterrar, consertar... Isso até o momento em que tiveram de me tirar lá de baixo porque o médico disse que um dia eu não voltaria mais. E faz cinco anos que sou carroceiro... Que tal? Não é bonito? Cinqüenta anos de mina, sendo que quarenta e cinco no fundo! (ZOLA, 2008 , p. 07) É sobre um contexto de brutalidade desumana, que o personagem de Étienne surge, germina fiel a causa revolucionária, de união do proletariado em prol da luta contra a burguesia exploradora, como citado por Marx e Engels em “Manifesto Comunista”: — O sistema assalariado é uma nova forma de escravidão — continuou ele [Étienne] com a voz ainda mais vibrante. — A mina deve ser do mineiro, como o mar é do pescador, como a terra é do camponês. Compreendam isso de uma vez por todas: a mina é de 199 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul vocês, de todos vocês, que há um século a vêm pagando com tanto sangue e tanta miséria! (ZOLA, 2008, p. 224) Trechos como estes trazem a tona o forte engajamento social empreendido em Germinal. A leitura de tais escritos nas aulas de história também pode ser pensada para além do gosto pela leitura, devendo o professor de história estar atento à relação dialógica que emana a partir da leitura. Bittencourt (2011) afirma que na relação dialógica há um contato entre autor e leitor, relação que possibilita “... sempre um contato entre lugares e épocas diferentes.” (BITTENCOURT, 2011, p. 341). No contexto de dialogismo o ensino de história tem na obra Germinal, importante aliado para interpretações históricas, ao fomentar, durante o processo de ensino aprendizagem, o contato com um passado predisposto ao enriquecimento da consciência histórica, já presente no alunado (CERRI, 2011, p.128). Tal enriquecimento pode ser alcançado a partir de posicionamento crítico frente aos textos, com análise que aproxima passado e presente, sem, contudo, perder de vista a visão histórica do processo que constituiu a sociedade atual. A mensagem contida no desfecho da obra, quando Étienne não consegue alcançar seu principal objetivo, de levar a comunidade mineira a proclamar uma tomada de poder, é mais uma possibilidade para o ensino de história devendo o professor neste caso explorar a infelicidade do personagem, as causas. A inexperiência de Étienne aliado à ignorância ou mesmo a miséria dos mineiros, foram elementos fundamentais para o fracasso da greve e dos objetivos revolucionários. Momento em que professores e estudantes podem refletir sobre as causas de tal desfecho, bem como as permanências que resistirá ao tempo e se materializa, nos dias de hoje, no campo social, na vida de trabalhadores reprimidos por uma opressão histórica. Considerações Finais A análise sobre a obra de Germinal permitiu identificar no romance uma importante contribuição para projetos que se interessam por uma abordagem interdisciplinar entre literatura e história, objetivando uma ampliação dos horizontes postos a interpretação 200 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul histórica. Assim, por meio de um projeto interdisciplinar, que aproxima literatura e história é possível romper com o tradicionalismo na disciplina história, uma vez que a narrativa literária dá conta de descrever os seres humanos com seus sentimentos, sentimentos e conflitos. A riqueza de detalhes, aliado a objetividade usada por Émile Zola é uma representação histórica, da agitação fervente do século XIX, acessível a professores e estudantes que são livres para construções críticas sobre a obra o autor e o contexto. O desafio ou barreira imposto ao trabalho do professor de história que utiliza a escrita, presente na obra Germinal, para discutir questões históricas, podem ser vistos em dois planos: o da formação profissional e o da orientação ideológica. O primeiro diz respeito a um ponto importante, do qual depende a construção do saber histórico em sala de aula. Isto porque a formação do professor de história não se restringe a está área do conhecimento, mas a diversas outras, Filosofia, Antropologia, Sociologia (SCHMIDT, 2012), algo que permite o diálogo e a interdisciplinaridade em sala de aula. O segundo ponto justifica-se na forte carga ideológica de cunho esquerdo-revolucionário, presente no livro de Émile Zola, o que pode ser decisivo para o uso, ou não, da obra por professores com orientação divergente. Por fim, é explicito o fato de que uma aproximação, com o devido cuidado, da literatura pela história é um ganho para o conhecimento histórico construído em sala de aula, na Educação Básica. Neste caso o diálogo é uma experiência enriquecedora ao trabalho docente, ficando disponível ao professor de história o contato com detalhes e descrições que podem suplantar o material didático. Ao discente é oferecida uma oportunidade de vislumbrar sociedades passadas, sob a ótica literária, expondo a vida, o cotidiano e os sentimentos de pessoas que ajudaram, em seu tempo, na construção da história, tal qual fazemos em nossos dias. Referências Bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. O contexto de valores (autor e contexto literário). In: Estética da Criação Verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2ª ed. — São Paulo, Martins Fontes — (Coleção Ensino Superior) 1997, p. 208-215. 201 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In:Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Ed. Brasiliense. Vol. 1, 1985, p.224. BITTENCOURT, C. M. F. Uso didático de documentos. In: Ensino de História: fundamentos e métodos. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2012, p.327-350. BRAS, Luiz. Crítica: “Germinal”, de Émile Zola, incita proletários contra a burguesia. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/04/1265381-critica-germinal- de-emile-zola-incita-proletarios-contra-a-burguesia.shtml. Acesso em 28 de julho de 20014. CERRI, Luis Fernando. Ensino de história e consciência histórica: implicações didáticas de uma discussão contemporânea. 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São Paulo: Martin Claret, 409 p. 2008. 202 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul HISTÓRIA E MEMÓRIA DO CONSELHO TUTELAR DE IPORÁ-GO (1996-2014) Joelma Gonçalves Marçal162 Introdução A partir de 12 de outubro de 1990, com a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente, todos os municípios brasileiros passaram a ser responsáveis pela implantação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente163, Conselho Tutelar164 e demais programas previstos na lei para assegurar o direito de todas as crianças e adolescentes. O poder legislativo estabeleceu, conforme a nova redação dada pela Lei Federal nº 8.242/91, de 12/10/91, ao art. 132 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que: “Em cada Município haverá, no mínimo, um Conselho Tutelar composto de cinco membros, escolhidos pela comunidade local para mandato de três anos, permitida uma recondução” (CONANDA, 2001, p. 12) De acordo com Sousa (2010, p. 17), o Conselho Tutelar é um órgão inovador na sociedade brasileira, com a missão de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente e o potencial de contribuir para mudanças profundas no atendimento à infância e adolescência. Para utilização plena do potencial transformador do Conselho Tutelar, é imprescindível que o conselheiro, o candidato a conselheiro e todos os cidadãos conheçam bem sua organização e reflitam sobre ela. 162 Graduanda em História - UEG-Iporá. E-mail: [email protected] Conforme determinado no Estatuto da Criança e do Adolescente (artigos 131 a 140), “considera-se criança, para os efeitos desta lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade” (art. 2º). 164 Dentre as inovações estabelecidas pela Lei nº 8.069/90 para a sistemática de atendimento à criança e ao adolescente, está sem dúvida a previsão de criação dos Conselhos Tutelares, que por definição legal é “órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente...” (Art.131). 163 203 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Do ponto de vista acadêmico, a existência dos Conselhos Tutelares tem suscitado inúmeras discussões e questões. Os estudos até então empreendidos apontam uma tendência em torno da qual parece haver consenso: os Conselhos Tutelares têm se constituído em meio a uma situação de precariedade de recursos humanos, materiais e simbólicos e não necessariamente como órgãos de defesa de direitos. Em função disso, a sua identidade transita entre a defesa de direitos e a incapacidade de cumpri-la, expressando, à primeira vista, uma dualidade entre a definição legal - o “dever ser”, que remete a um tipo ideal, e aquilo “o que tem sido” possível ser, tendo em vista que estão se constituindo no interior do sistema de garantia de direitos e na diversidade de cada município Deste interstício entre o “dever ser” e o “que é” emergem posições pró e contra os Conselhos Tutelares. Ora são referidos como defensores dos direitos de crianças e adolescentes, ora são citados como órgãos de atendimento caso a caso – guiados pela racionalidade técnicoburocrática e pelo disciplinamento, resultante da sua institucionalização pouco vinculada aos princípios e diretrizes do Estatuto (SILVA, 2011, p. 23). Dentre os principais argumentos em defesa dos Conselhos Tutelares, destacam-se pelo menos três aspectos. Primeiro, o conselho tutelar é importante, pois trabalha em favor da família e da sociedade em geral, ou seja, ele tem como objetivo prestar serviços a comunidade com atribuições definidas pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente); Segundo, a imagem inicialmente vinculada ao Conselho é boa. Em geral, os conselheiros são vistos como um grupo de cidadãos moradores do município, conhecedor da realidade das crianças e dos adolescentes, depositário da confiança da comunidade que o elegeu e com o compromisso de defender os direitos fundamentais citados no Estatuto, com autonomia em relação a todas as outras instituições, apenas obedecendo aos preceitos legais; Terceiro, os Conselhos Tutelares, através de seus agentes, denunciam publicamente a violação de direitos. 204 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Entretanto, existem vários argumentos contra os Conselhos Tutelares. Por vezes, eles são vistos como instrumento de controle das famílias. Uma das principais críticas dirigidas ao Conselho Tutelar refere-se a sua atuação restrita à regulação das condutas individuais, ou seja, atua como um órgão burocrático do Estado efetuando o controle sobre a população atendida, sobretudo, as famílias pobres, fato que o situa na perspectiva da continuidade do Código de Menores (SILVA, 2011, p. 23). Frizzo e Sarriera (2006, p. 208), por sua vez, afirmam que as críticas são dirigidas “via de regra, aos conselheiros, cuja qualificação é posta em dúvida frente à magnitude da importância que adquire o Conselho na sua tarefa de zelar pelos direitos da criança e do adolescente”. Além disso, não haveria condições adequadas de funcionamento e acolhimento em certos casos. Foram tecidas críticas ao acolhimento, cujo atendimento pode estar aquém das demandas, como por exemplo, em relação ao abrigo de menores infratores. Outro ponto bastante criticado diz respeito a burocratização e a sua composição. De acordo com Gohn (2011, p. 231), “os municípios sem tradição organizativa-associativa, os conselhos passaram a ser apenas uma realidade jurídico-formal, e muitas vezes um instrumento a mais nas mãos dos prefeitos e das elites, falando em nome da comunidade, como seus representantes oficiais, não atendendo minimamente aos seus objetivos”. Acrescente-se ainda a ausência de mecanismos para apurar excessos e desvios dos conselheiros. O cometimento de ações incompatíveis à conduta do conselheiro e que são objeto dos comitês de ética, corregedorias ou outros mecanismos criados para apurar essas denúncias e propor penalidades, em regra, deliberadas nas plenárias dos Conselhos Municipais de Direitos também são desconhecidos (SILVA, 2011, p. 243). Material e Métodos Admitindo-se que o Conselho Tutelar resulta das discrepâncias entre a dimensão jurídica ou “o dever ser” e as ações empreendidas pelo órgão com base nas condições 205 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul existentes nos municípios ou “o que tem sido”, o importante para a realização desta pesquisa é discutir os elementos que caracterizam o bom funcionamento de um conselho tutelar. Baseado nas considerações teóricas de Lafer (2010) buscar-se-á três categorias de respostas para descrever um conselho tutelar que funciona bem: as condições de trabalho existentes, os resultados obtidos e o processo de trabalho. Com relação às condições de trabalho, entendidas de modo amplo, pode-se dizer que, dada a complexidade dos problemas sociais existentes nos municípios, destaca-se a necessidade de haver um número de conselhos tutelares compatível com as dimensões e as características da população de cada município. O ajuste da capacidade à demanda torna factível a realização da tarefa que lhe é conferida em lei. Além disto, para funcionar bem, é preciso que o conselho tutelar tenha uma infraestrutura básica adequada, com viatura disponível, telefone, materiais, sala apropriada e apoio administrativo. O conselheiro precisa receber uma remuneração justa pelo seu trabalho, com direitos mínimos garantidos e ter acesso à formação continuada. Em relação aos resultados, um conselho tutelar que funciona bem é aquele que tem presteza no atendimento e consegue ter suas requisições atendidas e as medidas que prescreve efetivamente aplicadas, resultando em rápido ressarcimento do direito violado. A atuação do conselho tutelar não deve restringir-se ao atendimento e encaminhamento das demandas que chegam ao balcão, pois ele deve procurar também cobrar o Executivo local pela instalação ou melhoria de programas e políticas públicas e provocar o Judiciário quando for pertinente. Uma atuação preventiva e não apenas reativa, que leva em consideração o diagnóstico da situação do município e a as carências percebidas a partir dos atendimentos feitos, é outro indicador importante. As referidas carências, ao serem bem compiladas, servem de base para a interferência do conselho tutelar no orçamento da área, tarefa que ele não deve deixar de lado. Para dar conta de maneira apropriada das tarefas que lhe cabem, um conselho tutelar que funciona bem deve ter conhecimento dos fluxos da rede de atenção à criança e ao adolescente e essa rede deve, preferencialmente, funcionar de maneira articulada e sistêmica. É preciso também que ele tenha legitimidade junto aos atores do Sistema de Garantia de Direitos e seja reconhecido pelas entidades, pelos prestadores dos serviços e pela comunidade 206 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul – reconhecimento que é ao mesmo tempo causa e consequência da obtenção dos resultados desejados. Em relação ao processo, é importante a tomada de decisões de forma colegiada e a atuação conjunta dos conselheiros. O bom atendimento tem começo, meio e fim. Ou seja, o conselho tutelar deve escutar o fato de forma imparcial, com foco no ECA, na negociação e no diálogo com os demais atores do Sistema de Garantia de Direitos, sem abusar da sua autoridade. É preciso que faça um número de atendimentos mensal significativo e esteja disponível para atender a população mesmo à noite e em feriados. Quanto a metodologia empregada, trata-se de uma pesquisa teórico-empírica, ou seja, além da abordagem teórica conceitual, realizou-se uma pesquisa empírica (trabalho de campo) baseada na análise interpretativa de dados primários obtidas no estudo de campo por meio de entrevistas semiestruturadas conforme Triviños (1987). Para este autor, a entrevista semiestruturada tem como característica questionamentos básicos e “[...] favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade” (TRIVIÑOS, 1987, p. 152). Trata-se então de uma pesquisa quantitativa e, sobretudo, qualitativa, tal como afirma Chizzotti (1998, p. 79), pois essa forma de abordagem “parte do fundamento de que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade”. Entre as principais fontes de consulta destacam-se as obras bibliográficas, artigos, periódicos e toda a legislação pertinente ao tema. Para compor a história do Conselho Tutelar de Iporá foram consultados os livros de ata e os relatórios de suas atividades. Resultados alcançados A criação do Conselho Tutelar é feita a partir da proposta de lei enviada à Câmara de Vereadores pelo Executivo Municipal. Esta proposta deve prever também a regulamentação, no município, da criação e funcionamento e escolha dos membros do 207 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Conselho Tutelar. Se o Poder Executivo deixar de tomar essa iniciativa, a sociedade pode representar ao Ministério Público para adoção das medidas administrativas ou judiciais cabíveis. No caso de Iporá-GO, o Conselho Tutelar de Iporá foi criado em 1996. De lá pra cá se passaram dezoito anos marcados por dezessete gestões. Ou seja, cada presidente do Conselho Tutelar de Ipora-GO teria exercido o cargo por um período de aproximadamente um ano. (Cf. Tabela 01). PRESIDENTE PERÍODO Walter José de Queiroz 1996-1997 Afonso Apolinário Coelho 1998/1999 Valdivino José Ferreira 2000/2001 Walter José de Queiroz 2002-2003 Divino José L. de Oliveira 2006/2007 Carlos Eduardo Mendes Alencar 2007/2008 Marta Marçal Rocha 2008 Adélia C. Alves 2008/2009 Adélia C. Alves 2009/2010 Carlos Eduardo Mendes Alencar 2010/2011 Fabiana Cristina da Silva 2011 Elza de Souza Soares 2011 Valdomiro Alves de Paula 2012 Enicleudes de Sousa Moreira 2012 Rogério Cândido Souza 2012 Marta Marçal Rocha 2013 Fabiana Cristina da Silva 2013/2014 208 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Tabela 01: Presidentes do Conselho Tutelar de Iporá-Go (1996-2014). Fonte: Elaborado pela pesquisadora, 2014. De acordo com a conselheira Marta Marçal Rocha e a secretária Aparecida Pontes Botelho o bom funcionamento do Conselho Tutelar de Iporá deixa a desejar. Como exemplos destaca-se a falta de equipamentos como copiadora, fax e, até mesmo, telefone fixo. Existe apenas um telefone celular pré-pago que é utilizado no dia-a-dia com crédito de apenas cinquenta reais mensais doado pela Prefeitura Municipal. Não se sabe ao certo quantas ocorrências foram registradas ao longo de toda a história do Conselho Tutelar de Iporá-Go. A partir de 2010, Aparecida Pontes Botelho foi disponibilizada pelo Conselho Municipal Antidrogas para atualizar e sistematizar os dados. Até o momento, foram registradas 1282 ocorrências em 2012, 1038 ocorrências em 2013 e 540 ocorrências até o dia 28 de julho de 2014. De acordo com esses dados, acredita-se que a media de ocorrências anuais deste Conselho é de aproximadamente 1200. As principais ocorrências são as praticadas no próprio âmbito familiar e a maioria destas é praticada por pais, padrastos, tios, ou seja, por meio desta pesquisa foi possível verificar que o local de maior incidência onde a criança e o adolescente sofrem abusos é o próprio leito familiar e que estes abusos são praticados por membros da família, por aqueles que deveriam educar e proteger. A equipe do Conselho Tutelar segue uma carga horária rígida de aproximadamente 4 horas diárias e um plantão por semana que se inicia às 17 horas e termina às 7 horas do dia seguinte. A Lei N°. 12. 696, de 25 de julho de 2012, que altera os artigos 132, 134, 135 e 139 da Lei N°. 8.069 de 13 de Julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) dispôs que: Art. 134. Lei municipal ou distrital disporá sobre o local, dia, e horário de funcionamento do Conselho Tutelar, inclusive, quanto à remuneração dos respectivos membros aos quais é assegurado o 209 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul direito a: I – Cobertura previdenciária; II – Gozo de férias anuais remuneradas, acrescidas de 1/3 (um terço) do valor da remuneração mensal; III – Licença maternidade; IV – Licença paternidade; V – Gratificação natalina. Parágrafo Único. Constará da lei orçamentária municipal e da do Distrito Federal previsão dos recursos necessários ao funcionamento do Conselho Tutelar e à remuneração e formação continuada dos conselheiros tutelares. Em 6 de setembro de 2010 o veículo do Conselho Tutelar de Iporá foi depredado. De acordo com Pedro Cláudio Rosa, “se já não estava em boas condições de uso, agora piorou. O Veículo do Conselho Tutelar estava estacionado enfrente a residência de Ariela Verena na noite de 04 para 05 de setembro, quando quebraram os vidros laterais e trazeiro. A Polícia foi acionada mais ninguém foi responsabilizado pelo dano. Ficou o prejuízo para o município” (ROSA, 2010). Para piorar ainda mais a situação, em 2011 o Conselho Tutelar de Iporá funcionou com apenas uma conselheira e registrava em média 200 a 300 ocorrências por mês, conforme se verificou por meio da reportagem do Jornal Oeste Goiano (11/03/2011) a seguir: O Conselho Tutelar de Iporá pode se esvaziar por completo. É que a única Conselheira Tutelar que ainda resta, Fabiana Cristina da Silva, já pensa pedir demissão. Ela ficou sozinha para carga de trabalho impossível de ser feita. Antes do Carnaval, todos os demais conselheiros pediram demissão. Para aquele evento houve uma contratação especial de 4 auxiliares. Agora, ela, a Conselheira Fabiana Cristina, está sozinha na tarefa. E em uma cidade onde se registra mensalmente de 200 a 300 ocorrências e atendimentos por mês, a 210 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul tarefa é impossível para uma pessoa só. A demanda de plantão acaba envolvendo a Conselheira por todo tempo, dia e noite. O Ministério Público exigiu da Prefeitura a contratação de pessoas para suprir a falta já que não existem suplentes para serem chamados. Mas o prefeito, ao fazer uma consulta ao Tribunal de Contas dos Municípios (TCM), foi advertido de que não pode fazer esta contratação especial de conselheiros, pois este é um cargo de quem precisa ser eleito pelo povo. Com esse impasse e com a disposição da única Conselheira em renunciar, a situação pode ficar grave em Iporá para o atendimento de assuntos ligados à crianças e adolescentes (JORNAL OESTE GOIANO, 2011). Mas, apesar das grandes dificuldades passadas e presentes, há indícios de ações afirmativas. Em 2012, as conselheiras fizeram curso. O Conselho Tutelar de Iporá, representado pelas conselheiras Fabiana Cristina da Silva, Leonilda Maria Lassi de Azara e Marta Marçal Rocha, participou do Curso Básico Introdutório para Conselheiros dos Direitos e Conselheiros Tutelares do Estado de Goiás. O curso foi promovido pela PUC GOIÁS/ Escola de Formação de Operadores do Sistema de Garantia de Direitos. Foram realizados em Goiânia dois módulos e em Iporá um módulo. A Prefeitura de Iporá deu respaldo para que as conselheiras pudessem estar fazendo essa capacitação. Segundo elas, a experiência adquirida nesses cursos é de suma importância, pois são vários conselheiros de várias cidades reunidos e demonstrando a realidade de cada município onde fazem o trabalho de fazer cumprir o Estatuto da Criança e do Adolescente. (MARQUES, 2014) 211 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Além disso, em 2014 a Prefeitura de Iporá entregou Veículo Zero Km ao Conselho Tutelar de Iporá. Na tarde da última sexta-feira dia 04 de julho, foi entregue o veículo 0 km ao Conselho Tutelar de Iporá, uma emenda parlamentar do Deputado Federal João Campos que beneficiou o município de Iporá, fazem parte dessa emenda ainda um kit contendo uma geladeira e cinco Computadores com impressoras que serão entregues posteriormente. Estiveram presentes no Evento vários autoridades dentre elas o Prefeito Danilo Gleic, Deputado João Campos e seu Filho Thiago Campos, Vereadores da base Wênio Pirulito, Duílio Siqueira, Cleudes Alves, Chico Paulo e Suélio Gomes, Coronel Almeida da Polícia Militar, Capitão Rafael do Corpo de Bombeiros, Pastor Ataul, Layanne e Adélia Representantes da Secretaria de Assistência Social, parte do Secretariado da Prefeitura Municipal, Assessores e Servidores Públicos, as cinco Integrantes do Conselho Tutelar e a comunidade em geral. O veículo Chevrolet SPIN de sete lugares, agora servirá para os trabalhos do Conselho Tutelar de Iporá. O Prefeito Danilo Gleic agradeceu o empenho do Deputado João Campos e afirmou que essa é mais uma conquista dessa parceria e que vem em hora oportuna, Danilo agradeceu mais uma vez o empenho dos Vereadores da base que dão sustentação a gestão e a presença de todos, sempre afirmando que a gestão está trabalhando sempre para o bem comum (PREFEITURA DE IPORÁ, 2014). Considerações Finais 212 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul A existência do Conselho Tutelar em Iporá-GO, composto por membros da comunidade local, é uma reafirmação dos princípios democráticos que orientaram a elaboração da Constituição Federal de 1988 e do ECA. No entanto, com a crescente urbanização do município e o aumento da população, é um desafio permanente manter a afiliação comunitária e o engajamento cívico em torno da defesa de direitos. Com o arrefecimento da atuação dos movimentos sociais e do próprio movimento da área da infância, que deu origem ao ECA, também esse desafio tornou-se ainda maior. Conclui-se, então, que, apesar das conquistas obtidas pelos Conselhos Tutelares nos últimos anos de implementação do ECA, restam ainda importantes passos a vencer para torná-los órgãos fortes, espaços de representação e defesa de direitos da sociedade civil junto aos agentes públicos. Referências Bibliográficas BRASIL. Estatuto da Criança e do adolescente (ECA). Edição 2003 e 2012 com correições no art. 132. BRASIL. Lei N°. 12. 696, de 25 de julho de 2012, que altera os artigos 132, 134, 135 e 139 da Lei N°. 8.069 de 13 de Julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – CONANDA. Parâmetros de Funcionamento dos Conselhos Tutelares. Brasília, outubro de 2001. FRIZZO, K. R.; SARRIERA, J. C. 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Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987. 215 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul “MUKUIU PARA QUEM É DE MUKUIU. KOLOFÉ PARA QUEM É DE KOLOFÉ. MOTUMBÁ PARA QUEM É DE MOTUMBÁ”165: UM POUCO DO CANDOMBLÉ ANGOLA Joilson de Souza Toledo Mestrando em Ciências da Religião / PUC – Goiás e.mail: [email protected] Introdução Este artigo nasce a partir do que foi estudado na disciplina Fenômeno Religioso. Nela o fenômeno religioso é apreendido por quem participa desta religião: sua noção de sagrado, mitos, símbolos, rito e a maneira de se organizar desta religião. Para dialogar sobre o Candomblé é preferível iniciar falando sobre “Candomblés”166, especialmente pela diversidade de nações. A própria maneira de saudar já expressa isso, como ilustra o título escolhido para esta parte do artigo. Desta forma cabe uma diferenciação do que, numa visão geral, conhecemos sobre as religiões de matriz africana. Primeiramente convém dizer que o Candomblé é uma religião brasileira. Uma reexpressão de uma religião africana e, por isso, falamos de Matriz africana, mas nunca uma mera cópia. O candomblé um elemento importante quando falamos de africanidades. Por isso, quem vai para a África hoje reconhece semelhanças e diferenças. Num geral, o Candomblé de Ketu é mais conhecido, mas não é o único no Brasil. Temos, ainda, as nações Angola e Jejê. Também no campo acadêmico Angola é uma nação pouco pesquisada (PREVITALLI, 2011, p.1; ADOLFO, s/d, p. 1). O Candomblé de Angola tem sua origem nos negros bantos, “chegados ao Brasil. Procediam, principalmente, de Angola, do Congo, de Benguela, de Cabinda, de Mossamedes, na Africa Ocidental, e de 165 Saudação comum entre alguns praticantes de religiões de matriz africana. Expressa o desejo de benção diante da diversidade entre elas. Mukui é uma expressão bantu. A resposta seria MukuiNZamby (Deus te abençoe). Kolofé é palavra mais comum na nação Jejê, também usada no candomblé de Ketu e na Umbanda. Motumbá é uma expressão iorubá. 166 Candomblés da Bahia de Edison Carneiro, Candomblés de São Paulo de Reginaldo Prandi. 216 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Moçambique e do Quelimane, na Contra Costa” (CARNEIRO, 1981, p. 126), enquanto Ketu se baseia na experiência religiosa de vários que vieram da região onde hoje é a Nigéria, os Iorubás; mas temos no Brasil, também, a nação Jejê que vem da região de Dahomé. Na verdade a própria expressão Jejê quer dizer forasteiro e vem da maneira como os Iorubás chamam os povos que estavam mais ao leste. Os bantos são o primeiro grupo a chegar ao Brasil em 1580. Foram escravizados e destinados ao trabalho em áreas rurais, por isso tiveram mais contato com os indígenas. Os Jejê são o segundo e, por último, chegaram os Iorubás. Aproximando-nos da origem e da experiência É um fato que as religiões de matriz bantu, principalmente a Umbanda e o Candomblé Congo/Angola, têm assimilado de forma acentuada os elementos de matriz iorubana (ADOLFO, s/d, p. 1). O Candomblé é uma religião baseada na ancestralidade, por isso podemos dizer que o carismático é um ancestral. Talvez fosse mais apropriado dizer que são descendentes de africanos que fazem sua experiência do sagrado em solo brasileiro buscando, a partir do que estava à disposição aqui, reconstruir uma experiência que deita raízes na vivência do sagrado feita pelos bantus, ainda na África. Esta vivência é marcada pela importância da tribo, dos mais velhos e da relação com a natureza. Este ancestral fez – estes ancestrais fizeram – a experiência de entender o universo como um cosmos. A reconstrução da religião, no Brasil, é uma tentativa de reconstruir uma cosmogonia. Nesta tradição religiosa imagina-se que, para que todo o universo exista, é necessário um sustentáculo, uma energia, algo que dá possibilidade à existência. A isso se deu o nome de Axé ou ngunsu167. Tudo, para existir, tem que ter axé: as pedras, o vento, a planta, os animais e também os seres humanos. Ele é a energia vital pela qual tudo, que existe, veio à existência. É a potência sem a qual nada pode existir. 167 Como o candomblé de Angola assimilou muito elementos da nação Ketu e a própria casa investigada mostra estes traços sincréticos. Em vários pontos da pesquisa traremos a perspectiva da pesquisa, contudo tomaremos por base o que foi colhido na própria casa visitada. 217 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Para nos comunicar o axé, Mzambi (para os bantus) ou Olorum (para os Iorubás), nos deu os orixás ou Inquesis (para os bantus). Eles são ancestrais das pessoas que foram encarregados de guiá-los: ser “Ori-xá”, donos da cabeça. Ancestros que regem a vida de seus filhos com a incumbência de comunicar o axé. São princípios da natureza divinizados que expressam as potências vitais: o vento, o trovão, as folhas, a terra, os metais, a água salgada, a água doce. Mas expressam, também, dimensões da humanidade: a ternura, a maternidade, a sabedoria, a bravura, a irreverência, as técnicas, a perícia. O transe, as oferendas, a iniciação tudo ganha seu sentido como lugar/momento de comunicar o axé. O Sagrado e os Mitos O Candomblé tem uma atmosfera que transpira o sagrado. Estamos diante de energias vitais, ancestrais e cosmológicas. Ao ter contato com um terreiro de Candomblé se vivencia o que, como afirma Otto (1985) “a religião não se esgota nos enunciados racionais” (1985, p. 36). Nele fica claro o sentimento de dependência absoluta e de mysterium tremendum (OTTO, 1985, p. 44). Um sentimento que mistura medo, fascínio e reverência (OTTO, 1985, p. 47). Diante do Orixá o Yaô168 ou Abiã169se reconhece criatura, pó, diante da divina majestade. O que causa um “sentimento subjetivo de ‘dependência absoluta’ pressupõe uma sensação de superioridade (e inacessibilidade) absoluta do numinoso” (OTTO, 1985, p. 43), que desembocará numa ‘humildade religiosa” (OTTO, 1985, p 52). Afinal, é esta entidade que guia minha vida, rege minha cabeça. Devo amá-la, reverenciá-la, cuidar dela. O candomblecista, enquanto pessoa religiosa, marca o lugar como sagrado; para ele, o espaço não é todo igual. Tem intensidades diferentes. Um terreiro é um lugar denso de significado. Assim, a emersão do sagrado faz desencadear um território qualitativamente diferente. Constitui sinais que “introduzem um elemento absoluto e põem fim à relatividade e à confusão” (ELIADE, 1992, p. 26). Desta forma, o Candomblé também reconhece “lugares” de comunicação do axé. Dentro do Candomblé é notório o desejo do homem religioso de 168 Iniciado no candomblé. Numa tradução mais literal no Iorubá Yaô quer dizer esposa. Alguém que frequenta o candomblé, mas ainda não é iniciado. 169 218 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul viver no centro do mundo (ELIADE, 1992, p. 22). O que é um terreiro, uma roça, se não um espaço consagrado (ELIADE, 1992, p. 27)? O sagrado se manifesta nos elementos da natureza. Uma expressão comum nas religiões de matriz africana manifesta bem esta experiência: “Sem folha não há orixá”. Este sagrado se comunica de geração para geração nas narrativas mitológicas. No mito, o povo do Candomblé, como toda comunidade crente, expressa seu ethos. Os etnólogos defendem que o mito é uma história verdadeira, “tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar” (ELIADE, 1972, p. 8). Os mitos primitivos nos fornecem dados da realidade primeva daquela cultura. Eles se constituem em documentos vivos. Ainda mais, numa religião marcada pela oralidade, como o Candomblé. Os mitos são narrativas que nos reportam à África nos tempos primordiais, que contam o princípio do mundo. A origem dos ancestrais, pela experiência do sincretismo, também falam de entidades que têm sua origem no Brasil, tais com pretos velhos, caboclos, marinheiros, pombo giras. Narram “como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir” (ELIADE, 1992, p. 11). Como, a partir de Olorum e dos Orixás, tudo que existe veio à existência. Como no nosso caso, em especifico, os orixás. Os mitos nos falam das origens, “de todo os acontecimentos primordiais em consequência dos quais o homem se converteu no que é hoje (...) assim como o homem moderno se considera constituído pela História, o homem das sociedades arcaicas se proclama o resultado de um certo numero de eventos míticos” (ELIADE, 1972, p. 16). “Aprende-se não somente como as coisas vieram à existência, mas também onde encontrá-las e como fazer com que reapareçam quando desaparecerem” (ELIADE, 1972, p. 8). Assim, eles vão dar sentido aos símbolos, gestos, costumes. Também ajudam um “filho de santo” a entender sua personalidade, as outras pessoas, a vida. Estes mitos nos explicam quem 219 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul são os orixás, quem somos nós, o porquê de elementos e vestimentas, o processo de feitura. Como é comum em muitas religiões, existem mitos que falam sobre símbolo, festas, e danças. Símbolos e Ritos Os símbolos são um importante meio de comunicação (ROCHER, 1971, p. 161). Sendo eles uma coisa que evoca outra, é algo que nos remete a uma realidade maior do que eles são. Já que qualquer religião é lugar de uma experiência do sagrado compartilhada, os símbolos e ritos são um elemento imprescindível para que isso se dê, quaisquer que sejam eles. Em se tratando mais especificamente da experiência de sagrado que constituiu as religiões de matriz africana, a religião não se pode configurar sem símbolos. A coletividade para se concretizar necessita de símbolos que ajudem a constituir o grupo a olhos vistos. Eles provocam e alimentam o sentimento de pertença. Podem ser elementos, atividades, datas, canções; ajudam a construir coesão e familiaridade. Eles “servem para concretizar, tornar visuais e tangíveis realidades abstratas, mentais ou morais, da sociedade. Contribuem desse modo para lembrar e manter os sentimentos de pertença, para suscitar ou assegurar a participação adequada dos membros, segundo a posição e o papel que cada um ocupa, para manter a ‘ordem social natural’ e a solidariedade que ele implica” (ROCHER, 1971, p. 168). A riqueza simbólica tem muitas facetas (expressões): fios de conta, os elementos dos assentamentos, as ferramentas dos orixás, as folhas, as cores, as imagens, os elementos de vestuário, as comidas. São traços simbólicos que constituem o Candomblé de Angola. Devido ao forte sincretismo que marca a nação angola ao falar de seus símbolos, inevitavelmente abordaremos alguns símbolos seja da umbanda ou do catolicismo, bem como elementos da Nação Ketu. Por isso, imagens de santos católicos, ferramentas dos orixás, folhas, cores, velas, roupas de orixás, assentamentos vão trazer algum elementos típicos de Angola, mas também do catolicismo popular e de outras nações. 220 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul O rito é um elemento presente nas várias culturas. Como diz Cazeneuve, “uma sociedade desprovida de qualquer ritual seria uma anomalia” (s/d, p. 9). Um elemento fundamental no rito é certa constância, certa repetição. Por isso, nele encontramos traços da sociedade, por vezes num estado mais próximo do original. “O rito é um ato cuja eficácia (real e pretendida) não se esgota na ligação empírica das causas e efeitos” (CAZENEUVE, s/d, p. 13). Ele nos liga com o mundo que vai além do empírico. No Candomblé esta constância se nomeia preceito. Como em outras religiões, no Candomblé o rito é a atualização de um mito. Nele se vivencia no hoje da história a reverência necessária a exu (padê de exu), as peripécias nas quais se envolveu Oxalá (Águas de Oxalá), as batalhas de Ogum, Oxum se banhando no rio. Os ritos expressam, de forma plástica, o mito. O Xirê é um dos mais significativos do Candomblé onde a dança de cada orixá conta como numa peça de teatro ou uma ópera, seus mitos. Ele torna presente o que expressa. De alguma forma os ritos nos trazem até a eternidade. Assim, tem uma função sintética. “O rito tem como objetivo essencial levar os seres e as coisas a comunicarem entre si, segundo regras codificadas” (RIVIÈRE, 1996, p. 83). Todo rito supõem codificações. Neles há sempre uma mensagem para ser comunicada. Por este motivo tem uma função denotativa, expressiva, conativa, fática e metalinguística. O rito constrói conexão. Garante continuidade. Reflete e legitima as relações constituídas. Quando falamos em ritos profanos, falamos das relações sociais. De um mecanismo que renova as mesmas. Por exemplo, o rito de saldar o zelador da casa, os mais velhos de santo e os lugares do axé mostram uma organização social. “O componente semântico do rito (quais símbolos são acionados?) remete a um componente gnosiológico (a quais crenças ele se refere?) e axiológico (quais valores são revelados aí?) sendo que os valores só adquirem tal estatuto pelo fato de se basearem na crença” (RIVIÈRE, 1996, p. 93). 221 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Contudo, nele (no rito) reside certa ambiguidade. No aspecto social é simultaneamente lugar de reunião, delegação e reciprocidade imediata. No campo formal manifesta tensões: rigidez x liberdade e real x ficção. Assim está repleto de paradoxos. Tem, da mesma forma, um aspecto lúdico. “Senão com a diversão, pelo menos com o desempenho de papéis diversificados (...) implica instruções, regras definidas e específicas como de respeitá-las. A incerteza é limitada pela carga do controle e da regularidade” (RIVIÈRE, 1996, p. 103). Ao olhar um toque de Candomblé vemos como a seriedade da reverência e a alegria da festa se misturam. A própria expressão Xirê, que quer dizer festa, nos sinaliza isso. Os ancestrais e seus filhos fazem festa juntos. As danças animam e alegram. “Para que os símbolos sejam significativos, os sujeitos a quem eles se dirigem têm que conhecer e aprender esse código” (ROCHER, 1971, p. 157). Esta aprendizagem, no Candomblé, se dá no processo de iniciação onde o abyã vai aprender os mitos de seu orixá e os preceitos básicos do Candomblé. “Na realidade, todas as hierarquias sociais são acompanhadas de um simbolismo muito rico, como se fosse particularmente importante alardear as distinções de posição e de poder.” (ROCHER, 1971, p. 172). Desta forma vemos isso no Candomblé angola seja no vestuário, seja no portar o adja170, na cadeira de Besen171. Institucionalização da experiência religiosa O processo de institucionalização do Candomblé brasileiro se dá, como afirma O’Dea (1969, p. 56), numa crise de continuidade. Um processo de rotinização do carisma onde os negros bantus se esforçaram em criar maneiras de ainda experienciar sua vivência do sagrado já em terras brasileiras, mesmo que sob novas condições. Falar da institucionalização da religião é um desafio já que boa parte dos autores da referência bibliográfica da nossa disciplina tomam por base o cristianismo (O’DEA, 1969; WEBER, 1991; BOURDIEU, 1998). Enfrentando este desafio é possível dizer também, sobre o Candomblé Angola, que existem três elementos importantes no processo de 170 Uma espécie de sineta tocada pelas pessoas de autoridade da casa durante a cerimonia de culto. Cadeira tem o nome do Orixá que rege a casa. “De Besen por que a casa que pesquisamos é de Oxumarê. 171 222 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul institucionalização: culto, convicções e organização (O’DEA, 1969, p. 59-75). Lembrando que um grupo faz o culto e o culto configura o grupo, pois o culto é um ato social (O’DEA, 1969, p. 61). A padronização do culto, a seleção das convicções fundamentais e a maneira de se organizar que configuram o que num geral podemos chamar de Candomblé Angola. A maneira como o Candomblé se organiza com a possibilidade de, ao se fazer sete anos iniciado, se abrir uma nova casa cria a possibilidade de crescimento e institucionalização. Tornou viável a continuidade institucional, pois como afirmam as ciências sociais a constituição de um grupo clerical é também um fator decisivo. Algumas pesquisas também buscam delinear a partir de que casas de candomblé e pessoas a nação angola se expandiu pelo Brasil (ADOLFO, s/d, p. 2-4; CARNEIRO, 1981, p. 133.). O Candomblé se organiza a partir de casas, ilês autônomos. Estes são dirigidos por um babalorixá, que é alguém que já tem mais de sete anos de iniciado. As casas se reconhecem entre si, mas não há uma estrutura central. Quando se organiza uma federação, esta é uma estrutura de entre-ajuda, mas não de coordenação. Dentro da casa há uma hierarquia constituída não somente pelas funções, mas também pelo tempo de iniciado. Esta hierarquia se deixa ver nitidamente no xirê (roda onde dançam os iniciados). Ela é organizada a partir do tempo de santo. Também quando inicia o toque para um orixá, todos os filhos deste orixá saúdam as pessoas que coordenam a casa. Outro fato que expressa as relações institucionalizadas é o lugar que cada um ocupa na hora de se alimentar no terreiro. A Equede172, o Babalorixá e o Ogam comem na mesma mesa reservada às autoridades e com colher diferente dos Yaôs e Abiam que comem separados em com a mão. Entre os agentes religiosos temos o babalorixá ou a ialorixá, a iaquequerê173, a equede, e os ogans174, que são os principais. A localização na casa e a maneira de tratamento tem seu significado. No Candomblé a cadeira do líder é reverenciada, mostrando a importância da sua posição. À luz do pensamento de Bourdieu, podemos classificar o babalorixá e a ialorixá de sacerdotes. Sendo que, em algumas situações, também é possível 172 A mulher que não incorpora e serve os orixás. Quando o zelador da casa não esta presente é ela que zela pelos filhos de santo. 174 Existem vários tipos de Ogan. Os de corte, colabora no sacrifício dos animais, Ogan de canto, toca e puxa o canto e Ogan virante este incorpora de um em um ano. 173 223 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul entrever a postura de mago em certas lideranças do Candomblé. A figura do profeta não é tão comum. Um pouco do Ilê Axé Oxumarê Após nos aproximarmos do fenômeno religioso no Candomblé dialogando com alguns autores abordados vamos buscar retratar o observado numa visita feita a um terreiro de Candomblé Angola durante a pesquisa de campo.A casa estudada se situa no setor Madre Germana 1, no município de Aparecida de Goiânia/GO. Este setor é relativamente novo, a habitação iniciou em 2001. Boa parte da população é de origem baiana e maranhense. O terreiro nasceu em 2002. O Zelador da casa tem 25 anos e foi iniciado com quatorze anos quando deu sua primeira obrigação Trazemos aqui a participação no Catimbó de Preto Velho. Aqui para dar destaque a maneira como a experiência religiosa se expressa plasticamente descrevemos primeiro o espaço físico e depois os dois momentos de culto. Descrição do espaço físico da casa Ao chegar vi um alguidar e uma quartinha em cima da entrada. Ao lado direito de quem entra, no portão, tinha uma “casinha” que parecia ser de Exu. Fui recebido pela mãe do Zelador da casa. Ao chegar ao terreiro que fica nos fundos da casa desta senhora, encontrei quatro pessoas, participantes da casa, que esperavam para a sessão. Estavam à frente de uma cozinha e conversavam informalmente. No lado direito da entrada, perto da porta da cozinha, pude ver uma imagem de Nossa Senhora e outra imagem que eu não consegui reconhecer. Quando foi retirar o pano de cima uma das filhas de santo, que é de Yemanja, disse: “vou descobrir minha mãe”. 224 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Olhei melhor o espaço e reparei um assentamento175 de Exu ao ar livre e ao mesmo tempo vi a casa deste orixá quase em frente ao lugar onde eu estava sentado. Quando o Babalorixá chegou, me apresentou a casa. Na entrada do terreiro como na de várias casas de santo se encontram folhas de Palha da Costa. As casas de santo eram como que cômodos e o terreiro um salão. Um espaço relativamente pequeno. Entrando no terreiro, do lado esquerdo ficava uma entrada para a casa de Exu. Observei as ferramentas, uma imagem e uma cartola vermelha e preta. Ao lado, a casa de Ogum com vários elementos em metal, uma espada. A cor que predominava no espaço era o azul turquesa. Acima dela, uma imagem de São Jorge. Ao lado, a casa de Omulu. Lá dentro tinha um cruzeiro e uma imagem coberta que era de um preto velho. Em cima, uma imagem de São Sebastião. Ao lado, a casa dos caboclos. Em cima, uma imagem coberta, que era de São Francisco. Esta era ladeada por uma imagem de um caboclo de um lado e de outro lado uma imagem de um caboclo e um marinheiro. Ao lado, a casa de ifá, lugar das consultas e do jogo de búzios. Já na frente, a casa de oxalá onde não consegui ver nada. Ao lado, a casa do Ogum da Mãe do Pai de Santo. Entre a Casa de Oxalá e a casa do Ogum da “Pastora” estão dois atabaques. Acima deles, três quadros (Oxum, Logun Edé e Yemanja) e, acima dos quadros, uma imagem de Nossa Senhora. Uma camarinha com os axés dos filhos176 da casa e outro quarto onde as pessoas são iniciadas. Entre estes dois quartos existe as cadeira de quem zela pela casa. Eram três cadeiras. Na parede, quadros representando vários orixás: Oxum, Ogum, Xangô e Oxumaré. Também ao lado se encontrava uma montagem, na parede, uma série de fotos do zelador da casa dançando incorporado com o Oxumarê. Ao centro existia uma coluna. Na parte superior da mesma tinha uma espécie de prateleira com uma tigela, com o “tempo” e embaixo o fundamento da casa. Abaixo, adjás, vaso com plantas, um pilão e outros elementos. Todas as imagens de santos católicos estavam cobertas com pano, com exceção de São José. Numa mesa, na lateral, com um pano amarelo. Descrição da festa 175 Assentamento de Orixá é o nome que se dá a representação material e pessoal de um orixá composta por apetrechos ou fetiches de um determinado orixá. No caso especifico narrado era um tridente de ferro. 176 Assentamento dos orixás aos quais os filhos da casa foram iniciados. 225 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul A vestimenta das mulheres iniciadas era de estilo bahiana. Os homens se vestiam de branco, mas alguns usavam bermudas. Várias velas foram ascendidas no espaço junto às imagens de santo, no meio da casa e na entrada das casas de Obaluaye, Ogun e Caboclos. O ritual começou com um dos filhos de santo, que parecia ser importante na hierarquia da casa, vinha com um pequeno turíbulo incensando cada um dos presentes e cada um dos lugares. Enquanto isso se cantava ao som dos atabaques. Em seguida, cantou-se para Exu em iorubá. Depois se ofereceu o padê de Exu: Uma farofa com azeite de dendê num alguidar de barro 177. Posteriormente, começou a se cantar em iorubá, quando todos, a começar pelos mais velhos no santo, iam saudando o axé da casa “batendo cabeça”178 para: a cadeira de besen, o Zelador da casa, os Ogans e atabaques, a porta da entrada e o meio do salão (fundamento da casa). Depois cada filho de santo ia, cumprimentando o babalorixá e a todos que eram mais velhos, no santo na casa. Os cantos ainda eram em iorubá. A ordem da roda é por tempo de iniciação. Os que pareciam ser os três primeiros na hierarquia da casa vinham tocando um adjá. Logo após, começou a se cantar para preto velho, em português. O Pai de Santo ia puxando a maior parte dos pontos cantados. Começava com a saudação: “adorei as almas”. Na medida em que os pretos velhos iam incorporando em seus “cavalos” recebiam uma bengala (que era um galho seco de árvore), uma vela que era acesa e um copo com água que ficavam aos seus pés ou próxima, um cigarro de palha; alguns preferiram e receberam um cachimbo. Eles também recebiam uma cuia ou copo com café. Alguns tocos de madeira foram colocados no salão para que eles se sentassem. Um preto velho disse que não precisava deste luxo. A luz da casa foi apagada e os pretos velhos começaram a dar consultas e passes para os presentes que quisessem. Cinco pessoas incorporaram “Pretos Velhos”. Assim que entravam em transe, eles passavam a caminhar mais devagar, encurvadas como se tivessem muita idade; a voz também 177 Dependendo da intenção e da tradição o padê de exu pode usar elementos diferentes: tais como no lugar do azeite de dendê se usar água ou mel. Há tradições que também oferecem um fígado cru apimentado. 178 Saudação típica das religiões de matriz africana onde a pessoa se prostra diante de alguém ou algum lugar. 226 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul mudava. Alguns ficavam pronunciando orações quase que o tempo todo, tais como: “salve mzambi, salve nossa senhora do desterro”. Durante a noite algumas pessoas que incorporavam orixás foram levadas para a camarinha e lá “viraram” no erê. Ao todo, foram três. Estes brincavam pela casa como se fossem crianças. Dois deles chamavam algumas pessoas para falar com os Pretos Velhos. Nas consultas, os Pretos Velhos rezavam sobre as pessoas falando, dando passes com as mãos e soprando a fumaça do cigarro de palha ou do cachimbo. Ensinavam orações, davam conselhos, propunham “amuletos” para “segurança”. Considerações Finais Aproximar-se das religiões de matriz africana é deparar-se com uma experiência tangível do sagrado. Para quem crê, ela se deixa sentir no toque dos atabaques, nos cheiros, nas formas, na vitalidade dos gestos e das cores. Em tudo isso há uma profissão de fé. Neste artigo buscamos, num dialogo entre a bibliografia estudada na disciplina Fenômeno Religioso e outras fontes sobre o Candomblé, achegar-nos à experiência de uma comunidade de terreiro. Partindo do lugar do cientista da religião, olhar esta experiência para reconhecer como ela é vivida pelo povo do santo, de modo geral, e como é configurada para pessoas que vivem na periferia da região metropolitana de Goiânia. O candomblé Angola nos trás a especificidade de ser uma religião marcada pela ancestralidade onde a preservação dos elementos vindos de África e o diálogo como as expressões religiosas que os povos bantus encontraram no Brasil (religiões indígenas e catolicismo) testemunham o vigor da experiência do sagrado. Referências Bibliográficas ADOLFO, Sergio Paulo. Candomblé bantu na pós- modernidade.<http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf/st4/Adolfo,%20Sergio%20Paulo.pdf> acesso em 13 de abril de 2014. 227 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul BERKENBROCK. Volney J. A experiência dos Orixás: Um estudo sobre experiência religiosa no Candomblé. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1999. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1998. CARNEIRO, Edison. Religiões Negras: notas de etnografia religiosa; Negros Bantos: notas de etnografia religiosa e de folclore. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. CAZENEUVE, Jean. Sociologia do rito. Porto: Rès, s/d. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. ______. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. O’DEA, Thomas F. Sociologia da religião. São Paulo: Pioneira, 1969. OTTO, Rudolf. O sagrado. 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Entendemos que por se tratar de um documento judicial datado durante o reinado da Dona Maria I (1777-1816), pode-se pensar através da fonte, como funcionavam os mecanismos de Justiça, como eram as linguagens e pensamentos jurídicos dos doutos da época, como esses mesmos magistrados interpretavam a figura indígena e, principalmente, como os índios, enquanto agentes históricos, puderam usufruir do “costume da justiça” e obter suas reivindicações frente às espoliações do uso de suas terras, feita por moradores. Num plano mais geral, referente aos aldeamentos do Rio de Janeiro do final do século XVIII, também podemos pensar em outras grandes questões como: (i) a generalidade das contendas judiciais envolvendo índios e moradores acerca da questão de terras (MARIA CELESTINO); (ii) como a máquina da Justiça pôde absorver e responder aos índios, concedente as suas petições; (iii) uma hipótese de se pensar de qual forma a Coroa, representada pelas mais diversas instâncias judiciais, pôs em prática uma orientação geral para as políticas indigenistas; (iv) confrontação entre uma política imperial aos índios do período das Reformas Pombalinas e do reinado mariano. 179 Bolsista PIBIC, Discente do Curso de História, ICHS/UFRRJ. 229 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Metodologia Por se tratar de uma fonte judicial, devemos observar com muito cuidado os pressupostos escritos na documentação. Nos processos já apontados por Keila Grinberg que o historiador precisa ter em sua heurística, quando relacionado aos documentos judiciais, devemos nos ater ao contexto pelo qual o material é produzido. Portanto, para entender as linguagens, as colocações e o proceder, temos que nos remeter a própria epistemologia jurídica da época. Conceber que tudo que é produzido numa época, sem dúvida é fruto da mesma época que lhe produziu. Sendo assim, não podemos nos indagar a essas fontes da mesma forma que encaramos documentos judiciais de hoje em dia, pois senão nos acometeríamos um anacronismo. Para isso, pretendo estudar como funcionava a Justiça e os seus pressupostos. Levando em conta a produção vasta sobre essa temática, destaco como fundamental em meu trabalho, a contribuição de Antônio Manuel Hespanha. No seu livro Imbecillitas, o autor esboça como funcionava os mecanismos da Justiça para atender populações consideradas merecedoras de uma legislação à parte, como no caso analisado, os indígenas. Esse historiador nos mostra que numa sociedade de Antigo Regime boa parte das categorias sociais eram englobada às leis, e que para cada grupo social havia uma legislação específica. Não foge ao caso indígena, onde estes tinham direitos específicos, assim como deveres. Sendo assim, a pesquisa já vem sendo desenvolvida, através da leitura e paleografia situada no Arquivo Nacional. Através da produção que está em andamento, juntamente com os autores citados, pretendo aprofundar e problematizar a fonte. Essa documentação tem por volta de 400 páginas, onde há uma rica descrição do pensamento jurídico da época, assim como auxilia-nos a ver como funcionava a dinâmica jurídica da América Portuguesa, tendo em vista que o caso é discutido e escrito na capital do Estado do Brasil e que mais tarde viria a se tornar capital do Império. Revisão historiográfica 230 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Pude constatar, já com a pesquisa em andamento, que poucos historiadores trataram sobre a fonte com a qual pesquiso. Porém, mesmo com poucas “referências bibliográficas”, questões importantes da historiografia podem ser trazidas para o debate que, aqui, pretendo suscitar. Sobretudo, a produção historiográfica mais recente, que tem enfatizado o papel do índio na sociedade colonial. Observando mais de perto a fonte e o caso, vemos que houve um “silêncio” que durou por mais de um século por parte dos pesquisadores acerca dessa documentação judicial. O primeiro historiador a tratar diretamente com a mesma fonte a qual trabalho foi Joaquim Noberto, que publicou pela Revista do IHGB em 1854 o seu escrito Memória histórica e documentada das Aldeias de Índios da Província do Rio de Janeiro. Apesar desse autor não ser uma bibliografia pertinente para meu tema e meus objetivos, acho interessante situarmos algumas peculiaridades do escrito que nos faz pensar o papel do índio no decorrer de nossa historiografia. Ao longo da obra, Noberto evidencia o aspecto degradante e decadente da cultura indígena, num processo já destacado por Manuel Salgado Guimarães. Nessa perspectiva, os índios eram vistos como seres que caminhavam ao fim de sua cultura. Portanto, nesse contexto, a documentação a qual paleografo, serviu de “matéria-prima” para o discurso desmoralizante sobre os indígenas, sobretudo, por parte dos intelectuais do IHGB, tendo em vista que vemos ao longo da fonte, os advogados, tanto por parte de Pedro Alexandre Galvão quanto dos próprios índios de Mangaratiba, se utilizarem de um linguajar que produz discurso sobre a própria natureza indígena. Porém como veremos, esse discurso estava engendrado numa lógica de Antigo Regime, muito diferente do propósito a qual os escritores dezenovecentistas a utilizavam. Já em 2002, Carmen Alveal realiza a defesa de seu mestrado sobre a mesma documentação a qual trabalho. Nesse trabalho, a autora expõe algumas questões que me ajudam a compreender minha pesquisa. Primeiramente, podemos pensar na sua contribuição de “resgaste” histórico, no sentido de que sua dissertação trouxe novamente a fonte à superfície da historiografia, trançando uma nova interpretação, muito diferente da percepção de Joaquim Noberto. Ao longo de seu escrito, a autora nos faz pensar a Aldeia de Mangaratiba como um lugar, que ao longo dos séculos XVII e XVIII, teve bastante 231 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul movimentação, tanto no aspecto econômico da região, quanto social. Nesse trabalho, Alveal nos mostra a implementação do cultivo da cana-de-açúcar e sua transformação em aguardente, fato que se evidencia na fonte, pois o suplicado (contra quem os índios movem a ação judicial) possuía um engenho de cachaça. Uma outra contribuição dessa autora, seria a pensar a Aldeia de Mangaratiba como um espaço que não foi administrado pelos Jesuítas. Ao que parece, como aponta a historiadora, a administração coube ao Visconde de Asseca (Martim Correia de Sá). Por isso, ela nos mostra como foram intensas as transações entre moradores (incluindo índios) de Mangaratiba e da cidade do Rio de Janeiro. Aqui faço uma indagação. Podemos reparar no longo tempo que houve um “não-dito” por parte da historiografia. Após o ano de 1854, ainda não encontrei nenhum trabalho científico que se debruça sobre a fonte, pelo menos até o ano de 2002. Ou seja, se passaram 148 anos sem que nenhum historiador pesquisasse essa fonte! Podemos pensar nesse longo “desinteresse” por parte da historiografia através das próprias indagações levantadas por Maria Regina Celestino de Almeida. Inicialmente, como já dito, o círculo de intelectuais do IHGB visava afirmar um discurso sobre os indígenas, sendo assim, para conseguir tal feito, se utilizavam das fontes para comprovarem suas ambições. Nesse momento, então, os índios eram vistos como pessoas miseráveis, com hábitos não convencionais à civilização e entregue aos vícios. Já ao longo do século XX, a historiografia, digamos, mais “culturalista”, sempre tendeu a ver os índios como alheio aos próprios interesses, de forma, que sempre agiam ora por mera reação, ora movidos por interesses de outros agentes da sociedade colonial (missionários, moradores ou Coroa). Tendo uma epistemologia que via o indígena como um “fantoche” dos interesses dos brancos, obviamente que um caso, como o que envolve os índios de Mangaratiba, seria altamente descartável, pois não atenderia a seus pressupostos. Como exigir de uma historiografia que, na época, estava mais preocupada em demonstrar o avanço do “capitalismo” e seus efeitos drásticos sobre a população indígena? Como seria problemático para àquelas certezas “existir” um caso, onde os índios, enfrentam judicialmente um outro, movido pelos seus próprios interesses, ainda por cima conseguindo obter a reinvindicação requisitada? Essas perguntas, nos ajudam a entender o porquê de haver esse “silêncio” por vários anos por parte da historiografia. 232 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Deixando de lado essa questão, devemos evidenciar como a recente historiografia tem tratado a temática. No final do século XX, outras abordagens estão sendo indagadas pelos historiadores. Com cada vez mais diálogos entre outras áreas do conhecimento como sociologia e principalmente antropologia, têm-se ampliado os horizontes dos pesquisadores, que muitas vezes se utilizando de fontes já trabalhadas, a partir de novas questões e problemáticas chegam a outras conclusões. Nesse processo, sem dúvida, a temática indígena não escapa. Como já dito, em outro processo, os índios eram encarados como coadjuvantes do movimento histórico, sempre agindo, ou melhor, reagindo de acordo com estímulos, nunca porém evidenciados por suas próprias questões e ambições. Nas novas abordagens trazidas pelas recentes interações com outros campos de saberes, têm-se destacado o papel histórico de protagonistas ao longo de todo período, desde o período da América Portuguesa até o Brasil. Nessa perspectiva, a epistemologia da historiografia tem cada vez mais lançado seu olhar para casos indígenas, não partindo mais do pressuposto que estavam obedecendo aos interesses alheios, antes, agindo por suas próprias questões. Obviamente, essa historiografia não é míope. Não nega a violência aplacada contra povos nativos, que podemos afirmar que foi um verdadeiro etnocídio, nem tampouco a situação subalterna e marginalizada que grande parte dos índios viviam no cotidiano de suas relações ao longo do passado. Porém, ao invés de nos lamentarmos do que deveria ter acontecido, devemos compreender o homem e a mulher indígena de acordo com a época, e ver sua possibilidade de articulação para obter seus direitos, muitas das vezes já prescritos na legislação. Para o estudo do caso, essa historiografia me contempla, no sentindo de compreender as relações envolvendo as possibilidades de ação dos indígenas, no caso, judicialmente. Nessa perspectiva, Maria Regina Celestino em sua obra Metamorfoses Indígenas – Identidade e Cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro, abre várias chaves de compreensões do cotidiano do indígena aldeado. Pela pesquisa se tratar de uma aldeia de Mangaratiba, esse livro é fundamental para entender a questão da identidade indígena vinculadas às questões políticas e sociais do período colonial. Nesse sentido, Celestino contribui muito com a pesquisa, já que uma de suas principais perspectivas está em observar os aldeamentos indígenas, não como meros espaços dominados 233 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul por brancos (seja sob administração jesuítica, ou seja sob administração de moradores), mas como um lugar que havia espaço para a articulação dos índios, a fim de que eles próprios pudessem aplicar seus interesses na correlação de forças políticas que envolviam os aldeamentos. Sendo assim, sua abordagem não encara os índios aldeados como apenas dominados subalternos, antes, além de estarem nessa subposição, também conseguiam por diversos meios se organizar e articular suas reivindicações e seus direitos estabelecidos. Na análise de quase três séculos que a autora faz, ela observa não apenas mecanismos de se defenderem dos outros atores políticos da colônia, mas também conseguiam barganhar conquistas e avanços importantes numa sociedade de antigo regime, que vale lembrar, onde a maioria da população nem livre era. Outro autor que contribui muito ao debate trazido pela fonte a qual trabalho é Antônio Manuel Hespanha. Esse historiador tem uma excelente contribuição ao estudo da sociedade de Antigo Regime, principalmente a portuguesa. Para Hespanha, uma das melhores formas de compreendermos esse tipo de sociedade é olhando para as suas leis e suas justiças. Pois através dela, vemos uma civilização extremamente dividida e planificada, tendo diversas categorias sociais incluídas no seio jurídico do reino lusitano. Havia legislação específica para todos os tipos de pessoas na sociedade: escravos, livres, sacerdotes, mulheres, pessoas com problemas mentais, legisladores, ... e obviamente, os próprios índios. Creio que a contribuição de Hespanha, em seu livro Imbecillias, para o presente caso é a compreensão do lugar jurídico dos índios. Como dito, todas categorias sociais estavam circunscritas na lei, e, para cada uma delas, havia leis específicas, ou seja, também havia o gozo de um determinado direito, mas também havia obrigações a serem cumpridas perante o corpo social. Quando compreendemos a legislação indigenista durante o período colonial, vemos a mesma lógica dita anteriormente: em vários decretos havia o direito, mas também a obrigação. Essa lógica, a qual nos mostra Hespanha, é de extrema importância para a compreensão filosófica da fonte. Pois, entender a utilização do mecanismo judicial por parte dos índios na América Portuguesa é refletir sobre o lugar jurídico desta população. Como nos mostra a documentação pela sua linguagem, me parece que os índios estavam cientes das “obrigações” a serem cumpridas por seus papéis de índios na sociedade colonial, basta vermos muito deles se referirem honrosamente às demais autoridades da Justiça e do Reino, e que principalmente, 234 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul argumentavam da importância prática da existência dos aldeamentos no propósito colonizador da Coroa. Ao passo, que tinham conhecimento dos deveres, os índios de Mangaratiba também tinham de seus direitos. Tanto é, que por conhecer seus direitos, estes utilizavam a Justiça para poder ganhar as suas causas cotidianas. No caso da fonte, nos é mostrado um suposto “foreiro” que se assenta em terras indígenas, tentando adquirir legalmente sua sesmaria. Porém os “nativos” de Mangaratiba tentam impedir isto, alegando que a posse do território adquirido por Pedro Alexandre seria dos próprios índios. Tendo em vista a jurisdição específica para cada categoria social, vemos que o direito básico dos índios nas políticas da Coroa durante o período colonial eram: liberdade e terras. Como dito, numa sociedade de Antigo Regime, esses dois direitos eram muito caros à população geral, já que a maioria era pobre e escrava. Com essa premissa, os índios da freguesia de Mangaratiba buscaram junto à Coroa e à Justiça seu direito resguardado pela própria lei. Não quero dizer, que assim como hoje, o que está escrito na lei é cumprido, ou que acontecesse na vida real cotidiana. Porém, tendo seu direito estabelecido na legislação, a peleja para conseguir resguardar suas conquistas ou adquirir novas, há um caminho: a utilização do recurso judicial, direito prescrito para todos os súditos da Corte. Problemática Na perspectiva da mais recente historiografia, na qual vêm abordando temáticas antes impensáveis, pretendo trabalhar com a questão da identidade indígena no caso judicial. Já sendo evidenciado por Maria Regina Celestino de Almeida, o debate sobre essa temática ganha cada vez mais espaço nas problematizações dos historiadores. Por muito tempo se pensou, e de certa forma ainda perdura no senso comum, a ideia de que após 1500, os índios foram cada vez mais perdendo espaço no seu próprio território natural. Estudos recentes, nos apontam que apesar de ter havido um massacre, os indígenas faziam alianças e guerras com quem lhes convinha, visto do ponto de vista de seus próprios interesses. Por exemplo, quando pensamos na conquista da Guanabara, seria imprescindível a vitória portuguesa sem a aliança com os tememinós. Subsequentemente, esse “pacto” tanto beneficiava os lusitanos, quanto aos próprios nativos, visto que décadas antes foram expulsos 235 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul de seu território pelos tamoios. Sendo a oportunidade da guerra muito grata às próprios pretensões, de se vingarem da expulsão e voltarem para suas terras de origem. Portanto, cada vez mais, nos espaços acadêmicos, a perspectiva indígena tem dado outro tom aos velhos debates. A questão dos índios aldeados, também tem ganhado outros interpretações. Antes, os espaços dos aldeamentos eram vistos como uma prática de “aculturação” – como se fosse possível aculturar um humano – atendendo aos interesses únicos e exclusivos do dominador. Agora, com as recentes abordagens, esse mesmo espaço é visto como um local de encontro de diversas culturas (pois nas aldeias conviviam índios de diversas tribos), que em condição de súditos do Rei português, souberam se utilizar de todos direitos que lhes cabiam. Identidades e práticas culturais vão sendo formadas e sendo modificadas dentro desse ambiente. Obviamente, a condição de aldeado impunha certos deveres, como disponibilidade para mãode-obra (mal remunerada por sinal), porém, também tinham seus direitos. Por meio dessa questão, que pretendo lançar o debate, assimilando a identidade dos índios da Aldeia de Mangaratiba, juntamente com seus direitos prescritos. Tendo por partida esse ponto de vista, o contexto político-indigenista da época do processo nos dá as ferramentas para demonstrar a complexidade da problemática. O processo situa-se entre os anos de 1785 à 1798, ou seja, durante o período do reinado de D. Maria. Durante esse período, ainda estava em vigor o Diretório dos Índios (ou, Diretório Pombalino) como norteador das políticas indigenistas da Coroa portuguesa. Com essa questão, pretendo problematizar a lacuna existente entre o que é previsto pelas leis e o que é praticado na vida real. Ou seja, questionar uma visão retilínea do que foi o Diretório, e, mostrar até que ponto os seus propósitos foram eficazes ou não, no caso, na Aldeia de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba. Retornando para meados do século XVIII, as Reformas Pombalinas, sem dúvida, modificaram muito as relações internas e externas de Portugal. Sempre cercado por polêmicas, Pombal desde o terremoto de Lisboa (1755) quando foi-lhe outorgado poder, implementou grandes reformas não só no Reino, como nas possessões ultramarinas. Fortemente influenciado pelos pensamentos iluministas, o Marquês visava modernizar a 236 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul administração portuguesa concentrando cada vez mais poderes nas mãos do Rei, D. José I. A América Portuguesa, sendo a principal colônia, também sofreu intensas modificações. Concedente ao tratamento para com as populações indígenas, suas diretrizes podem ser entendidas através do Diretório dos Índios, redigida pelo irmão de Pombal, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sendo primeiramente implementada no Estado do Grão-Pará (1757) e logo após no Estado do Brasil (1758). As ambições traçadas sobre essas leis visavam transformar todos os índios em súditos fiéis do Rei, para que possam, livres dos jesuítas, povoar e explorar economicamente e proteger a vasta região colonial. Portanto, essa medida acabava com qualquer distinção legal entre um indígena e um branco, apesar de haver direitos específicos: como o de possuir terras e ser livre. Direitos esses, em tempos de uma sociedade de Antigo Regime, muito valiosos. Para conseguir dar cabo as ideias, Pombal passou a incentivar cada vez mais o contato entre brancos e índios afim de selarem o fim da “odiosa separação”. Sendo assim, essas medidas podem ser entendidas por assimilacionistas, no sentido de que visava homogeneizar a população livre de todo território português na América. Por isso, supostamente, cada vez mais iria acabar a distinção entre um índio e um branco nos parâmetros tanto legais quanto práticos. Sendo essa política de assimilação vigente para o período do caso analisado, podemos encontrar muitas evidências que contestam o efeito desejado pelo Diretório. Primeiramente, esbarrou-se na vontade dos índios continuarem a se auto intitularem indígenas. Nos fica bem claro, que na representação judicial da Aldeia de Mangaratiba, os “nacionais” continuavam a se apresentar enquanto índios, criando assim uma diferenciação, que nos evidencia a contestação da assimilação. Na medida em que todos tramites são desenvolvidos, observa-se que esse elemento que delimita uma diferença, não apenas surte um efeito discursivo, antes, dialoga na própria forma como a Justiça (juízes, desembargadores e procuradores) lida com os índios de Mangaratiba. Ou seja, mesmo que em termos legais os índios estejam equiparados aos brancos, os homens que fazem a Justiça funcionar não descartam a distinção, que no caso era pleiteada pela parte indígena. Por toda parte da fonte, há uma nítida distinção entre o que é índio e um não índio, entre a aldeia e a freguesia, apesar de “oficialmente” esta prática estar extinta. 237 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Apesar de enfatizar essa diferenciação, creio que como historiador não posso buscar testes de DNA para comprovar uma etnia ou outra. Aliás, a própria fonte nos faz pensar como é porosa a divisão entre um indígena e um morador. É possível ver ao longo das petições, como elementos supostamente “externos” das aldeias estão dentro da própria. Em outras palavras, observa-se a presença de brancos em seus espaços, como também, observa-se a transitoriedade de índios nas freguesias e vilas. Por isso, podemos pensar que a problematização da documentação é essencial para entendermos o papel de um índio na capital do Estado do Brasil, que pouco tempo depois se tornaria a capital do Império Lusitano. Conclusão O processo judicial deixa em evidência a capacidade de ação dos índios. Isso implica que podemos entender os índios como sujeitos históricos no Rio de Janeiro e buscar seus interesses, estratégias, visões de mundo e as relações que criaram com as instituições do Reino, no caso a Justiça. Por meio da Justiça, os índios puderam manifestar suas insatisfações, induzindo Juízes, Ouvidores e os demais oficiais a ouvi-los e até mesmo a atendê-los, movendo a história a partir de seus próprios interesses. Sendo assim, o caso judicial envolvendo os índios de Mangaratiba e Pedro Alexandre Galvão, nos ajuda a pensar que através da identidade indígena e sua subsequente legislação, não só os da dita aldeia mas como de várias outras, puderam requerer seus direitos junto às autoridades judiciais, a fim de que pudessem consolidar suas pretensões e preservar seu acesso à terra. Pensando no contexto do mundo luso-brasílico, as políticas indigenistas da época, sob orientação do que se conhece por Diretório Pombalino, visavam o incentivo a mistura entre indígenas e não-indígenas a fim de que todos se tornassem súditos de um mesmo Rei, num processo em que se tentava homogeneizar a população da Colônia. Porém, essa medida esbarrou na organização dos índios, que como os de Mangaratiba buscavam à Justiça seus direitos específicos na qualidade de pessoas indígenas, preservando assim a suas culturas, hábitos e memórias. Referências Bibliográficas 238 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul ALMEIDA, M. R. C. Política Indigenista e Etnicidade: estratégias indígenas no processo de extinção das Aldeias do Rio de Janeiro, Século XIX. Anuário IEHS, v. sup. 1, p. 219-233, 2007. ALMEIDA,M. R. C. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro. FGV de Bolso – Série História. ARINOS, A. M. F. O índio e a Revolução Francesa: as origens brasileiras da teoria da bondade natural. Rio de Janeiro: Topbooks: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (Org.) . História dos Índios No Brasil. 1. ed. SÃO PAULO: Companhia das Letras, 1992. v. 1. 611p DARCY, R. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 3ª edição. DE ALENCASTRO, L.F. O trato dos viventes - Formação do Brasil no Atlântico Sul Séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Companhia das Letras. FREIRE, J. R. 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Nos últimos anos, cada vez mais autores tem buscado compreender esta experiência colonial e as marcas profundas que ela deixou, especialmente no âmbito cultural. Para isto, diversos conceitos e chaves explicativas foram elaborados no intuito de traduzir estes fenômenos em algo científico. E é a alguns destes diversos conceitos que nos debruçaremos ao longo deste texto para buscar explicar um dos elementos culturais que entendemos ser fruto do que Balandier (1993, p. 114) chama de Situação Colonial: Seja qual for a doutrina adotada, as relações de dominação e de submissão existentes entre a sociedade colonial e a sociedade colonizada caracterizam a situação colonial. E os autores que concentraram sua atenção sobre este aspecto mostram que a dominação política é acompanhada de uma dominação cultural. Um deles pensa que “o problema cultural está intimamente ligado ao problema geral da evolução política e econômica”, que “a influência das culturas europeias” teve como resultado “a opressão do fundo cultural” autóctone. 180 Trabalho vinculado à pesquisa de Doutoramento em História pela UFG, sob orientação do prof. Leandro Mendes Rocha, realizada com licença fornecida pela UEG e bolsa de pesquisa fornecida pela FAPEG. 241 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul No bojo das experiências coloniais, um novo personagem surge no âmbito cultural, mais especificamente no religioso. Trata-se de Exu, divindade de origem Iorubá que, a partir do contato com os europeus, se transfigura em um novo Exu, entidade cultuada nos terreiros de Umbanda, agora não mais como divindade, mas sim como espírito ancestral (Egum). Tal transfiguração é resultado de um longo processo de ressignificação ocorrido no “Novo Mundo”, em que os cultos africanos, quando em contato com o elemento europeu, acabam por sofrerem sua influência, dando origem a um quadro inteiramente novo, impensado e original. A este processo de modificações e trocas culturais é o que alguns autores chamam de hibridismo. Tal hibridismo tem como pano de fundo a diáspora dos africanos, escravizados e trazidos para as Américas. Estes são os dois conceitos chaves para compreender os processos de mudanças culturais que tem lugar no “Novo Mundo”. Portanto, nosso objetivo é mostrar como o surgimento deste novo Exu cultuado na Umbanda está inserido no âmbito das relações coloniais, e só pode ser explicado dentro deste contexto, a partir dos conceitos elaborados por historiadores, sociólogos e antropólogos da chamada corrente pós-colonial, como Homi Bhabha (1998), Stuart Hall (1996), Nestor Canclini (2006), entre outros, que buscam através de seus conceitos formas de compreender os processos culturais que se desenrolaram nas Américas induzidos pela situação colonial. O “Novo Mundo” e as Identidades diaspóricas O processo colonial dá origem a inúmeras identidades culturais novas, resultantes dos processos de encontro dos elementos que foram trazidos para a América. Longe de serem fixas, estas identidades estão sujeitas a inúmeras variáveis que as moldam a partir dos contatos entre as diferentes presenças culturais em terras americanas. Como define Stuart Hall (1996, p. 69), as identidades culturais provem de alguma parte, tem histórias. Mas, como tudo o que é histórico, sofrem transformação constante. Longe de 242 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul fixas eternamente em algum passado essencializado, estão sujeitas ao contínuo “jogo” da história, da cultura e do poder. A noção de diáspora é uma das chaves para se compreender os processos de mudanças culturais ocorridos nas Américas, sob a luz da situação colonial a que este continente foi colocado. Através dela passamos a vislumbrar o longo processo que levou à formação de uma nova cultura em terras americanas. Não mais africana, nem europeia, mas fruto do encontro destas duas presenças em um espaço totalmente novo. Assim, retornar a esta África se torna essencial para compreender estes diversos espaços culturais que surgem. Estas viagens simbólicas são necessárias a todos nós – e necessariamente circulares. Esta é a África a que devemos retornar – mas “por outra estrada”: o que a África se tornou no novo mundo, o que nós fizemos da “África”: “África” – como a recontamos através da política, da memória e do desejo (HALL, 1996, p. 73, grifos nossos). “O que a África se tornou no Novo Mundo”? Esta é a pergunta que norteia Stuart Hall, e que devem fazer todos aqueles que pretendem compreender as diversas culturas americanas e a formação de suas identidades culturais. Este é precisamente o caso de Exu, que ao deixar o continente africano, trazido pelos africanos escravizados que para aqui vieram, acaba se tornando outra coisa diferente, reelaborado e ressignificado pela experiência colonial que aqui toma forma. Segundo Hall, esta seria a primeira presença colonial, aquela que fornece a matriz cultural que será retrabalhada e transformada no processo diaspórico: a presença africana. A segunda presença é a europeia, aquela que irá submeter esta cultura, mediante uma relação de poder, e obrigá-la a se transmutar e se reinventar, estando ela própria entranhada em nossa identidade. Porque a présence européenne diz respeito à exclusão, imposição e expropriação, somos muitas vezes tentados a localizar esse poder como 243 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul completamente externo a nós (...). O que Frantz Fanon nos lembra, em Black Skin, White Masks, é como esse poder se tornou um elemento constitutivo de nossas próprias identidades (HALL, 1996, p. 73). O poder colonial europeu é constitutivo de nossas identidades. Sem ele não seríamos o que somos hoje, e provavelmente não faríamos muitas das coisas que fazemos hoje. Não cultuaríamos o Exu da Umbanda, uma vez que só faz sentido falar em Umbanda devido ao processo colonial que permitiu aos diferentes elementos culturais aqui presentes hibridizaremse, dando origem a novos quadros religiosos. A dialética da ação (poder) e da reação (resistência) é o que move as práticas culturais encontradas neste “Novo Mundo”, resultando em novas práticas culturais fundidas, como define Hall (1996, p. 74): O diálogo de poder e resistência, de recusa e reconhecimento, pró e contra a présence européenne, é quase tão complexo quanto o “diálogo” com a África. Em termos de vida cultural popular, em parte alguma se encontra prístino, puro. Está sempre já-fundido, sincretizado, com outros elementos culturais. Está sempre já crioulizado (...). Para que tais processos culturais ocorram, é necessário que haja um espaço privilegiado, no qual estes elementos possam ser reunidos e, assim, servir de local para que as trocas, fusões e fissões culturais ocorram. Esta é exatamente a terceira presença definida por Hall (1996, p. 74): A terceira presença, a do “Novo Mundo”, não é tanto poder quanto chão, lugar, território. É o ponto de junção em que os muitos tributários culturais se encontram, a “terra vazia” (esvaziada pelos colonizadores europeus) onde estranhos vindos das partes mais distintas do globo colidiram. (...) Neste espaço é que as crioulizações e assimilações e sincretismos foram negociados. 244 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul É no “Novo Mundo” que as novas identidades culturais são processadas. É aqui que o orixá Exu, cultuado em África como divindade, sofre um processo de hibridização que dá origem a novas práticas culturais. A América é o espaço privilegiado da diversidade e da transformação culturais. “A presença do ‘Novo Mundo’ – América, terra incógnita – é, portanto, em si mesma o começo da diáspora, da diversidade, da hibridação e da diferença, de tudo isso que já faz do povo afro-caribenho o povo de uma diáspora” (HALL, 1996, p. 74). A diáspora, portanto, é o elemento que permitiu à América enquanto espaço a formação de novas identidades culturais, frutos dos processos coloniais que tiveram como personagens africanos e europeus. Estas novas identidades, diaspóricas, tem como característica principal a diversidade e a dinamicidade. Carecem de uma noção dinâmica de cultura, como elementos que estão sempre em processo de transformação, a partir dos contatos com outras matrizes culturais. A experiência da diáspora, como aqui a pretendo, não é definida por pureza ou essência, mas pelo reconhecimento de uma diversidade e heterogeneidade necessárias; por uma concepção de “identidade” que vive com e através, não a despeito, da diferença; por hibridação. Identidades de diáspora são as que estão constantemente produzindo-se e reproduzindo-se novas, através da transformação e da diferença (HALL, 1996, p. 75, grifos nossos). Assim, o surgimento do Exu da Umbanda é um processo de formação cultural que teve lugar na América e como origem o processo colonial. Pode ser compreendido pela formação de novas identidades, frutos da diáspora africana e dos processos de hibridação que aqui ocorreram, conceitos chaves para uma nova corrente de pensadores que buscam compreender os fenômenos pós-coloniais. Exu no “Novo Mundo” – uma identidade em transformação 245 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul O orixá Exu, na cosmologia iorubá, possui funções bem definidas. Por ser o mensageiro e responsável pela ligação entre os homens e os demais Orixás, é a ele que se destina a primeira oferenda, antes de todos os outros orixás, pois, sem ele, não há a comunicação com os outros, é como se eles não escutassem o chamado dos homens. (OLIVA, 2005). Para os sacerdotes e pessoas comuns entre os iorubás a função principal de Exu é de representar a oposição à criação, sendo o infrator das regras e da ordem. (...) Incumbido por Olodumaré181 da tarefa de mudar o que está parado, Exu recebe o Adô, uma cabaça na qual se encontra a força da transformação. (...) Exu destrói para recriar. É o principio da desordem, inseparável da estrutura da ordem; um depende do outro. (...) Uma outra característica de Exu, que se alia à ideia da modificação e da recriação da ordem, é seu aspecto fálico: (...) ele é o senhor dos cruzamentos e dos caminhos, o que abre, penetra e liga os mundos que formam o universo religioso iorubá (OLIVA, 2005, p. 19). Sua importância era tanta que seu culto se estendia a praticamente todas as regiões da Iorubalândia, marcada por uma grande diversidade de cultos e orixás distintos. Além disto, Exu se ligava também ao comércio e as atividades econômicas, sendo representado sempre com cauris e búzios, consideradas importantes moedas de troca na África Ocidental. “Em grande medida, essas características de Exu o tornaram para os ocidentais, um orixá contraditório e de difícil definição” (OLIVA, 2005, p. 20). Por isto mesmo ele será interpretado, por muitos viajantes, como sendo a personificação do mal, assumindo, assim, toda a carga simbólica construída em torno da figura do diabo cristão. Observamos nos relatos de vários viajantes esta associação, de forma direta ou indireta. É o caso, por exemplo, dos irmãos Lander, que pesquisaram o rio Níger no início do séc. XIX, e lá encontraram um sacerdote de Exu, deixando anotado suas impressões sobre o mesmo, onde percebemos a 181 Deus supremo e criador dos Orixás. Não é venerado entre os iorubás (OLIVA, 2005, Nota 9, p. 32). 246 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul maneira pejorativa como encaravam as religiões dos africanos (OLIVA, 2005). Nestes relatos podemos perceber também que o cristianismo não era a única religião monoteísta a interpretar de forma negativa as práticas religiosas dos orixás. Unia-se a ele, nesse mister, o Islamismo. (...) Em alguns estudos realizados sobre Exu na África Ocidental, de fato transparece a ideia de que também os muçulmanos relacionavam o orixá com o princípio da maldade e da ação demoníaca (DOPAMU, 1990, p. 34182apud OLIVA, 2005, p. 22). Este imaginário diabólico foi sendo reelaborado em terras brasileiras. As ideias criadas por europeus sobre os cultos africanos deram origem a um novo personagem, um novo Exu que passa a ser cultuado nos terreiros de Umbanda. Ao visitarmos um terreiro de Umbanda hoje, é quase certo que encontraremos ali uma sala dedicada exclusivamente a Exu, com estátuas que recebem denominações como Exu Caveira, Sete Encruzilhadas, Giramundo, entre outros. Mas é de se notar, também, que este Exu presente na Umbanda já não é mais o mesmo Orixá que veio da África e se assentou nos terreiros de Candomblé. O Exu que encontramos na Umbanda é fruto de um longo processo de ressignificação, que faz com que Exu aos poucos perca seu caráter de Orixá para assumir a posição de espírito ancestral, conhecidos como Eguns183. Este culto aos Ancestrais, no Brasil, irá se estabelecer juntamente com o culto aos Orixás, nas casas de Calundus e Candomblés que se formam. Mas como as relações clânicas no Brasil estavam fragmentadas devido a grande diversidade de grupos étnicos presentes, já não existiam mais ancestrais comuns entre os participantes do culto, o que acaba substituindo a figura do ancestral tradicional por um ancestral genérico, arquetípico, comum a todos os cidadãos. Os primeiros a serem assentados nos terreiros serão os Caboclos, representando os indígenas brasileiros, os donos da terra. Estas entidades se apresentam em vários terreiros de 182 DOPAMU, Ade. Exu: o inimigo invisível do homem. São Paulo: Oduduwa, 1990. Já na África existiam o culto aos Eguns, que poderia ser definido como um culto aos mortos. O poder dos ancestrais na África era grande, e os espíritos dos que morreram tinham grande prestígio, sendo recorridos sempre que houvesse necessidade, através de oferendas e sacrifícios. 183 247 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Candomblé, e também fora deles, juntamente com uma outra figura que toma forma nestes cultos. Trata-se do pai-velho, ou preto-velho, que representa os primeiros escravos a virem para o Brasil, que geralmente eram antigos sacerdotes na África, conhecedores dos segredos da magia e dos feitiços. Mas não eram só caboclos e pretos-velhos que baixavam nestas casas de Macumba. A figura do Diabo também era lembrada, mas na Macumba recebia o nome de Exu. As duas figuras, já bastante assimiladas no imaginário popular devido às associações dos europeus, passam a figurar entre as entidades cultuadas nos terreiros de Macumba, mas agora não mais como Orixás, e sim como espíritos ancestrais, também chamados de Eguns, representando pessoas que, em vida, tiveram um comportamento abaixo dos padrões morais impostos pela Igreja Católica. A passagem de Exu-Orixá para Exu-Egum permeará toda a história da Macumba brasileira, desde os primeiros Calundus, até culminar na organização da Umbanda carioca. Vários autores identificaram este processo ao estudar as religiões africanas no Brasil, como Arthur Ramos (2001), Nina Rodrigues (1935) e Roger Bastide (1945). Em suas obras, todos eles atestam o caráter maléfico de Exu, mas o identificam como sendo fruto do ensino católico (COSTA, 1980, p. 88). A influência do Espiritismo Kardecista, que chega ao Brasil no final do século XIX, acabará fazendo com que sejam separados os cultos de Caboclos e Pretos-Velhos dos cultos de Exu. Conforme já explicamos, todos são entidades arquetípicas, que representam personagens ancestrais da cultura brasileira, espíritos de pessoas que já morreram. Mas, devido à carga negativa presente em torno de Exu, este continuará sendo identificado com o demônio, e seu culto será separado dos demais. A partir daí a Umbanda se dividirá em duas linhas. A linha da direita será dedicada ao trabalho com os Caboclos, Pretos-Velhos, crianças, e outras entidades cuja característica principal é serem considerados espíritos de luz, iluminados, o que denota sua condição de avanço espiritual, dentro da lógica evolucionista do kardecismo, e de terem um código moral 248 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul bem definido. Na outra linha, da esquerda, ficam os espíritos de moral duvidosa, representados pelos Exus e pelas Pombagiras184. Esta linha de esquerda, também conhecida como Quimbanda, durante muito tempo foi sendo associada à prática da Magia Negra. Os próprios praticantes umbandistas por vezes fazem esta identificação, atribuindo sempre ao outro esta prática, nunca a si mesmos. Eneida Duarte (2002, p. 184) coloca que criou-se o hábito, entre pessoas pouco escrupulosas, de utilizar a Quimbanda para fazer o mal, vingar-se de desafetos e obter vantagens por meios pouco honestos. Entretanto, as pessoas que trabalham a sério com estas entidades sabem que elas podem ser boas protetoras de seus fiéis, como o exu que guarda a porteira da casa. Inserido na teoria da evolução dos espíritos kardecista, Exu é considerado como um espírito ainda em evolução, que deve prestar trabalhos de caridade para evoluir e deixar sua condição de espírito inferior. Sua condição de espírito inferior vem de sua própria encarnação, marcada sempre pela falta de uma conduta moral rígida, e pelos erros e pecados cometidos. Esta ausência de uma moral definida em vida, permanece após a morte, e é responsável pela neutralidade com que este espírito se apresenta nos terreiros, aceitando fazer tanto trabalhos de caridade, de ajuda espiritual, quanto trabalhos considerados a-morais, que visam influenciar na vida de outras pessoas através da magia. Nas palavras dos próprios praticantes da Umbanda percebemos estes elementos: Exu é um espírito elementar, não tem origem. A gente pensa por ele, por isso ele aceita tanto fazer o bem como o mal. (...) Exus são espíritos 184 As Pombagiras são espíritos femininos, correspondentes de Exu, mas que apresentam características diferentes, mais ligadas à sexualidade. Apresentam o estereótipo da prostituta, de mulher vulgar. Nos cultos elas riem alto e bebem champanhe. A origem do termo está ligada a um Inquice, divindade dos povos Bantus, correspondente de Exu, o Bombojira ou Pambu Njila, que tem como correspondente feminino a Vangira. 249 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul de pessoas sofredoras. (...) São pessoas que em vida fizeram alguma coisa errada. Exu todo mundo recebe, porque ele é uma segurança para nós. (...) São espíritos sem doutrina, vieram para cumprir missão. Eram espíritos rebeldes na outra encarnação (MAGNANI, 1986, p. 46-47). As noções de evolução, missão, caridade e doutrina estão fortemente presentes no imaginário umbandista. Sua missão aqui na Terra seria a de trabalhar através da prática da caridade, para assim se doutrinarem e conseguirem evoluir. Neste sentido, sua identificação com o diabo cristão é substituído pela identificação a um espírito atrasado, sem luz, que ainda não tem um conhecimento moral definido. Nas palavras da líder de um centro Umbandista, Exu não deve ser identificado com o diabo: É uma ideia muito errada que as pessoas fazem do Exu. Claro que tem alguns que ainda não tá bem esclarecido, (...) não tem conhecimento de nada, (aí) as pessoas usam ele pra fazer essas coisas; ele faz aquilo pra ganhar o que eles prometeram, ele não sabe se tá fazendo o bem, se tá fazendo o mal, não tem distinção.(...), mas depois que ele começa um esclarecimento, ele quer crescer, ele tem compreensão que ele precisa crescer, ele não faz isso mais (NOGUEIRA, 2005, p. 55). Percebemos que dentro dos próprios terreiros é feita uma distinção entre os que se utilizam de Exu para fazer trabalhos sérios, para conseguir proteção e atender a pedidos relacionados à problemas diversos, sejam de saúde, trabalho, amorosos, entre outros; daqueles que se utilizam dos Exus para fazerem trabalhos maléficos, conhecidos como magia-negra, que visam prejudicar ou influenciar de alguma forma na vida de outras pessoas. Assim é atestada a neutralidade da entidade Exu, podendo ele fazer tanto o bem quanto o mal, dependendo apenas do pedido que lhe é feito. Neste caso, a responsabilidade não está na entidade ou espírito que realiza o ato mágico, mas sim naquela pessoa que fez o pedido. A 250 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul entidade é apenas um instrumento, um agente utilizado, e não se responsabiliza pelo teor do pedido feito. Este caráter é atestado pela própria literatura umbandista. Rubens Saraceni (2006, p. 87) coloca que “quem conhece a entidade Exu sabe também que é uma entidade neutra. Para eles não existe a divisão entre bem e mal, apenas objetivos a serem atingidos. Se direcionados para o bem, fazem-no à sua maneira, e se para o mal, também”. Percebemos assim que a definição de Exu na Umbanda nem sempre é simples. Isto porque a imagem do Orixá Nagô sofreu um longo processo de ressignificação, que foi lhe atribuindo características diversas ao longo dos vários anos em que se foram constituindo os Calundus e a Macumba, e que resultaram na organização dos Candomblés e da Umbanda. Considerações Finais Pudemos notar como a ressignificação sofrida por Exu, de Orixá na África e no Candomblé, para entidade ancestral na Umbanda foi fruto de um longo processo de hibridação promovido pela diáspora africana em terras brasileiras. A experiência colonial, a partir da opressão europeia aos valores africanos, fez com que um novo imaginário sobre Exu tomasse forma. A associação ao diabo cristão feita pelos primeiros viajantes europeus ainda em terras africanas tem como consequências a re-elaboração das práticas culturais e religiosas dos africanos que são trazidos para o “Novo Mundo”. Exu aos poucos se transforma em dois personagens diferentes, um que mantém suas características originais, e outro inteiramente novo que mescla características dos imaginários africano e europeu. O conceito de hibridação nos permite compreender a origem do culto a este novo Exu que surge na Umbanda, como foi descrito ao longo deste texto, a partir da presença africana e europeia em terras americanas. Este é mais um exemplo dos fenômenos culturais ocorridos no bojo da experiência colonial e que, portanto, devem ser estudados como tal. Referências Bibliográficas 251 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul BALANDIER, Georges. A noção de situação colonial. In: Cadernos de Campo, ano 3, n. 3. São Paulo: USP, 1993. BASTIDE, Roger. Imagens do Nordeste místico em branco e preto. Rio de Janeiro: O Cruzeiro S. A., 1945. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas – Estratégias para entrar e sair da Modernidade. 4° Ed., 1° Reimp. São Paulo, Edusp, 2006. COSTA, P. Valdeli Carvalho da. Alguns marcos na evolução histórica e situação atual de Exu na Umbanda do Rio de Janeiro. In: Revista Afro Ásia. Nº 13. Salvador: CEAO/FFCH/ UFBA, 1980. (p. 87-105). DUARTE, Eneida Gaspar. Guia de Religiões Populares do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2002 (p. 47-55; 183-186; 195-251). HALL, Stuart. Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais. 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Nas últimas décadas, a instância local de poder emergiu como tema, caracterizando um saber que converge na análise de relações concretas, socialmente construídas e territorialmente localizadas. Terceiro, em 2001 Goiás-GO conquistou o título de Patrimônio Histórico da Humanidade e, atualmente, vem recebendo turistas do mundo todo. Desde então, as opiniões se divergem. Para uns, a cidade melhorou e estão apostando todas as fichas no turismo; para outros, pelo contrário, a situação fica pior a cada dia e alimentam esperança de dias melhores. Portanto, é imperativo conhecer e analisar a dinâmica do desenvolvimento em Goiás-GO. Durante a Conferência Geral da UNESCO, em 15 de novembro de 1989, a Recomendação Paris, sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, reconheceu a cultura popular e tradicional como parte do patrimônio cultural. Segundo Berenstein (2008, p. 32), as iniciativas de patrimonialização e museificação tão em voga hoje, “(...), parece fazer 185 Professor efetivo da Universidade Estadual de Goiás, Campus Iporá (UEG-Iporá). Doutorando em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED) junto ao Instituto de Economia (IE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista de iniciação científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás – Fapeg (FAPEG). E-mails: [email protected] ou [email protected] 253 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul parte de um processo bem mais vasto de utilização da cultura como instrumento de desenvolvimento econômico”. Partindo dessa premissa, é imprescindível perceber as diferenças conceituais entre patrimônio e patrimônio cultural, principalmente, porque este tem um sentido voltado para a coletividade, o público, e aquele tem um sentido restrito, familiar, voltado para o lado privado e particular (PEREIRO, 2006). Conforme Veloso (2006), ao ampliar a ideia de patrimônio cultural, deixando de incorporar somente os bens materiais, assimilando também as práticas culturais da diversidade cultural brasileira, representada pelas manifestações históricas vindas dos diferentes grupos sociais pode-se interpretar o patrimônio cultural como fato social total, “pois é uma arena em que se descortinam diversas dimensões, como a simbólica, a política e a econômica” (VELOSO, 2006, p.447). Na atualidade, “o patrimônio cultural é um debate sobre os valores sociais e a patrimonialização é um processo de atribuição de novos valores, sentidos, usos e significados a objetos, a formas, a modos de vida, saberes e conhecimentos sociais” (PEREIRO, 2006, p. 27). Assim, fundamentados na idéia de Veloso (2006) e Pereiro (2006) a patrimonialização no âmbito deste trabalho é entendida como um processo de atribuição de novos valores para um fato social total. Material e Métodos Este trabalho se baseia em ampla pesquisa bibliográfica e documental. Segundo Chizzotti (1995, p.11), “a pesquisa investiga o mundo em que o homem vive e o próprio homem”. Contudo, a pesquisa só existe com o apoio de procedimentos metodológicos adequados, que permitam a aproximação ao objeto de estudo. A pesquisa bibliográfica, segundo Gil (2002, p.44), “[...] é desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos” (GIL, 2002, p. 44). A principal vantagem da pesquisa bibliográfica está no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente. Sua finalidade é colocar o pesquisador em contato com o que 254 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul já se produziu e se registrou a respeito do tema de pesquisa. Tais vantagens revelam o compromisso da qualidade da pesquisa. Por sua vez, a pesquisa documental constituiu-se num “verdadeiro garimpo de fontes” por se encontrarem muito dispersas. Acessar essa documentação, ler, classificar e selecionar exige muito esforço. Mas, de acordo com Gil (2002, p.62-3), a pesquisa documental apresenta algumas vantagens por ser “fonte rica e estável de dados”: não implica altos custos e possibilita uma leitura aprofundada das fontes. Também se pretende aqui efetuar uma aproximação ao nível do desenvolvimento local por meio de uma abordagem objetiva a qual deverá ser mensurada por meio de informações disponíveis sob a forma de indicadores. A base operacional/metodológica está fundamentada em levantamentos de dados secundários obtidos junto ao IBGE,PNUD, SEPLAN/SEPIN/Gerência de Estatísticas Socioeconômicas, Central de Consultoria e Negócios (CNN) do SEBRAE-GO, ESTADO DE GOIÁS, IPHAN, IPT/CEMPRE, Ministério do Turismo, Secretaria de Estado da Fazenda, Portal da Cidade de Goiás, SEGPLAN, Relação Anual de Informações Sociais – (RAIS) e outros. A utilização dos dados secundários fez-se necessária para se ter um quadro atual e recente da economia do município, uma espécie de raio-x que permitisse identificar os principais setores de atividade não apenas em termos estáticos, mas também em termos dinâmicos (levando-se em consideração sua evolução). Resultados alcançados Atualmente, o desenvolvimento implica muito mais que aumentar índices econômicos, é estar aberto para transformações em todas essas áreas abrangentes que o conceito pode influenciar. Agora descobrem que “desenvolver” não significa nada se só se trata de despejar cimento, instalar canos de água ou levantar a qualquer custo curvas estatísticas, sem pensar, antes, durante e depois de suas intervenções, nas reações muito diversas das pessoas atingidas por 255 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul essas intervenções e nos benefícios que esperam ou não das mesmas. (HERMET, 2002, p.18). Para Hermet (2002, p. 85-86), a partir do momento em que a comunidade local começa a se identificar e a valorizar o seu patrimônio cultural, ele passa a ser reconhecido, protegido, revitalizado e torna-se uma ferramenta para o desenvolvimento. Nesse momento, “a cultura saí de um longo ostracismo, pois durante décadas havia sido considerada mais como um fator capaz de paralisar a mudança do que como um possível ponto de apoio do desenvolvimento”. Mas, no caso de Goiás-GO, acredita-se que é preciso repensar essa premissa. Quando o órgão responsável pela instituição do Patrimônio Nacional,então denominado Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional(DPHAN) chegou ao município de Goiás-GO, no início da década de 1950, pararealizar o tombamento dos principais edifícios públicos e religiosos, “a cidade ainda vivia o trauma da transferência da capital para Goiânia,ocorrida em 1937”. Sua identidade estava até então estreitamente vinculadaà condição de sede do poder político, como capital da Capitania, capital da Provínciae do Estado de Goiás, sucessivamente.“Síndrome da mudança” e “trauma da mudança” são expressõesutilizadas pelos vilaboenses para explicar o comportamentodaqueles que identificavam o “tombamento com o atraso, a estagnação dacidade”, enquanto que o “sonho de Goiás era crescer, se igualar à Goiânia” (DELGADO, 2005, p. 116). Entretanto, mesmo após forte resistência às ações do DPHAN, as“famílias tradicionais” de Goiás vão ceder aos apelos da modernidade. Trata-se, de uma curiosa reversão ideológica, na qual o patrimônio cultural, normalmente associado à história e à tradição, cada vez mais adquire um valor positivo, justamente no momento mais agudo da modernidade e da globalização. Conforme Chuva (2009, p. 106-112), “a construção do patrimônio histórico e artístico nacional no Brasil pode ser localizada historicamente nas décadas de 1930 e 1940” e “dentre as características históricas mais significativas desse processo estava a associação entre modernidade e tradição”. 256 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul É muito louvável a valorização e o reconhecimento do patrimônio cultural, ao mesmo tempo ancorado na tradição e considerado índice de modernidade. Contudo, o perigo reside na apropriação politiqueira, patrimonialista, privatista do patrimônio cultural, o que consiste em negar sua característica mais poderosa, fonte de força e legitimidade, a de ser o resultado de uma produção coletiva. Por isso, Veloso (2006, p. 45) enfatiza que “a relação entre poder local e patrimônio cultural deve ser cada vez mais pesquisada no Brasil”. Ao encerrar o Cântico da Volta, Cora Coralina fez um prognóstico da nova identidade de Goiás-GO: “Uma nova esperança acena no horizonte. Com a expansão de Goiânia e com a possibilidade da mudança da Capital Federal para o planalto, Goiás será, sem dúvida, um centro de turismo, dos mais interessantes do país” (CORA CORALINA, 1956). Por volta de 1940, por meio do jornal Cidade de Goiaz já se promovia a possibilidade de vincular Goiás-GO às atividades econômicas do turismo como monumento. Cidade-evolução, cidade-monumento, cidade-cultura, cidade-mãe, enfim, – Goiaz está presente em todas as emoções cívicas de nossa história, desde as remotas quadras da tumultuária colonização lusa até a edificação de Goiânia [...]. Essas razoes recomendam Goiaz como um excelente ponto de turismo, porque ali se sente plenamente o brasileiro típico do Estado, [...]. Para se conseguir esse objetivo [...], há uma coisa para se fazer: intensificar o intercambio social entre a velha e a nova capital – duas cidades que tem que marchar de mãos dadas, no futuro. (CASTRO COSTA, Jornal Cidade de Goiaz, 10 mar. 1940, n°.75 – Grifo nosso). Para a concretização da atividade econômica do turismo em Goiás-GO, Castro Costa (1940) sugeria intensificar o intercâmbio social entre a velha e a nova capital, indicando mais uma vez a indissociabilidade entre a modernidade e a tradição. Na visão dos defensores dessa ideia, o novo não abandona o velho, mas o acompanha de mãos dadas. Assim, se observa que a partir da década de 1950 a Organização Vilaboense de Artes e Tradições (OVAT) implementou inúmeras estratégias com o intuito de fomentar o 257 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul turismo cultural no município. Essa organização incorporou um discurso preservacionista buscando resgatar o patrimônio cultural de Goiás-GO, vislumbrando a produção da cidade como turística. Ao vislumbrar que o futuro de Goiás era o passado, a Ovat empreende e estimula várias ações culturais: o Gabinete Literário, fundado em 1864, foi reaberto; os saraus foram revitalizados; as manifestações folclóricas e musicais foram pesquisadas e registradas; o acervo de arte sacra foi reunido no Museu da Cúria e, posteriormente, no atual Museu de Arte Sacra da Boa Morte; modificações foram implementadas na celebração da Semana Santa, que passou a contar com a Procissão do Fogaréu (DELGADO, 2005, 121). Delgado (2005, p. 122) confirma a importância da OVAT e a adaptação de estratégias desencadeadas por essa organização no sentido de promover a associação entre a preservação do patrimônio cultural e o impulso ao turismo, atribuindo-lhe “a responsabilidade pela alteração no desenvolvimento da cidade”. Desde a década de 1990 e, principalmente, após a cidade conquistar o título de Patrimônio da Humanidade em 2001, o patrimônio cultural tem movimentado o turismo no município de Goiás-GO. A manutenção desse patrimônio é uma das grandes preocupações para a manutenção do título. Por isso são criados programas com essa finalidade, mantendo a arquitetura e incentivando a promoção de eventos culturais. Nesse período um fator muito relevante e que deve ser mencionado, foi a criação do Festival Internacional de Cinema Ambiental (FICA) que promove uma grande movimentação turística em Goiás-GO. Mas, de acordo com Prizibisczki (2008), “a simpática cidade de Goiás, eleita patrimônio da humanidade pela Unesco em 2001, para muitos moradores é agradável somente na época do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (FICA), realizado sempre nas primeiras semanas de junho. No resto do ano, o grave problema de coleta e deposição irregular de lixo é que rouba a cena” (Cf. PRIZIBISCZKI, 2008). 258 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul De acordo com Carneiro (2005), na memória coletiva, o fato de Goiás ter se tornado Patrimônio da Humanidade gerou sentimentos diferentes nos vilaboenses. Assim, percebe-se que o título “fez bem para autoestima” da elite, entendidos como “os mais ressentidos com a transferência da capital” enquanto os menos favorecidos “não sentem orgulho”, mas, pelo contrário, “sentem o peso de viver numa cidade turística mundialmente reconhecida” (CARNEIRO, 2005, p. 96). Depois de 4 anos que Goiás adquiriu o título de Patrimônio da Humanidade, o que se vê, o que se fala e que se ouve dos moradores da cidade é que pouco mudou na realidade. Não houve aumento na oferta de emprego e trabalho, os jovens precisam mudar da cidade para trabalhar. Outros saem da cidade para estudar em outros centros, já que os cursos oferecidos nas Faculdades locais são poucos. Os turistas diminuíram consideravelmente e os que visitam Goiás não consomem o suficiente para corresponder às expectativas do comerciante, além de ter havido desvalorização dos imóveis (CARNEIRO, 2005, p. 98 – Grifo nosso) Para conhecer e analisar o setor de turismo em Goiás-GO, o Plano Estadual de Turismo (PET) foi considerado fundamental. O PET foi elaborado pela Agência Estadual de Turismo – Goiás Turismo, órgão do Governo de Goiás, para o fortalecimento e crescimento do turismo no Estado de Goiás, buscando intensificar sua contribuição para a geração de renda, ampliação do mercado de trabalho e valorização cultural, natural e técnico cientifico. O trabalho desenvolvido pela Goiás Turismo aponta na direção do desenvolvimento humano e econômico. (ESTADO DE GOIÁS, 2007). Desde então, estão sendo emitidos boletins informativos com o objetivo de delinear uma evolução e tendências do comportamento da economia do turismo no Estado de 259 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Goiás. Para tanto, a Política Estadual de Turismo utiliza-se de uma série de critérios186 para classificar os destinos turísticos nas três categorias de destinos prioritários (Diamante, Esmeralda e Cristal). Seguindo essa metodologia, o IPTur Goiás divulgou a classificação dos vinte e seis destinos mais importantes do Estado de Goiás (Destino Diamante). De acordo com a tabela de classificação, o município de Goiânia-GO seria o melhor estruturado, ocupando o primeiro lugar no ranking com 403 pontos. O município de Goiás-GO encontra-se bem classificado, aparecendo em nono lugar na classificação geral com 77 pontos (BOLETIM DADOS DO TURISMO EM GOIÁS. EDIÇÃO Nº 02 / 2010 - IPTUR / GOIÁS). É importante para Goiás-GO figurar entre os principais destinos turísticos do Estado de Goiás e ainda apresentar bom desempenho em relação aos critérios estruturantes, conforme os resultados da pesquisa apresentados anteriormente, mas será que as atividades turísticas conseguiram transformar a realidade local e promover o desenvolvimento local? No caso do município de Goiás-GO, os impactos podem ser mais bem visualizados conforme a Relação Anual de Informações Sociais – RAIS referentes à participação do turismo na geração de empregos e estabelecimentos formais nas Atividades Características do Turismo. Entretanto, os dados são pouco animadores. Os resultados da pesquisa revelam crescimento negativo no período analisado, entre 2006 e 2011, tanto em relação ao número de empregos formais (-27%) quanto em relação o número de estabelecimentos (-16%) relacionados com as Atividades Características do Turismo (ACTs). Portanto, o impacto do turismo em Goiás-GO não tem conseguido transformar a realidade local (RAIS, 2011). Além disso, o número de turistas vem diminuindo o que tem dificultado a criação de novos postos de trabalho, a ampliação, melhoria ou criação de novos estabelecimentos comerciais. Para verificar se o número de turistas realmente tem diminuído consultou-se os registros de visitantes do Museu Casa de Cora Coralina, um dos pontos turísticos mais 186 Foram selecionados dez critérios de estruturação de destino turístico. Entre eles destacam-se: 1) Conselho Municipal de Turismo – COMTUR; 2) Fundo Municipal de Turismo – FUMTUR; 3) Participação em instância de governança regional – Fórum Regional de Turismo; 4) Instituto de Pesquisas Turísticas – IPTur; 5) Boletim de Ocupação Hoteleira – BOH; 6) Plano Municipal de Turismo (PMT) validado pelo COMTUR; 7) Número de leitos disponíveis no município; 8) Centro de Atendimento ao Turista – CAT; 9) Cadastro dos Prestadores de Serviços Turísticos – CADASTUR; 10) Sustentabilidade Turística. 260 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul importantes do município. Os dados apresentados revelam que em 2010 foram registrados 20.425 visitantes. O maior índice de todo o período analisado. Este número indica uma média mensal de 1702 visitantes e uma média diária de, aproximadamente, 56,7 visitantes. Contudo, há certa irregularidade no período analisado e os dados mostram que em 2011 houve um declínio no número de visitantes. Em comparação ao ano de 2010, o número de visitantes caiu 14% e, em 2009, 13%. A média do número de visitantes nos anos de 2007 e 2011 foi de 18.282 pessoas (MUSEU CASA DE CORA CORALINA, 2012). Atualmente, há vários problemas em Goiás-GO que colocam em dúvida a capacidade de gestão territorial e não podem deixar de ser analisados. Nesse sentido, as pesquisas de campo revelaram também que embora menos intenso que nas décadas de 1970 e 1980, o chamado êxodo rural e urbano ainda é um grave problema. A migração para outras cidades – principalmente Goiânia-GO e Itaberaí-GO – é notória e atinge principalmente jovens e mulheres, que não encontram trabalho ou outros estímulos para permanecer em Goiás-GO e alimentam perspectivas de dias melhores. Conforme dados levantados junto ao IBGE (2010), no período compreendido entre 1990 e 2010 foi possível perceber o decrescimento populacional de Goiás-GO em relação ao município vizinho de Itaberaí-GO. Em 1990, a população de Itaberaí-GO (24.852 habitantes) era menor que a de Goiás-GO (27.782 habitantes). Nos dez anos seguintes, Itaberaí-GO (27.879 habitantes) apresentou um índice populacional praticamente igual a Goiás-GO (27.120). Mas, a partir dos anos 2000 até 2010, Itaberaí-GO (35.412 habitantes) ultrapassa Goiás-GO (24.745 habitantes). Enfim, de 1990 a 2010, em 20 anos Goiás-GO perdeu aproximadamente 3.037 habitantes enquanto o município vizinho de Itaberaí-GO obteve um acréscimo populacional de aproximadamente 10.560 habitantes. Como resultado do maior crescimento econômico e da proximidade187 entre os municípios, Itaberaí-GO tem atraído grande parte da população ativa de Goiás-GO e acelerando o seu decrescimento populacional. Outro indicador importante para se avaliar o desenvolvimento e a qualidade de vida em Goiás-GO é o índice de desenvolvimento humano (IDH). Assim, observa-se que após 187 A distância entre Goiás-GO e Itaberaí é de aproximadamente 41,9 km. O tempo médio de condução é de 40min. Ver: http://distanciacidades.com/. Acesso em 13 de setembro de 2013. 261 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul o processo de patrimonialização ocorreu diminuição neste indicador passando de 0,736 (2000) para 0,709 (2010). Assim, a qualidade de vida em Goiás-GO tendeu a piorar após a patrimonialização do município. Considerações Finais Embora Goiás-GO tenha optado pela patrimonialização acredita-se que os resultados das atividades econômicas ligadas ao turismo em Goiás-GO ainda são incipientes e não têm conseguido promover o desenvolvimento do município (SIQUEIRA e VIANNA, 2011, p. 13). 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A Comunidade de Santa Luzia é uma dessas demarcações do território, delimitados pela influência da Igreja Católica. Nessa comunidade religiosa a fé os une, sustentando seus espíritos e fortalecendo as relações sociais entre o grupo. Compreender espaços territoriais como esses, significa uma relevante aproximação com as crenças, percepções e representações que sugerem contornos e consistência a territórios como esse. Comunidade de Santa Luzia – seus sujeitos e a construção de um território A Comunidade de Santa Luzia, antiga comunidade da Baíca, é o local que recebe todos os anos, no dia 13 de dezembro, a romaria de Santa Luzia. A comunidade que carrega o nome da santa venerada pelos romeiros não surgiu a partir do evento religioso, mas ganhou grande notoriedade com os sucessivos anos em que ocorria. Uma comunidade que não teria outro destaque, mas, com a realização do evento, a comunidade de Santa Luzia torna-se um 188 Este artigo é parte de discussões elaboradas no decorrer de uma dissertação de mestrado em processo de construção no mestrado em Geografia da UFG/IESA. 189 Orientadora: Profª Drª Maria Geralda de Almeida. 265 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul centro de convergência religiosa, atraindo grande quantidade de fiéis e ocupando os noticiários do município de Porangatu e região. Localizando-se a 20 km da cidade de Porangatu, fazendo parte desse município, a Comunidade de Santa Luzia é composta por cerca de 30 propriedades rurais de variada extensão, a maioria delas não ultrapassa os cem hectares de terra. As casas que se encontram na comunidade são em sua maioria, moradias modestas, pequenas, com apenas dois quartos, uma varanda. Como as terras são de poucos hectares, as áreas de pasto e plantio não ficam muito distantes das casas. Ribeiro e Alencar (2012) esclarecem que a produção de legumes, hortaliças, de animais e aves serve para o próprio sustento ou também para a venda na feira da cidade de Porangatu, fator que aumenta a renda da família. É sobre esse território que se constroem os modos de vida desses povos do cerrado. Sobre essas terras são construídas suas histórias, se firmam e reafirmam suas tradições, se erguem memórias coletivas. Acreditando que toda memória coletiva é consolidada a partir de um determinado espaço e que as imagens espaciais são importantes elementos em sua constituição, Halbwachs (1990, p. 133) afirma que “Quando um grupo está inserido numa parte do espaço, ele o transforma à sua imagem, ao mesmo tempo em que se sujeita e se adapta as coisas materiais que a ele resistem”. Ocupando um determinado território, todo o processo de (re)construção das identidades coletivas tem forte vinculação à história e à tradição, reelaboradas conforme os interesses do presente. O pequeno grupo de produtores rurais já mantinham certos vínculos entre si, mas a igreja católica teve importante papel na aglutinação do grupo, identificando-os como a comunidade de Santa Luzia. A denominação atribuída pela igreja católica, mais precisamente, pela Paróquia de Nossa Senhora da Piedade, que em Porangatu é responsável pela organização das comunidades católicas do município, tem como intuito possibilitar o gerenciamento das visitas de Ministros da Palavra190. Assim, a conhecida comunidade da Baíca passa a ser chamada de Comunidade de Santa Luzia. 190 Os Ministros da Palavra são pessoas leigas da comunidade, instruídas a efetuar alguns serviços religiosos da Igreja Católica, como a realização de celebrações na ausência de um padre. De acordo com o Cânone 230 §3: “Onde a necessidade da igreja o aconselhar, podem também os leigos na falta de um ministro, mesmo não sendo 266 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul O antigo nome da comunidade é alusivo a uma importante figura dessa localidade, já falecida, mas que permanece muito presente nos relatos dos moradores. Não existem muitos registros publicados sobre a vida de Maria Pereira Soares, a Dona Baíca, ou sua pequena comunidade. As informações mais esclarecedoras, de fato, se descortinam a partir de poucos trabalhos divulgados sobre a comunidade e a romaria de Santa Luzia, como uma monografia apresentada por Ribeiro e Alencar (2012)191. Desse modo são importantes os relatos obtidos com os trabalhos de campo. Compreender o processo de surgimento da Comunidade de Santa Luzia torna-se mais interessante quando se dá enfoque a partir do momento em que Maria Pereira Soares (que no futuro seria chamada de Dona Baíca), casa-se com Deuzelis Vieira Soares. Ao chegar à região, Deuzelis, que já era casado, compra uma propriedade com a intenção de morar nesse local com a esposa. Trabalhando em suas terras, o recém-chegado conhece Maria por quem se apaixona, separando-se da esposa para casar-se com a moça que conhecera na região. Muitos anos se passaram desde a união de Deuzeli e Maria, que sendo muito católicos realizavam encontros para rezarem em louvor a Santa Luzia todo dia 13 de dezembro. O evento sempre reunia muitas pessoas da região, até devotos de outros santos, mas que se juntavam pela amizade ao casal e/ou pela fé católica. Em 1978, Deuzelis chega a falecer, mas Dona Baíca continua a gerenciar os trabalhos em suas terras. Segundo Ribeiro e Alencar (2012), o cultivo da terra passa a ser realizado por meeiros e arrendatários, que plantam arroz, feijão, milho, mandioca e cana. Dona Baíca mantém a tradição religiosa das rezas na comunidade e incentiva as pessoas a também rezarem. A comunidade já conhecida como Comunidade da Baíca, passa a adotar o nome de Santa Luzia devido a destacável devoção à santa. A viúva tem uma posição de destaque na comunidade, tornando-se uma liderança não apenas religiosa, mas também política. É devido a todo esse prestígio que Dona Baíca consegue trazer para a comunidade a primeira escola com o Ensino Fundamental I. Uma das leitores ou acólitos, suprir alguns de seus ofícios, a saber, exercer o ministério da palavra, presidir as orações litúrgicas, administrar o batismo e distribuir a sagrada Comunhão, de acordo com as prescrições do direito” (CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO, 1983, p. 39). 191 A monografia citada foi apresentada como requisito a obtenção de grau de Licenciatura Plena em História em 2012, por Maria Lopes Ribeiro e Weber José Gomes de Alencar na Universidade Estadual de Goiás – Unidade Universitária de Porangatu. 267 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul professoras que atuaram na pequena escola, Maria da Glória Carvalho Campos, hoje com 48 anos, nos conta que já era moradora da região e assumiu o cargo de professora devido ao apoio de Dona Baíca. Atualmente ela ministra aulas em uma escola de outra comunidade rural e se lembra de Dona Baíca com gratidão e respeito: “Todos aqui gostavam muito dela, pois ela ensinava e incentivava todos a rezar. As crianças desde cedo já aprendiam a rezar com ela. Ela também buscava o tempo todo trazer melhorias pra comunidade, ela queria facilitar a vida de todo mundo” (Pesquisa de campo, maio de 2014). A dona de casa, Maria Sônia Teixeira de Morais Carvalho, de 41 anos, foi adotada por Dona Baíca aos quatro anos de idade logo após tornar-se viúva. Maria relata que, como sua mãe adotiva não teve filhos, adotou-a e em seguida reconheceu como filho adotivo mais uma criança, um menino chamado Leci Teixeira de Moraes. Os filhos adotivos, Maria e Leci, hoje são herdeiros e continuam ocupando as terras que compunha a Fazenda Santa Luzia, de Dona Baíca. Na empreitada de seu trabalho religioso sempre a frente de rezas, missas e encontros na comunidade, Dona Baíca via crescer cada vez mais a quantidade de pessoas que se reuniam de casa em casa, para os eventos religiosos. Esta senhora percebia que a comunidade crescia c via a necessidade da construção de uma capela em louvor a Santa Luzia, que pudesse abrigar todos os fiéis. Mas do que a construção de um templo religioso, um objetivo de todos que participavam da comunidade, era a materialização de sua memória religiosa sobre o espaço, de maneira que essa imagem (edificação) espacial, desse maior sentido a sua devoção e fortalecesse o sentimento de perpetuação da tradição religiosa. “Cada vez que se ergue uma nova Igreja, o grupo religioso sente que cresce e que se consolida” (HALBWACHS, 1990, p. 157). O espaço passa por sucessivas e rápidas transformações e a sociedade como agente dessas transformações, não lhe é indiferente, ao passo que as relações entre os seres também sofrem consideráveis alterações. Assim, um grupo religioso encontra maior amparo em acreditar que sua memória coletiva, não está mais presa apenas aos homens em sua visível volatilidade. De forma estável, se consolida sobre o espaço sob a forma de uma igreja. Depois de a comunidade arrecadar dinheiro com algumas festas, os sucessivos mutirões, também com o apoio da paróquia e da prefeitura de Porangatu, a capela de Santa 268 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Luzia foi construída no ano de 2000, a conclusão das obras deu-se dois anos após o falecimento de sua principal articuladora, em 1998. A imagem da santa que pertencia a Dona Baíca deixou o lar que ocupava (isto quando não “passeava” pelos vários lares da comunidade durante as rezas) para tomar o lugar que lhe fora destinado, sobre o altar da pequena capela de Santa Luzia. A santa de devoção da família de Dona Baíca, torna a padroeira da comunidade. Em um estudo sobre a religião na zona rural de Itapira, interior de São Paulo, Brandão (1985) nos aponta algumas características da prática religiosa católica que incorrem em diversas comunidades rurais, ressaltando que existe uma trajetória rotineira em que o santo de devoção de uma família passa a ser o padroeiro de uma comunidade camponesa. Mas, Dona Baíca continua presente na memória daqueles que a conheceram, sendo lembrada sempre pela comunidade com muita gratidão pelas suas ações em favor da região em que vivia. A região é ainda conhecida por muitos como Comunidade da Baíca. O pequeno agropecuarista José Alves Carvalho, de 50 anos, mostra com orgulho o galpão que construiu para abrigar o trator conseguiu comprar, adquirido mediante uma das linhas de crédito do FCO Rural192. José fez parte da primeira romaria de Santa Luzia, compondo um grupo de 70 pessoas, que em 13 de dezembro de 2001, caminhou do centro da cidade de Porangatu até a comunidade. Assim se torna perceptível na comunidade da Baíca uma identidade religiosa, motivando os encontros movidos pela fé católica, além de possibilitarem a realização de festas para arrecadação de fundos para eventos religiosos. Os momentos em que esses pequenos agricultores se reúnem para a realização de rezas e missas, configuram-se em destacáveis oportunidades para que a comunidade pudesse se reunir, se socializar, se divertir no contato uns com os outros. A comunidade religiosa de Santa Luzia constituíra-se em importante elemento aglutinador dos sujeitos na região, promovendo a solidariedade, a geração de interesses em comum, uma identidade. 192 O Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste (FCO) foi criado pela Lei nº 7.827, de 27/9/1989, que regulamentou o art. 159, inciso I, alínea c, da Constituição Federal, com o objetivo de possibilitar o desenvolvimento econômico e social da região, mediante a execução de programas de financiamento aos setores produtivos. O FCO Rural, destinado a produtores rurais, possui baixas taxas de juros e prazos para pagamentos de até 20 anos (Cartilha do FCO, http://www.sudeco.gov.br/documents/10157/84110/Cartilha_FCO_20_2_14_sem_logo.pdf, acesso em 05 de julho de 2014). 269 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Comunidade: uma breve, mas necessária discussão Procuramos até aqui tecer uma abordagem a respeito da criação da comunidade de Santa Luzia instalada na antiga Comunidade da Baíca (se bem para algumas pessoas, ainda persiste essa denominação como principal). Temos utilizado até o momento como meio de delimitação territorial o espaço da “comunidade”, esta ocupada por seus sujeitos que lhe dão forma e que são dialeticamente influenciados por ela. Mas o que seria uma comunidade? A resposta não é tão simples assim. As mais abrangentes incursões a respeito desse conceito, do ponto de vista da ocupação humana podem nos ser dadas a partir de ciências humanas como a sociologia, que tem esse como um de seus principais conceitos. O sociólogo Bartle (2001 p.1) nos coloca a par da complexidade da questão, apontando que, “... uma ‘comunidade’ é uma construção mental, um modelo [...] não se resume às pessoas que a constituem [...] pode nem sequer possuir um lugar físico, mas ser simplesmente demarcada por um grupo de pessoas que partilham um interesse comum”. Contudo, nossa investigação, partindo de um interesse que segue os ditames da ciência geográfica, busca um espaço no qual haja um sentimento de pertencimento, que possa dar certa concretude às ações práticas e simbólicas de um grupo. Em se tratando de uma comunidade, é mais convincente outra visão sociológica, que a respeito das comunidades, sugere “a existência de três padrões de sociabilidade comunitária: os laços de consanguinidade, de coabitação territorial e de afinidade espiritual, cada qual convergindo para um respectivo ordenamento interativo, como comunidade de sangue (parentesco), lugar (vizinhança) e espírito (‘amizade)” (TÖNNIES, 1947 p. 33 apud BRANCALEONE, 2008 p. 100). Essa concepção apresentar melhor que a definição de Bartle (2011) que sugere a ideia de uma comunidade desvinculada seu espaço físico, e até mesmo seus indivíduos. Adotaremos então a definição de comunidade de Tönnies (1947), na qual umas das três dimensões destacadas reflete a importância da apropriação do espaço. É uma proposição mais condizente com nossos objetivos de investigação, já que acreditamos que, apesar de não ter seus limites tão rigidamente delimitados, uma comunidade territorializa seu espaço. Por 270 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul meio de seus laços de parentesco, de suas relações sociais, constroem formas, imagens e representações que se fundem ao território. Com o pessimismo sobre as relações humanas, pós-modernas, que marcam seus textos, além da coragem que lhe é habitual, o antropólogo Bauman (2003) faz uma categórica crítica ao conceito de comunidade. O autor começa alertando para a capacidade de “seduzir” que está imbricado no conceito: As palavras têm significado: algumas delas, porém, guardam sensações. A palavra “comunidade” é uma dessas. Ela sugere uma coisa boa: o que quer que “comunidade” signifique, é bom “ter uma comunidade,” “estar numa comunidade”. [...] Comunidade, sentimos, é sempre uma coisa boa (BAUMAN, 2003, p.7). Ele (2003, p. 9) declara que “comunidade é o tipo de mundo que não está, lamentavelmente, ao nosso alcance — mas no qual gostaríamos de viver e esperamos vir a possuir”. Para o autor, viver em uma comunidade é mais uma aspiração do que propriamente uma realidade a ser experimentada. A solidariedade, o conforto e a segurança, que segundo Bauman (2003) são próprios de uma comunidade não podem ser vistos em seu modelo real. Podemos inferir que estamos mais próximos de compreendermos os traços culturais de um grupo ao analisarmos suas relações comunitárias, pois observamos grupos de pessoas, que num delimitado território deixam transparecer em suas ações, seus simbolismos. Uma abordagem cultural na geografia como nos lembram Wagner e Mikesell (2003), deve levar em conta que: A noção de cultura considera não indivíduos isolados ou quaisquer características pessoais que possam possuir, mas comunidade de pessoas ocupando um espaço determinado, amplo e geralmente contínuo, além comportamento de numerosas comuns aos características membros de tais de crença comunidades (WAGNER E MIKESELL 2003, p. 28). 271 e HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Uma base geográfica, de fato, é o que dá o suporte inicial para uma cultura à medida que favorece uma comunicação mais regular entre os indivíduos, assim, os geógrafos citados completam esse entendimento ao afirmarem: Uma comunidade de pessoas que compartilha uma cultura comum pode existir encravada numa única aldeia isolada, na qual todos os habitantes estão em contato direto diário, ou pode se estender sobre um vasto território dentro do qual, pessoas, objetos e ideias circulam mais ou menos livre e continuamente (WAGNER E MIKESELL 2003, p. 29). Assim, ao utilizarmos o agrupamento humano definido como comunidade, temos uma base geográfica que favorece nossa abordagem. Temos assim um território com dimensões físicas relativamente mensuráveis. Mas do que isso, temos também um agrupamento de pessoas com objetivos comuns que projetam um território simbólico, no qual seu núcleo se concentra na capela e que se estende por seus arredores. Na Comunidade de Santa Luzia o principal elemento que une seus moradores, dispersos espacialmente, mas não por muitos quilômetros, é a fé católica. A devoção que os impulsionou a construírem uma capela e consequentemente organizarem-se todos os anos para receberem uma romaria, agora constrói-reconstrói, força-reforça o estreitamento das relações entre o grupo nesse território, fortalecendo-se como comunidade. Territorialidades da Igreja Católica: as comunidades religiosas A Igreja Católica Apostólica Romana passa por um processo de perda de fiéis nas últimas décadas, cedendo quantitativos humanos principalmente para as igrejas evangélicas que apresentam considerável crescimento, ano após ano. Ainda assim, o catolicismo continua sendo a religião que detém o maior número de adeptos no Brasil. Baseando-se em dados da Fundação Getúlio Vargas/ Centro de Políticas Sociais –FGV/CPS organizados por Neri 272 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul (2011) é possível perceber que o número de fiéis apresentou maior queda nos anos 1990 em terras brasileiras. No entanto, apesar de passar por uma constante perda no seu número de seguidores, o catolicismo no Brasil, experimenta certo crescimento no número de padres e outros ingressantes no clero, expandindo suas demarcações territoriais religiosas (Circunscrições Eclesiásticas como Dioceses e Prelazias, Paróquias). O catolicismo toma como estratégia a expansão territorial, com ampliação do número de dioceses e paróquias que cobrem o território nacional. O processo de territorialização do catolicismo é baseado em hierarquias territoriais, como paróquias, dioceses e arquidioceses. Com jurisdições bem demarcadas, tais hierarquias exercem seu domínio em diferentes escala espaciais e em diferentes escalas de poder. Em relação às territorialidades da Igreja Católica, Rosendahl (1995, p. 56) enfatiza o poder de controle territorial articulado pelo catolicismo: É nesta poderosa estratégia geográfica de controle de pessoas e coisas, ampliando muitas vezes o controle sobre territórios que a religião se estrutura enquanto instituição. Territorialidade, por sua vez, significa o conjunto de práticas desenvolvido por instituições ou grupos no sentido de controlar um dado território. O primeiro nível da instância hierárquica da igreja católica são as comunidades religiosas, que atuam a nível local, tendo como hierarquia ligeiramente superior, as paróquias. Segundo Sopher (1967, apud Rosendahl, 1995), o catolicismo organiza comunidades a fim de fornecer seus serviços rituais, de maneira que serão organizados dois tipos de territórios: os episcopais e os lugares sagrados. Entre os territórios episcopais “A paróquia representa também, para seus paroquianos, um lugar simbólico, onde cada habitante se insere sem grandes questionamentos e, na maioria dos casos, desenvolve uma forte identidade religiosa com o lugar” (ROSENDAHL, 2001). 273 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Instituída como uma Comunidade Religiosa, a comunidade de Santa Luzia faz parte da hierarquia territorial da igreja submetendo-se, imediatamente, a Paróquia de Nossa Senhora da Piedade que coordena os serviços eclesiais do município, seja na zona urbana ou rural. A comunidade rural de Santa Luzia faz parte de um grupo de 15 comunidades religiosas que são coordenadas pela paróquia local, são 7 comunidades rurais e 16 comunidades urbanas. Devido à falta de um número maior de padres, as comunidades rurais recebem o padre para as missas uma vez por mês193. O fato é que “o equilíbrio territorial paroquial pode não resistir ao desequilíbrio demográfico, à mobilidade recente da população e à escassez de padres” (ROSENDAHL, 2001 p. 19). Apesar da quantidade de padres ter aumentado nos últimos anos, não é o bastante para atender, semanalmente, os vários e dispersos agrupamentos humanos no Brasil. A territorialidade da igreja católica, no ínterim das unidades episcopais e dos fiéis que se organizam em torno delas, caracteriza o que Gil Filho (2008) denomina como territorialidade do sagrado. Uma instituição religiosa materializa em sua estrutura física no território, mas também se apropria deste de forma simbólica “a territorialidade é o atributo de determinado fato social no qual o poder é imanente” (GIL FILHO, 2008 p. 110). Ao promover sua territorialidade, a religião impregna o espaço de fortes simbolismos e representações, a partir daí ocorre um movimento dialético, em que a territorialidade promove uma identidade religiosa e uma identidade religiosa molda as configurações do território. De acordo com Gil Filho e Gil (2001, p. 48), “A identidade religiosa seria uma construção histórico-cultural socialmente reconhecível do sentimento de pertença religiosa”. Assim, as dioceses são unidades essenciais no processo de territorialização da Igreja Católica, como foi descrito por Rosendahl (2002), em territórios em que os tentáculos da Igreja não alcançam surgem as manifestações do catolicismo popular. A partir do momento em que cresce a movimentação popular, o Catolicismo Oficial procurar auxiliar nos rituais, de modo a garantir seu domínio sobre o território. Na Comunidade da Santa Luzia, a paróquia local logo adveio a auxiliar na construção de uma capela na comunidade, que sucedeu a 193 Segundo calendário 2014 da Paróquia Nossa Senhora da Piedade. 274 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul receber a visita do padre uma vez por mês, além de também assumir a coordenação da romaria com o auxílio da Prefeitura de Porangatu. Outra estratégia que a igreja utiliza para controlar determinados territórios é convidar pessoas da própria comunidade para serem coordenadores de seus respectivos agrupamentos de fiéis. Esses líderes fornecem seus contatos telefônicos, passando a ser o canal direto entre a organização episcopal e a comunidade. Também são responsáveis por garantir que as determinações paroquiais possam chegar ao grupo. Na Comunidade de Santa Luzia, há alguns anos, o coordenador é Leci Teixeira de Moraes194, filho de Dona Baíca. As comunidades religiosas como a de Santa Luzia representam fisicamente a territorialidade da igreja católica. São verdadeiros territórios demarcados pelo catolicismo no exercício de seu poder, procurando sempre proteger os rígidos dogmas católicos daquilo que o catolicismo oficial considera como exagero de algumas práticas do catolicismo popular. Tais comunidades adquirem identidades singulares a partir das relações geradas pelo convívio em função da religião. Conclusão Um espaço territorial é bem mais do que um território onde se mora, se planta, se colhe, se trabalha. É onde sujeitos elaboram todos os dias a suas construções sociais, a partir da forma como lidam com a terra, das histórias que contam, das memórias que são guardadas. Mesmo em meio a toda evolução tecnológica, viver em comunidade é algo que a humanidade busca como forma de alcançar certo conforto e segurança. A vida em comunidade fortalece as relações e objetivos comuns, motiva a criação de simbolismos e representações sobre o território. Os agrupamentos humanos, definidos como comunidade, são apropriados pelo catolicismo em suas formas de territorialização, configurando-se como o mais baixo nível hierárquico da Igreja Católica, instaurando-se a representação do catolicismo a nível local. Contudo, os laços firmados pela proximidade, condições, dificuldades, comungados por 194 Informação também extraída do calendário 2014 da Paróquia Nossa Senhora da Piedade. 275 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul sujeitos em comunidade, se fortalecem ao se amalgamarem com preceitos da fé católica, próprios da organização de uma comunidade religiosa. Toda essa configuração dá força ao grupo na busca de seus objetivos, sejam em favor ad fé, ou a busca de melhores condições de trabalho e produção. Referências Bibliográficas BARTLE, Phil. O que é comunidade? Uma perspectiva sociológica. Disponível no site: http://www.scn.org/mpfc/whatcomp.htm. Acesso em 05 de julho de 2014. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Editora Zahar, Rio de Janeiro, 2003. BRANCALEONE, Cassio. Comunidade, sociedade e sociabilidade: revisitando Ferdinand Tönnies. Revista de Ciências Sociais, v. 39, nº. 1, 2008, p.98 a 104. CNBB. Documentos da CNBB. Acesso em 04 de julho de 2014. Disponível no site: http://www.cnbb.org.br/publicacoes-2/documentos-cnbb. GIL FILHO, Sylvio Fausto. Espaço sagrado: estudos em geografia da religião. Curitiba: Ibpex, 2008. GIL FILHO, Sylvio Fausto, GIL, Ana H. Corrêa. In: ROSENDAHL, Z e CORRÊA, R.L. (Org.). Religião, Identidade e Território. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. HALBWACHS, Maurice. 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Com a criação da Universidade de São Paulo – USP, vários intelectuais franceses, italianos, alemães e portugueses foram convidados para participar da estruturação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), a qual permitiu uma revolução na própria historiografia brasileira, e também de uma forma tímida permitiu ao surgimento das pesquisas em medievalidades. Nos anos de 1990 com o aumento dos cursos de pós-graduação, fomentou também a criação de vários grupos e laboratórios especializados em temas medievais ligados a Associação Nacional de História – ANPUH, e a Associação Brasileira de Estudos Medievais – ABREM, os quais passaram a promover um número expressivo de pesquisas nessa área (OLIVEIRA, 2010). A professora Maria Guadalupe Pedrero-Sánches (1999, p. 15), afirma que “entre dois momentos do acontecer histórico sempre há um período de transição, e sobre essa etapa voltase toda uma série de conjeturas, matizes e restrições que dificultam endossar totalmente um 195 Resultados parciais de pesquisa realizada no mestrado em História na Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC-GO. Esta investigação conta com o financiamento da Fundação de Ampara a Pesquisa do Estado de Goiás - FAPEG. 196 Mestrando em História PUC-GO, docente da Universidade Estadual de Goiás - UEG. 278 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul ou outro dos extremos que se aproximam e se confundem”. Por se situar entre a Antiguidade Clássica e o Período Moderno, a Idade Média tornou-se esse momento de transição onde fora considerada pelos renascentistas e iluministas como retrocesso diante do mundo grecoromano, e atrasado diante da modernidade (PEDRERO-SÁNCHES, 1999). Em um ensaio publicado em 2007 no Brasil com o título “As raízes medievais da Europa”, Jacques Le Goff apresenta a Idade Média como “época do aparecimento e da gênese da Europa como realidade e como representação e que constitui o momento decisivo do nascimento, da infância e da juventude da Europa, sem que os homens desses séculos tenham a ideia ou a vontade de construir uma Europa unida” (LE GOFF, 2007, 11). Nesse sentido Le Goff, continua a insistir com sua tese de que a Idade Média vai para além da clássica periodização estabelecida pela historiografia que a limita no período de mil anos, para esse historiador quando pensamos o medievo como gênese constituição da Europa Ocidental, encontramos elementos históricos que extrapolam essa demarcação temporal. Em “Idade Média: bárbaros, cristãos e muçulmanos”, obra lançada no ano de 2010 na Europa, dirigida pelo escritor, filósofo, semiólogo, linguista e bibliófilo italiano Umberto Eco, o qual se posiciona criticamente contra o estereótipo que foi construído sobre o medievo, pela literatura, pelos manuais escolares e pelo cinema. O que é estranho, pois foi ele um dos responsáveis pela construção dessa visão, já que se tornou um dos maiores divulgadores da cultura do medievo através de seus romances ficcionais ambientados nesse período, que também foram adaptados para cinema, como foi o caso do romance “Em nome da rosa” de 1980. O livro descrito no início do parágrafo foi escrito para o público leigo e também especializado, os autores convidados fazem parte de um grupo de especialistas europeus em assuntos medievais. Umberto Eco preferiu adotar uma via contrária, isto é, ao invés de perguntar o que é a Idade Média, escolheu afirmar aquilo que ela não é, na tentativa de desconstruir a visão estereotipada que foi e é mantida pelo mass media. No primeiro ponto a ser desconstruído Umberto Eco afirma que a “Idade Média não é um século” como também não seria um tempo que fosse possível perceber bem sua definição e suas características como o Renascimento, o Barroco e o Romantismo. Assegura 279 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul que essa etapa da história é muito longo e seria impossível que o “modo de viver e pensar se tenha mantido imutável ao longo de um período tão extenso” (ECO, 2010, s/p). No segundo ponto sustenta que a “Idade Média não é um período exclusivo da civilização europeia”. Não devemos esquecer e nem perder de vista que nesse mesmo momento o império do Oriente mantinha viva por meio do esplendor de Bizâncio características do antigo Império Romano após a queda de Roma. Nestes mesmos séculos floresceu a civilização árabe, que foi responsável pela preservação e transmissão aos europeus dos clássicos da filosofia antiga (ECO, 2010, s/p). No terceiro faz a seguinte ratificação que os “séculos medievais não são a Idade das Trevas, as Dark Ages dos autores anglófanos”. Umberto Eco concorda que se essa conceituação pode ser aplicada em parte ao período que vai da queda do Império Romano até o renascimento carolíngio. Todavia, as raízes da cultura europeia, como a língua por exemplo surgem nesses séculos escuros, como também, foi nessa fase da história da humanidade que várias invenções do mundo antigo foram aperfeiçoadas (ECO, 2010, s/p). No quarto ponto de sua tentativa de desconstrução do estereótipo sobre o medievo declara que a “Idade Média não tinha só uma visão sombria da vida”. No medievo encontramos igrejas românicas que estão repletas de figuras como diabos e suplícios infernais que celebram o triunfo da morte. Também encontramos procissões realizadas por bandos de mendigos e leprosos que circulavam fanaticamente entre os campos e os burgos. Mas também, foi nesses séculos que se assistiu ao surgimento dos goliardos que celebravam a alegria de viver, por meio de seus poemas e canções. (ECO, 2010, s/p). No quinto assevera que a “Idade Média não é uma época de castelos torreados como os da Disneylândia”. A maioria dos castelos que conhecemos na verdade foram construídos no Renascimento e não na época feudal. O castelo feudal “consistia numa estrutura de madeira erguida numa elevação de terreno (...) e rodeada por trincheira defensiva”. Somente no século XI é que foi construído em torno dele as muralhas para uma maior proteção. Com frequência essas muralhas eram feitas de paliçadas que serviam para refugiar os camponeses e seus animais em tempos de ataques (ECO, 2010, s/p). No sexto ponto garante que a “Idade Média não ignora a cultura Clássica”. Ainda que muitos textos e autores antigos tenham se perdido, uns poucos medievais conheciam 280 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Virgílio, Horácio, Cícero, Ovídio Terêncio, Sêneca, Claudiano e Salústio. Esses autores não eram conhecidos por todos que sabiam ler, um mosteiro poderia ter um número de obras e outro não. O que havia de fato nos mosteiros era uma sede de conhecimento, num momento onde as comunicações eram tão difíceis (ECO, 2010, s/p). No sétimo ponto Umberto Eco assegura categoricamente que a “Idade Média não repudiou a ciência da Antiguidade”. Os medievais ocidentais, não possuíam elementos que os permitiam irem além daquilo que lhes estavam impostos pelas suas limitações, todavia Eco atesta que Até um estudante do liceu pode facilmente deduzir que, se Dante entra no funil infernal e, quando sai pelo outro lado, vê estrelas desconhecidas no sopé da montanha do Purgatório, isso significa que ele sabia perfeitamente que a Terra era esférica e escrevia para leitores que também o sabiam. Mas dessa opinião tinham sido Orígenes e Ambrósio, Beda, Alberto Magno e Tomás de Aquino, Roger Bacon e João de Sacro Bosco. Só para mencionar alguns. (ECO, 2010, s/p). De acordo com Eco a “Idade Média não foi uma época em que ninguém se atrevia ir além dos limites da sua aldeia”. Este é o oitavo ponto, e expressa sobre as peregrinações que permitiam a locomoção das pessoas, até mesmo os mais humildes de um local para outro na Europa. Essas viagens levavam à Jerusalém, Santiago de Compostela ou a qualquer outro santuário existente naquele momento (ECO, 2010, s/p). A “Idade Média não foi apenas uma época de místicos e rigoristas” assim enuncia o autor no nono ponto observado sobre os tempos medievais. Apesar de ter sido um período marcado pela presença da Igreja, das abadias, dos grandes mosteiros e dos bispos da cidade, não foi uma época só de atitudes austeras. Foi nesse momento que o amor romântico e idealizado nasceu, mesmo sendo um amor casto, era obsessivo. Uma vez ao ano em determinadas localidades o carnaval era permitido ao “povo miúdo”, que não poupavam palavras obscenas e nem a descrição de práticas indignas. Umberto Eco alega que esse 281 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul período da História é contraditório entre aquilo que se pregava e o que realmente se praticava (ECO, 2010, s/p). Como décimo ponto tem-se a visão de que a “Idade Média não é sempre misógina” (ECO, 2010, s/p). Não obstante a mulher ser constantemente apontada como fomentadora do pecado e alguns padres recorrerem a autocastração, foi nessa fase da História que houve uma “das mais apaixonadas glorificação da mulher” (ECO, 2010, s/p). No décimo primeiro ponto a Idade Média é apresentada como um período que “não foi a única época iluminada por fogueiras”. Não queimou pessoas na fogueira apenas por motivos religiosos, “mas também por motivos políticos”, como foi o caso de Joana D’Arc e muitas outras execuções que se seguirão nos séculos XVI até o XVIII (ECO, 2010, s/p). Por fim o décimo segundo ponto certifica que “Idade Média não [pode ser vista] apenas como uma época de ortodoxia triunfante”. Esse aspecto representa “uma piedosa visão da Idade Média sonhada pelos reacionários de todos os séculos, avessos às polémicas, revoltas e contestações dos tempos modernos” (ECO, 2010, s/p). Essas são as doze teses apresentadas por este autor italiano que, como foi exposto anteriormente, são tentativas de superação dos estereótipos e das representações negativas em relação a Idade Média. Educação Histórica e o livro didático A Educação Histórica é uma linha de investigação que surgiu na Inglaterra a partir da década de 1970, por meio dos estudos em Cognição Histórica, onde os pesquisadores queriam compreender como os alunos pensavam historicamente. Esse problema surgiu, pelo fato em que o sistema educacional britânico permitia ao aluno escolher em quais disciplinas deseja cursar. Enquanto as salas de matemática estavam lotadas, as de História tinham uns poucos alunos matriculados. O que levou o historiador inglês Peter Lee iniciar uma campanha investigativa para reverter o quadro, já que matemática sempre foi considerada uma disciplina mais complexa que História. Os pesquisadores descobriram que os professores da disciplina de matemática contavam com o apoio de investigações daquilo que eles denominavam 282 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Educação Matemática. Daí em diante países como, Portugal, Canadá, Estados Unidos, e também o Brasil, passaram a desenvolver pesquisas em Educação Histórica. Essa linha de investigação defende que as analises sobre o ensino e a aprendizagem em história deve ser realizada por historiadores, porque somente eles detêm o cabedal epistemológico necessário para perceber os fundamentos do conhecimento histórico, tanto o científico, como o da história vivida. A expressão conceito substantivo foi elaborada por Peter Lee (2001) e refere-se aos conteúdos da História, como por exemplo, Revolução Francesa, Segunda Guerra, Ditadura de 1964 e Idade Média. Juntamente com essa categoria foi constituído aquilo que ele denomina de conceitos de segunda ordem, que são aqueles que permeiam qualquer outro conteúdo a ser aprendido, a exemplo, mudança, progresso, continuidade, época entre outros. Seguindo essa mesma visão só que dentro de outro contexto, que é o da virada paradigmática da Didática da História na Alemanha nos anos 1960 e 1970, tem as contribuições do historiador Jörn Rüsen, para quem “o livro didático é a ferramenta mais importante no ensino de história” (RÜSEN, 2010, p. 109). Sem dúvida, a quase impossível pensar no ensino de História na educação pública brasileiro sem ajuda do livro didático. Não se quer aqui desvalorizar as outras possibilidades ou documentos que permitem o ensino de História, mas observar a importância que a educação básica impõe sobre o livro didático. No Brasil essa importância é levada a sério pelas autoridades competentes, pois a partir do ano de 1996 foi criado o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD (OLIVEIRA, 2010) e de lá para cá foram aperfeiçoadas as exigências em torno dos conteúdos, das linguagens e também da qualidade dos materiais empregados na confecção do mesmo. Rüsen (2010) salienta que os historiadores precisam se preocupar com o livro didático por três motivos. Primeiro por este ser “um dos canais mais importante para levar os resultados da investigação histórica até a cultura histórica de sua sociedade”. O historiador deve tomar cuidado e insistir para ver os resultados de sua investigação serem incorporados “sem grande demora aos livros didáticos”. Segundo que a função do conhecimento histórico presente no livro didático é orientar culturalmente a vida em sociedade. Finalmente, pelo simples envolvimento dos historiadores com as questões políticas do nosso tempo, pois “o 283 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul ensino de história é uma das instâncias mais importante para formação política” (RÜSEN, 2010, p. 110). Jörn Rüsen (2010) lista uma série de característica para um livro didático ideal: - Aspectos de utilidade para um ensino prático tais como: formato claro, estrutura didática, relação com o aluno e relação com a aula. - Já os aspectos para que o aluno consiga alcançar uma percepção histórica são: apresentação de materiais históricos, imagens, mapa e esboços, textos, pluralidade da experiência histórica e pluriperspecitivade. - As características que um manual precisa possuir para despertar nos educandos a interpretação histórica são: normas científicas, capacidades metodológicas, caráter de processo da história e pluriperspectividade ao nível do observador e força de convicção da exposição. - Por fim o livro didático deve conter para instigar uma orientação histórica são: perspectivas globais, formas de um juízo histórico e referências ao presente. Todos os elementos referidos fazem parte das necessidades/exigências que um manual didático precisa compor na Alemanha. Todavia, não podemos comparar essa realidade com o Brasil, já que os alemães vêm discutindo através da didática da história desde as décadas de 1960 e 1970 uma maneira mais adequada para se produzir e se aplicar o livro didático em sala de aula. Entretanto, esses elementos servem de apoio teórico e epistemológico para analisarmos os nossos manuais, e contribuem para colocar em pauta do dia a discussão em torno dessa ferramenta que em algumas escolas no Brasil é o único material que o professor dispõe. Temos consciência de que as sugestões de Rüsen são para análise do livro didático, entretanto essas características também nos servem como elementos norteadores para avaliar o conceito de Idade Média que o compõe. Análise do livro didático Cabe salientar que nosso ponto de vista sobre os livros didáticos brasileiros é o fato de concordamos com aqueles que defendem o uso dos mesmos para o ensino e aprendizagem 284 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul de história com qualidade. Para nós o problema não está só no livro didático, mas também no uso inadequado que se faz desse material em sala de aula. O manual escolar selecionado para análise neste artigo: “Projeto Araribá: História”, 7° ano, organizado pela Editora Moderna, 3°edição 2010. Nossas observações não fazem parte de nenhuma atitude política em relação a depreciação da obra citada, pelo contrário acreditamos que o exercício intelectual de análise de todos os conteúdos mantidos pelos livros didáticos no Brasil deveriam ser colocados a avaliação pelos historiadores, assim como acontece na Alemanha, para melhoramento do ensino e da aprendizagem histórica. Este manual didático só foi selecionado porque é adotado pelo Colégio Estadual Presidente Kennedy, situado em Porangatu – Goiás, onde realizamos uma pesquisa que visa compreender a consciência histórica de alunos do sexto e nono ano do ensino fundamental sobre como eles conceituam a Idade Média. O presente volume dedica um total de noventa e três páginas aos assuntos ligados a Idade Média, os quais estão distribuídos em três unidades com a média de quatro a seis capítulos cada uma. A primeira irá observar “A formação da Europa Feudal”, a segunda dos “Mundos Além da Europa”, e a terceira apresentará a “Baixa Idade Média”. Não iremos tratar de todos os assuntos medievais presentes nesse livro porque as especificidades deste artigo não nos permite verifica-los devido ao número de páginas limites, por essa razão optamos por analisar somente a conceituação sobre a Idade Média presente nele. Em um boxe retangular vertical localizado a margem direita da segunda página do primeiro capítulo, os editores conceituam A Idade Média, de acordo com a divisão clássica da história, vai da queda do Império Romano do Ocidente, em 476, até a tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453. Acredita-se que o termo Idade Média tenha sido formulado por estudiosos que viveram em cidades italianas, entre os séculos XIV e XV. Esses homens defendiam a ideia de que o período posterior à queda de Roma caracterizou-se principalmente pelo atraso técnico, pela 285 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul exagerada fé religiosa e pela falta de liberdade. Porém, estudos recentes mostram que a Idade Média foi uma época de grandes transformações econômicas, culturais e sociais, como pode ser vistos nas construções e na produção literária e filosófica do período. (PROJETO ARARIBÁ, 2010, p. 13). Fica evidente que a visão adotada pelos editores para essa edição é tradicionalista, rígida e linear em relação à Idade Média, contrariando o pensamento do respeitado medievalista francês Jacques Le Goff (2007) que acredita ser a Idade Média um período para além dos séculos que a demarca. Contraria também o segundo ponto apresentado por Eco (2010), em que o período medieval não foi exclusividade da Europa Ocidental. Conforme ressalta Oliveira, As datas de início e término da Idade Média devem ser problematizadas, pois sendo a história um processo, os entrelaçamentos entre elementos sociais, culturais, econômicos do medievo, dos períodos anteriores (Império Romano) e dos posteriores (Idade Moderna) precisam ser considerados. Essas divisões metodológicas não são naturais, mas construções históricas e arbitrárias com fins didáticos. (2010, p. 19). Concomitantemente o conceito apresentado esbarra em algumas das sugestões dadas por Jörn Rüsen (2010) para um livro didático ideal: - Essa visão não apresenta a pluriperspectividade, ou seja, não é dada outras perspectivas ao nível do observador/leitor. A História não tem somente um lado. - Também não privilegia as perspectivas globais, o enfoque é totalmente eurocêntrico. - Em relação às normas científicas e as capacidades metodológicas os editores optaram por não apresentar as fontes que os levaram à construção desse conceito, o que para nós representa um ponto negativo. Quando comentam “Acredita-se que o termo Idade Média tenha sido formulado por estudiosos que viveram em cidades italianas, entre os séculos XIV e 286 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul XV” (PROJETO ARARIBÁ, 2010, p. 13), fica vago e o aluno não tem como perceber os caminhos que levaram a construção desse conceito. - A ausência de mais uma característica pode ser percebida a partir do trecho analisado, o que permite ressaltar a falta de força de convicção da exposição, no momento em que se diz “acredita-se” e “estudos recentes”, sem mencionar quais são esse estudos, torna a nosso ver o texto impreciso para os alunos. - Por fim, observamos que os editores nesse conceito se eximiram de expressar um juízo de valor, preferiram a manter a aparência de uma imparcialidade, o que para Rüsen (2010, p. 126) não é bom para formação dos alunos, pois os mesmos precisam aprender se posicionar “alegando as suas razões”. Outra problemática a ser levantada é fato desse conceito ser apresentado em boxe, duas coisas podem acontecer, primeiro os alunos podem se interessar por esta parte do texto e prestar uma atenção especial a ela, ou podem passar pela página e não perceber a importância do mesmo pelo fato de não fazer parte do texto geral, salvo se o professor chamar a atenção para ela com o cuidado de problematiza-la. Ressaltamos que as demais características recomendadas por Rüsen (2010) e também por Eco (2010), foram encontradas nos conteúdos que compõe as unidades sobre o medievo, menos uma, o material não permite uma relação com o aluno. Defendemos a bandeira de que precisamos no Brasil da produção de material didática que parta do contexto das realidades regionais brasileiras, e não apenas do eixo Rio/São Paulo. Considerações Finais A presente comunicação tinha por finalidade realizar uma análise sobre o conceito Idade Média, desenvolvido recentemente pela historiografia para então relacioná-lo com o que é abordado no livro didático. Percebemos que as pesquisas realizadas pelos historiadores, ainda não são incorporadas pelo livro didático na mesma velocidade que são produzidas pela ciência. Isso acarreta um déficit para o ensino e principalmente para aprendizagem histórica por parte dos alunos que usufruem do sistema educacional público brasileiro. 287 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Chegamos a mesma conclusão de José Rivair Macedo em seu famoso texto “Repensando a Idade Média no ensino de História”, publicado em 2008, onde afirma que a Idade média que é ensinada na escola básica, não é a mesma Idade Média dos pesquisadores (MACEDO, 2008). Existe aí um fosso que separa essas duas situações, e de acordo com Macedo (2008), isso ocorre por causa do estatuto que permeia a função social da História, que neste caso seria o de manter a estrutura da história política em que o Ocidente está constituído, indo na contra mão daquilo que é produzido pela erudição acadêmica. Defendemos um conhecimento adequado da Idade Média ou dos temas medievais por parte dos estudantes, para que os mesmos possam se posicionarem de forma crítica e segura diante da avalanche de produtos da cultura de massa (cinema, literatura e jogos eletrônicos) que são inspirados nas medievalidades, sem que para isso haja um rigor científico. Referências Bibliográficas ECO, Umberto. Introdução à Idade Média. In: ECO, Umberto. (Org.). Idade Média: bárbaros, cristãos e muçulmanos. Alfragide, Portugal: Publicações Dom Quixote, 2010. Disponível Em: <http://books.google.com.br/books?id=YA9ZLbUyjLsC&printsec=frontcover&dq=idade+me dia&hl=pt-BR&sa=X&ei=WPkZVLv9LqrisAT4q4HgCw&ved=0CCcQ6AEwAg#v=onepage &q=idade%20media&f=false>. Acesso em 17 de set. de 2014. LEE, Peter. Progressão da compreensão dos alunos em História. In: BARCA, Isabel (Org.). Perspectivas em Educação Histórica. Actas das Primeiras Jornadas Internacionais de Educação Histórica. Braga: Universidade do Minho, 2001. p. 13-29. MACEDO, José Rivair. Repensando a Idade Média no ensino de história. In: KARNAL, Leandro. (Org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 2008. p. 109-125. PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média: textos e testemunhas. São Paulo: Editora Unesp, 2000. PROJETO ARARIBÁ. História. 7° ano. Editora Moderna, (Org.). 3ª ed. São Paulo: Moderna, 2010. p. 6-93. 288 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul OLIVEIRA, Nucia Alexandra Silva de. O estudo da Idade Média em livros didáticos e suas implicações no Ensino de História. Cadernos de Aplicação, Porto Alegre, v. 23, n. 1, jan./jun. 2010. RÜSEN, Jörn. O livro didático ideal. In: RÜSEN, Jörn. Jörn Rüsen e o Ensino de História. (Org.) SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende. Curitiba: UFPR, 2010. p. 109-127. 289 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul A COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE E A HISTÓRIA Mayara Paiva de Souza** A Ditadura Militar no Brasil é um tema bastante estudado e debatido no meio acadêmico. Muitas análises sobre o tema foram publicadas ainda nas décadas de 1970 e 1980, produzindo esquemas de interpretação e conceitos que se tornaram célebres197. Todavia, nos últimos anos vem surgindo debates e produções que lançam um novo olhar sobre o período. As pesquisas e reflexões recentes têm contado com fontes cada vez mais acessíveis e com o questionamento de esquemas interpretativos que nasceram ainda no calor dos acontecimentos (MOTTA, 2014). Apesar da predominância das narrativas da resistência ao regime, ainda existem muitas lacunas e inconclusões que aguardam por esclarecimentos. Entre a memória revelada e o conhecimento do passado há uma pedra no caminho: a necessária abertura dos arquivos e a lembrança dos que serviram ao próprio governo ditatorial. A anistia de 1979, que é considerada uma autoanistia, dificultou a abordagem do passado por meio de uma narrativa que, ao se debruçar com clareza sobre a trágica experiência vivida na ditadura, pudesse ser social e politicamente aceitável (REIS FILHO, 2004).Resguardados pela anistia de 1979, muitos militares que participaram ativamente do regime optaram, e ainda optam,pelo silêncio como forma de proteção e assim buscam se desvencilhar do passado podendo chegar até mesmo ao limite da negação198. Um pensamento que predominou nos quartéis a partir de 1979 é que a anistia representaria uma interdição do passado, o que aconteceu, seja de um lado ou de outro, deveria ser esquecido. Nesse sentido, o almirante Mauro César Rodrigues Pereira afirmou: “Um lado tem que calar a boca e ficar quieto. O outro lado tem o direito de ficar a vida inteira Pesquisa financiada pela Fundação de Apoio a Pesquisa de Goiás (FAPEG). Doutoranda em História pela Universidade Federal de Goiás. 197 Segundo Rodrigo Patto Sá Motta (2014), conceitos como Doutrina de Segurança Nacional e Estado Burocrático-Autoritário, apesar de oferecer ideias interessantes para a aproximação com o tema, podem se tornar camisas de força teóricas que acabam por impor uma lógica férrea dos acontecimentos. 198 Cito como exemplo o depoimento do Coronel Brilhante Ustra na Comissão Nacional da Verdade. ** 290 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul dizendo que tem ferida e que tem que dar um jeito de curá-la? Não. Tem que calar a boca também e ficar quieto” (CASTRO; D’ ARAÚJO, 2001. p. 282). Na mesma linha de argumentação o almirante Henrique Sabóia, Ministro da Marinha durante o governo de José Sarney, destacou que o que houve após a anistia de 1979 foi um revanchismo, não ocorreu “anistia moral” dos militares, pois as Forças Armadas foram continuamente cobradas pelos acontecimentos do passado: “É o que eu digo sempre: a anistia foi one way. Nós anistiamos, mas não fomos anistiados até hoje. Houve anistia, mas num só sentido. [...] Até hoje tudo é culpa da ditadura”(CASTRO; D’ ARAÚJO, 2001. p. 58). Diante da tentativa de interdição do passado por parte dos militares e da relativa sacralização da resistência por parte das vítimas, ainda existem muitas lacunas acerca do passado ditatorial no Brasil, mas talvez o maior desafio dos pesquisadores do período seja mitigar os campos de negociações entre a sociedade e o regime. Muitos segmentos da sociedade se identificavam com o modelo imposto pelos militares, um modelo de modernização conservadora que colocou Médici, para citar um exemplo, dentre os mais altos índices de aprovação pública. O temor ao Comunismo levou a mobilizações que eclodiram antes e depois do golpe. Vale lembrar, ainda, que nas eleições de 1970 o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido da oposição, sofrera uma esmagadora derrota imposta pelo partido governista, Aliança Renovadora Nacional (Arena), derrota que por pouco não causou o desaparecimento do MDB. Desta forma, notamos que o apoio de parcela significativa da sociedade, não exclusivamente de setores dominantes, corroborou para que a Ditadura Militar no Brasil se prolongasse por tantos anos. Embora haja uma intensa produção memorialística e historiográfica sobre a Ditadura Militar no Brasil, há uma dificuldade de promover um debate acerca do passado ditatorial que atinja a esfera pública. Por décadas o debate esteve restrito ao âmbito acadêmico e à memória privada de grupos de familiares de vítimas da ditadura. Mesmo com as fortuitas participações do Estado, o debate ainda enfrenta dificuldades para alcançar o âmbito público, visto que,a transição lenta e gradual para o sistema democrático fez com que o regime militar chegasse ao fim sem que houvesse uma ruptura com o passado ditatorial. Houve um rearranjo do poder, todavia, figuras políticas atuantes no regime militar continuaram no cenário político no novo sistema de governo que se instaurou a partir das eleições de 1989. Se não houve ruptura, mas 291 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul apenas uma transição controlada, conseqüentemente não haveria condenação. Dessa forma, a anistia de 1979 encarregou-se de suspender o passado. Diante de tais considerações, partimos do pressuposto de que nos encontramos,atualmente, em um período de relativa ebulição do passado ditatorial. Relativa porque, apesar de intensa movimentação, o debate ainda encontra obstáculos para atingir a esfera pública. Com o cinqüentenário do Golpe de 1964, ressurgem debates e temas acerca do governo militar, o foco volta-se para um passado que há muito se tentou apagar, entretanto, o passado ressurge com novos e diversos mirantes. A Comissão Nacional da Verdade Embora a transição política de um regime ditatorial para um regime democrático no Brasil tenha sido marcada pela “lógica da protelação”, da imposição do esquecimento e do silêncio, algumas pessoas não esqueceram o passado ou não querem esquecer. O passado continua presente. Mesmo que a anistia de 1979 tenha funcionado como antídoto que “apaziguou” o passadoe promoveu a possibilidade de seguir adiante, as demandas acerca do passado ditatorial realizadas pelas novas gerações evidenciam que as medidas tomadas pela política de transição no Brasil não foram suficientes para promover uma reparação seguida por reconciliação.Nesse sentido, há algum tempo vêm ressurgindo problemas históricos que envolvem o período da Ditadura Militar no Brasil, principalmente no que diz respeito aos setores Executivo e Judiciário. Dentro dessa movimentação de revisão do passado ditatorial, setores governamentais têm fomentado algumas medidas ligadas à justiça de transição como a criação dos projetos Memórias Reveladas e Marcas da Memória, a criação das Caravanas de Anistia, mudanças na lei de acesso à documentação do período ditatorial e a criação da Comissão Nacional da Verdade199. 199 Comissões da Verdade são mecanismos oficiais, não-judiciais e temporários de apuração de graves violações de direitos humanos ocorridas em um determinado período de tempo (GOMES, Luiz Flávio e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (orgs). Crimes da ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p.231). 292 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul O Projeto-Lei 7.376, que criou a Comissão Nacional da Verdade, foi aprovado dia 21 de setembro de 2011. Apresentado ao Congresso desde maio de 2010, o projeto, depois de intensas negociações com o governo, obteve o apoio de todas as bancadas no parlamento. A criação de tal Comissão fora proposta no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em dezembro de 2009. O texto do projeto ressalta que a Comissão busca trazer à tona a "verdade histórica" acerca de perseguições políticas entre 1946 e 1988 no Brasil e, desta forma, "promover a reconciliação nacional". Nessa tentativa de buscar uma “verdade histórica”, a Comissão, criada pela Lei nº 12.528/2011pretende apurar as violações dos direitos humanos entre o período que separa a promulgação das duas Constituições brasileiras que foram elaboradas após períodos ditatoriais no Brasil, isto é, a Constituição de 1946 e a de 1988. O primeiro artigo da Lei que criou a Comissão da Verdade estabelece que esta tem a finalidade de “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”, portanto, de 18 de setembro de 1946 até 05 de outubro de 1988, “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional” (PLANALTO, 2011). Todavia, a Lei estabeleceu que a Comissão não tem poderes para punir os agentes envolvidos nos crimes cometidos durante o período. As investigações incluem a apuração de autoria de crimes como tortura, mortes, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres, perdoados com a Lei da anistia, de 1979. Segundo a então ministra da Secretaria dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, a Comissão da Verdade não é uma resposta à Corte Internacional, mas é uma forma de o Brasil responder à sua própria história.200 Composta por sete membros indicados pela presidente da República, a Comissão da Verdade tem até 16 de dezembro de 2014 para apresentar um relatório final sobre seus 200 A Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos condenou, em 2010, o Brasil em relação à Guerrilha do Araguaia. Pela sentença, o Estado brasileiro terá de remover todos os obstáculos práticos e jurídicos para a investigação e esclarecimento de crimes e responsabilização dos envolvidos. O Tribunal reafirmou o alcance geral de sua decisão, exigindo que as disposições da lei de Anistia não representem um obstáculo à investigação. In: <www.torturanuncamais-rj.org.br> acesso em: 22/09/2011. 293 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul trabalhos.201Durante as investigações, os membros podem requisitar informações a órgãos públicos, inclusive informações sigilosas, convocar testemunhas, realizar audiências públicas e solicitar perícias. Ao fim dos trabalhos, a Comissão deverá enviar aos órgãos públicos competentes informações que ajudem na localização e identificação de restos mortais de pessoas desaparecidas por perseguição política. As principais críticas à criação da Comissão Nacional da Verdade relacionam-se, principalmente, ao longo período que a Comissão investiga. São quarenta e dois anos da história do Brasil. Por ser um passado longo, o Deputado do DEM-RJ, Arolde de Oliveira, afirmou que a Comissão pode trazer problemas para o país, pois mexe em uma ferida que já está cicatrizada e que poderá voltar a causar problemas sérios (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2011). Além disso, a Comissão foi bastante criticada, principalmente por setores militares, por enfatizar as violações dos direitos humanos cometidos por agentes do Estado, mas não debruçar-se sobre os fatos desencadeados pela “esquerda revolucionária”. Segundo o deputado Jair Bolsonaro (Partido Progressista - RJ), um dos principais críticos da Comissão Nacional da Verdade, a Comissão é totalmente parcial, uma vez que os membros foram indicados pela Presidente da República e que não “querem apurar os crimes da esquerda”, desta forma, segundo o parlamentar, a Comissão não investiga os dois lados da história.202 Segundo o historiador Carlos Fico (2013), a questão de que os “dois lados” deveriam ser investigados se assemelha a tese que, na Espanha, é chamada de “equivalência" e, na Argentina, é chamada de tese dos “dois demônios”, isto é, compara-se a violência da repressão com a violência da esquerda. Entretanto, segundo o historiador, o argumento é falho, uma vez que as comissões da verdade são criadas para apurar crimes cometidos por parte do Estado. Além disso, o Estado brasileiro tinha possibilidade de acabar com a luta armada sem recorrer à tortura e ao extermínio. 201 Os membros indicados foram: Maria Rita Kehl, Rosa Cardoso, Paulo Sérgio Pinheiro, José Carlos Dias, Gilson Dipp, José Paulo Cavalcante Filho e Cláudio Fonteles – renunciou em 2013 e foi substituído por Pedro Dallari. A maioria dos nomeados para integrar a Comissão Nacional da Verdade tem formação acadêmica na área de direito, com exceção de Maria Rita Kehl que é psicanalista e Paulo Sérgio Pinheiro que é cientista político. O prazo para a entrega do relatório final a princípio seria até abril de 2014, mas foi prorrogado pela medida provisória nº 632 de 24 de dezembro de 2013. 202 Entrevista de Jair Bolsonaro a Alexandre Garcia. In: http://www.youtube.com/watch?v=XX7XrPI0c0s 294 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Enquanto grupos ligados a setores militares criticam a “parcialidade da ComissãoNacional da Verdade” e seu caráter “revanchista”, vítimas da repressão e seus familiares criticam os limites da Comissão devido ao curto prazo para entregado relatório final, prazo inicialmente estabelecido em dois anos. Para setores ligados aos militantes, o prazo de trabalho da Comissão da Verdade deveria ser maior e a quantidade de integrantes deveria ser ampliada. No que se refere ao setor acadêmico, a Associação Nacional de História (ANPUH) criticou a não nomeação de um historiador para integrar a Comissão. A Associação divulgou nota em que apontava como fundamental a presença de historiadores na Comissão Nacional da Verdade, uma vez que estes profissionais podem se voltar, até mesmo para temas recentes, valendo-se de métodos rigorosos de pesquisa. Segundo a ANPUH, os historiadores têm o dever e a capacidade de pensar os temas tratados na Comissão da Verdade não apenas por intermédio das lentes afetivas da memória, mas também pela perspectiva racional da história (ANPUH, 2012). Embora a Associação Nacional de História tenha considerado imprescindível a participação de historiadores na Comissão da Verdade, Carlos Fico, um dos principais estudiosos do período da ditadura militar no Brasil, em entrevista ao jornal O Globo afirmou que se fosse convidado para integrar a Comissão da Verdade, não aceitaria o convite, poistemia que o resultado levasse a uma "verdade histórica" única, enquanto "um historiador deve trabalhar com o conceito de que não existe uma verdade absoluta” (O GLOBO, 2012). Além disso, para Carlos Fico, o historiador deve se distanciar de simplismos como a vitimização da resistência ou até mesmo a humanização do algoz, as relações são mais complexas, há jogos de acomodações, e o historiador não deve colocar-se como juiz. Embora concorde com a posição oficial da ANPUH de que a história tem os melhores instrumentos e métodos para compor uma reflexão que ilumine o passado traumático, dignificando os que sofreram, para Carlos Fico o historiador deve escrever a história sem incorrer no simplismo de condenação do mal. Dentre as divergências sobre a presença, ou não, de historiadores na Comissão da Verdade, um ponto que ambos concordam é que tal Comissão é do interesse direto dos historiadores, sejam eles estudiosos do período, ou não. Além de poder suscitar um debate 295 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul teórico-metodológico sobre a tarefa da história o papel ético-político do historiador, o direito à memória e o direito à história, a Comissão da Verdade pode trazer, também, novas informações e fontes para pesquisas. Dentro do exposto, é necessário ressaltar que a relação entre comissões da verdade e a “verdade” passa por um processo de tomada de decisões sobre o que será investigado e o que será relatado, quais depoimentos serão colhidos e o que será gravado. Nessa perspectiva, as escolhas feitas pelos comissionados e a metodologia empregada influenciam na “verdade” a ser apresentada no relatório final da comissão (MARTINS; MENDES, 2012, p.214). Nesse aspecto o trabalho de uma comissão de verdade se assemelha ao trabalho historiográfico, já que este também conta com a mediação, seleção e interpretação do historiador. Podemos inserir a criação da Comissão Nacional da Verdade na perspectiva de que a memória e a história também são mecanismos de reparação. Nesse sentido, a Comissão da Verdade representa um avanço, não no estabelecimento de fatos, mas no reconhecimento por parte do Estado de que tais fatos aconteceram. A Comissão representa um passo importante na história por buscar a revelação de fatos que, de outro modo, dificilmente chegariam ao conhecimento do grande público. Além disso, os integrantes da Comissão podem convocar testemunhas, solicitar documentos, exumações, investigações técnico-científicas e policiais, dentre outros mecanismos legais que podem corroborar, posteriormente, para o trabalho do historiador. Apesar das críticas, principalmente advindas de setores militares, a Comissão foi instalada em 10 de maio de 2012. Durante a cerimônia de instalação, a presidente Dilma Rousseff ressaltou que a missão do órgão é restabelecer a verdade sem violar a Lei de Anistia de 1979, que impede que os crimes anistiados sejam julgados. Nesse sentido, os pactos do passado seriam mantidos, impedindo punições. Na mesma direção da Presidente da República, os membros indicados para compor a Comissão sinalizaram para a imprensa que a Lei de Anistia será respeitada. José Paulo Cavalcante Filho, advogado membro da Comissão, afirmou que o objetivo “é contar a verdade, a história dos vencidos, sobretudo. Apurar esse pedaço da história do Brasil e depois sepultar, porque você não constrói um país olhando para trás” (FOLHA DE S. PAULO, 2012). Da mesma forma, Gilson Dipp afirmou que “nenhum Estado se consolida 296 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul democraticamente se o seu passado não for revisto de forma adequada” (CORREIO BRAZILIENSE, 2012). De acordo com o porta-voz da Comissão na cerimônia de instalação de seus trabalhos, José Carlos Dias, os trabalhos da Comissão da Verdade representarão uma “institucionalizada montagem de memória coletiva” que ajudará a consolidar a democracia brasileira sem “apedrejamentos” (SOUZA; ALENCASTRO, 2012). Distanciando-se da “tese dos dois demônios”, o colegiado da Comissão decidiu, por unanimidade, que irá examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticados por agentes públicos, pessoas a seu serviço, com apoio ou no interesse do Estado, desta forma seu foco está nas violações de direitos humanos praticadas pelo Estado e seu representantes no período de 1946-1988. De acordo com Paulo Sérgio Pinheiro, o foco da Comissão da Verdade é provar que a repressão ocorrida durante a ditadura não foi mera questão de abuso ou de excesso, mas sim uma política de Estado (BRASIL, CNV, 2012). Durante a cerimônia de instalação, contando com a presença dos ex-presidentes José Sarney, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, a Presidente Dilma afirmou que a Comissão Nacional da Verdade simboliza a consolidação do processo democrático que não pode se constituir sob a ameaça do silêncio e do esquecimento. Nessa perspectiva, a Comissão rompe o silêncio do Estado em relação à transição controlada. Segundo a Presidente da República, a revelação da verdade e apuração dos fatos, mesmo não correspondendo a uma punição penal, tem um valor simbólico que pode promover a reconciliação e contribuir para a construção de uma cultura de direitos humanos, além disso, pode contribuir para o fortalecimento da democracia, a reabilitação das vítimas e a restauração de sua dignidade. Espera-se, com a Comissão, que a revelação da verdade tenha um impacto na sociedade como um todo e não apenas na esfera privada das vítimas e seus familiares, uma vez que é a sociedade que, por meio de diferentes mecanismos, nomeia e atribui significação ao passado. Nesse sentido, a Comissão da Verdade busca, mais do que conhecer os fatos, reconhecer publicamente o ocorrido para que tal passado seja compartilhado na esfera pública. Muitos casos investigados pela Comissão da Verdade já tem seus fatos básicos conhecidos, ao menos por aqueles que foram afetados. Em depoimento concedido à Comissão 297 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul da Verdade em dezembro de 2013, o General Álvaro de Souza Pinheiro destacou o alto nível de informação de seus entrevistadores integrantes da Comissão, por vezes o General ironizou a necessidade de anotar dados, pois os técnicos apresentavam-lhe informações que, até então, elenão tinha conhecimento.Após a afirmação da entrevistadora de que alguns depoentes haviam confirmado que os documentos institucionais acerca da Guerrilha do Araguaia foram destruídos, o General Álvaro Pinheiro, questionado acercado destino dos documentos,destacou: “então se vocês sabem disso, porque vocês estão perguntando pra mim, querem me emboscar?” (BRASIL, CNV, 2013). Não era uma emboscada como sugeriu o general, mas uma tentativa de reconhecimento, uma vez que a ênfase da Comissão da Verdade está em que os fatos sejam reconhecidos publicamente. Como destacou Gustavo Miranda (2012), o reconhecimento é visto como uma afirmação de que a dor de uma pessoa é real e merecedora de escuta. Dessa forma, o reconhecimento dos fatos é considerado central para a restauração da dignidade das vítimas. Para promover o reconhecimento público dos fatos passados, o maior desafio da Comissão da Verdade é romper o “pacto de silêncio” dos militares que ainda tratam os fatos ocorridos durante o regime ditatorial como segredo de Estado. Como destacou o General Álvaro de Souza Pinheiro, em seu depoimento à Comissão da Verdade,a busca da Comissão, na visãodos militares, será inglória. O general declarou diante das questões dos técnicos da Comissão da Verdade: “não vou confirmar nada a Comissão nenhuma. Nem o papa me obrigaria [...] Tô rindo. Não tenho nenhum interesse nisso”.203Ora, parece evidente que sem romper o “pacto”, pouco se poderá aprofundar ou esclarecer sobre o tema. Todavia, entre a “verdade” buscada pela Comissão e os militares que participaram do regime ditatorial, encontra-se a Lei de Anistia. Um dos depoimentos concedidos à Comissão Nacional da Verdade que melhor evidencia essa opção tanto pela negação quanto pelo silêncio, foi o depoimento do coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou DOI-CODI entre 1970 e 1974. Convocado para depor em 10 de maio de 2013, Ustra se apresentou com um habeas corpus 203 O vídeo com a gravação do depoimento do Gal. Álvaro de Souza Pinheiro encontra-se disponível em :http://www.youtube.com/watch?v=G1xoTwKu4Y4. Acesso em: 12 de abril de 2014. 298 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul que lhe concedia o direito de permanecer em silêncio.Apesar do direito concedido pela justiça, o coronel, antes das questões da Comissão, leu um depoimento em que destacou que a democracia brasileira deve muito aos militares que combateram o comunismo e liquidaram os “terroristas”. Mesmo após afirmar ter “cumprido seu dever”, Ustra negou que tenham ocorrido torturas e mortes dentro do DOI-CODI durante seu comando, segundo o coronel, todas as mortes ocorreram em combate, com exceção dos “suicídios” de Vladmir Herzog e Manoel Fiel Filho, mortes que ocorreram quando Ustra já não comandava a instituição. Diante das negações, ao ser questionado sobre supostas mortes ocorridas nas dependências do DOI-CODI, o coronel, alterado, afirmou que não responderia a mais nenhuma pergunta, cruzou os braços e ressaltou: “eu não tenho mesmo mais nada a responder”, todavia o advogado José Carlos Dias afirmou que continuaria perguntando204, eis a missão da Comissão da Verdade. O depoimento do coronel Ustra ilustra uma das principais dificuldades da Comissão da Verdade. Respaldado pela Lei de Anistia, o militar tem o direito de permanecer em silêncio, de esquecer o passado e, face a face com suas supostas vítimas, reafirmar a impunidade do passado.205 Com a colaboração de Comissões Estaduais e Comissões Universitárias, até a presente data a Comissão Nacional da Verdade produziu relatórios parciais de pesquisas acerca da morte de Juscelino Kubistchek, do deputado Rubens Paiva, do atentado no Riocentro, das ações realizadas na Casa da Morte em Petrópolis e sobre as instituições utilizadas pelas Forças Armadas para perpetração de violações de direitos humanos. Foram realizadas diversas audiências públicas por todo o país, colhidos depoimentos e milhares de documentos recebidos pela Comissão estão sendo analisados. Após dois anos de atividades, a Comissão 204 Depoimento disponível em: http://www.cnv.gov.br/index.php/component/content/article/2-uncategorised/364tabela-de-eventos. 205 Durante o depoimento do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ocorreu um incidente que causou tumulto na Comissão da Verdade. Questionado se havia torturado Gilberto Natalini em 1972, então estudante de medicina, Ustra negou o fato, todavia, ao ser questionado se estaria disposto à uma acareação com Natalini, o coronel afirmou que não faz acareação com “ex-terrorista”. Na plateia e visivelmente alterado, Natalini se levantou e afirmou que nunca fora terrorista e que o terrorista seria o coronel. A fala de Gilberto Natalini causou tumulto, mais dois homens se levantaram em defesa de Ustra e exigindo o direito de fala, logo a sessão foi encerrada. 299 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul ainda recebe severas críticas relacionadas à sua “parcialidade” e por estar voltada para um passado, que para grande parte da sociedade brasileira, não faz sentido. Pelo que foi exposto, portanto, espera-se da Comissão Nacional da Verdade que a sociedade tenha a oportunidade de construir discursos que disputem democraticamente a hegemonia narrativa da versão oficial sobre o passado (ANTONIO, 2012). Ao levar ao reconhecimento público dos fatos ocorridos, a Comissão, em vez de produzir um discurso oficial, poderá contribuir para que o debate histórico seja fomentado no espaço público por intermédio de debates e a apresentação de versões que competem entre si, uma vez que a sociedade deve ter o conhecimento dos fatos ocorridos sob diferentes olhares e versões, para que ela possa conformar, ou não, uma narrativa que faça sentido e coadune com suas experiências. Referências Bibliográficas ANPUH. Comissão da Verdade: entre a memória e a história. 12 de janeiro de 2012. Disponível em: http://www.anpuh.org/informativo/view?ID_INFORMATIVO=2486. Acesso em 10/11/2013. ANTONIO, Gustavo Miranda. Os objetivos da Comissão Nacional da Verdade: a busca pela verdade e a promoção da reconciliação. Dissertação de mestrado em direito. Fundação Getúlio Vargas, São Paulo: 2012. ARNS, Dom Paulo Evaristo (Org.). Brasil: nunca mais. Petrópolis. Vozes, 1985. BAUER, Caroline Silveira. 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Outro problema é a baixa atratividade da carreira docente, com recrutamento dos estudantes dos cursos de licenciatura justamente entre aqueles de escolarização básica mais precária. Isso já evidencia que o acesso ao ensino superior não se dá do mesmo modo para os membros de todas as classes sociais e que a maioria dentre aqueles que estão rompendo as barreiras econômicas e realizando o sonho de chegar à universidade, o fazem pela via dos cursos cujo valor do diploma é bem menor (ARANHA E SOUZA, 2013, p. 79). Um terceiro elemento a ser considerado é o elevado índice de desistência da profissão. E um dos motivos mais apontados é a informação sobre o elevado índice de evasão e repetência no cotidiano da sala de aula. Souza (2006) também enfocou as repercussões no mercado de trabalho no campo de ensino, e as características da população que está inserida no mercado de trabalho. Para a referida autora, o mercado de trabalho no campo do ensino não tem exercido boa atratividade para os profissionais que ali já se inseriram, exceto para “aqueles grupos sociais que se 206 Graduanda em História pela Universidade Estadual de Goiás - Unidade Universitária de Iporá. Bolsista PIBID/UEG CNPq. E-mail: [email protected] 303 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul encontra em situação de desemprego face às mudanças e reestruturação das atividades produtivas” (SOUZA, 2006: 3). Entendimento semelhante ao de Souza (2006) foi apresentado por uma equipe de pesquisadores da Fundação Carlos Chagas em um relatório preliminar realizado em 2009. Por meio deste trabalho revelaram diversas situações em que os jovens não se interessam pela carreira de professor aumentando a escassez de profissionais qualificados em diversas disciplinas do ensino. Para os estudantes que participaram da pesquisa, o trabalho do professor é encarado, portanto, com limitações e dificuldades. E na possibilidade de um comprometimento exclusivo com essa atividade profissional, há a preocupação da disparidade entre exigência e retorno, ou seja, os jovens falam do medo de trabalhar muito e não serem devidamente reconhecidos [...]. O exercício do magistério aparece como nobre e desejável, há reconhecimento e gratificação, por parte dos alunos, por esse ofício; mas tal sentimento de satisfação se mostra excessivamente intermitente e incontrolável para tornar-se um desejo/realidade por todos almejada ou mesmo suportada (FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS, 2009: 66-67). Assim, os estudantes que trabalham e os trabalhadores que estudam vivem atualmente um duplo impasse. Ao mesmo tempo em que precisam trabalhar para estudar e estudar para conseguir uma melhor qualificação profissional muitas vezes não sentem motivados e confiantes. A própria sociedade brasileira passa uma imagem contraditória da profissão: ao mesmo tempo em que ela é louvável, o professor é desvalorizado social e profissionalmente e, muitas vezes, culpabilizado pelo fracasso do sistema escolar. Essas considerações geram alguns questionamentos: Quais os aspectos que incentivam e/ou afastam do que constitui a especificidade de ser professor? Valerá a pena investir na carreira docente? 304 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Diante destas questões-problemas recorreu-se aos pressupostos de Siqueira (2011). Esta autora destacou a relevância de se compreender sobre a luz do materialismo histórico e dialético o fenômeno trabalho e estudo. Para ela os estudantes trabalham demasiadamente tantas horas por dia para poderem estudar, mas se não estudarem não terão chances melhores de trabalho. Esse conflito manifesta-se como “uma contradição essencial”. Atualmente, conciliar tempo de trabalho e tempo para estudar é a sua principal conclusão. Como parte de nossos primeiros resultados da atual pesquisa podemos dizer que para a maioria dos estudantes, trabalhar possibilita estudar e estudar possibilita trabalhar. Para eles é essa a troca possível. Torna-se imperativo conciliar tempo de trabalho e tempo para estudar mesmo que o estudo se concretize muito aquém do que precisariam para alcançar uma boa formação profissional (SIQUEIRA, 2011, p. 12). A contradição que se evidencia é que o trabalho atrapalha o estudo e o estudo também atrapalha o trabalho. Conforme bem lembra Siqueira (2011, p. 13), a escola e a universidade assumem “um papel de tolerância” frente às novas relações de trabalho vividas pelos jovens que nela estudam. E o mais grave: “Não há muito espaço nas disciplinas acadêmicas para a discussão sobre as mudanças profundas que aconteceram no mundo do trabalho”. Ainda assim, sabe-se que essas mudanças não atingem apenas nossos alunos trabalhadores, mas atingem também a todos os professores que são também trabalhadores. Material e Métodos Para maior compreensão da chamada crise de licenciatura em relação ao curso de história da UEG-Iporá além da abordagem teórica conceitual realizou-se uma pesquisa de campo para coleta e análise de dados primários. Para tanto, optou-se pelas entrevistas 305 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul semiestruturadas tendo como público alvo os alunos no período compreendido entre 2011 a 2014. Conforme Triviños (1987) a entrevista semiestruturada tem como característica questionamentos básicos. O foco principal é direcionado pelo investigador-entrevistador. Para o referido autor, a entrevista semiestruturada “[...] favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade” (TRIVIÑOS, 1987, p. 152). Resultados alcançados A Universidade Estadual de Goiás (UEG) foi criada em 16 de abril de 1999, pela lei estadual de número 13.456. Sua sede está localizada no município de Anápolis-Go. Destaca-se ainda que a criação da UEG resultou de um processo de incorporação de várias instituições de ensino superior espalhadas pelo interior do Estado de Goiás fazendo desta uma instituição multicampi, com 41 Unidades Universitárias espalhadas em todo território do estado de Goiás (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS, 2014a). No caso de Iporá-GO, a criação da UEG incorporou a Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Iporá (Feclip)207 dando origem a UEG-Iporá. Na época, administrada pelo Prof. Itamar Paes Sousa (1999-2003/1), ela se fortaleceu e expandiu seu campo de ação com a implantação das chamadas licenciaturas parceladas, criadas pelo Programa Universidade para os Trabalhadores da Educação, em convênio com a Secretaria Estadual de Educação, Prefeituras da região e Sindicato das Escolas Particulares, oferecendo os cursos de 207 A FECLIP foi Criada pelo decreto-lei Estadual de nº. 2.520 de 30/10/1985 (DOE nº 14.899 de 13/10/1986), conforme Autorização Legislativa Consubstanciada na Lei Estadual nº 9.777 de 10/09/1985 (DOE nº 14.821, de 16/09/1985). De acordo com os termos do citado Decreto 2.520, de 30/10/1985, a entidade autárquica enfocada teve sede no fórum na cidade de Iporá, situado à Avenida 31 de Agosto, S/Nº - Bairro Mato Grosso – Cep. nº 76.200.000, neste Estado. Constituindo pessoa jurídica do direito público, jurisdicionada à Secretaria da Educação pelo Art. 8º do Decreto de sua instituição autárquica, a Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Iporá, sendo órgão integrante da Administração indireta do Executivo Estadual, gozando de todas as prerrogativas asseguradas às entidades de Direito Público, com autonomia patrimonial, financeira, administrativa, disciplinar e didático-pedagógica, observados os princípios de dependência jurisdicional em relação à administração direta (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS, 2013, p. 6) 306 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Geografia, História, Letras, Matemática, Biologia, Pedagogia e Educação Física, sendo esta a última turma, dessa modalidade de ensino, tendo seus trabalhos concluídos 09/11/2009 (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS, 2013, p. 6-7). O Curso de História foi criado na época da FECLIP e autorizado a funcionar por meio do Decreto n°. 98.958, de 15/02/90, nos termos do Parecer CEE-GO nº 11/87, com 50 vagas anuais. Cumpre informar que o curso começou a funcionar em 1988, anteriormente, portanto, ao referido Decreto. Consta às fls. 041/043 a relação dos alunos que ingressaram no curso nos anos de 1988 e 1989. Pela Portaria nº 209/91 - SENESU/MEC foi designada Comissão Verificadora, constituída pelas professoras Marília Souza do Valle e Regina Rotenberg Gouvêa, da Universidade Federal do Paraná e Deisy Mathias Ribeiro, da DEMEC/GO (BRASIL, 1992). Em 2013, sob a coordenação da professora Suzana Rodrigues Floresta, o Curso de Licenciatura em História obteve o novo reconhecimento de funcionamento oferecendo atualmente 40 vagas anuais, sendo todas no turno noturno, com módulos presenciais e práticos. O curso possui cerca de 73 alunos matriculados, distribuído por ano, que encontra-se em funcionamento nas instalações do prédio sede da Unidade da UEG de Iporá. Possui 15 professores, dos quais 11 são contratados por contratos especiais e 04 são contratados como efetivos. Na época, o quadro de professores era composto por 10 especialistas e 05 mestres (ESTADO DE GOIÁS, 2013). A matriz curricular do curso está organizada em quatro anos e sua estrutura abrange disciplinas de conhecimento básico, conhecimento profissional e núcleo de formação complementar. Funciona com duas matrizes, uma de 2008, com poucos alunos e a atual que é de 2009, com uma carga horária de 2.950 horas aulas. O colegiado dos professores se reúne em média uma vez por mês para avaliar e discutir a lógica do curso. Por meio da pesquisa de campo foi possível perceber que a maioria dos estudantes do Curso de História são trabalhadores ou já trabalharam (93,48%). Apenas 6,52% dos alunos entrevistados afirmaram nunca terem trabalhado. Diante deste quadro, se considera que o Curso de História é um Curso de Trabalhadores onde o trabalho tem ocupado a maior parte do 307 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul tempo e das preocupações do estudante trabalhador. Assim, há de se observar que “mesmo tentando conciliar trabalho e estudo, enfrentando o tempo e o cansaço do dia-a-dia, os estudantes trabalhadores não conseguem alcançar a dedicação ao estudo necessário ao percurso acadêmico” (ABRANTES, 2012, p. 5). Quanto à forma de inserção no mercado de trabalho, percebeu-se que a ocupação informal absorve a maioria dos estudantes trabalhadores distribuídos em diversas áreas tais como: do lar, domésticas, vendedores, auxiliares, secretárias, digitadores, funcionários públicos, serviços gerais, pedreiros, operadores de caixa, babás, cabeleireiras, artesãos e pintores. Dentre os 46 entrevistados, observou-se também que sete já estão atuando como professores e 6 são bolsistas de iniciação científica. O quadro de certa forma não é muito animador. Afinal, apenas 28,2% de todos os alunos entrevistados se dedicam em tempo integral às atividades de ensino, pesquisa e extensão, ou seja, já trabalham como professores ou são bolsistas de iniciação científica. Dessa forma, entende-se que os demais alunos que trabalham em outras atividades (71,8%), além de não se dedicarem ao estudo e a profissão em tempo integral, consomem grande parte das suas forças e potencial criativo em outras atividades. Quando os estudantes do curso de História foram questionados em relação a possibilidade de conciliar trabalho e estudo, observou-se uma divergência muito grande de opinião. De certa forma, os resultados apresentados evidenciaram senão um empate técnico, pelo menos uma convicção apertada de que não é possível conciliar trabalho e estudo (52,17%). Entre os entrevistados 47,83% afirmaram que é possível conciliar trabalho e estudo. Com a finalidade de verificar com mais precisão se é possível conciliar trabalho e estudo, fez-se a pergunta de forma diferente208. Ou seja, perguntou-se: O trabalho atrapalha o 208 A elaboração de um questionário de pesquisa pode parecer, à primeira vista, uma tarefa simples e trivial. Contudo, seguindo o exemplo de Almeida (2002, p. 339) esta pesquisa mostra que os efeitos de uma pergunta na entrevista sobre os resultados da pesquisa podem ser muito grandes. Assim, “o que é detalhe se torna extremamente relevante, exigindo que os questionários de pesquisa sejam cuidadosamente elaborados e prétestados. Uma alternativa a isto é a utilização de casos como o apresentado aqui, e a realização de experimentos com perguntas”. 308 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul estudo? Desta vez, em relação a possibilidade do trabalho atrapalhar ou não o estudo, verificou-se que 84,78% dos entrevistados acreditam que o trabalho atrapalha o estudo. Apenas 15,22% disseram que o trabalho não atrapalha o estudo. Donde se concluí que pode ser muito difícil conciliar estudo e trabalho (empate técnico) tendo em vista que, com maior frequência, o trabalho atrapalha as atividades acadêmicas. Mesmo entendimento expressado pelos alunos do Curso de História apresentou Cardoso e Sampaio (2013, p. 2): “O trabalho do estudante tanto prejudica seu desempenho em atividades ligadas ao aprendizado como também reduz seu grau de envolvimento com o ambiente acadêmico”. Também se procurou investigar nesta pesquisa se as atividades acadêmicas interferem no trabalho dos alunos. A pergunta se justifica porque a explicação mais comum entre os evadidos do curso, é que não estavam conseguindo conciliar trabalho e estudo e, via de regra, o estudo estaria atrapalhando o seu trabalho e desta forma ameaçando a segurança e bem estar dos entrevistados e das suas famílias. Desta vez, a maioria confirmou que o estudo atrapalha o trabalho (67,40%). Portanto, o quadro que ora se apresenta pode ser caracterizado da seguinte forma: a maioria dos alunos do Curso de História trabalha, estão divididos em relação à possibilidade de conciliar trabalho e estudo, mas acreditam que trabalho atrapalha o estudo e que o estudo também atrapalha o trabalho. Diante da situação, alunos, professores, estudiosos e a sociedade em geral têm reivindicando mudanças no sistema educacional. De acordo com Siqueira (2011), com as mudanças no sistema de relações de trabalho, o emprego estável é reduzido apesar das noticias insistirem que aumentou no Brasil. O número de trabalhadores qualificados também é menor (considerando o avanço tecnológico de hoje, que justamente precisa de trabalhadores mais qualificados). Existe o medo de perder o emprego mesmo pelos trabalhadores que possuem maior qualificação. Isso os levaria a buscar outras formas de trabalho como trabalhos terceirizados ou subcontratações. As perdas dos direitos dos trabalhadores e o aumento do desemprego contribuem para a deterioração do trabalho e, portanto, para uma maior exploração. 309 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Diante da chamada “flexibilização laboral” da nossa sociedade, não dá mais para cruzar os braços ou “não fazer nada” até porque “não há muito espaço nas disciplinas acadêmicas para a discussão sobre as mudanças profundas que aconteceram no mundo do trabalho”. Pesquisar sobre trabalho como categoria central e colocá-lo em conexão com a educação desvelam realidades estruturais da qual o capitalismo não pode prescindir para se reproduzir como sistema (a exploração do homem pelo próprio homem). Dito de outra forma, os indivíduos são explorados em todos os lugares. Por isso, “a escola e a universidade tem assumido um papel de tolerância frente às novas relações de trabalho vividas pelos jovens que nela estudam” (SIQUEIRA, 2011, p. 13). A partir das considerações de Siqueira (2011), buscou-se perceber se a tolerância209 é ou não importante junto ao Curso de História. As pesquisas revelaram que para a maioria absoluta dos estudantes (91,30%) a tolerância é importante contra apenas 8,70% para os quais a tolerância não é importante. Observa-se ainda que de acordo com Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional estabeleceu que a educação é dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (Art. 2º). O ensino será ministrado com base no seguinte princípio: respeito à liberdade e apreço à tolerância (Art. 3º, IV parágrafo). 209 Tolerância é um termo que vem do latim " tolerare " que significa "suportar", "aceitar". A tolerância é o ato de indulgência perante algo que não se quer ou que não se pode impedir. A tolerância é uma atitude fundamental para quem vive em sociedade. Uma pessoa tolerante normalmente aceita diferentes opiniões ou comportamentos diferentes daqueles estabelecidos pelo seu meio social. Este tipo de tolerância é denominada "tolerância social". A expressão "tolerância zero" é utilizada para definir o grau de tolerância a uma determinada lei, procedimento ou regra, de forma a impedir a aceitação de alguma conduta que possa desviar o que foi previamente estabelecido. Por exemplo, "tolerância zero a motoristas embriagados". O dia 16 de Novembro foi instituído pela ONU (Organização das Nações Unidas) como o Dia Internacional para a Tolerância. Esta é uma das muitas medidas da ONU no combate à intolerância e não aceitação da diversidade cultural (Ver: SIGNIFICADOS.COM.BR, 2014). 310 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul O não cumprimento do princípio número IV por parte de alguns professores foi descrito de várias formas. Para Rocha (2014) a não tolerância depende do professor, mas está presente no dia-a-dia, principalmente, em relação à chamada: Depende do professor, inclusive tinha um professora que tentou estipular que até 07:15 tinha presença e a professora tinha duas aulas e entrando até 07:15 você ganha presença, se chegar por exemplo 07:20 você além de ficar com falta da primeira aula ainda fica com falta na segunda aula. Eu acho que isso não é tolerância né, deveria contar apenas a primeira aula como falta, não as duas. Por exemplo, eu chegava tarde do serviço e acabava chegando tarde na faculdade, então se eu ultrapassasse as 07:15 eu já estaria com falta nas duas aulas. (ROCHA, 2014) Para Cardoso (2014) muitos professores não são tolerantes em relação à entrega de trabalhos e se não entregar na data exata, “fica com zero mesmo”. Em relação aos trabalhos não, porque muitos deles a maioria em si, tirando uns dois ou três, eles tem tolerância sim, permite que a gente entrega com um pouco de atraso, porque devido alguns fatores que impeçam a gente entregar no dia, mas outros não toleram não, se não entregar no dia, naquela data exata, fica com zero mesmo (CARDOSO, 2014) Santos (2014) completa o raciocínio enfatizando a falta de tolerância em relação à sobrecarga de trabalhos. Alguns não têm essa tolerância, não ajudam. Por exemplo, quando passa um livro pra você ler ou vai ter um seminário é uma responsabilidade que temos que pegar. Nós sabemos que temos que 311 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul ler o livro até para amanhã mesmo para nós apresentar esse trabalho. As vezes temos um tempo, mas não temos que preocupar só com uma matéria temos mais 5. Então fica um pouco pesado, pois você não vai estudar só para um professor, já tem de outros professores (SANTOS, 2014). Enfim, haveria por parte de alguns professores do Curso de História uma espécie de “tolerância zero” em relação à chamada, entrega de trabalhos, leitura de textos e avaliações, apesar de a tolerância ser considerada um elemento fundamental apontada pela literatura (SIQUEIRA, 2011), valorizada pelos acadêmicos e, inclusive, constituir um princípio educacional constitucional. Considerações Finais De acordo com as informações fornecidas pela secretaria acadêmica da UEG, em 2013 havia na UEG-Iporá 450 alunos matriculados e em 2014 o número de alunos matriculados reduziu para 360. A redução do número de alunos é preocupante e há alguns anos a própria UEG se questiona a respeito de sua forma de ser e de atuar enquanto Instituição de Ensino Superior Pública. O crescimento desordenado e a multiplicação dos mesmos cursos constituem-se em um problema a ser enfrentado. As questões e interesses políticos, sem dúvida alguma, influenciaram muito na criação de Campi e Cursos. A avaliação realizada sob a coordenação do Grupo de Trabalho de Políticas de Oferta e Demanda de Vagas, com início em maio de 2013, consolidou-se em um instrumento em busca de conhecimento mais apurado sobre a situação real dos cursos 312 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul ofertados por essa instituição para subsidiar, com critérios técnicos, um processo de planejamento visando ao fortalecimento dos cursos ofertados e a qualidade na formação (UEG, 2014b, p. 5). Diante de um quadro pouco animador verifica-se que alguns cursos já estão sendo fechados. Este é o caso, por exemplo, do curso de história da UEG-Jussara que teve a pior avaliação (5,5). O curso de história da UEG-Iporá também corre este risco. Afinal, entre os doze cursos de história avaliados ficou em penúltimo lugar (5,7) enquanto o curso de história de Anápolis teria sido o melhor avaliado (7,2) (UEG, 2014c, p. 28). Referências Bibliográficas ABRANTES, Nyedja Nara Furtado de. Trabalho e estudo: uma conciliação desafiante. Campina Grande: REALIZE Editora, 2012. ALMEIDA, Carlos Alberto. O efeito do contexto e posição da pergunta no questionário sobre o resultado da medição. Opinião Pública. Campinas: 2002, Vol. VIII, nº2, pp.328-339. ARANHA, A. V. S.; SOUZA, J. V. A. de. As licenciaturas na atualidade: nova crise? Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 50, p. 69-86, out./dez. 2013. Editora UFPR. BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/pdf1/proejalei9394.pdf.>. Acesso em 05 de setembro de 2014. ________. Ministério da Educação e Cultura. Conselho Federal de Educação. Parecer n°. 535/92. Reconhecimento do curso de licenciatura plena em história. Aprovado em 10 de novembro de 1992. 313 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul CARDOSO, Ruth C. L; SAMPAIO, Helena. Estudantes Universitários e o Trabalho. Disponível emhttp://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_26/rbcs26_03.htm. Acesso em 24 de agosto de 2013. CARDOSO, Sirlei Moreira Teles. Opinião sobre o Curso de Licenciatura Plena em História da UEG-Iporá. Entrevista concedida a Nayara Katiucia de Lima Domingues Dias. Iporá-GO: 2014. ESTADO DE GOIÁS. Conselho Estadual de Educação. Comissão verificadora das condições para operacionalização de curso na UEG – Licenciatura em História – Iporá. Relatório de Renovação de Reconhecimento do Curso de Licenciatura em História. Iporá. Goiânia, 16 de maio de 2013. FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS. Atratividade da Carreira docente no Brasil. Relatório Preliminar. São Paulo, 2009. ROCHA, Tathiane Gualberto. Opinião sobre o Curso de Licenciatura Plena em História da UEG-Iporá. Entrevista concedida a Nayara Katiucia de Lima Domingues Dias. Iporá-GO: 2014. SANTOS, Naphtali Candido Lopes. Opinião sobre o Curso de Licenciatura Plena em História da UEG-Iporá. Entrevista concedida a Nayara Katiucia de Lima Domingues Dias. Iporá-GO: 2014. SIGNIFICADOS.COM.BR. Significado de Tolerância. Disponível em: <http://www.significados.com.br/tolerancia/>. Acesso em 28 de agosto de 2014. SIQUEIRA, Janes Teresinha Fraga. Trabalhar para Estudar - Estudar para Trabalhar: Realidades e Possibilidades. Florianópolis: UFSC, 2011. SOUZA, Aparecida Neri de. Professores e Mercado de trabalho. Rio de Janeiro: UERJ, 2006. TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS. História. Disponível em: <http://www.ueg.br/conteudo/633_historia>. Acesso em 20 de julho de 2014a. 314 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul ________. Projeto do III Simpósio Nacional de História. Tema: História, representação e poder. 28 a 30 de agosto de 2013. Iporá, 2013. ________. Relatório do Grupo de Trabalho (GT) de Política de Oferta e Demanda de Vagas da UEG. Anápolis: 2014b. ________. Anexos. Relatório do Grupo de Trabalho (GT) de Política de Oferta e Demanda de Vagas da UEG. Anápolis: 2014c. 315 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul ENTRE OS SABERES MÉDICOS E URBANÍSTICOS: A REFORMA DE PEREIRA PASSOS NA CAPITAL FEDERAL (1902-1906) Nilton Rabello Ururahy210 Milena d’Ayala Valva211 Saber médico: um dispositivo de poder político A ciência moderna212 nasceu com o papel de proporcionar a ordem racional, tendo a ambição de dominar a natureza para sustentar as necessidades humanas. É sob esse prisma que destacaremos a medicina, ciência a qual passou a ser utilizada como instrumento de intervenção estatal para controlar e disciplinar a sociedade e seu espaço a partir da concepção de progresso e modernidade. Portanto, o saber médico é um produto da era moderna. Sobre essa temática, Michel Foucault pronunciou uma conferência nomeada O Nascimento da Medicina Social213, no curso de medicina social, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em outubro de 1974. Nessa conferência, o autor elucida que o capitalismo 210 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER) pela Universidade Estadual de Goiás (UEG). E-mail: [email protected] 211 Docente da linha de pesquisa Dinâmicas Territoriais no Cerrado, do Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER) pela Universidade Estadual de Goiás (UEG). 212 Ciência moderna refere-se ao sistema utilizado para adquirir saberes baseados no método científico, ou seja, os conhecimentos são elaborados a partir de técnicas partilhadas por um grupo de especialistas que o reconhecem como verdade, validando-o como tal. Ver em FRANCELIN, Marivalde Moacir. Configuração epistemológica da Ciência da Informação no Brasil em uma perspectiva pós-moderna: análise de períodos da área, 2004, p. 50-51. 213 O autor divide, em sua análise, a formação da medicina social na Europa em três etapas: a primeira a se constituir foi a medicina de Estado, desenvolvida na Alemanha no século XVIII. A ciência de Estado, na Alemanha, forjou duas noções referentes a este: na primeira, ele era objeto de conhecimento e, na segunda, instrumento e espaço de formação de conhecimentos especializados. A segunda a se formar foi a medicina urbana, que desenvolveu-se na França no século XVIII. Ela esteve ligada ao desenvolvimento das estruturas urbanas. Entre as razões de seu desenvolvimento, encontravam-se a falta de unidade territorial e a existência de poderes paralelos nos múltiplos espaços de Paris, o que fez emergir a necessidade de unificação do poder urbano, visando organizar o espaço de forma homogênea, coerente e regida por um poder centralizado. Por último, a medicina da força de trabalho, desenvolvida na Inglaterra, que começou a tornar-se social com a criação da Lei dos pobres, tinha por finalidade o controle médico do pobre. Esta lei assegurava o controle dos indivíduos e de sua saúde, além de obter reserva de mão de obra e de proteger as classes ricas de qualquer subversão social. Ver em FOUCAULT, Michel. Arte, Epistemologia, Filosofia e História da Medicina, 2011. 316 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul permitiu a formação de uma medicina social. Para Foucault, a partir do final do século XVIII e do início do século XIX, o corpo era visto como símbolo de força de trabalho e produção. O controle do indivíduo na sociedade capitalista não se realiza apenas pela ideologia, mas se inicia pelo controle do corpo. Nesse sentido, “[...] o corpo era uma realidade biopolítica. A medicina, uma estratégia biopolítica.” (FOUCAULT, 2011, p. 405). Sendo assim, a medicina se desenvolveu acionada estrategicamente, tanto para as questões de ordem política quanto para as questões que envolviam o fator biológico, corporal. Já no que se refere ao contexto brasileiro, Roberto Machado e autores, na obra Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil, elucida que a medicina social teve sua emergência no início do século XIX. Nesse período, conforme o autor, algumas transformações foram relevantes no campo da saúde e merecem destaque como, por exemplo, o deslocamento do objeto de intervenção médica da doença para a saúde, sendo o médico o agente dificultador do aparecimento da doença. Machado ainda enfatiza que o médico, além de praticar a cura, passava também a praticar a prevenção. Foi a partir dessa prática que, paulatinamente, a medicina foi se configurando em uma das armas de intervenção do Estado para controlar a sociedade e as cidades. A saúde da população tornou-se um dos focos essenciais da política de Estado. Assim, cabia ao médico o dever de atuar por meio da prevenção, uma vez que a própria sociedade é desarticulada e fomentadora de enfermidades devido ao mau comportamento e aos hábitos anti-higiênicos. Portanto, os miasmas urbanos não poderiam ser aniquilados pela ação médica fragmentada e individualizada; a medicina necessitava ser transformada, ou seja, tornar-se coletiva. O Estado tinha o dever de legitimar as ações médicas. A sociedade consequentemente, deveria ser medicalizada214. Nesse sentido, Machado afirma que 214 O termo medicalização poder ser utilizado para caracterizar a medicina social brasileira a partir do século XIX, quando o médico passa a intervir em todas as questões, seja de ordem política, econômica, social ou urbana. A medicina ultrapassa as fronteiras da saúde, passando a penetrar e intervir na sociedade, nas cidades, nos espaços públicos e privados. Ela estabelece leis, normas, regulamentos que produzem mecanismos de controle social, objetivando afastar e prevenir os miasmas e os maus comportamentos que contribuem para o caos urbano. Ver em MACHADO, Roberto /et all/. Danação da norma: a medicina social e a constituição da psiquiatria no Brasil, 1978, p 155-156. 317 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul O médico torna-se cientista social integrando em sua lógica a estatística, a geografia, a topografia, a história; torna-se planejador urbano: as grandes transformações da cidade estiveram a partir de então ligadas à questão da saúde; torna-se enfim um analista de instituições: transforma o hospital – antes órgão de assistência aos pobres – em "máquina de curar"; cria o hospício como enclausuramento disciplinar do louco tornado doente mental; inaugura o espaço da clínica, condenando formas alternativas de cura; oferece um modelo de transformação à prisão e de formação à escola (MACHADO, 1978, p. 155-156). Deste modo, entre os séculos XIX e XX, a medicina brasileira gradualmente foi se tornando social, coletiva e urbana, ligada aos ideais de progresso, desenvolvimento e modernização da ordem capitalista. Ela aos poucos adquiriu poderes, graças ao seu caráter empírico e científico que possibilitou a sua legitimação política para organizar os vários aspectos da vida social, política e econômica, buscando alcançar o progresso capitalista. A medicina tornou-se um instrumento político do Estado brasileiro para intervir, controlar, organizar e disciplinarizar a sociedade e o espaço urbano. Desta forma, para o Estado e a medicina, sanear e higienizar a sociedade e o espaço urbano era garantir a saúde física, mental e moral dos trabalhadores, além de prevenir e combater doenças, epidemias, maus hábitos e comportamentos que desembocavam tensões sociais e desiquilíbrios políticos e econômicos. Em síntese, a ciência médica foi um dos dispositivos políticos do Estado brasileiro utilizado para auxiliar na sustentação, materialização e consolidação do projeto de modernidade baseado na razão, ordem e progresso capitalistas. Saber urbanístico: um dispositivo de poder político 318 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul No curso das Revoluções Industriais dos séculos XVIII e XIX, uma complexidade de problemas urbanos passou a atormentar o cotidiano dos habitantes das grandes cidades industriais europeias. Sobre essa temática, Leonardo Benevolo destaca as principais dificuldades urbanas, dentre elas: o frenético processo de industrialização; o forte crescimento demográfico; a insalubridade dos edifícios, habitações e fábricas; as tipologias estreitas das ruas; a falta de higiene e limpeza nos espaços públicos e privados das cidades; a proliferação de epidemias; as revoltas sociais; as dificuldades de locomoção e segurança; o crescimento desenfreado das cidades e a especulação imobiliária215. Deste modo, todas as entraves urbanos supracitadas tornaram-se alvo de preocupação do Estado, dos gestores, dos higienistas, dos médicos, dos engenheiros e dos arquitetos em razão das expansões urbanas desorganizadas e da péssima situação social e sanitária da população, influenciando no pensamento urbanístico e higienista da segunda metade do século XIX e do início do século XX. Contudo, o contexto em vigência possibilitou o nascimento de uma nova ciência, o urbanismo, que visava organizar as cidades. Deste modo, semelhante às ações médicas, as ações urbanas tornaram-se necessárias para eliminar os problemas relacionados ao caos constituído nas cidades. Tal fato nos permite afirmar que, no final do século XIX e no início do século XX, o urbanismo, pouco a pouco, assumiu um papel de destaque, assim como a medicina, tornando-se um dispositivo político utilizado pelo Estado para intervir e organizar os espaços das cidades e seus habitantes. Giulio Carlo Argan afirma que “[...] o urbanismo é uma disciplina moderna.” (ARGAN, 1993, p.240); isto porque o urbanismo teve a sua normatização como ciência tardiamente, apenas entre o final do século XIX e início de século XX, com distintas formas de atuação na área acadêmica e profissional. Para Argan, o urbanismo refere-se à prática de peritos responsáveis pelas operações urbanísticas e arquitetônicas que, muitas vezes, estiveram submetidas aos interesses econômicos, estatais e aos distintos conhecimentos – demográficos, econômicos, produtivos, sanitários e tecnológicos – que compõem a área do 215 Ver em BENEVOLO, Leonardo. História da cidade, 1983. 319 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul planejamento e dos modos de intervir no espaço urbano216. Apesar disso, a imprecisão do regulamento acadêmico e das teorias e práticas urbanísticas estavam relacionadas à indefinição metodológica, devido à pluralidade de saberes constituídos pelos especialistas do urbanismo. No entanto, o urbanismo gradualmente torna-se uma disciplina autônoma e pluridisciplinar – pois reúne conhecimentos sociológicos, históricos, geográficos, físicos, químicos, sanitários, higiênicos, produtivos, econômicos e tecnológicos. Para compreender esse processo, a historiadora Maria Stella Bresciani aclara que o urbanismo tem sua gênese como ciência na década final do século XIX. Essa temporalidade pode ser definida, neste momento, quando os pressupostos teóricos se arranjam com a ambição de formar um arcabouço definido sobre uma base formal, ou seja, a partir de um plano que admitia a sistematização edilícia de uma cidade217. Nesta concepção, o urbanismo torna-se uma ciência com a finalidade de aliar teoria, técnica e prática para organizar o funcionamento da vida urbana. Em suma, o urbanismo é apresentado como disciplina relativa ao controle do crescimento e da transformação espacial dos assentamentos urbanos com pretensão científica e globalizante; propõe-se resolver os conflitos sociais, por meio de um projeto de organização técnica da cidade e de regulamentação do uso do solo, numa divisão lógica dos ambientes públicos e privados (CALABI apud BRESCIANI, 2009, p.30). Para Bresciani, em linhas gerais, o urbanismo formou-se como uma disciplina autônoma com o intuito de resolver os problemas consequentes da industrialização, do crescimento demográfico, dos problemas sociais, higiênicos e epidêmicos, das edificações 216 Ver em ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade, 1993, p. 211. Ver em BRESCIANI, Maria Stella. Cidades e Urbanismo. Uma possível análise historiográfica, 2009, p. 2830. 217 320 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul insalubres, das dificuldades na circulação e da necessidade de expansão de várias cidades europeias ao longo da segunda metade do século XIX218. Nesse cenário, complementando as ideias de Bresciani, Choay afirma que “[...] a expansão da sociedade industrial dá origem a uma disciplina que se diferencia das artes urbanas anteriores por seu caráter reflexivo e crítico, e por sua pretensão científica.” (CHOAY, 1979, p. 02). Sendo assim, o urbanismo aparece como uma ciência política, uma vez que foi corporificada a partir de elementos técnico-administrativos capazes de organizar e projetar os espaços públicos e privados das cidades. A circulação das ideias, discussões, debates teóricos e experiências urbanísticas desenvolvidas na Europa entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX influenciaram no desenvolvimento teórico e prático do urbanismo em países de diferentes continentes, inclusive na América, sobretudo o Brasil. Assim, o Brasil esteve conectado aos debates teóricos e técnicos sobre o urbanismo ocorridos internacionalmente. No entanto, muitas vezes, as ideias chegavam com certo atraso. As teorias e técnicas urbanísticas europeias entraram no Brasil de várias maneiras. Dentre elas, três pontos valem a pena ser ressaltados: o primeiro remete à exportação do saber e da formação urbanística europeia; o segundo refere-se à execução de trabalhos de organização urbana realizados em diferentes cidades brasileiras por engenheiros e arquitetos europeus; já o último destaca-se na formação acadêmica de engenheiros e arquitetos brasileiros em diferentes universidades europeias. Em vista disso, a experiência urbanística europeia, especialmente a francesa, foi a principal fonte de inspiração para as práticas urbanísticas realizadas no Brasil entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX. A Reforma de Pereira Passos: entre os saberes médicos e urbanísticos Durante a recém criada República, os ideais de progresso e modernidade circulavam nos meios políticos, acadêmicos, produtivos, profissionais e intelectuais do Brasil. Assim, configurou-se um objetivo nacional a se alcançar: a modernização do país via industrialização 218 Ver em BRESCIANI, Maria Stella. Cidades e Urbanismo. Uma possível análise historiográfica, 2009, p. 3133. 321 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul e renovação dos espaços das cidades. Para engenheiros, médicos, sanitaristas, higienistas e arquitetos a cidade seria o pontilhão desse processo. No Brasil, então, emergiu a negação das estruturas urbanas coloniais e a afirmação da modernização de tais espaços. Para atingir a meta, os saberes médicos e urbanísticos foram utilizados como dispositivos políticos do Estado na condução deste processo. Nesse contexto, evidenciaremos uma das grandes experiências urbanísticas no cenário brasileiro, que se tornaria símbolo de modernização, baseada nas concepções de ordem e progresso: a Reforma de Pereira Passos (1902-1906), realizada na então Capital Federal, Rio de Janeiro. O Brasil almejava, então, inserir-se na modernidade segundo os padrões europeus. O clima e o anseio de mudança nas estruturas socioeconômicas brasileiras eram notórios. Segundo Hugo Segawa, “[...] a elite urbana, progressista, positivista, cosmopolita, contrapunha-se à sociedade tradicional, de índole agrária e conservadora.” (SEGAWA, 2002, p. 19); deste modo, industrializar o país seria o pontapé inicial para o processo de modernização e progresso brasileiros e, consequentemente, a cidade seria a plataforma desse movimento. Nesta feição, Segawa ressalta que a cidade afirmava-se como palco do moderno – modernização tendo como referência a organização, as atividades e o modo de vida do mundo europeu. Os engenheiros colocavam-se como agentes dessa modernização – era a corporação que apostava na ciência e na técnica como os instrumentos de progresso material para o país, nos moldes do desenvolvimento industrial do velho mundo, vislumbrando, na industrialização, um objetivo nacional a se atingir (SEGAWA, 2002, p.19). Nesta perspectiva, Maurício de Abreu aponta que as transformações urbanas foram motivadas de modo a adequar a forma urbana da então capital federal às necessidades de ordem econômica, estética, viária, higiênica, sanitária e social. Contudo, o autor enfatiza que a reforma de Passos esteve extremamente ligada aos interesses de ordem econômica, visando 322 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul integrar o país no contexto capitalista internacional. Por isso, a exigência de uma reorganização modernizadora do espaço urbano tinha como finalidade transformar a cidade do Rio do Janeiro num símbolo de modernidade e progresso do novo Brasil – modernizado estruturalmente e inserido no mercado internacional. Deste modo, de acordo com o autor, o rápido crescimento da economia brasileira, a intensificação das atividades exportadoras e, consequentemente, a integração cada vez maior do país no contexto capitalista internacional, exigiam uma nova organização do espaço (aí incluído o espaço urbano de sua capital), condizente com esse novo momento de organização social. [...] a importância cada vez maior da cidade no contexto internacional não condiziam com a existência de uma área central ainda com características coloniais, com ruas estreitas e sombrias, e onde se misturavam as sedes dos poderes políticos e econômicos com carroças, animais e cortiço. Não condiziam, também, com a ausência de obras suntuosas, que proporcionavam “status” às rivais platinas. Era preciso acabar com a noção que o Rio era sinônimo de febre amarela e de condições anti-higiênicas, e transformá-lo num verdadeiro símbolo do “novo Brasil” (ABREU, 1997, p. 59-60). Corroborando com estas ideias, Segawa evidencia que a formação da elite intelectual brasileira da passagem do século XIX para o século XX amparou-se num tripé entre medicina, ciência jurídica e engenharia, sendo que, conforme o autor, durante o século XIX, a ciência jurídica obteve um importante espaço no exercício do poder político. No entanto, no florescer do século XX, o domínio político passaria a ser partilhado entre médicos e engenheiros devido aos problemas de ordem higiênica, sanitária e estrutural das cidades brasileiras219. 219 As primeiras escolas de medicina datam entre 1808-1809; as academias de ciências jurídicas seriam fundadas a partir de 1827 e, no final do século XIX, seriam criadas as primeiras escolas de engenharia: Escola Politécnica 323 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Assim, o saberes acadêmicos e técnicos de médicos e engenheiros pouco a pouco ganharam prestígio e espaço nas instituições políticas; dessa forma, as duas ciências constituíram-se em aparatos políticos empregados pelo Estado com o intuito de encontrar soluções para os entraves das cidades. A medicina e, especialmente, a engenharia tornaram-se ciências credenciadas para realizar as intervenções modernizadoras no Brasil na virada do século XIX para o século XX. As autoras Angela Moulin Simões Penalva Santos e Marly Silva da Motta abordam que a gênese do planejamento urbano no Brasil decorreu de fatores de ordem social, política e econômica, afetando as cidades, em especial o Rio de Janeiro – antiga capital federal. Ordem social, pois “[...] as precárias condições higiênicas de moradias, sobretudo as coletivas, figurou com destaque, no século XIX, nos trabalhos realizados por sanitaristas, os verdadeiros pioneiros na discussão do planejamento urbano.” (SANTOS & MOTTA, 2003, p. 23); ordem política porque o Estado cercou-se de profissionais habilitados e respaldados cientificamente – como médicos, sanitaristas e engenheiros – para auxiliá-lo na organização das cidades, eliminando as perdas econômicas, a desordem social e as epidemias; finalmente, fator de ordem econômica pelo fato da necessidade de modernizar a infraestrutura (portos, avenidas e estradas), adaptando a cidade às exigências industriais e urbanas modernas. Acrescentando contribuições acerca do tema, Segawa salienta que a intervenção impulsionada pelo prefeito Francisco Pereira Passos tinha como pilares o saneamento físico e social e o embelezamento da capital federal220. No entanto, apesar do caráter higienista, estético e civilizador, a reforma de Pereira Passos possuía, ao mesmo tempo, um caráter segregador, como afirma o autor: do Rio de Janeiro (1874), Escola de Minas (1876), em Ouro Preto, e a Politécnica de São Paulo (1894). Ver em SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil, 2002, p. 18. 220 A reforma de Pereira Passos visava eliminar os resquícios coloniais nos espaços da cidade do Rio de Janeiro a partir de medidas sanitárias e modernizadoras, dentre elas: a remodelação do tecido urbano da cidade, a abertura novos eixos viários, a padronização das fachadas das novas avenidas, a implantação de parques públicos arborizados e arejados e a erradicação das epidemias que assolavam a cidade durante todo o século XIX. Ver em SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil, 2002, 19-21. 324 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul afastar a população pobre de setores estratégicos para a expansão urbana e conferir à paisagem uma estética arquitetônica de padrão europeu caracterizaram iniciativas para a modelagem de um Brasil condizente com o figurino de uma nação “civilizada” (SEGAWA, 2002, p. 21). Salientando o contexto acima, Maria Alice Rezende de Carvalho enfatiza que a Reforma de Pereira Passos não almejava simplesmente conceber um arquétipo de cidade moderna, mas também ambicionava transformar o Rio de Janeiro, então, a capital federal, num modelo primoroso para a nação brasileira, servindo de referência mundial. Portanto, o ideal transformador esteve pautado na superação das amarras de um passado nefasto para atingir o desenvolvimento incessante: ordem, progresso e modernidade seriam alcançados por meio da razão científica e técnica221. Segundo Nara Britto, as intervenções sanitárias no Rio de Janeiro tornaram-se incisivas por volta de 1903, quando o médico-sanitário Oswaldo Cruz foi nomeado Diretor Geral de Saúde Pública, com a finalidade de exterminar as epidemias– febre amarela, malária, peste e varíola – que assolavam o Rio de Janeiro222. De acordo com Luiz Augusto Maia Costa, em apoio a Oswaldo Cruz, o prefeito Pereira Passos autorizou a criação de medidas sanitárias e comportamentais para a cidade, dentre elas: a instalação de mictórios públicos em vários locais da cidade; a viabilização de escarradeiras para o cidadão nos órgãos públicos; e a substituição dos cortiços, das vielas coloniais e dos terrenos baldios por largas avenidas, ruas e praças arborizadas223. O médico Oswaldo Cruz foi discente do Instituto Pasteur em Paris e um dos responsáveis pela introdução da “medicina científica” no Brasil. A estratégia dele foi inspirada no modelo da polícia médica para organizar a cidade do Rio de Janeiro em distritos, cada um chefiado por um delegado de saúde224. A inspeção sanitária tinha atribuições como 221 Ver em CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Governar por retas: engenheiros na belle époque carioca, 1994. 222 Ver em BRITTO, Nara. Oswaldo Cruz: a construção de um mito na ciência brasileira, 1995. 223 Ver em COSTA, Luiz Augusto Maia. O ideário urbano paulista na virada do século – o engenheiro Theodoro Sampaio e as questões territoriais e urbanas modernas (1886-1903), 2003, p. 85-90. 224 Ver em BRITTO, Nara. Oswaldo Cruz: a construção de um mito na ciência brasileira, 1995, p. 30-32. 325 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul visitar as casas, aplicar multas e interditar as residências. As ações médico-sanitárias estavam centradas no combate aos vetores e na vigilância dos doentes, conforme as teorias e práticas microbianas225. Desta maneira, as campanhas sanitárias do governo colaboravam para a elaboração de uma reforma social e urbana que exigisse mudanças nos hábitos de higiene da sociedade. Sob essa ótica, o projeto de saneamento do Estado tem como objeto a população marginalizada e trabalhadora do centro da cidade. Conforme as elaborações Noé Freire Sandes: Sanear, remodelar, civilizar passaram a ser as palavras de ordem do Estado Brasileiro. [...] Sanear significava remover os agentes etiológicos causadores de epidemias que afetavam negativamente a dinâmica das nossas atividades agroexportadores; remodelar implica destruir o antigo espaço urbano do Rio de Janeiro, estruturado ao sabor do cotidiano de trabalhadores, vendedores ambulantes, desocupados que enchiam de vida o centro da cidade (SANDES, 2002, p 27-28). Em linhas gerais, a concepção de ordem e progresso foi o sustentáculo ideológico do Estado brasileiro durante a República recém-instalada. O governo utilizou o saber médico e o saber urbanístico como dispositivos políticos para controlar a sociedade e o espaço urbano. As ciências médica e urbana, nesse sentido, tinham o papel de sanear qualquer miasma físico, moral e mental, fruto do comportamento social ou da natureza do ambiente. Para o Estado brasileiro, amparado pelas concepções higienistas, a sanidade mental, moral e física, a salubridade e o trabalho eram princípios que levariam a sociedade ao progresso socioeconômico. Portanto, a Reforma de Pereira Passos no Rio de Janeiro representou um dos modelos mais expressivos no que se refere às experiências urbanísticas realizadas no Brasil. No entanto, esta reforma também teve o escopo de estabelecer novos modos de vida, intervindo, controlando, reconfigurando e modernizando a cidade e a sociedade carioca com Ver em COSTA, Luiz Augusto Maia. O ideário urbano paulista na virada do século – o engenheiro Theodoro Sampaio e as questões territoriais e urbanas modernas (1886-1903), 2003, p. 87-88. 225 326 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul base nos interesses econômicos, imobiliários e industriais. Durante esse processo foram utilizados como instrumento político do Estado dois saberes: médico e urbanístico. Deste modo, a Capital Federal seria um modelo pautado nos pilares de razão e ordem científica, que visava constituir um novo Brasil baseado nas concepções de modernidade e progresso. Referências Bibliográficas ABREU, Marcelo de Paiva. O Brasil e a Economia Mundial (1929-1945). In: FAUSTO, Boris (org.). História geral da civilização brasileira. São Paulo: Editora Difel, 1984, p. 9-49. ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Edição Martins Fontes, 1993. BENEVOLO, Leonardo. História da cidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1983. BRESCIANI, Maria Stella. Cidades e Urbanismo. Uma possível análise historiográfica. Vitória da Conquista: Politeia: História e Sociedade, v. 9, n. 1, 2009, p. 21-50. BRITTO, Nara. Oswaldo Cruz: a construção de um mito na ciência brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1995. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. 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Quais são as imagens que o brasileiro possui da África hoje, em pleno século XX? Esse continente continua praticamente desconhecido, submetidos aos mesmos e velhos preconceitos. É visto como uma África formada somente por selva, com populações isoladas, famintas, aculturadas, vivendo em choupanas. Uma visão de uma suposta inferioridade do africano e logo do negro trazido ao Brasil na colonização e de seus descendentes. Mônica Lima fala como á participação africana na nossa formação foi tratada por nossos historiadores: O fato é que nossos antigos historiadores trataram indevidamente, ou ignoraram a participação africana em nossa formação, influenciados por preconceitos originários da sociedade escravista, entre os quais os ideais de branqueamento da população brasileira nutridos, desde meados do século XIX, por boa parte das elites nacionais.227 226 Especialista em História Cultural pela Universidade Federal de Goiás. Professora da Rede Estadual de Educação de Goiás. 227 LIMA, Mônica. A África na Sala de Aula. Nossa História, Rio de Janeiro, Ano 1, n. 4, p. 84, fevereiro 2004. 329 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Nesses estudos conservou-se, entretanto, um grande vazio no que se refere ao conhecimento sobre a África. Segundo Tedesco228, as referências ao continente ou a algumas de suas regiões era predominantemente relacionadas ao tráfico de negros trazidos ao Brasil para trabalhar como escravos. Negro e africano constituíam-se, desta maneira, sinônimos de povos cuja identidade era ter sido escravo. Da mesma maneira, e talvez por isso mesmo, a ideia que possuímos de África hoje é, também, desprovida de identidade, África é uma totalidade, não conseguimos imaginá-la como um continente onde habitam povos diferentes com culturas diversas, não conseguimos imaginá-la como uma região marcada por uma diversidade ecológica que exigiu de seus habitantes respostas diferentes para garantir sua integração e sobrevivência. A imagem predominante que temos dela é que de lá vieram os negros/escravos para trabalhar na plantation da América. A ocultação sistemática da história africana é uma das faces da discriminação a que foi submetido o negro na Idade Moderna. Os europeus, que impuseram aos africanos processos sucessivos de espoliação, precisaram justificar seu comportamento e o fizeram caracterizando o negro como “inferiores”, como “povos bárbaros”, como “crianças que ainda têm de crescer” e necessitam serem governados por outros. Assim, ignoram até mesmo as narrativas repletas de admiração produzidas pelos primeiros europeus a atingir a costa ocidental da África (século XV) ou por aqueles que penetraram pela primeira vez o interior do continente (século XIX). Muitos desses cronistas descrevem formas de organização social e política, sistemas religiosos e regras de comportamento social bastante complexas229. 228 TEDESCO, Maria do Carmo Ferraz. Povos Africanos Antes da Chegada dos Europeus. In: SILVA, Marilena; GOMES; Uene José (Orgs.). África, Afrodescendência e Educação. Goiânia: UCG, 2006. p. 23. 229 Ibid. p. 23-24 330 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Foram igualmente esquecidas as relações entre Brasil e a costa ocidental africana (Angola, Benin, Nigéria) durante o período colonial, às vezes mais intensas que aquelas entre Brasil e Portugal. O principal problema encontrado no processo de ensino e aprendizado da História Africana não é relativo à história e à sua complexidade, mas é com relação aos preconceitos adquiridos num processo de informação equivocada sobre a África. Estas informações de caráter racista produziram um imaginário igualmente pobre e preconceituoso, extremamente alienante e fortemente restritivo. Seu efeito é tão forte que as pessoas quando colocadas em frente a uma nova informação sobre a África têm dificuldade na articulação de um novo raciocínio sobre a história deste continente, sobretudo de imaginar diferente do raciocínio habitual. A imagem do Africano na nossa sociedade é a do selvagem acorrentado à miséria. Essa imagem foi construída pela insistência e persistência das representações sobre a África como a terra dos macacos, dos leões, dos homens nus e dos escravos. Paralelamente a esses questionamentos não poderíamos deixar de nos perguntar que métodos didáticos deveríamos desenvolver para estimular um olhar mais relativisado em relação às sociedades africanas ou qualquer sociedade culturalmente diversa da nossa. A inserção da História da África no currículo de História no Ensino Fundamental e Médio mantém-se como uma necessidade, como um elemento essencial de fundamentação e de estabelecimento do sentido para as experiências vivenciadas pelas comunidades negras e afro-brasileiras além de proporcionar importante contribuição na discussão das questões de natureza étnico-raciais. Hoje, quando a Lei Federal 10.639/03 determina a obrigatoriedade do ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira nos parece adequado à efetivação desde projeto. Com as leis aprovadas, as dificuldades até agora foram a sua implementação, particularmente no capítulo relativo ao ensino de História da África, para que ela possa se concretizar e se desdobrar de forma positiva em prática escolar. Os PCNS apontaram para a necessidade inserir temas sobre “pluralidade cultural” destacando a questão da “democracia racial” como um aspecto central a ser pensado nas atividades escolares. Observemos, um pequeno trecho do referido documento: 331 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul A idéia veiculada na escola de um Brasil sem diferenças, formado originalmente pelas três raças – o índio, o branco e o negro – que se dissolveram dando origem ao brasileiro, também tem sido difundida nos livros didáticos, neutralizando as diferenças culturais e, às vezes, subordinando uma cultura à outra. Divulgou-se, então, uma concepção de cultura uniforme, depreciando as diversas contribuições que compuseram e compõem a identidade nacional 230. Vemos, portanto, que a problematização da diversidade cultural já estava presente na legislação desde a década de 90. A necessidade da lei 10.639, de 2003, que determina a obrigatoriedade do ensino Historia da África no ensino básico, coloca para nós algumas questões, uma vez que ela indica que o trabalho que vinha sendo feito segundo os PCNs não estava sendo satisfatório. Não basta desenvolver um trabalho centrado nas questões étnico-raciais, mas é preciso rever o olhar dirigido para o próprio continente africano mantido, até o advento da Lei 10.639/03, em um “silêncio” que exterioriza a continuidade do preconceito. A História da África nos currículos de história no Ensino Fundamental e Médio adquire, assim, o papel de fundamentação e estabelecimento de sentido para as experiências vivenciadas pelas comunidades negras e afro-brasileiras e é essencial na discussão das questões relacionada à construção de preconceitos e estereótipos em relação ao povo negro. Os currículos escolares brasileiros constituem um poderoso instrumento de intervenção do Estado e este é o responsável pelo direcionamento do conteúdo que será transformado em saber escolar. É por meio do currículo que se selecionam e divulgam as concepções produzidas por diferentes áreas de conhecimento, daí a necessidade de uma reflexão sobre os currículos escolares e, principalmente, do “Currículo Referência de História” do Ensino Fundamental e Médio proposto pelo Estado. 230 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais História. Brasília: MEC/SEF, 1998. p. 126. 332 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul As novas propostas curriculares apresentadas às Escolas (PCN) criaram brechas que possibilitam a superação das lacunas/ preconceitos que ainda persistem nos currículos. A possibilidade de inserir temas relacionados à diversidade étnica e cultural não só se tornou possível como está sendo explicitamente recomendado. Ao pensarmos no tema transversal “pluralidade cultural”, que foi proposto pelos PCNs, a reflexão é a mesma, a proposta existe, mas há uma dificuldade para sua implementação. Na proposta para o ensino de história o tema tem que vir ligado a um contexto, a um período e a um espaço específico, ele exige do professor um profundo domínio dos conteúdos propostos, e para isso uma proximidade permanente entre ensino de história e pesquisa. A dificuldade está na transposição231 destes estudos para a situação de ensino e a explicitação dos conteúdos ao tema pluralidade cultural. O que vemos hoje nas tentativas de trabalho com a pluralidade cultural, e principalmente na sua abordagem nos livros didáticos, é sua ligação às formulações clássicas de nossa historiografia, não estando em sintonia com as novas pesquisas que estão sendo forjadas em nossas universidades. Em algumas áreas o problema é ainda maior, como a da história da África que ainda engatinha como área de discussão e de pesquisa nas nossas universidades. Até mesmo para os próprios africanos a história deste continente é recente, só começou a ser abordada e explorada com as lutas de independência quando os países africanos começaram a construir sua própria História, e a resgatar seu passado e a desconstruir a visão da África subjugada, inferior e sem história. Em relação ao material sobre História da África que temos no Brasil após a Lei 10639/03 Marina de Mello e Souza diz: 231 Maria Auxiliadora Schmidt diz que o conceito de transposição didática foi forjado em sua origem por um sociólogo e “designa o processo de transformação científica, didática social, que afeta os objetos de conhecimento até a sua tradução no campo escolar. Ele permite pensar a transformação de um saber dito científico em um saber a ensinar, tal qual aparece nos programas, manuais, na palavra do professor, considerados não somente científicos (...) Isto significa, então, um verdadeiro processo de criação e não somente de simplificação, de redução (...) Nós preferimos empregar um termo que marca mais fortemente este processo, o de recomposição didática”. (INRP Apud SCHMIDT, 2004, 59) A autora afirma que “em relação à transposição didática do procedimento histórico, o que se procura é algo diferente, ou seja, a realização na sala de aula da própria atividade do historiador, a articulação entre elementos constitutivos do saber histórico e do fazer pedagógico. Assim, o objetivo é fazer com que o conhecimento histórico seja ensinado de tal forma que dê ao aluno condições de participar do processo do fazer, do construir a História. [...] Esse é um caminho da educação histórica da qual a sala de aula é um espaço privilegiado que pode possibilitar a desnaturalização de uma visão critica do passado que está presente em nossas vidas [...]” (SCHMIDT, 2004, 59) 333 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Como só há pouco tempo o tema passou a ser dado nas universidades e a ocupar com mais freqüência as preocupações dos pesquisadores, a carência de formação dos professores e de material didático é compreensível. Mas isto está mudando. Já há algum material em português para orientar professores e alunos dos vários níveis, como livros de literatura para crianças, didáticos para jovens e de cunho mais acadêmico para professores. Esses materiais ainda são escassos, e poucos são realmente bons, pois antigos preconceitos teimam em persistir, seja por desinformação, seja pela força das heranças recebidas232. Há alguns anos, historiadores alertam para a necessidade urgente de se promover o desmonte de certos arranjos de conteúdos da história apresentada nos livros didáticos e ensinada nos níveis fundamental e médio buscando, desta forma, a superação da visão teleológica imposta pelos currículos tradicionais, onde se cristalizam noções como progresso, civilização, modernização, marcando os rumos em direção aos quais todos os povos devem caminhar. Essa desmontagem passa pela reorganização dos tópicos a serem trabalhados e pela inclusão de temas que, ao invés de construir aqueles modelos de sociedade a serem alcançados, ou mostrar sociedades diversas sob uma visão linear e generalizadas, numa linha histórica que é europeia, busquem analisar efetivamente os temas e problemáticas presentes no meio social com uma abordagem diversificada, não somente política e econômica, mas também cultural e social. O que se pretende é que o ensino de história, como o das demais disciplinas, seja significativo e desencadeie um processo de reflexão comum a alunos e professores. Hebe Maria Mattos fala de como a África e os africanos ainda estão inseridos em boa parte de nossos currículos de Ensino Fundamental e Médio e sua consequência para o aprendizado: SOUZA, Marina de Mello. “Um continente no currículo”. Disponível em: < http://www.revistadehistoria.com.br/secao/educacao/um-continente-no-curriculo > /Acesso em 15/07/2014 232 334 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Os africanos entram em cena na história do Brasil colonial a partir do “pacto colonial”, da ‘monocultura do açúcar’ e do exclusivismo metropolitano”, que necessitavam do “tráfico negreiro” e do “trabalho escravo africano”. Esta formulação clássica da nossa historiografia produz como efeito uma relativa naturalização da escravidão negra como simples função da cobiça comercial européia, escamoteando a face africana do tráfico essencial para o entendimento de sua dinâmica e durabilidade. Essa naturalização da escravidão negra, a partir de uma premissa que torna o tráfico negreiro um fenômeno histórico, econômico e cultural derivado apenas da historia européia, é fruto do desconhecimento da história africana e de sua importância na articulação do mundo atlântico233 Danielle Bastos Lopes diz que alteridade africana ainda é pouco conhecida pelos professores e retratada de forma superficial nos livros didáticos mesmo após 10639/03: A maior parte dos livros didáticos possuem algumas características comuns na forma de apresentar a história de negros e índios no Brasil. A primeira é o chamado “congelamento das culturas”. Apesar de geralmente valorizarem a diversidade da formação nacional, essas publicações quase sempre relegam as contribuições dos índios e dos negros a um passado pouco problematizado. O indígena é correntemente o “selvagem e bravo”, com seus cocares, arcos e flechas, enquanto o negro é o “escravo que joga capoeira”. Outro problema é o caráter genérico como esses grupos são retratados. [...]Tradicionalmente o currículo escolar de história considera as 233 MATTOS, Hebe Maria. O Ensino de História e a Luta Contra a Discriminação Racial no Brasil. In: Ensino de História: Conceito, Temática e Metodologia. Organização: Martha Abreu e Rachel Soihet. Rio de Janeiro: Casa da Palavra,2003, 133. 335 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul diferenças de identidade entre os europeus que passaram a residir em território brasileiro no período colonial: portugueses, espanhóis, franceses, entre outros. Como então é possível ainda encontrar referências a “escravos africanos”? Este termo reproduz acriticamente o tratamento subumano a que os negros eram submetidos, tratados como mercadoria sem alteridade. O ensino de história herda o dever de ressaltar a pluralidade de povos vindos daquele continente, como os bantos e sudaneses – estes incluindo grupos diversos como os yorubás, nagôs, gegês, ewes e haussás, entre outras relações étnicas. São legados culturais complexos e diversificados, o que torna a proposta de um ensino de história da África desafiadora e ao mesmo tempo estimulante. Equívoco semelhante é constatar nos livros didáticos a permanência da concepção de culturas ‘atrasadas’, “primitivas” ou pouco desenvolvidas em relação às sociedades ocidentais234. Anderson Ribeiro Oliva também faz uma análise do material didático para Ensino Fundamental de História da África no Brasil, que segundo o autor é um instrumento de grande importância para a construção do conhecimento e na elaboração de referências sobre a História da África e dos africanos. Silêncio, desconhecimento e poucas experiências positivas. Poderíamos assim definir o entendimento e a abordagem da história africana nas coleções de livros didáticos brasileiros. Apenas um número muito pequeno de manuais possui capítulos específicos sobre a temática. Nas outras obras, a África aparece apenas como um figurante que passa despercebido em cena, sendo mencionada como um apêndice misterioso e pouco interessante de outros assuntos. LOPES, Danielle Bastos. ‘Não’ para os clichês. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 9, n. 103, p.72-73, abril 2014. 234 336 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Tornou-se evidente também que, quando o silêncio foi quebrado, a bibliografia limitada e o distanciamento do tema por parte dos autores, criaram obstáculos significativos para uma leitura mais atenta e um tratamento mais pontual sobre a questão. [...] Nos textos em enfoque, por razões que talvez espelhem a pequena intimidade com a bibliografia especializada em História da África e as circunstâncias específicas da elaboração de um livro didático, as imprecisões e equívocos acabam por predominar. Isso não exclui algumas boas reflexões realizadas pelos autores ou ainda abordagens adequadas dos conteúdos apresentados. No entanto, os livros, quase sempre, são marcados mais pelos desacertos do que pelos acertos235. Desse modo, nos parece fundamental desvincular a história das sociedades africanas dessa “história eurocentrica”, de limitar nossa compreensão do continente africano apenas ao contexto do mercantilismo e do tráfico negreiro ou, séculos depois, da colonização efetiva daqueles territórios. Frente a essa expectativa a introdução do eixo temático “pluralidade cultural”236 torna-se imprescindível para o desenvolvimento de uma nova proposta curricular que pode se apresentar com um importante instrumento que possibilite a compreensão da História da África em todas as suas dimensões. Olhares para a África: os limites da imaginação 235 OLIVA, Anderson Ribeiro. O ensino da história da África em debate: uma introdução aos estudos africanos. In: RIBEIRO, Álvaro Sebastião Teixeira Ribeiro et. al (orgs.). História e cultura afro-brasileira e africana na escola. Brasília: Ágere, 2008, p. 32-33. 236 Segundo os PCNS as culturas são produzidas pelos grupos sociais ao longo das suas histórias, na construção de suas formas de subsistência, na organização da vida social e política, nas suas relações com o meio e com outros grupos, na produção de conhecimentos, etc. A diferença entre culturas é fruto da singularidade desses processos em cada grupo social. A temática pluralidade cultural diz respeito ao conhecimento e à valorização dessas características culturais dos diferentes grupos sociais que convivem em um território. Quando trabalhamos com essa temática oferecemos elementos para a compreensão de que respeitar e valorizar as diferenças étnicas e culturais não significa aderir aos valores do outro, mas, sim, respeitá-los como expressão da diversidade, respeito que é, em si, devido a todo ser humano, por sua dignidade intrínseca, sem qualquer discriminação. Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais : pluralidade cultural, orientação sexual / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília : MEC/SEF, 1997. Página 19. 337 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul A história ensinada nas escolas é um elemento formador da memória coletiva e da identidade nacional. Como afirma Jacques Le Goff: “A memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e objetivo do poder”237. É inequívoco que a construção de uma identidade passe pelo conhecimento da própria história para fazê-la presente como referência cultural. O Brasil é habitado por cerca de 76 milhões de negros e pardos, o equivalente a 45% da população. Portanto, os negros não podem ser considerados uma minoria num país que só perde para a Nigéria em quantidade de negros no mundo. O curioso é saber que, mesmo com toda a riqueza cultural, histórica e econômica que nós, brasileiros, herdamos da África, ainda conhecemos muito pouco sobre o continente, onde vivem mais de 780 milhões de pessoas das mais variadas etnias. No estudo e no ensino de História no Brasil, a história da África foi quase inexistente até muito pouco tempo atrás. Se os antropólogos e estudiosos da cultura popular sempre registraram e analisaram as manifestações culturais, portadoras de elementos africanos, realizadas por aqueles que para cá foram trazidos na condição de escravos e pelos que deles descendiam, os historiadores se preocuparam muito pouco com a presença africana no Brasil ou com as relações mantidas ao longo de séculos com aquele continente. Caso o Brasil fosse um país sem nenhuma imigração africana de importância, não seria surpreendente que os currículos escolares dispensassem estes conteúdos. Mesmo assim, por razões da história da humanidade, seria indispensável um conhecimento da história africana. Surpreendente é um país que, nos seus últimos quatro séculos, teve não somente a imigração africana maciça, como também a maioria da sua população descendente de africanos, não ter história africana nos currículos escolares. O argumento principal para o ensino da História Africana está no fato da impossibilidade de uma boa compreensão da história brasileira sem o conhecimento das histórias dos atores africanos, indígenas e europeus. Sem estes elementos, constrói-se uma história parcial, distorcida e promotora de racismos. LE GOFF, Jacques. Memória. In: Enciclopédia Einaudi – Vol 1. Lisboa: Império Nacional – Casa da Moeda: 1984, p.46 237 338 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul A exclusão da História Africana é uma dentre as várias demonstrações do racismo brasileiro, pois produz a eliminação simbólica do africano da história brasileira. O intelectual zairense, radicado no Brasil e professor da USP, Kabenguele Munanga questiona a visão que foi construída sobre a África, considerando-se que, para a maioria das pessoas, a África é: - um “país” indiferenciado e uniforme; uma massa compacta ao pé da Europa; - composta de sociedades “primitivas” e estáticas; - um “país” tropical, de paisagens e culturas exóticas; - marcada pelas catástrofes sociais, guerras civis e guerras étnicas. Por esses motivos, o principal problema encontrado no processo de ensino e aprendizado da história da África são as informações adquiridas sobre a África fora do contexto escolar, marcadas por preconceitos. Estas informações de caráter racistas são produtoras de um imaginário pobre e preconceituoso, extremamente alienantes e restritivas. Seu efeito é tão forte que, segundo Henrique Cunha Junior238, as pessoas quando colocadas em frente a uma nova informação sobre a África têm dificuldade em articular outros raciocínios sobre a história deste continente. Predomina-se, na nossa sociedade, a imagem do africano como selvagem acorrentado à miséria. Esta imagem é construída pela insistência e persistência das representações africanas como a terra dos macacos, dos leões, dos homens nus e dos escravos. Há um bloqueio sistemático em pensar diferente das caricaturas presentes no imaginário social brasileiro. Para Henrique Cunha Júnior239, o elemento básico para introduzir a história da África é a desconstrução e eliminação de alguns elementos básicos das ideologias racistas brasileiras. Segundo o autor são cinco os pontos importantes a serem desconstruídos na imaginação dos brasileiros sobre a África: 1. A África não é uma selva tropical; 2. A África não é mais distante que os outros continentes; 238 CUNHA JR., Henrique. O Ensino da História. Disponível em: <http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=499> Acesso em: 05/10/2012. 239 Ibid 339 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul 3. As populações africanas não são isoladas e perdidas na selva; 4. O europeu não chegou um dia na África trazendo civilização; 5. A África tem história e também tinha escrita. Devemos pensar a África a partir da diversidade dos povos africanos e analisar os problemas presenciados atualmente no continente, considerando os múltiplos processos históricos pelo qual passou o continente. Não se pode esquecer os impactos dos processos violentos de colonização pelo qual passou o continente desde o século XV, nem os processos de independências recentes, já em meados do século XX. Referências Bibliográficas ANDRADE, Manuel Correia de. O Brasil e África. São Paulo: Contexto, 1991. 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É nestas condições que pretendemos analisar as idéias de “resistência” e a construção desse conceito e sua influência nos discursos de libertação de Moçambique dentro da obra de Eduardo Mondlane Lutar por Moçambique (Mondlane, 1977), obra esta que foi escrita durante a guerra pela descolonização de Moçambique. O recorte temporal deste projeto corresponde ao período em que a obra foi escrita focalizando como marco inicial 1964, data da proclamação feita ao povo moçambicano pelo Comitê Central da FRELIMO (Frente de Libertação Moçambicana) por ocasião da declaração de guerra e como marco final 1968, ultima data que aparece na obra, pois Mondlane será assassinado em 1969. Entretanto, foi necessário realizar um recuo e uma compreensão do contexto histórico, promovendo o resgate dos processos históricos vividos pelo autor que nos parecem essenciais na análise do seu discurso. A escolha pela obra de Eduardo Mondlane resulta do fato dele ter desempenhado um papel decisivo na organização da luta pela libertação nacional e produzido um projeto político para Moçambique e, ainda, a possibilidade de analisar a construção, dentro do seu discurso de libertação o seu conceito de resistência. Considerando a narrativa histórica como fruto de uma época e de uma sociedade e, quem a escreveu como indivíduo e também fruto do seu contexto social, então o sujeito que 240 Especialista em História Cultural pela Universidade Federal de Goiás. Professora da Rede Estadual de Educação de Goiás. 343 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul escreve a história interage com o objeto ao problematizá-lo e, depois ao construí-lo, forjando assim um discurso. Discurso esses que são representações da realidade – representações do sujeito que o escreveu. Assim ao analisar uma obra historiográfica se faz necessário antes estudar o historiador e seu meio histórico e social (Carr, 1982: 41). E é isso que pretendemos no primeiro momento: a análise da biografia e dos vários contextos históricos e sociais vividos pelo autor. A partir daí analisamos o discurso sobre resistência construído por Mondlane, um pesquisador das Ciências Sociais, marxista, assimilado que forjou sua personalidade nas sociedades moçambicana, sul-africana, portuguesa e norte-americana do inicio do século XX. Discurso este que foi construído para justificar o seu projeto para um Moçambique independente e a sua proposta de resistência: que é sempre lutar pela revolução e pela independência. Em busca de uma biografia A identidade de Mondlane emergiu de diferentes experiências: a educação tradicional transmitida pela mãe; a luta quotidiana contra o sistema colonial; a educação veiculada pela Igreja Presbiteriana e diferentes experiências de vida como estudante, professor, trabalhador e investigador em universidades e nas Nações Unidas. Este nasceu numa pequena aldeia no Distrito de Manjacaze no sul de Moçambique, em 1920. Descendia de uma família de chefes: o pai, um regente da linhagem de Khambane, morreu quando ele era muito pequeno. Até aos treze anos, a sua educação esteve a cargo da mãe que parece ter tido uma importante influência no seu desenvolvimento espiritual e na sua personalidade. Dela, Eduardo recebeu a sua educação tradicional, enraizada nos feitos dos seus antepassados guerreiros. De acordo com as palavras do próprio Mondlane, é nesta fase da sua vida que começa a se desenvolver o embrião do interesse pela luta nacionalista, quer através do estímulo que lhe é criado pela mãe, quer através dos sofrimentos a que a família se viu muitas vezes sujeita pelo regime colonial e que ele próprio pode testemunhar. 344 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Quando tinha treze anos Mondlane mudou-se para a escola da Missão Suíça em Maússe (Manjacaze). Neste período inicia-se seu contato com um novo mundo, onde a sua personalidade de jovem começa a ser moldada no espírito que caracteriza a educação da juventude ministrada pela Missão Suíça (Igreja Presbiteriana). Mondlane é, assim, um dos primeiros estudantes a participar nos grupos da juventude da Igreja – patrulhas ou mintlawa. Consciente do seu desejo de aprender mais e continuar os estudos secundários, por volta de 1940, Mondlane foi a Missão Metodista Episcopal em Cambine, na província de Inhambane, onde os missionários queriam aproveitar a experiência dos Presbiterianos com grupos de jovens. Em Cambine, este fez um curso de agricultura, estudou música e inglês. Para os estudantes das escolas secundárias de Moçambique e de outras colônias, o acesso à informação escrita, que fornecia elementos ligados às mudanças operadas mundialmente e, sobretudo no continente africano, despertou na juventude o germe da consciência política, sem esquecer, aqui, a inspiração deixada pelo sistema de dominação colonial carregado de uma visível injustiça e repressão, que eles podiam sentir diretamente, sendo um dos catalisadores mais fortes na formação de uma consciência política. Mondlane também já exprimia a sua preocupação a respeito das leis coloniais que controlavam a população moçambicana, limitando a sua liberdade de movimento, através de pesados impostos, bem como através de formas repressivas da organização do trabalho. Em 1944 os seus apoios na igreja conseguiram que ele fosse freqüentar a Escola Secundária Douglas Laing Smit em Lemana, no Norte do Transvaal, África do Sul. Um novo mundo se abre, com as novas experiências acumuladas quer como estudante, primeiro na escola secundária, depois de uma escola média e da Universidade de WINTS, em Johannesburg como estudante de sociologia, quer do ponto de vista cultural, e, sobretudo no enriquecimento da sua cultura política. Tendo chegado a África do Sul ainda marcado pelos sinais da dominação colonial portuguesa, que pretendia “civilizar” os povos colonizados, Mondlane vai se sentindo cada vez mais desapontado com o homem branco, ou mulungo que ele havia idealizado. Na sua correspondência com André Clerc, ele faz reflexões sobre este aspecto, que pode em parte ser ilustrado por um extrato de uma carta remetida a este, da África do Sul, em 1946: 345 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul ”(...) Os meus contatos com as civilizações, como na religião, encontrei muitas desilusões. No começo pensei que o europeu “mulungo” era uma pessoa nobre, cândido, justiceiro e sensível, mas depois tive que descobrir, para meu desapontamento, que ele não é mais santo que o preto”. (Silva,1991, p.94) Em maio de1948, o Partido Nacionalista dirigido por Daniel F. Malan ganha as eleições na África do Sul e introduz políticas mais abertas de implantação do Apartheid. Um dos seus primeiros alvos foram as instituições e universidades cujas portas estavam pelo menos abertas para todos os povos da África do Sul, sem olhar para sua cor. Devido a esta nova situação, a autorização de residência temporária de Mondlane não foi renovada depois de junho de 1949. apesar de várias campanhas promovidas por colegas, associações e personalidades sul-africanas e moçambicanas, este foi obrigado a deixar a África do Sul e fazer os exames finais da universidade em Lourenço Marques. O impacto das novas correntes políticas que se desenvolveram durante e depois da Segunda Guerra Mundial e as mudanças políticas na África do Sul, também influenciaram a geração de Mondlane. No jornal Nyeleti Ya Miso, foi publicado um poema deste, no dia 03 de outubro de 1944. Nele o autor homenageia o Dr. Aggrey, a quem considera um homem inteligente e um campeão da Negritude, numa indicação sobre os efeitos da corrente de ideais que circulava a sua volta. Embora haja poucas evidencias para analisar o impacto do movimento Pan-Africanista e da Negritude em Mondlane, parece haver a certeza de que Aggrey já fazia, em 1942, parte das suas leituras. Define-se Pan-africanismo como um movimento que promove a auto-afirmação do negro. O termo surgiu, pela primeira vez em 1900, na Conferência de Londres. Inicialmente, tomou a feição duma simples manifestação de solidariedade fraterna entre Africanos e gentes de ascendência africana das Antilhas Britânicas e dos Estados Unidos da América. No I Congresso Pan-Africano foram afirmadas ideias como: “O problema do século XX é o problema das relações entre os Homens de pele mais clara ou mais escura na Ásia, na África, na América e nas ilhas do oceano”. (Davidson, Apud Corrêa & Homem, 1997, p.107). 346 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Entre o período que decorre desde a expulsão da África do Sul, até a sua partida para Lisboa, Eduardo Mondlane, adquire novas experiências no seu dia-a-dia em Moçambique; é agora visto aos olhos do mundo, não como “indígena” que se tornou catequista e professor, mas como um estudante universitário, e assim tratado no seio da sociedade Lourenço Marquina e no seio da própria Igreja Presbiteriana. Esse tratamento recebido por ele era típico da sociedade colonial portuguesa, onde uma minoria de moçambicanos que tinha acesso a estudos secundários, ou em casos mais raros a estudos superiores, poderia ascender ao estatuto de assimilado e gozar de determinados privilégios que a aproximavam dos europeus. Na colonização promovida pelos impérios econômicos europeus em meados do século XIX, o controle das colônias é feito pela força e pela cultura. Dispositivos militares são estabelecido nos territórios conquistados. Mas para garantir a exploração das sociedades submetidas, torna-se necessário criar mecanismos de dependência no nível cultural e ideológico. E a solução é levar os valores e a cultura ocidental à população. Esta é a característica do chamado processo de assimilação – tradição humanista onde se via o outro como um possível europeu, um europeu civilizado em potencial. As populações colonizadas sofreram um processo de desenraizamento em relação a sua própria cultura. Desenraizadas pelo próprio processo de colonização que retira do colonizado sua autonomia, até mesmo sua cultura através de mecanismos de alienação e despersonalização, passando estes a vislumbrar a cultura do colonizador. Foi neste contexto que em 1950 Mondlane parte para Lisboa. De acordo com os planos ele faria um ano de estudos em Portugal, antes de partir para os Estados Unidos da América, para melhorar seus conhecimentos de língua portuguesa, e para evitar eventuais conflitos com a administração portuguesa. Este matriculou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no curso de Ciências Histórico-Filosóficas. Em Portugal ele manteve contato com outros intelectuais e futuros líderes nacionalistas africanos como: Agostinho Neto, Marcelino dos Santos, Mário Pinto de Andrade e Amílcar Cabral. A maioria desses teve que sair de Lisboa por causa da difícil situação em que viviam, com a policia diariamente no seu encalço, uma vez que os portugueses se opunham abertamente aos movimentos e a questão da independência. 347 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul A situação em Lisboa ensinou a Mondlane que apesar de todo o seu luso-tropicalismo, para os portugueses um negro sempre seria um negro e, por conseqüência, um inferior. Não se conseguia quebrar a barreira da raça apenas a força de educação e capacidade pessoal. Terminado o ano letivo, depois de ter enfrentado alguns problemas com a polícia no aeroporto de Lisboa, Eduardo Mondlane parte para os Estado Unidos da América, para prosseguir seus estudos. Chegou aos Estados Unidos em junho de 1951 e passou o verão a proferir palestras sobre a África em vários acampamentos religiosos. Em outubro, foi admitido pela Universidade de Oberlin, como estudante de Antropologia e Sociologia. Entre 1954 e 1955 obteve o lugar de assistente na Universidade de Northewestern onde fez mestrado e doutorado em Antropologia e foi depois para Harvard como investigador. No decurso dos seus estudos escreveu extensos trabalhos sobre Marx e Weber, uma tese sobre Woodrow Wilson e uma dissertação sobre as influências raciais nos testes de educação. Tinha uma grande atração pelas raízes da revolução Norte Americana e leu muita coisa sobre a vida e a obra de Thomas Jefferson e Thomas Paine. Começou a procura de uma sinergia que unisse Marx e Jefferson. Ao longo do seu estudo de textos revolucionários, a medida que o seu mundo se alargava para incluir mais aspectos de Marx e Engels, Plekhanov e Mão Tse-tung, era a dinâmica e não o dogma que interessava a Mondlane. Este dava ênfase mais na dinâmica de qualquer situação, na interação dos opostos em conflito. Ele tentava sempre compreender o processo dialético, em vez de se contentar com classificações e identidades estáticas. Procurava trabalhar em termos de dinâmicas internas. Esta forma de pensar permeou sempre a sua visão de Portugal e dos portugueses e a sua compreensão dos Estados Unidos, do seu povo e do seu governo. No pós-guerra, entre os anos de 1945 e 1960, a África estava em polvorosa em termos de revoltas e lutas políticas pela independência. Nos países africanos ia se operando transformações conducentes a uma independência nacional. Foi um período de efervescência nacionalista. Movimentos de resistência surgiram em varias colônias africanas. Neste período, em Moçambique, intelectuais também refletiam sobre a sua situação política, e juntavam-se em grupos associativos e em organizações nacionalistas clandestinas. 348 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul E é neste período de efervescência nacionalista que Mondlane volta à África e ao seu país. Ele estabelece contatos com os três principais movimentos de resistência moçambicana (UDENAM, MANU e UNAMI)241 e acaba desempenhando papel fundamental na sua unificação e na posterior formação da FRELIMO. Em 25 de julho de 1962, estes lideres revolucionários nacionalistas juntaram-se em Dar-es-Salam (Tanganica) para organizar uma frente nacionalista a FRELIMO, onde Eduardo Mondlane é eleito seu 1º presidente. Ao regressar ao seu país depois de 11 anos no estrangeiro, Mondlane foi recebido como um herói como o Messias que iria salvar o povo do poder colonial. Para seus biógrafos, a efervescência nacionalista dos anos 60 personifica no Dr. Mondlane o líder ausente. (Silva, 1991, p.80). As autoridades coloniais, por seu turno, também o receberam com respeito e reconhecimento. Mondlane tornou-se para muitos moçambicanos o símbolo da liberdade. Resistência na obra Lutar por Moçambique A escolha pela obra de Eduardo Mondlane resulta do fato dele ter desempenhado um papel decisivo na organização da luta pela libertação nacional e produzido um projeto político para Moçambique e, ainda, a possibilidade de analisar a construção, dentro do seu discurso de libertação o seu conceito de resistência. Vinculadas a estas análises algumas questões surgiram: a primeira é qual o tipo de resistência proposto por Mondlane em seu discurso de libertação nacional? Como ele vê as outras formas de resistência que não a da luta pela independência, por exemplo, a resistência cultural que foi implementada pelo povo por todo o período da colonização? Como esta resistência proposta por Mondlane foi implementada na guerra de libertação? Mondlane propõem um tipo de resistência: resistência é o combate que irá substituir uma determinada organização social – a colonialista –, por outra organização social – 241 A idéia de criara um movimento nacionalista radical deu origem a três movimentos separado, que foram formados por exilados moçambicanos: UDENAM (União Democrática Nacional de Moçambique), formada em Salisbury, em 1960; MANU (Mozambique African National Union), 1961 formado de grupos que atuam em Tanganika e Quênia; UNAMI (União Africana de Moçambique Independente), iniciado por exilados da região de Tete e residentes no Malawi. Em 25 de julho de 1962, juntaram-se em Dar es Salam para organizar uma frente nacionalista. 349 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Moçambique Independente –, é lutar pela revolução e promover a construção da nação moçambicana. Hoje os novos estudos culturais e a nova produção historiográfica nos permitem construir um conceito mais amplo de resistência, baseado na construção das diferentes identidades sociais, culturalmente produzidas, fundadas na experiência e na tradição, podemos perceber que toda a concepção de resistência presente em inúmeras manifestações culturais ficou de certa forma esquecida nas reflexões presentes no texto Lutar por Moçambique, apesar da riqueza desse documento ele marca, entretanto, o limite de conhecimento que a própria intelectualidade tinha de sua terra e de seu povo. Em sua obra Lutar por Moçambique, que foi escrita no período de mobilização para a luta de libertação moçambicana, Mondlane vai construir seu conceito de resistência a partir da reconstrução da História da colonização de Moçambique pelos Portugueses. O autor recupera essa gênese histórica para justificar a sua proposta de resistência e o seu projeto para um Moçambique independente ao propor um modelo de resistência o qual é sempre lutar pela revolução e pela independência. Mondlane em seu discurso afirma que as tentativas de obter a independência por meios pacíficos foram inúteis e, os dirigentes dos movimentos de resistência se convenceram que a guerra seria necessária. Todos os tipos de atividade legal democrática e reformista, tentadas durante os quarenta anos precedentes à guerra de descolonização fracassaram. O próprio modelo da colonização portuguesa, de repressão e violência, sobre suas colônias leva segundo Mondlane a esse tipo de resistência. Então para este a resistência africana nasceu dessa experiência com o colonialismo português, um regime de discriminação, exploração e trabalho forçado. Mondlane utiliza algumas características do sistema colonial para justificar a sua proposta de resistência pela luta, pela guerra: seu primeiro pressuposto é que o sistema colonial isolou suas colônias do resto do mundo e que a guerra daria visualização a essa região explorada, tiraria esta do isolamento e da obscuridade; 350 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul o segundo se refere ao modelo administrativo implantado por Portugal em Moçambique, que mondlane diz ser um modelo autoritário e violento que levaram os africanos a resistência; o terceiro argumento de Mondlane se refere a teoria portuguesa do não racismo, que defendiam a idéia de todos cidadãos de um Portugal maior cego a cor, e que por essa razão os colonizados não tinham necessidade de independência, Mondlane vai refutar essa afirmação ao expor que existia racismo nas colônias, que mesmo assimilados, em nenhuma circunstância poder-se-ia identificar na colônia uma real igualdade de oportunidade desses indivíduos. Com isso os argumentos dos portugueses para não promulgação da independência não são válidos e podem ser contestados nas lutas pela descolonização. o quarto argumento utilizado por Mondlane é que o tipo de educação implementado por Portugal ao povo colonizado tinha como finalidade apenas a submissão deste ao colonizador e não seu desenvolvimento. A partir desses argumentos Mondlane afirma que a resistência africana nasceu dessa experiência com o colonialismo português, um regime de discriminação, exploração e trabalho forçado. E a revolução armada surgiu da recusa do colonizador em reconhecer e atender a essas resistências. Para o autor o sofrimento causado pelo sistema colonial e o desejo de ação eram as condições para uma resistência armada. Partindo de pressuposto cientificista e marxista Mondlane, afirma em seu discurso que outras formas de resistência – como exemplo a cultural – não lograram êxito. Isso se justifica na obra de Mondlane partindo das idéias de alguns teóricos marxista que argumentam que a revolução se dará pela luta, no campo do empírico e a resistência pacifica ou cultural, não é valida, pois não atua no concreto. Por isso na obra de Mondlane questões como a resistência cultural que foi implementada desde o inicio da colonização, são consideradas apenas como discursos ideológicos para a politização e união da população em torno do movimento de libertação da 351 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul FRELIMO, e não como uma real vivencia da população, não como uma resposta cultural possível para esta sociedade submetida à violência colonial. O tipo de valorização cultural que a revolução vai propor, excluí o que eles vão chamar de obscurantismo (exemplo as praticas mágicas), é a valorização da tradição da música, da dança, que para os revolucionários funcionária quase como um apelo ideológico de discussão e aceitação de seu passado cultural, ao mesmo tempo em que os aspectos tidos como negativos deveriam ser rejeitados. Hoje as ciências humanas passam por uma crise, uma interrogação, que deriva da perda de certezas das normas fundamentais desse discurso cientifico e unitário sobre o homem e a sociedade ao qual se inseria Mondlane. Essa chamada crise dos paradigmas de análise da realidade, o fim na crença nas verdades absolutas e legitimadoras da ordem social e a interdisciplinaridade implicou para as ciências humanas uma mudança de conteúdo e de método. Então surgem novos objetos, problemas e sentidos e as formas de conhecimento transmitidas pela tradição ou pelos vieses ideológicos ressurgem no cenário de análise das ciências humanas. Assim hoje já se considera a busca por práticas tradicionais como tendo um papel decisivo nestes processos revolucionários, sendo considerados como uma tentativa por encontrar a identidade de um povo, de atribuir algum sentido ao vivido, de interferir nos rumos da própria existência. O movimento em direção ao passado, à retomada de rituais mágicos, pode significar um movimento de superação de identidades estraçalhadas nos processos de colonização e posteriormente de guerra revolucionária. Outro ponto colocado no discurso de Mondlane é a questão de como se efetuaria essa resistência armada. Para ele um marxista a resposta pressupõem a aliança entre teoria e prática como elemento de transformação. Então o autor conclui que seu projeto de resistência se efetuaria pela “educação e por ações militares”(Mondlane, 1977) Para o projeto revolucionário seria necessário substituir a ideologia colonialista, da classe dominante, pela construção de um homem novo, que seria um pouco tradicional e outro pouco moderno, construído pela educação revolucionária, como se fosse uma tabula rasa, sem crenças, passado ou cultura. 352 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Com a criação do homem novo e sua desalienação242, no discurso de Mondlane, este discerniria que as ações militares são necessárias porque a violência empreendida pelos portugueses tornou a resistência pacífica “fútil”, e a severidade da repressão portuguesa criou as condições necessárias para o desenvolvimento dum movimento nacionalista militante. Este é só um primeiro trabalho, na análise da obra de Mondlane verificamos a possibilidade de exame de várias outras questões como: seu projeto para um Moçambique independente; suas idéias e projetos de nacionalismo, em uma região onde a população ainda não se reconhece como moçambicana e muito menos como integrante de uma nação; analisar como Mondlane tenta compreender as razões dos problemas vividos por seu país no período (fome, miséria, exploração), analisar os limites que a ocidentalização de Mondlane impõe ao seu projeto político para Moçambique; analisar como este vê Moçambique, seu povo diversidade cultural do seu país. Referências Bibliográficas ANDERSON, Perry. Portugal e o Fim do Ultracolonialismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. CARR E. H. Que é História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. CLERC A. D. Chitlangou Filho do Chefe. Londres, Luterworth:1950 CORREA, S. & HOMEM E. Moçambique Primeiras Machambas. Rio de Janeiro, Margem:1977 FRY. Peter (org.) Moçambique. Ensaios. Rio de Janeiro: Ed.UFRJ,2001. MANGHEZI, Nadja. O Meu Coração Está nas Mãos de um Negro. Maputo, CEA & Livraria Universitária: 2001. MONDLANE, Eduardo. Lutar por Moçambique. Lisboa: Sá da Costa.1977 Cf. Para Karl Max (apud BARBOSA, 2002, p.70) é da sua base “material que o real ao ser desvendado pela pesquisa científica expressa como o pensamento poderia autocriticar-se e desalienar-se”. 242 353 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul PESAVENTO, Sandra Jathay. Em busca de uma Outra História: Imaginando o Imaginário. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/ Context, vol.15, nº 29, 1995, p.9-27 SILVA, Tereza Cruz e. Eduardo Mondlane: pontos para uma periodização da trajetória de um nacionalista (1940-1961). In: Estudos Moçambicanos. Africanos- Universidade Eduardo Mondlane. Maputo , n°-9 1991, p.73-122 SHORE. Herbert. Resistência e Revolução na Vida de Eduardo Mondlane. In: Estudos Moçambicanos. Africanos- Universidade Eduardo Mondlane. Maputo , n°-16 1999, p.19-52 TEDESCO, Maria do Carmo Ferraz. Guerra Civil em Moçambique e a Intervenção dos Espíritos: Reflexões Sobre História, Violência e Magia. 2003 Mimeo 354 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul O INTERESSE CULTURAL FRANCÊS PELO BRASIL: REPRESENTAÇÕES DA PAISAGEM BRASILEIRA NAS ARTES PLÁSTICAS NO SÉCULO XIX Pepita de Souza Afiune243 Introdução O século XIX foi um período marcado pelo intenso desenvolvimento nas artes plásticas, marcando o florescimento de novas vanguardas europeias. Paris considerada a“capital da arte”ou até mesmo a “meca da moda” neste período, busca legitimidade intelectual para manter-se como referência da arte internacionalmente. Estava entre as principais potências, com uma crescente industrialização, construção de ferrovias e o urbanismo crescente. É o que percebe-se através do grande empreendimento do projetistaGustave Eiffel, uma torre de ferroconstruída no Champ de Mars, com seus 324 metros de altura, conquistou milhões de pessoas que a visitam a cada ano. A Torre Eiffel fora construída para ser exibida ao mundo na Feira Mundial, em 1889,em uma espécie de competição com a Feira Mundial de Londres, a primeira feira realizada em 1851 com o objetivo de mostrar a modernidade de seu país, em suas principais construções, para proclamar a grandeza do país perante o mundo. Após esta feira britânica, vários países da Europa e até mesmo depois a Américatambém realizaram suas respectivasexposiçõesinternacionais. Um mundo que insiste em expirar ares imperialistas, em pleno século XIX, com o intenso desenvolvimento industrial, os países europeus buscavam respaldo para justificar seu desejo desuperioridade perante os demais países. Na França, “a burguesia exalava comportamentos, formas de vestir, comer e, sem dúvida, de consumir. A influência cultural espalhava-se, inclusive por meio da exportação dos 243 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado / TECCER e Bolsista do Programa de Bolsas Stricto Sensu daUniversidade Estadual de Goiás. Email: [email protected] Orientador: Profº Dr. Eliézer Cardoso de Oliveira.Doutor em Sociologia pela UnB. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER) e Professor do curso de História (UEG). Email: [email protected] 355 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul chamados ‘artigos de Paris’.” (BIVAR & SAMARA, 2009, p. 210 – 211).Desta forma, além de proclamar-se como um país em pleno desenvolvimento industrial, urbanístico e econômico, a França também mostrava o interesse em desenvolver a sua intelectualidade em outras regiões. Juntamente às expedições científicas enviadas ao Brasil com o objetivo de catalogar espécies da fauna e flora brasileira, o interesse artístico desenvolveu-se de forma contundente a partir do espelho francêsem sua atitude de olhar para o “outro”. Portanto, este artigo pretendediscutir as formas de representação da natureza e paisagem brasileira afinadas com o discurso da Academia Imperial de Belas Artes 244. Um interesse em retratar a nação brasileira e seus grandes herois mostra-se no estilo Neoclássico e no Romantismo que chegam ao Brasil numa perspectiva de trazer arte a um lugar considerado pelos europeus -desprovido de cultura. Ao discutirmos sobre as representações através da imagem, recorremo-nos aos estudos de História Cultural,que compreendeque qualquer indivíduo é produtor de cultura.Esta discussão abarca a relação entre as formas de criação e recepção de visualidades, à medida que “envolve processos de percepção, identificação, reconhecimento, classificação, legitimação e exclusão”. (PESAVENTO, 2003, p. 40). A metodologia utilizada nesta pesquisa é a análise das imagens construídas por estes artistas plásticos franceses, especificamente os artistas Jean-Baptiste Debret e NicolasAntoine Taunay, que partiram da proposta de representar o país, sua cultura, paisagem e também fatos históricos, como os retratos da família real e as cerimonialidades oficiais. A História Cultural e a imagem como fonte de pesquisa A grande revolução na historiografia no século XX passa a incorporar como seus sujeitos e objetos, mais do que grandes fatos e feitos heroicos, passando a acrescentar as 244 Fundada em 1826 no Rio de Janeiro, à iniciativa de Dom João VI em um contrato com os franceses. Inaugura o ensino de artes no Brasil nos moldes das academias artísticas europeias.Oferece ao estudante formação científica e artes de ofício, provenientes de um ensino pautado nos preceitos da arte francesa. 356 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul ideias, os costumes, às mentalidades de cada período.Dentro deste âmbito, estabelecemos os contatos com os estudos sobre imagem. A imagem é a representação do homem acerca de sua realidade, em um processo de criação através de sua própria ótica, como uma evidência histórica, assim apontada por Burke (2004). É o reflexo da sociedade que a produziu, sendo um grande legado da humanidade, representando uma importância à medida que induz processos de produção de sentido e construções culturais. Ao adentrar-se no campo destas representações, é imprescindível levar em consideração a intenção do artista, como um sujeito inserido em um determinado contexto histórico.O homem carrega consigo impressões e marcas de sua época, como uma forma de manutenção de sua culturalidade. A importância de se ter a imagem como fonte na pesquisa histórica é respaldada por Burke que afirma que as imagens “são testemunhos dos estereótipos, mas também das mudanças graduais, pelas quais os indivíduos ou grupos vêem o mundo social, incluindo o mundo de sua imaginação”. (BURKE, 2004, p. 232). As imagens podem complementar os documentos escritos e os relatos orais na pesquisa histórica, pois possuem a capacidade de revelarelementos que podem estar ocultos, o que pode trazer à tona características ideológicas.“É determinada ao mesmo tempo pelo próprio sujeito (sua história, sua vivência), pelo sistema social e ideológico no qual ele está inserido e pela natureza dos vínculos que ele mantém com esse sistema social”. (ABRIC, 2001, p. 156) A provável missão artística francesa no Brasil Em 1808 na fuga da corte portuguesa para o Brasilapós o bloqueio continental imposto pelo imperialismo napoleônico, o rei D. João VI mostrava-se encantado com a região na qual acabara de embarcar com a sua família. A presença da corte real significaria progresso, já que com ela, a economia e o comércio abriram-se aos países estrangeiros, ocasionando mudanças importantes para a sociedade, pois foram construídos hospitais, 357 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul escolas, fábricas e desenvolvido o urbanismo. O próprio fato de receber reis e rainhas criava um sentimento de importância no país. A partir de 1815, depois da derrota de Napoleão Bonaparte, quando Dom João VI decreta que as relações entre Brasil e França eramamigáveis,implicaria na livre chegada de franceses ao Brasil.Em 18 de novembro um novo decreto abre finalmente os portos brasileiros aos navios franceses. O coronel Jean-Baptiste Maler fora nomeado cônsul da França no Brasil,marcando uma fase de intensas relações entre ambos países, que irão desenrolar-se pelo campo político, científico, cultural e social. Apesar do Brasil mostrar-se um Estado autônomo após 1822, mantém-se governado por uma monarquia lusitana, que por sua vez revela um interesse pelas artes plásticas, que na verdade irão utilizá-las como arma política. A pintura histórica surge como uma representação carregada do simbólico, convidando estes artistas franceses a ilustrar também os acontecimentos históricos e seus herois. Surge um sentimento de nacionalidade, criando uma forma de imaginário que mascara as diversidades sociais, mostrando um encantamento dos fatos históricos, como se o período vivido pelo Brasil durante o governo da corte portuguesa fosse um período maravilhoso, com um intenso desenvolvimento do país em todos os sentidos. Na verdade, após a independência em 1822, a construção da identidade nacional tornou-se uma preocupação do Estado. E, nesse esforçopara estabelecer as referências para a nação brasileira, a história tem umpapel central. O passado, reconstruído de maneira intelectual, torna-seuma importante fonte de legitimação do novo regime.(PEREIRA, 2012, p. 95) Dentro desses interesses da corteem se criar no Brasil um clima favorável a si próprio, era necessário destacar características de uma realeza tão tradicional quanto as demais europeias,criando uma imagem de grandeza e importância, que representava para estes artistas um trabalho que já estavam acostumados,a arte em prol da política. Diversos artistas franceses temerosos das consequências da queda do império napoleônico,estavam com o 358 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul intuito de deixar aquele país, aceitando o convite do embaixador português na França, o marquês de Marialva, que os contrataram para trabalharem no Brasil a serviço da corte portuguesa. Assim, a Missão Artística Francesa chega ao Brasil em 1816, formada por um grupo de artistas liderados por Jean-Baptiste Debret e Nicolas Antoine Taunay. Com uma formação neoclássica, estes artistas procuram pintar o Brasil conforme os seus moldes ocidentais. Este estilo neoclássico propôs o retorno aos valores da arte da antiguidade clássica (greco-romana) e renascentista, no retorno aos padrões de beleza apresentados pelas esculturas gregas em mármore, a valorização do mito e a reconstrução arquitetônica baseada nas regras dos templos greco-romanos, com seus frontões, colunas, mármore branco e as abóbadas. Para Schwarcz (2008) essa seria a versão oficial da história da chegada dos artistas franceses no Brasilena verdade a missão não foi um convite da realeza portuguesa como nos parece, e sim, uma iniciativa própria dos franceses. Sua teoria defende que a missão não seria de todo responsabilidade dos portugueses, primeiro porque, é de se estranhar o fato da corte escolher justamente e apenas artistas franceses, e além do mais, artistas ligados a Napoleão,sendo que haviam tantos artistas holandeses, alemães, britânicos e portugueses a disposição, e com talento não menos nato. A iniciativa teria sido dos próprios franceses que ao chegarem ao Brasil precisaram de conseguir a aprovação oficial da corte portuguesa. O próprio D. João VI procurou fugir à responsabilidade pública de ter oficialmente patrocinado a vinda dos artistas franceses através das autoridades competentes em Paris, dando a entender, no decreto com o qual criou a Academia Real de Ciências, Artes e Ofícios, decreto de 12 de agosto de 1816, que visava aproveitar alguns estrangeiros beneméritos que procuravam a sua proteção. (BARBOSA, 1978, p. 49) Jean-Baptiste Debret escreveu em sua obra “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil” que eles teriam sido bondosamente acolhidos, afirmando que o projeto era do governo 359 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul português, mas com o objetivo dedeixar registrado na história o fato de que eles foram convidados pela corte portuguesa, acobertando o fato de que vieram por contra própria, como um autoconvite. Diante da queda de Napoleão, “ficaram muitos artistas desgostosos em Paris, os quais foram chamados ao Brasil para formarem uma Academia”. (PORTO-ALEGRE apud SCHWARCZ, 2008, p. 62). Porém, Schwarcz(2008) não duvida de que a corte seria a mais interessada nesta presença destes artistas que contribuiriam para a construção de sua imagem positiva, como dito antes, mas “o que está em questão é a premeditação do projeto e a falta de atenção aos interesses e projeções dos próprios franceses”. (Idem, 2008, p. 62) Desta forma, Schwarcz (2008) conclui que os artistas acadêmicos, como Taunay e Debret trabalhavam a favor de Bonaparte, e com a sua queda,tornaram-se perseguidos políticos, precisando partir da França para algum país, seja algum dos países baixos, ou algum país que ainda era pouco procurado por estrangeiros e que necessitasse de contato com civilizações mais avançadas, como eles se autoproclamavam. Porém, o próprio termo por nós aqui utilizado - “missão artística”, é encontrado através da leitura de “A missão artística de 1816” de Nicolas-Antoine Taunay, que investiu na ideia de uma missão necessária a um país que necessitava de uma renovação no campo das artes. Uma missão que se parece até mesmo com a missão do cristianismo em trazer a fé para os infieis, que necessitavam da luz divina. Como se o trabalho deste artista fosse como o trabalho de um missionário, um sacrifício, para a salvação de várias almas. Mas independente da utilização do termo “missão” ou se a mesma fora iniciativa portuguesa ou francesa, não é do interesse desta pesquisa.O que nos interessa neste momento é trabalhar a questão destas obras de arte que foram realizadas no Brasil com o intuito de representá-lo, o que carregará vários elementos simbólicos do próprio sujeito produtor da obra. O objetivo desta então provável missão era abrir um novo período de arte no Brasil, implantando uma educação artística, que culminou com a criação da Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, em 1826. Para o seu funcionamento, artistas estrangeiros tomaram a frente,muitos seriam os mestres da Academia, garantindo uma educação nos moldes europeus, um estilo de ensino acadêmico, que estimulava a pintura 360 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul histórica, retratística e paisagística.“As academias surgiram, não para fazer o papel das oficinas – onde se aprendia a prática –, mas justamente para fazer o que as oficinas não faziam: a discussão teórica e o estudo do desenho.” (PEREIRA, 2012, p. 91) Como a arte francesa ganhava novos rumos no século XIX, eles procuraram buscar inovações quanto a estudos sobre paisagem, viajando a territórios desconhecidos. “O artista dos arredores de Paris, da Roma antiga e das telas militares napoleônicas preparava-se para uma nova paisagem: os trópicos desconhecidos e imaginários do Brasil” (SCHWARZ, 2008, p.157) Estes preceitos neoclássicos foram desenvolvidos no Brasil paralelamente ao romantismo no sentido de que ambos valorizavam a idealização da natureza.Representação de paisagens com uma natureza modificada pelo homem, ou pelo “progresso”. “A colônia portuguesa era, assim, um imenso desafio a resumir e reunir as riquezas e imaginários dispersos por toda a América”. (Idem, p.56) O Artista-Cientista no Brasil Imperial Conforme Pereira (2012) a paisagemnos estudos de cenas históricas também foi considerada um gênero autônomo, ganhando importância na Academia, passando a ser uma disciplina no currículo a partir do ano de 1816. É importante analisarmos o papel do estudo da paisagem que representa a natureza brasileira no processo de construção da identidade nacional, tarefa esta, realizada por artistas e naturalistas. A paisagem brasileira em sua especificidadeé um convite à observação e contemplação da natureza.Para Belluzzo, “a contemplação da natureza brasileira promove a visão e o tato, provoca a sensação do gosto e do cheiro”. (BELLUZZO, 1994, p. 114). Um “país da flora exuberante e da enorme fauna;mas também quase um continente misterioso, caracterizado por gentesde hábitos estranhos” (SCHWARCZ, 2008, p.13). No caso da paisagem, árvores e campos, rochas e rios, todos esses elementos comportam associações conscientes ou inconscientes para os espectadores. Devemos enfatizar que nos referimos a observadores 361 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul de determinados lugares e períodos da história. Em algumas culturas e natureza selvagem é detestada e até temida, enquanto em outras ela é um objeto de veneração. Pinturas revelam uma variedade de valores [...] (BURKE, 2004, p. 53-54) Para Süssekind (1990) o objetivo do naturalista é caracterizar de forma precisa a paisagem, como um documento, uma descrição da paisagem. A arte poderia como uma enciclopédia, catalogar as espécies em seus tamanhos, características, em todos os seus detalhes. Afinal, o Brasil era para esses novos viajantes um país conhecido e desconhecido. Era, por um lado, um “velho amigo”, uma vez que, através dos relatos coletados durante três séculos – a partir das obras de Thévet, Lery, Goneville, Claude d’Abeville, Duguay Trouin, Bouganville e tantos outros, o Brasil surgia como o local da grande flora e da fauna diversificada. (SCHWARCZ, 2008, p.56) Para Pereira (2012) as paisagens brasileiras são representadas de diversas formas.Encontramos artistas que trabalham na criação das paisagens urbanas,com o objetivo de se criar uma documentação visual daquela região,tendo a natureza transformada pelo homem, baseando-se nos preceitos progressivistas atenados com o positivismo vigente no século XIX, como por exemplo, a pintura de Nicolas-Antoine Taunay“Morro de Santo Antonio”245, que convida o espectador a adentrar-se em sua criação paisagística, procurando representar o Rio de Janeiro, de forma a mostrar o contraste entre a construção arquitetônica com a imponência da natureza como pano de fundo. Para Belluzzo (1994) Taunay compensa a horizontalidade da paisagem natural de fundo colocando os prédios, em sua geometria, contribuindo para uma clareza da tela. 245 Morro de Santo Antônio, autor: Nicolas-Antoine Taunay; 1816; óleo sobre tela, 45 x 56,5 cm.Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.mnba.gov.br/2_colecoes/9_pintura_e/h_taunay.htm. Acesso em: 01 de Agosto de 2014. 362 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Há também representações da paisagem natural, com a descoberta da diversidade desta rica e exótica natureza, como por exemplo a pintura “Cascatinha da Tijuca246”, de autoria do mesmo artista.Desta forma, Taunay mostra uma liberdade em retratar a natureza do Brasil e“mantém-se sempre como um observador longínquo, que se deixa contaminar pela paisagem local mas a traduz em seus próprios termos. Estava no Brasil, mas permanecia de certo modo na Europa”. (SCHWARCZ, 2008, p. 273) Para Pesavento (2003) as representações também são dispositivos portadores do simbólico, pois o seu conteúdo está imbuído de elementos objetivos ou subjetivos. Esses elementos subjetivos presentes nas obras de Taunay possuem sentidos ocultos e foram construídos em um determinado contexto histórico, demonstrando também manifestações de inconsciente coletivo. O processo de representação parte de um sujeito individual ou coletivo tendo uma finalidade específica, esse sujeito individual é o artista que ganha respaldo coletivo em suas representações, visto que neste período toda arte realizada por franceses era vista pelos brasileiros como um molde a ser seguido. Destaque para Debret, que se posicionou no sentido de retratar cenas históricas, retratando também a natureza e a cultura no Brasil, permanecendo no país entre 1816 a 1831. Apesar de ser mais conhecido por representar a cultura brasileira e o seu contexto históricosocial da escravidão, tem a característica de detalhismo muito forte em suas pinturas paisagísticas. Um convite ao espectador a entrar no espaço da tela, induzindo-o a adentrar-se em sua temática e em sua composição. Sua obra “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, livro tido como uma importante fonte para a historiografia, fora publicada na França em 1841, através dos primeiros contatos de Debret com o Brasil. Mostra a crença no progresso e a sua atuação no Brasil, como se aqui fosse um local que necessitasse disso. Debret também representa a paisagem urbana e coloca o homem como o seu protagonista, é o que percebe-se em sua tela intitulada “Ponte de Santa Ifigênia”247. 246 Cascatinha da Tijuca, autor: Nicolas-Antoine Taunay; 1821; óleo sobre tela, 53 x 37 cm; Rio de Janeiro, Museu do I Reinado. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/viajantes/taunay.swf. Acesso em: 07 de Agosto de 2014. 247 Ponte de Santa Ifigênia. Autor: Jean-Baptiste Debret; 1827;aquarela sobre papel, 14,5 x 20,6 cm; Coleção particular. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_IC/index.cfm?fuseaction=obra&cd_verbete=670&cd_ obra=61235. 363 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Debret produziu um acervo de obras que retratam a realidade histórico-social do Brasil do século XIX. “Preconizava no exótico dos costumes e na representação fiel da natureza, a mais perfeita finalidade da arte no século XIX” (DEBRET, 1989, p. 11). Os estudos de paisagem faziam com que o artista deixasse o ateliê e buscasse a própria natureza como palco das suas criações. “O paisagista é também um observador a distância que, em nome de ver tudo, se separa e abstrai o mundo.” (BELLUZZO, 1994, p. 35) A pintura paisagística traz a magia da imaginação mas não deixa de representar a realidade. Num tom romântico idealiza lugares de forma bem detalhada, levando o espectador a um esplêndido exercício de imaginação e contemplação. Uma relação direta entre o naturalista e o ambiente o qual está representando, no qual ele encontra-se imerso. Essa experiência de imersão em que o artista se encontra e que também leva o próprio espectador a experimentar nas representações da paisagem brasileira,estabelece relações entre o homem e o mundo em que vive. Considerações Finais O homem iluminista embrionado no século XVIII é artista e cientista, sabe unir a razão com a sensibilidade artística. Desta forma, fica evidente a relação entre a ciência e a arte, sendo esta última, auxiliar das expedições oficiais, contribuindo com as suas formas de observação da natureza, com uma forma contemplativa e detalhista.Essas formas de representação visual da natureza e da paisagem brasileira fazem parte de um período marcado por relatos de viagens, descrições de paisagens, catalogação de espécies, mostrando uma atitude de observação. Conforme Belluzzo (1994) com a presença da corte portuguesa no Brasil houve uma preocupação em se acelerar o processo de aculturamento, transformando o país nos campos econômicos, urbanos, sociais e artísticos.Este brasileiro a viver sob a tutela dos estrangeiros, recebera muito bem a corte real portuguesa, que por sua vez passara ser modelo de conduta, tendo o próprio país que se adaptar para as novas demandas que uma corte real implicaria em transformação de toda infraestrutura da cidade do Rio de Janeiro. Portanto, as 364 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul representações desta nova cidade, trazem a ideia de uma cidade em expansão, trazendo os ares de uma nova civilização. Os franceses criam representações do Brasil a partir de sua própria percepção, classificando elementos, entre o que deve ser colocado na imagem ou o que não deve aparecer. Desta forma, elementos podem ser excluídos, manipulados, distorcidos, pois este artista imprime nesta imagem características próprias de seu contexto.É o que os estudos da História cultural sobre as imagens nos atenta, para tratar a imagem como uma criação repleta de simbolismos carregados pelo próprio sujeito autor da obra.A obra de artepor trás de sua aparência pode possuir um interesse de se apresentar determinada ideia, que nesse caso, seria o desejo de pintar um Brasil que crescia conforme os moldes europeus. Referências Bibliográficas ABRIC, Jean-Claude. O Estudo Experimental das Representações Sociais.In: JODELET,Denise (org). As Representações Sociais. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001. (p. 156 – 171) BARBOSA, Ana Mae T. B. Arte-Educação no Brasil: Das Origens ao Modernismo. São Paulo:Editora Perspectiva, 1978. BELLUZZO, Ana Maria de M. O Brasil dos Viajantes. São Paulo: Ed. Metalivros, 1994. BIVAR, Vanessa dos S. D. & SAMARA, Eni de M. Do Outro Lado do Atlântico: Imigrantes Franceses na São Paulo do século XIX. In: LUCA, Tania Regina de &VIDAL, Laurent (orgs.) Franceses no Brasil: Séculos XIX – XX. São Paulo: Editora Unesp, 2009. BURKE, Peter. Testemunha ocular - imagem e história. Bauru, SP: EDUSC, 2004. DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Tradução e notas de Sérgio Millet / apresentação de Lygia da Fonseca F. da Cunha. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1989. [Coleção Reconquista do Brasil] PEREIRA, Sonia Gomes. Revisão historiográfica da arte brasileira do século XIX. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Universidade de São Paulo. N° 54, Set/Mar de 2012. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/49114. Acesso em: 24 /07/ 2014. 365 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2003. [Coleção História e Reflexões] SCHWARCZ, Lília Moritz. O sol do Brasil: Nicolas – Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de D. João. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ______. Os franceses no Brasil de Dom João. In: Revista Espelho de Projeções, USP. São Paulo, n. 79, p. 54-69, setembro / novembro 2008. Disponível em: http://www.usp.br/revistausp/79/06-lilia.pdf. Acesso em: 11 / 07 / 2014. SÜSSEKIND, Flora. A ciência da viagem. In: O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. TAUNAY, Afonso de Escragnolle. A missão artística de 1816. Rio de Janeiro: MEC, 1956. (Publicações da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional n.18). 366 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul A ORGANIZAÇÃO DAS ESCOLAS DOS JESUÍTAS NO BRASIL-COLÔNIA: BUROCRACIA, ESTRANGEIRISMO E COMPETITIVIDADE Rachel Silveira Wrege UNESP - Universidade Estadual Paulista – FCT [email protected] A solução encontrada para Portugal superar a falta de padres em altos cargos da Companhia de Jesus no Brasil-Colônia não consistiu no investimento de padres com o curso completo de Teologia. Com um raciocínio colonizador e, assim sendo, dominador, próprio de uma Metrópole em relação a uma Colônia, o jeito encontrado para resolver o referido problema foi o de enviar padres intelectualmente completos para a Colônia, tanto de Portugal como de outros países afeitos ao pensamento dominante, que por sua vez reproduzia-se, gerando urra seletividade ainda mais crescente no ensino superior. Podemos concluir que o estrangeirismo jesuítico no ensino colonial estava intimamente relacionado à privação de nascidos no Brasil ao respectivo grau de ensino. Estava claro na mente dos portugueses quem era nascido na Colônia, incluindo-se os mamelucos ou mestiços, por disparem de um parentesco português. Sendo assim, os índios puros eram considerados brasileiros e, os negros de seus locais de origem. Para "estrangeiros" reservavam-se aos que não se encaixavam nessa classificação. Esta observação é importante quando se faz menção aos padres estrangeiros e, principalmente, a quem era considerado aluno de algum colégio jesuítico da Colônia, que além de não ser índio, nem negro, não podia ser de origem judaica (SERAFIM LEITE, 19381949, t. VII, p. 236-241). O determinado vínculo entre a falta de pessoal nascido no Brasil que fosse altamente qualificado e a existência de padres estrangeiros na Colônia registrou-se em alguns fatos elencados por Serafim Leite. Entendo que neste aspecto, o historiador da Companhia de Jesus no Brasil, é confuso em sua exposição, na sua obra “História da Companhia de Jesus no Brasil”. Além disso, ele relaciona de modo subentendido a baixa qualificação dos padres do Brasil com a vinda de padres estrangeiros, sendo que não lamenta sobre o problema quanto à formação dos padres do Brasil, apenas a justifica. Para a infelicidade dos jesuítas de origem 367 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul colonial, o ano de 1663 marcou o destino de suas carreiras, por ser nomeado Jacinto de Magistris para o cargo de Visitador, que atuaria como verificador das atividades dos padres na Colônia, com o atributo de ordenar a realização do que o Padre Geral lhe atribuía. Este padre, de origem estrangeira, portanto, não sendo natural de Portugal e nem do Brasil, trouxe a experiência de ter sido procurador da Província do Malabar, localizada na Índia. O Padre Geral fez uso de seu poder supremo ao elencar Jacinto de Magistris para ser visitador da Colônia, feito que agradou o rei de Portugal e, preocupou e entristeceu os padres da então Colônia, como evidência da consonância de Roma com Portugal para o atendimento das propostas educacionais colonizadoras. Esta função era bastante adequada para o que se estava propondo, uma vez que ela era responsável pelo relacionamento entre os padres de Portugal e da Colônia, articulando-se ainda com o rei de Portugal. Portanto, o padre visitador transitava livremente no ambiente da Coroa Real e nos meios institucionais jesuíticos da Colônia (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 33-43, 51, 69, 87). Vejamos como Serafim Leite aborda esses vínculos: Ao voltar do Brasil a Lisboa, o P. Jacinto de Magistris foi recebido com veneração na Côrte, e El-Rei escreveu os seus louvores ao Geral, oferecendo-lhe o seu patrocínio ou para ele voltar ao Brasil ou para ir para a Índia, como o P. Geral determinasse (SERAFIM LEITE, 19381949, t. VII, p. 40). Pela leitura feita da Obra de Serafim Leite, percebi que a nomeação de um visitador estrangeiro sobrepujou, por absurdo que tenha parecido, uma lei da própria Companhia de Jesus, que estabelecia como norma, a inexistência do cargo de visitador se realizar por padres de outra origem que não a da Metrópole e Colônia. Os jesuítas, feitores de tal lei, não se submeteram a ela (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 33-43, 51, 69, 87). Tratando o P. Jacinto de Magistris do seu embarque com o Conde de Óbidos, Vice-Rei do Brasil, declarou-lhe este que no Brasil os 368 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul estrangeiros não podiam ser superiores, de acordo com a lei então vigente; lei que aliás se não cumpria, porque o P. José da Costa, estrangeiro, era Provincial do Brasil. (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 34-35) Fazendo-se uma tentativa de perceber criticamente o que apenas Serafim Leite descreve, o leitor pensará que este visitador, conquistando a antipatia dos padres da Colônia, além de não dar mostras de se importar com a referida lei, pois oficialmente estava amparado por autoridades políticas, se impôs na forma de mandatário autoritário do Padre Geral, em razão de não ter a confiança dos padres, subalternos. O visitador ordenou, assim, que os padres saldassem dívidas que tinham com Portugal e Japão. Contudo, a medida mais forte a ser seguida competia à área escolar, isto é, a de que não se aceitassem mais alunos de origem da Colônia que quisessem se tornar jesuítas, do que se conclui que o ensino superior viu-se sem alunos, de 1662 a 1664. De Magistris apenas repetia o que havia feito na Índia, enquanto política de incremento à proveniência de estrangeiros nas colônias portuguesas. A desculpa era a de que os jesuítas da Colônia estavam formando muitos jesuítas locais (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 236-241). Quem pretendia, então, ser jesuíta neste período não foi possível, nem viável foi a permanência dos já jesuítas de naturalidade colonial em atividades de liderança e de alta administração da Companhia de Jesus da Colônia, considerados, por este visitador, desprovidos de virtude religiosa para assumir tal responsabilidade. Continuando a descrição do historiador dos jesuítas do Brasil, os padres foram afastados para ocupações de ordem mais prática, sendo distribuídos dispersivamente pelas aldeias e casas de ensino, provavelmente, devido à insegurança da respectiva autoridade. Com todas essas ordenações, o que Jacinto de Magistris na verdade realizou foi o chamamento de padres de Portugal para exercerem os trabalhos que eram anteriormente realizados pelos padres da Colônia. Dava-se o estímulo para que o Colégio da Bahia formasse jesuítas ainda alunos que viessem de Portugal para cursarem o noviciado, em substituição ao excessivo número de alunos da Colônia, considerado pelo Padre Geral (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 33-43, 51, 69, 87, 239-241). 369 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Há indicações de que os objetivos de De Magistris se efetivaram porque deram início a uma reação contrária, através de uma representação escrita pela Câmara de Vereadores da Bahia em 1665 ao rei de Portugal, em atitude de reclamação quanto ao preconceito de se educar padres coloniais. Os jesuítas locais tinham o seu argumento respaldado na ideia de liberdade, ocasionado em consequência da desvinculação do trono português do de Castela. Esta liberdade levava à defesa daquilo que era inerente ao local, contra tudo o que se traduzia num certo estrangeirismo. Da parte dos padres jesuítas, este assunto resolveu-se com o mesmo entusiasmo, numa ação que demonstrou que eram capazes de decidir por si, o futuro do ensino e da formação dos padres da Colônia, por meio da deposição do visitador, sem a devida licença de quaisquer autoridades externas. Quanto a esta liberdade dos padres do Brasil, Serafim Leite sugere que ela tenha se dado em função das ideias em vigor, como se supôs, de libertação do trono português em relação ao espanhol. Sendo assim, ele retira dos jesuítas a responsabilidade das ideias que estavam tendo (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 4454). Seis padres, tanto de naturalidade da Colônia, como de Portugal, somados ao provincial que era estrangeiro, depuseram o Padre Visitador de Magistris e, tiveram como consequência, uma tremenda repreensão do Padre Geral em 1667, quando cinco deles foram impedidos, por causa de seus atos tidos como insubmissos, de serem padres de decisões e de governança da Companhia de Jesus. Aos demais, como não foram encontrados no momento da notícia, não se viram privados do respectivo chamamento. Ainda, o Padre Geral afirmou ter aceitado a admissão de nascidos na Colônia ao sacerdócio e, de que não retirou os padres da procedência de altos cargos. Com tudo isso, o resultado dos acontecimentos foi positivo em relação aos argumentos dos padres coloniais, pois o Padre Geral teve de abafar a opinião pública de manifestantes da população. Para a desmoralização do Padre Geral e do Padre Visitador contribuiu a irregularidade que eles cometeram no tratamento dado à dívida que a Companhia de Jesus da Colônia e de Portugal tinha com o Japão, isto é, o Brasil teria de arcar também com a parte que competia a Portugal pagar do Colégio de Santo Antão de Lisboa. No que se referiu a esta atitude dos jesuítas de deposição do Padre Visitador, Serafim Leite se manteve bastante narrativo, sem quaisquer indícios de posicionamento. No entanto, ao não defender o Padre Visitador, e nem a justificativa do Padre Geral, pode-se concluir que 370 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Serafim Leite, de certa forma, vai ao encontro do que os jesuítas faziam, ou seja, de deposição de um Padre Visitador estrangeiro (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 41-59). A exigência legal de que o ocupante do posto de visitador deveria ser um português de Portugal ou da Colônia cumpriu-se quando Antônio Vieira dispôs-se a ser visitador da Colônia, depois de ser quase obrigado a exilar-se na Índia Oriental pela pena imposta a ele pela Inquisição. Ele terminou não indo para onde a Inquisição pretendia, devido a complicações de sua saúde e, permaneceu em Portugal. Cumpridas as exigências inquisidoras, em 1688 este padre vem para a Colônia com a mais alta ocupação, ao invés de se tornar consultor da Rainha da Suécia, a convite dela. Ao se posicionar no que se referia à hierarquia de funções da Companhia de Jesus relacionada com a naturalidade dos padres, fez com que se cumprissem as normas do rei de Portugal. Elas atribuíam para a ocupação dos cargos de visitador e provincial a preferência dos padres serem originalmente de Portugal ou da Colônia. Entretanto, o ordenamento régio tratou de não se esquecer de constar em suas cláusulas o estabelecimento de uma quantidade inferior de padres nascidos na Colônia em relação aos portugueses. Diante desta norma, Vieira sendo simpático a ela, cumpriu-a e demandou a vinda de padres da Metrópole. Como parte do tipo de exposição de Serafim Leite, ele pareceu se mostrar favorável à deposição do Visitador estrangeiro, mas não à lei que limitava a admissão de nascidos no Brasil (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 73-78, 96). Compreendi que o plano de se trazer cada vez mais padres de Portugal não era consensual no interior da Companhia de Jesus, devido ao fato de que nem todos os padres pensavam como Vieira. Alexandre Gusmão foi o expoente máximo da opinião inversa, o que elucidou o entendimento de que os padres entre si não formavam um acordo. Enquanto Vieira defendia a existência de padres portugueses na Colônia e que tivessem o domínio das línguas angolana e tupi, Alexandre Gusmão, como fundador do Seminário de Belém da Cachoeira, mostrava-se afeito à constituição de um grupo de padres. Ele acreditava que a instituição por ele criada teria condições de formar um número razoável de padres, para que a Colônia não dependesse de padres de Portugal. Esta autonomia em relação a Portugal não teve sustentação porque era próprio da Colônia ter que se submeter ao rei português. É desta maneira que Serafim Leite colocou esta dependência, como algo natural da Colônia em relação à 371 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Metrópole. Tratando-se mais do parecer de Gusmão, ele, opostamente a Vieira, não visualizava como de máxima importância o ensino das línguas das colônias na formação dos padres, por ter vivido sempre no interior da instituição escolar, não sentindo a sua necessidade (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 73-78, 96). Mostrando-se ao lado de Vieira, Serafim Leite escreve que até 1691, ano em que Vieira deixou de ocupar a função de Visitador, o direcionamento quanto à limitação de nascidos na Colônia ao sacerdócio continuou de maneira eficaz. Evidencio que a posição de Vieira foi característica, quer dizer, ao mesmo tempo em que decidia sobre a vida dos pretendidos ao sacerdócio que fossem da Colônia, não deixou escapar os estrangeiros. Ele tinha a clareza de que somente garantir, a predominância de padres portugueses era uma atitude cuidadosa em face da ameaça da Espanha de invadir os territórios do Brasil. A dada preocupação recebeu a sua atenção a partir de 1677, em justificativa da tentativa de se colonizar o Rio da Prata e o Amazonas com a ajuda de padres da confiança do rei de Portugal, porque estas regiões estavam servindo de moradia para os castelhanos (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 85, 93-109). De acordo com o estudioso da Companhia de Jesus no Brasil, no ano posterior a que Vieira deixou de decidir sobre a escolha dos destinos do sacerdócio na Colônia, o provincial colocou à Companhia de Jesus de Portugal, a necessidade de padres portugueses no Estado do Maranhão, sempre mais escassos do que no restante do Brasil; que o circuito das destinações desses padres se fizesse apenas entre Brasil e Portugal e, que para as outras colônias portuguesas se enviassem missionários europeus, que então não viriam para a Colônia. O resultado disso foi desvantajoso para os padres que viviam há algum tempo na Colônia, em ocasião dos padres italianos e da Europa Central, em número menor do que o esperado, terem se acomodado nos colégios, procurando torná-los semelhantes às escolas europeias, principalmente, em matéria de hábitos e costumes (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 85, 93-109). A situação apontada por Serafim Leite sobrecarregou os jesuítas da Colônia no cuidado das aldeias, ficando assim a distribuição deles e dos padres estrangeiros: 372 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul No grupo do Brasil sucedeu que, tirando alguns poucos estrangeiros, que aceitaram de coração alegre a vida anónima das Aldeias, os mais tendiam à vida dos Colégios, com a ideia implícita de que o Brasil do século XVII já não era país de Missões. Sorriam-lhes mais os cargos de governo e de ensino ou as missões rurais, pelas vilas ao redor dos Colégios: critério prematuro no século XVII, com o Brasil ainda cheio de Índios, e que levava como consequência, dada a existência efectiva das Aldeias, que o peso da catequese recaísse quase todo sobre os Portugueses (filhos do Brasil e de Portugal). E assim insensivelmente começaram a coexistir duas categorias de Jesuítas do Brasil, os dos Colégios e os das Aldeias; e nas disputas sobre a liberdade dos Índios notava-se que a não favoreciam tanto com os outros Padres, os que nunca tinham visto Indios, nem aprendido a sua língua (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 101). A divisão entre os padres estrangeiros e os coloniais era mais acentuada por todo o Brasil do que no Maranhão, isto é, neste a distribuição dos jesuítas era homogênea, conforme a observação que faço de uma estatística apresentada por Serafim Leite. Mas, tanto no Maranhão como nas demais partes do Brasil, as funções dos padres eram díspares. O texto transcrito oportuniza a ideia de que as funções nobres de ensinar eram reservadas a muitos estrangeiros, como parte daquela proposta de trazê-los para tanto, a fim de dirigirem o ensino, sendo que a prática árdua da catequese incumbia-se aos padres da Colônia, sem a completa formação em Teologia. A preservação dos estrangeiros em relação ao que era particular da Colônia, ou seja, os índios, fazia-os agir do mesmo jeito de quando viviam na Europa. A distinção dos tipos de trabalho para os padres estrangeiros e para os da Colônia não existiu com tanto ímpeto na Missão do Maranhão e Grão-Pará, como ocorreu no Brasil, porque lá a colonização e a presença dos religiosos estavam ainda numa etapa inicial, na metade do século XVII, enquanto que no Brasil os jesuítas haviam criado as suas bases. Como a Missão do Maranhão e do Pará não tinha quase padres da Colônia, os de origem estrangeira foram muito bem-vindos. Desta descrição de Serafim Leite concluo que, por isso, é que o 373 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul protesto no Brasil, contra os padres estrangeiros de tomada de ocupação, não se manifestou no Maranhão e Grão-Pará (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 242-245). Tenho a expor da Obra de Serafim Leite, que esta Missão do Maranhão e Grão-Pará buscou uma formação teológica razoável, e para tanto, os padres pretenderam utilizar uma lei de 1574 que previa o envio de alunos jesuítas para terminarem os estudos em Évora ou em Coimbra, mas de fato ninguém se encaminhou neste sentido. O que se fez valer consistiu na chegada de alguns padres estrangeiros, provenientes daquela leva que chegou à Colônia no século XVII. Mas o número de padres não foi suficiente, através da comprovação de que alunos pretendentes a jesuítas, do Maranhão, rumaram para os colégios da Companhia de Jesus de Portugal na esperança de receberem instrução gratuitamente, considerando-se que a Missão do Maranhão e do Pará não tinha meios financeiros para formá-los na Colônia. Desprezavam-na a própria Ordem Jesuítica e o Padre Geral, segundo Serafim Leite, na avaliação que faziam do ambiente maranhense e paraense, porque lá os padres possuíam uma pequena lavoura e criação de gados, não dando conta de sustentar a obra missionária. Porém, o motivo mais forte de suas desconsiderações foi de fundo moral. Não sendo as áreas habitadas, pela falta de desenvolvimento econômico e, ficando as terras e os aldeamentos distantes longe uns dos outros, os padres não se agrupavam para o fortalecimento espiritual contra as tentações daquilo que chamavam de "mundo terreno". Isto, os jesuítas de Portugal não desejavam para os alunos da Colônia que iam estudar lá. A Companhia de Jesus de Portugal argumentou que, além disso, esses alunos não levavam os estudos a sério, pois gastavam muito para viverem por conta da mencionada missão e, se alongavam anos a fio nos estudos. A forma de bloqueá-los foi bastante prática. Simplesmente, sabendo Portugal que o Maranhão e o Pará não podiam manter os alunos sob a dependência da Metrópole, esta lhes impôs o ônus financeiro do encargo dos alunos, o que inviabilizou a formação de um quadro sacerdotal para a região missionária (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 242-245). Com um mínimo de padres estrangeiros e da Colônia, pela própria condição escassa de padres no Maranhão e Grão-Pará e, dada a situação financeira da região, o caminho viável foi a criação de um seminário em 1736 destinado à formação de catequistas, visando atender a um maior número de índios e colonos com a ministração da doutrina da Companhia de Jesus (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 244-247). 374 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Apesar de Serafim Leite não clarificar, encontrei nas entrelinhas do que ele escreve o seguinte: a iniciativa conjunta do rei de Portugal e da Companhia de Jesus portuguesa, de investirem no envio de seus padres ou que proviessem da Europa não foi bem conduzida dada a pequena quantia dos mesmos na Colônia, tanto no Brasil como no Maranhão e Grão-Pará. Talvez a intenção das autoridades fosse realmente a de produzir um alarde, iludindo os padres coloniais só para não formarem um grande número de sacerdotes qualificados. Serafim Leite dá alguns indicadores sobre a ilusão de que estou tratando, ao destacar a origem dos poucos padres estrangeiros, numa longa passagem de sua Obra: Sobre a presença de Jesuítas estrangeiros no Brasil a estatística mostra que o seu contingente não foi abastado. No primeiro período (século XVI) era sobretudo de espanhóis, [...] Além dos espanhóis ainda no século XVI chegou ao Brasil algum inglês ou irlandês, que a perseguição religiosa na Inglaterra impedia de voltar à pátria. Também chegou no século XVI algum italiano como primícias de outros (incluindo sicilianos) que vieram a constituir depois a mais valiosa contribuição de Jesuítas estrangeiros no Brasil durante o século XVII. Com eles alguns Padres da Europa Central e das Provinciais belgas (Flandro-Belga e Galo-Belga) entre os quais se conta algum francês. No século XVIII sobressaem dois pequenos grupos: o britânico: algum filho da Irlanda Católica e vários da Inglaterra e Escócia, protestantes, que passando pelo Brasil se converteram ao Catolicismo; e o grupo imperial, oriundo dos países da Europa Central, pedidos pela Rainha de Portugal D. Maria Ana de Áustria, a rogos das Provínciais do Brasil e dos Vice-Provinciais do Maranhão, [...] (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 246-247). 375 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Na época foi bem provável que os padres tenham se preocupado em comparar, aproximadamente, o seu contingente com a existência de jesuítas estrangeiros: As percentagens dos Jesuítas estrangeiros são: na Provincia do Brasil, média geral, 6,30 por cento, média final 4,20 por cento; na ViceProvincia do Maranhão e Pará, média geral 9,60 por cento, final 8,30 por cento (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 247). A escolaridade seletiva dos colégios jesuíticos devia-se, portanto, às normas pedagógicas rígidas da Companhia de Jesus, que eram exercidas pelos jesuítas portugueses e reforçadas pelos padres estrangeiros. A falta de padres para o exercício do sacerdócio pode encontrar explicações nesta composição de normas e estrangeirismo, incidindo sobre o ensino jesuítico. É, por isso, que o contexto educacional da Colônia imperado no século XVII, pelos colégios de maioria jesuítica, mostrou evidentemente a sua face, precipuamente, com a expansão aparentemente numérica de seus institutos. Pode-se assistir a um forte mecanismo interno dos próprios jesuítas da Colônia, de seletividade educacional, bem como a iniciativa, na mesma direção, da parte dos políticos e religiosos de Portugal, mediante, a limitação dos nascidos na Colônia ao sacerdócio. A promulgada vinda de padres estrangeiros não se concretizou, como mostra a última citação, pois foi útil apenas para fazer com que os padres não se preocupassem com a formação quantitativa de sacerdotes. Em conclusão, a seletividade educacional conseguiu ser mantida pelo rei português e pela Companhia de Jesus de Portugal através da promessa, jamais cumprida, mas acreditada pelos padres da Colônia, de virem jesuítas. Referências Bibliográficas SERAFIM LEITE, S. I. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa & Rio de Janeiro: Livraria Portugália & Civilização Brasileira, tomos I-X, 1938-1949. Referências Complementares 376 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul AB’SABER, Aziz N. Fundamentos geográficos da história brasileira. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História geral da civilização brasileira. São Paulo: DIFEL, tomo I, 1985. ALDEN, Dauril. Aspectos econômicos da expulsão dos jesuítas do Brasil: notícia preliminar. In: KEITH, H. H. & EDWARDS, S. F. (orgs.). Conflito e continuidade na sociedade brasileira (ensaios). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. BAÊTA NEVES, Luís Felipe. O combate dos soldados de Cristo na Terra dos papagaios. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978. FERREIRA, Tito Lívio. História da educação lusobrasileira. São Paulo: Saraiva, 1966. FLEIUSS, Max. História administrativa do Brasil. 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Na Colônia, sendo originados desde o século XVI com início tímido, nos séculos seguintes estes cursos vieram a contribuir, de modo relativo, para a formação de um quadro de pessoal formado para servir aos propósitos coloniais. Desse modo, o ensino superior estava estritamente relacionado à expansão do ensino de certa forma, quer dizer, não foi exclusivamente o ensino elementar e intermediário que se difundiram. Mas, nem todos os alunos que haviam cursado as Humanidades ou Latinidade (intermediário) contavam com a chance de assistir às aulas de Filosofia, pois uma pré-seleção era feita tendo em vista a escolha de pessoas consideradas aptas. A análise que faço do estilo seletivo da educação escolar jesuítica é, fundamentalmente, oposta à que Serafim Leite faz, como historiador da Companhia de Jesus no Brasil. Este autor conduz o pensamento, que dispõe acerca do assunto, de forma a dar a entender ao leitor que a seleção dos candidatos ao ensino superior era pertinente, pois representava rigor. O leitor presenciará adiante o desmembramento desta ideia veiculada na obra de Serafim Leite, através de algumas informações que ele oferece. Ainda tenho a observar que o conteúdo deste item se encontra muito espalhado nos escritos do respectivo historiador (SERAFIM LEITE, 1938-1949, tomo VII, p. 149-150). Dou início à exposição, chamando a atenção para o fato de ser muito importante diferenciar os alunos que já tinham sido alunos do curso de Humanidades nos próprios colégios jesuíticos dos que tinham feito esta modalidade em outra instituição, como a dos franciscanos e carmelitas. Quanto aos alunos externos e internos dos colégios da Companhia de Jesus, pode-se dizer que era mais fácil para eles conseguir uma vaga no curso de Filosofia, pois já tinham feito antes um ano de Lógica, que equivalia ao primeiro ano de faculdade e, só 378 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul depois, prestavam a prova que lhes dava ou não o privilégio do prosseguimento dos estudos (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 175-180). De acordo com o Padre Leite a partir do início do século XVIII foi possível existirem pretendentes que não tinham convivido anteriormente no ambiente estudantil dos colégios da Companhia de Jesus, pois o curso de Humanidades acabou por ser absolvido sob a forma de aulas particulares, dadas por religiosos seculares, como por exemplo, ex-padres de alguma outra ordem não jesuítica, sendo que também os próprios religiosos supriam este ensino para as suas ordens religiosas. Estas aulas particulares, com o objetivo de formação geral ou especificamente religiosa, existiam paralelamente aos colégios jesuíticos, não retirando deles o alunado porque a demanda era intensa. Levemente, Serafim Leite opina a respeito das aulas de Humanidades terem se dado também fora da instituição escolar dos jesuítas. Ele me deu a impressão de não reprovar este esquema particular nos locais onde faltavam os padres jesuítas; os carmelitas e os franciscanos abriram esta modalidade de ensino, com o apoio do subsídio do rei de Portugal. Mas, o que interessa depreender da existência de várias proveniências do ensino de Humanidades, sem retirar dele a nítida preponderância dos colégios da Companhia de Jesus, é que os alunos formados nessas instituições paralelas recebiam um tratamento mais rigoroso ao quererem cursar a Filosofia sob a orientação dos padres jesuítas. Podemos concluir que por causa do ensino superior só existir nos colégios da Companhia de Jesus, isto tornava ainda mais a educação escolar jesuítica seletiva, pois a procura era elevada em relação à quantidade oferecida deste grau de ensino. Os alunos tinham de enfrentar uma avaliação que não existia para os que tinham se enquadrado anteriormente nos cursos elementar e de Humanidades; este exame qualificava-se como de “competência ou aptidão” e tinha a sua elaboração conforme as ordenações dos estatutos do Colégio das Artes de Coimbra, correspondendo a este padrão de exigência, que estava além das condições apresentadas pela maioria dos candidatos. Vale lembrar que informações deste tipo não são omitidas por Serafim Leite, porém, se compõem de outra maneira, conforme a interpretação do historiador (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 149-150). Serafim Leite escreve que os alunos que passavam na prova de competência adquiriam o direito de frequentar o primeiro ano de Filosofia, que incidia sobre o conteúdo de Lógica e assim, eles se igualavam institucionalmente aos outros alunos. Neste caso, a palavra “direito" 379 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul estava de acordo com o que o escritor da Companhia de Jesus no Brasil entendia por acesso à educação superior (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 149-150): No século XVIII, quando já eram mais as escolas particulares de Latim, se os alunos delas desejavam frequentar o curso de Filosofia, público, prestavam no Colégio exame de competência antes de serem admitidos, conforme aos Estatutos do Colégio das Artes, de Coimbra: que era a Lei do Brasil (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 150). Feito o primeiro ano da Lógica, tanto os alunos de fora que tinham passado por um processo de seleção, como os que não tinham como exigência tal requisito, eram submetidos a um exame com uma única chance, sem qualquer outra oportunidade de passar. Chamo de cinismo dos padres jesuítas o fato de que aos reprovados era "permitido" fazerem novamente a prova, mas não para serem reconsiderados e admitidos, e sim para terem a confirmação de que não seriam aproveitados como alunos do ensino superior. O trecho seguinte de Serafim Leite demonstra textualmente esta realidade (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 175180): Ano de Lógica: Todos o devem estudar; o seu exame só se fará uma vez, isto é, não se repete; e só serão admitidos a novo exame os rudes, mas para se convencerem da sua inaptidão para estudos maiores (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 175). Os alunos aprovados para o curso de Filosofia estudavam, principalmente, os livros de São Tomás de Aquino para, através desta leitura, compreenderem Aristóteles. Com isto estou querendo referendar que o filósofo antigo não era lido em sua forma clássica e pura, pelo contrário, delineava-se um cerceamento para o seu pensar. Na verdade, os alunos tinham acesso apenas ao material de São Tomás. Não bastando apenas a leitura dos textos de São 380 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Tomás, os leitores do curso de Filosofia viam-se cercados pelo conteúdo apresentado nos livros dos professores do Colégio das Artes de Coimbra e da Universidade de Évora. Quanto a Coimbra, o livro mais significativo era o "Cursus Conimbricensis", fonte de comentários acerca do mesmo Aristóteles. Dos autores destacados achavam-se os portugueses Baltasar Teles em "Summa Universae Philosophiae"; Arriaga, da Universidade de Praga, em seu escrito "Cursus Philosophicus" e, o padre Antônio Vieira, autor do trabalho "Curso de Filosofia". Em termos genéricos um ou outro escritor europeu entrava na listagem dos livros filosóficos que deviam ser foco de atenção dos alunos e professores. A confluência, portanto, sobretudo, de autores europeus e portugueses e, em menor quantidade, de um jesuíta marcado pela cultura colonial, reunia o conjunto do que se constituía em matéria de estudo (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 213-223). Nem todos os alunos conseguiam se formar em Filosofia, por causa da seletividade também existente no decorrer do curso. Faço ideia de que os que se formavam encontravamse marcados pelo seu histórico escolar enquanto medida pare conseguir uma vaga nos dois últimos anos de Teologia, que era a Teologia Especulativa, porque Serafim Leite descreve que o aluno de rendimento médio não tinha a possibilidade de mudar de atitude e vir a ser exímio nesse Curso de Teologia, pois o seu desempenho no curso de Filosofia e nos dois primeiros anos da Teologia valia-lhe pontos contrários ou a favor para a permanência nos colégios jesuíticos. Assim, da mesma maneira que os alunos não eram barrados de início no curso de Filosofia, salvo para este curso os alunos de fora como se pode ver, na Teologia os jesuítas faziam uso do mesmo procedimento, ou seja, aqueles que eram nomeados como regulares ou medianos no curso de Filosofia prosseguiam cursando a Teologia Moral e, se continuassem estudando como tal e não melhorassem daí eram impedidos de realizar a complementação do curso de Teologia. Entendo que a seletividade educacional nesta etapa da escolaridade dos alunos era o marco divisório entre aqueles que possuíam um rendimento mediano e, os alunos considerados exemplares, chamados de "insignes" pelos padres jesuítas. Esta separação significava que tanto alunos internos como externos com qualificativos menos plausíveis, estudavam uma Teologia prática que tratava de problemas cotidianos à luz de resoluções teológicas existentes no plano dos costumes morais próprios da economia colonial. Por isso, este curso de Teologia Moral denominava-se também de "Casos de Consciência" e 381 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul correspondia à formação breve dos alunos em Teologia (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 175-180). Acrescento ainda que os alunos internos de rendimento mediano e que, por isso, não participavam das conversas teológicas que o curso de Teologia Dogmática suscitava, restavalhes a nomeação para o cargo de coadjutor espiritual que era o mesmo que casuísta, professo, teólogo ou irmão. A eles competia o exercício de cuidados práticos da Ordem Jesuítica e de promover a correção de valores tidos como nocivos à cristianização dos colonos, índios e negros. Portanto, esses teólogos atuavam estritamente naquilo para o qual se formavam e, ainda, em casos difíceis nem precisavam utilizar os seus próprios recursos, dada a sua formação incompleta, pois os padres das Universidades de Coimbra e Évora colocavam-se a par dos acontecimentos e, enviavam, prontamente, o modo de solucionar as questões. Vemos aí a interferência da intelectualidade portuguesa num trato teórico das questões morais da Colônia. Por conta da praticidade deste tipo de Teologia, ela existia enquanto curso apenas nos colégios da Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco; digo que a forma popular da Teologia Moral estava na sua difusão em termos do atingimento da população local, vilas, casas e nos colégios, quer dizer, em qualquer instituição jesuítica educacional os "Casos de Consciência" eram marcantes sob a forma de palestras, tanto é que ocorriam semanalmente, e eram proferidas por um irmão especializado. A popularidade da Teologia Moral era tamanha que os religiosos de outras ordens tinham de receber noções dela no Colégio da Bahia, segundo ordens do arcebispo. Os colégios dispunham de material escrito por padres portugueses, europeus e da Colônia, onde se encontravam as diretrizes e, acima de tudo, casos de feliz resolução. Era uma espécie de guia prático de Teologia. Também, nas casas e nas aldeias os padres não deixavam faltar livros a respeito (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 175187). Em função do caráter moralizador do curso de Casos de Consciência, os alunos externos tinham a oportunidade de se formar neste curso breve e prático de Teologia, que embora não lhes servisse diretamente porque não seriam teólogos de envergadura exercia sobre eles a função social de estabelecer um rígido padrão de comportamento moral, veiculado quando ocupavam cargos no governo (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 175-180). 382 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Serafim Leite sugere que a Teologia Moral era levada a sério pela Companhia de Jesus, em razão da importância que tinha claramente percebida por ter se associado ao Direito Canônico. Este Direito era responsável pela elaboração das leis de regulação entre a igreja, o governo e a população. Na época, como não havia a desvinculação destas três instâncias, o que a Companhia de Jesus produzia vinha a efeito. O exemplo mais típico do que estou apresentando foi a difícil situação em que se colocavam os índios, escravizados pelos colonos, e “defendidos” contra isso pelos teólogos e pela lei, feita exclusivamente pelos jesuítas, com a aprovação do rei de Portugal. Ainda outro exemplo cabe colocar através do Direito Canônico que eram as constantes cobranças ilegais de impostos que chegavam aos portões das instituições jesuíticas e, eram bloqueadas pelos padres coadjutores espirituais, encarregados de provar a sua isenção (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 183-184). A seletividade educacional, nas circunstâncias da época não era motivo de questionamentos no interior da Companhia de Jesus ou pela exposição de Serafim Leite a este respeito. Na Obra do autor ela é descrita como algo normal sobre a vida dos alunos, não tomando para si o ônus do pouco tempo de aprendizado da maioria que compunha os graus de ensino elementar, Humanidades e Teologia Moral, que era obstaculizada de se manter no curso de Teologia. Parece que se tinha a visão de ser a culpa só dos alunos por não terem se dedicado o quanto deveriam. Esta afirmação fica revestida de maior firmeza e gravidade ao se pensar que o sistema educacional jesuítico era seletivo para os próprios jesuítas, parecendo a olhos vistos uma contradição. Vejamos como se dava a seletividade para a frequência ao curso de Teologia Especulativa tanto para os alunos internos, como para os externos: Dos estudos internos da Companhia, a Teologia Especulativa ou Dogmática é o mais alto curso. Não eram admitidos a ele todos os estudantes. Havia uma como selecção natural ou eliminatória, a começar na lógica (Menor e Maior), expressa para o Brasil em Carta de “2 de Setembro de 1600, o P. Geral Aquaviva ao Provincial Pero Rodrigues: Teologia: Os medianos estudam-na só até ao 2º ano (Curso Breve); os de talento insigne, também o 3º. e 4º' ano (Curso Longo)” (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 175). 383 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul A diferenciação na ocupação de cargos da Companhia de Jesus fazia valer a hierarquia dos graus de estudo para os componentes da Ordem, que se traduzia para equivalente hierarquia de funções porque nem todos os jesuítas podiam se realizar em altos cargos de comando, pois não havia número suficiente para o seu aproveitamento. Chego a esta conclusão ao observar na Obra de Serafim Leite que os alunos da Teologia Dogmática representavam o grupo dos poucos que se aproximavam de documentos importantes da Companhia de Jesus, de seus dogmas e questões teológicas complexas. Ao contrário do estudo de problemáticas teológicas de peso no curso de Dogmas, tanto os alunos deste como os de Moral, enfim, todos os alunos de Teologia eram obrigados a receber aulas sobre a História da Igreja, traduzidas em assuntos como os concílios, vida de padres importantes, história sacra e profana; sermões de autoria do padre Vieira deviam ser estudados com muita atenção porque através deles os alunos tinham a interpretação considerada correta acerca do Antigo e Novo Testamento. Deste autor também era lido o “Tratado de Cristologia e de Eclesia” em latim. Nesta parte do curso de Teologia é interessante mencionar que Serafim Leite faz referência de que este autor que vivia na Colônia era o mais respeitado e, os seus escritos eram mais utilizados do que escritores como Bayardi, Bonucci, Estancel, Faletto e Inácio Rodrigues (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 169-189). O procedimento para a escolha dos candidatos valia para os alunos externos também, com a diferença de que eles cursavam o mais alto grau de ensino nos colégios da Companhia de Jesus, em separado. Este tipo de informação do historiador dos jesuítas no Brasil é constante em seu texto, quer dizer, ele sempre está preocupado em descrever a maneira pela qual o ensino era oferecido. A justificativa pensada pelo historiador para esta separação encontrava-se nos itens destinados a este aluno diverso. Penso que até nisso os jesuítas eram reservados e exigentes, pois a divisão de classes entre internos e externos devia-se ao melhor preparo que os futuros jesuítas precisavam para o exercício do sacerdócio e da docência neste mesmo ensino superior, enquanto que os alunos externos recebiam uma formação não tão acurada, em função de se tornarem depois governantes, mais preparados do que os alunos medianos. No entanto, eles estudavam Teologia para atuarem praticamente e, daí se explica a 384 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul não preocupação excessiva com a formação dos externos. O tempo de formação em Teologia Dogmática era igual para ambos, ou seja, dois anos, só que para os alunos internos o curso era intensivo, com mais leituras e cobranças. Tudo porque esses alunos tinham de prestar um exame, encomendado diretamente para a ministração de aulas no ensino superior. É o que Serafim Leite chamou de exame "ad gradum", que os alunos externos não prestavam, por não serem jesuítas e não poderem, portanto, ser professores jesuítas (SERAFIM LEITE, 19381949, t. VII, p. 175-176). O Curso de Teologia Especulativa ou Dogmática algum tempo foi duplo: um público para os estudantes de fora, outro particular para os estudantes de casa, quer para mais intensidade dos estudos, porque era a escola dos futuros mestres e a habilitação requerida para o exame final e mais alto grau da Companhia, que era o ad gradum (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 176). Ao fazer uma relação do conteúdo curricular, Serafim Leite expôs que o curso de Especulação estava planejado para seguir com leituras até o 4º ano, sobretudo, de São Tomás, seguidas de escritos de Francisco Suárez e Molina, como autores internacionais, e incluía-se o "Tratado de Teologia" do padre. Antônio Vieira. Este material permanecia, em parte, nas prateleiras das bibliotecas dos colégios da Bahia, Maranhão e Rio de Janeiro, locais que possuíam este curso, com a justificativa de que os exímios alunos não chegavam a fazer o 4º ano de Teologia por causa da premência de atuarem na catequese junto aos índios, sem o que estes estariam entregues à própria sorte. Defendendo tal justificativa, de forma incompleta, Serafim Leite descreve que havia uma reação contrária do Padre Geral quanto à falta de pessoal formado, porque ele não estava em contato com as dificuldades enfrentadas pela Companhia de Jesus atuando em uma Colônia. Nesse sentido, percebi contradições: por um lado a Companhia de Jesus era desejosa de formar qualificadamente uns poucos jesuítas, por outro, este impulso não se dava por satisfeito. Os ideais jesuíticos se tornavam incoerentes com a realidade escassa da catequese que precisava de catequizadores. O fato dos jesuítas 385 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul viverem em um sistema econômico colonial, se encarregava de tornar o ensino seletivo e, ao se pensar que já havia uma seletividade interna nos colégios, conclui-se que os alunos que se formavam em Teologia eram pouquíssimos (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 175177). Para os alunos internos, esta política de formação precária comparada à existente na Europa, parecia ser condizente com os propósitos que o rei de Portugal intentava implantar na Colônia, ou seja, o de não só dominar politicamente o Brasil, como também o de fazer o mesmo no interior das atividades educacionais e culturais, tendo por um de seus efeitos a não formação dos alunos no mais alto Curso da Companhia de Jesus. Esta não finalização, de certa forma, ocasionava, ainda que não verbalmente, uma discrepância entre a realidade da Colônia e, daí haver uma exigência rápida de catequistas e, o padrão estabelecido pelos padres de Roma quanto à qualificação dos jesuítas para o ensino superior: Pela penúria de Padres, deixava-se às vezes de fazer 4º ano de Teologia, mas as ordens de Roma são sempre apertadas e insistem em que o quadriênio de Teologia deve-se ter na íntegra, resolvendo-se a dificuldade, de qualquer maneira, menos à custa dos estudos (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 176). Assim sendo, a solução encontrada por Portugal para suprir a falta de padres não foi o investimento na formação em massa de padres com o curso completo de Teologia. Com um raciocínio colonizador e, por conseguinte, dominador e próprio de uma Metrópole em relação à Colônia, o jeito foi enviar padres intelectualmente completos, tanto de Portugal, como de outros países afeitos ao pensamento dominante, que por sua vez reproduzia-se, gerando um crivo ainda mais crescente no ensino superior, ao seguir a lógica da extrema seletividade ao longo do processo educacional (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 236-241). Referências Bibliográficas 386 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul SERAFIM LEITE, S. I. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa & Rio de Janeiro: Livraria Portugália & Civilização Brasileira, tomos I-X, 1938-1949. Referências Complementares AB’SABER, Aziz N. Fundamentos geográficos da história brasileira. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História geral da civilização brasileira. São Paulo: DIFEL, tomo I, 1985. ALDEN, Dauril. Aspectos econômicos da expulsão dos jesuítas do Brasil: notícia preliminar. In: KEITH, H. H. & EDWARDS, S. F. (orgs.). Conflito e continuidade na sociedade brasileira (ensaios). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1964. BAÊTA NEVES, Luís Felipe. O combate dos soldados de Cristo na Terra dos papagaios. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978. DEBESSE, Maurice. A Renascença. In: DEBESSE, Maurice & MIALARET, Gaston. Tratado das ciências pedagógicas. São Paulo: Companhia Editora Nacional & Editora da Universidade de São Paulo, 1977. ELLIS, Myriam. As bandeiras na expansão geográfica do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira. São Paulo: DIFEL, tomo I, 1985. FERREIRA, Tito Lívio. História da educação lusobrasileira. São Paulo: Saraiva, 1966. _______. A Ordem de Cristo e o Brasil. São Paulo: IBRASA, 1980. FLEIUSS, Max. 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Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965. 388 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul PERSCRUTANDO CAMINHOS DA HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA EM (SOBRE) GOIÁS A PARTIR DO CONCEITO DE “DECADÊNCIA” Rogério Chaves da Silva248 O interesse por investigar e dar sentido, através de uma narrativa histórica, ao passado de uma região que, espacialmente, foi denominada de Goiás remonta o século XIX e teve naquela época a figura do cônego Silva e Souza como seu primeiro grande expoente. Afamando como “fundação” da história de Goiás a partida da expedição de Bartolomeu Bueno da Silva, em 1722, ou propriamente o noticioso achado de minas ouro no sertão dos Guayaze em 1725, a historiografia que se investiu da tarefa de narrar “o passado goiano” elaborou diversos relatos sobre os mais variados fenômenos pretéritos ocorridos no território de Goiás. Enredado pelas penas de cronistas, viajantes, memorialistas, estudiosos, historiadores e outros interessados em produzir narrativas sobre a experiência histórica, o passado da região foi contado de acordo com os próprios modos de se produzir história em suas respectivas épocas, a partir de determinados cânones escriturários. No oitocentos, Luis Antônio da Silva e Souza249, Raimundo José da Cunha Mattos250 e José M. P. de Alencastre251 constituíram numa espécie de “trindade historiográfica”, que ficou notabilizada por registrar, cada qual à sua forma, os fenômenos históricos “dignos” de serem conhecidos pelas gerações posteriores. Além desses “historiadores-fonte” citados, não só passado, mas, sobretudo, a realidade goiana do século XIX foi intensamenterelatada por viajantes e cientistas europeus 248 Doutorando em História UFG/Bolsista FAPEG Luiz A. Silva e Souza, Luiz A. “Memória sobre o descobrimento, governo, população e cousas mais notáveis da capitania de Goyaz”,Revista do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo V, vol. 12, 2ª série, 1849, p.429-510. 250 Raymundo J. da Cunha Mattos, “Chorographia histórica da Provincia de Goyaz”,Revista do Instituto Histórico e Etnográfico Brasileiro, tomo XXXVII, 1ª parte, 1874, p. 213-398, e tomo XXXVIII, 1ª parte, 1875, p. 05-150. 251 José Martins P. de Alencastre, “Annaes da Provincia de Goyaz”,Revista do Instituto Histórico Geográfico e Etnográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Tomo XXVII, 2ª parte, 3º Trimestre, p. 05-186, 4º Trimestre, p. 299349,1864 e Tomo XXVIII, 2ª parte, 3º Trimestre, p. 05-167, 1865. 249 389 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul que palmilharam os caminhos de Goiás nessa quadra histórica: Auguste Saint-Hilaire, Emmanuel Pohl, Wilhelm von Eschwege, Luis D’Alincourt, Francis Castelnau foram alguns deles. Indubitavelmente, esses registros históricos oitocentistas abrigam um potencial informativo incomensurável, principalmente porque acessam dimensões da vida humana pretérita que não estão disponíveis em outras documentações, especialmente, àquelas relacionadas às vivências sociais e aos aspectos culturais vistos em Goiás naquele período histórico. Daí o fato de essas fontes se constituírem num acervo documental extremamente sedutor e, por isso, foi (e ainda é252) intensamente devassado por historiadores que pesquisa(ra)m sobre história regional. Sem embargo, os relatos históricos desses viajantes e cientistas europeus que estiveram em Goiás no século XIX guardam uma singularidade: suas impressões sobre essas terras sertanejas, em muitos aspectos, mostraram-se, em muitos aspectos, impregnadas de tonalidade depreciativa acerca de comportamentos, costumes, sujeitos ou sobre a realidade goiana que presenciaram. Vivenciando o momento de plena ou pós-falência das minas de ouro em Goiás, os relatos desses viajantes, assim como a Memória de Silva e Souza e os relatórios de governadores de capitania e presidentes de província, teriam produzido registros históricos que desenharam uma fisionomia de decadência para a região. As imagens sobre Goiás presentes nestas fontes, certamente, influenciaram muitas representações históricas que foram construídas sobre o passado da região, por isso, problematizá-las significa o esforço em compreender capítulos importantes da própria história da historiografia em Goiás, como tentarei demonstrar a seguir. Desde princípios do século XX até os anos 1960, a escrita da(s) história(s) de Goiás tratava-se de um empreendimento intelectivo que esteve ao encargo de médicos, advogados, jornalistas, políticos, militares, enfim, pessoas com diferentes formações, mas que tinham um interesse comum: elaborar narrativas que contassem importantes capítulos da história goiana. Assinando a autoria dessas obras estavam profissionais que viviam de outras ocupações, seja Podemos citar como exemplo a tese de doutorado de Maria Lemke, Trabalho, família e mobilidade social – notas do que os viajantes não viram em Goiás (1770 – 1847), defendida no Programa de Pós-Graduação em História da UFG em 2012. 252 390 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul como funcionários públicos, ou atuando na cena política, no atendimento médico à população, na redação de jornais, na carreira jurídica ou nos quartéis militares. Em meio a essas atividades que garantiram a sobrevivência de si e da família ou até o aumento de seus cabedais particulares, encontrava-se outra que, embora não fosse vinculada à formação profissional deles, ocupou parte importante de suas vidas: escrever sobre história de Goiás. Seja pelo gosto que cultivavam pelas letras, ou pelo apego à erudição, ou para a satisfação de fins pessoais (e) ou políticos (no sentido amplo do termo), ou em nome da concretização de um ideal (ou por essas razões em conjunto), narrar os fenômenos históricos ocorridos nas latitudes goianas era uma tarefa que fazia parte da vivência intelectual desses homens letrados. Dentre eles, podemos citar o médico Antônio Americano do Brasil253 e os “advogados-professores” Colemar Natal e Silva254 e Zoroastro Artiaga255, autores sobre os quais nos debruçamos para analisar esse período da historiografia regional denominamos de “fase da produção historiográfica autodidata” e que predominou até os anos sessenta do século passado. Dentre os documentos acessados por eles para elaboração de suas histórias de Goiás, podemos afirmar que tiveram contato com muitas dessas fontes históricas oitocentistas, pois é possível encontrarmos, em seus trabalhos, referências e citações de trechos retirados delas. Não obstante, acreditamos que a leitura empreendida por esses historiadores autodidatas, por estar carregada de valores nativos e permeada pelo esforço em delinear os traços de uma identidade regional256pretendida, teria engendrado uma espécie de “desfocalização da 253 Antônio Americano do Brasil,Súmula de História de Goiás, 2ª edição, Goiânia, Departamento Estadual de Cultura, 1961. 254 ColemarNatal e Silva,História de Goiás, 3ª edição, Goiânia, IGL, 2002. 255 ZoroastroArtiaga,História de Goiás: síntese dos acontecimentos da política e da administração pública de Goiás, de 1592 a 1935 (tomo I), São Paulo, Revista dos Tribunais, 1959. 256 Subsumido ao exercício escriturário desses estudiosos, havia o anseio por lembrar e reforçar determinadas situações pretéritas e exemplos de conduta que fossem típicos daqueles sujeitos históricos que “amaram Goiás” ou que pelo menos fizeram algo pelo engrandecimento da região. O ato de recordar e registrar determinados eventos históricos por meio de uma narrativa plena de adjetivações e de elementos normativos denota o esforço por eternizar nomes, imortalizar certos feitos e de fixar modelos de agir que se tornassem característicos de uma “goianidade” que se pretendia constituir. “Goianidade” entendida como um modo de viver caracterizado pelo amor à Goiás, pela defesa do território e dos interesses regionais, pelo zelo às “tradições” e pela impressão de um sentido ético-político ao agir dos goianos que, à semelhança “desses grandes homens do passado”, contribuiriam para o desenvolvimento da região. Logo, não se tratava de uma tentativa de conformação da identidade regional preocupada em desenhar uma fisionomia cultural dos goianos, e sim de um empreendimento de natureza, 391 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul decadência” como representação negativa de Goiás e dos goianos do passado. Não que negassem, categoricamente, que essa perspectiva estivesse impregnada na visão desses europeus que palmilharam os caminhos goianos, simplesmente não focalizaram e nem se apropriaram desse viés interpretativo contido nessas fontes como fizeram muitos pesquisadores em uma determinada fase da historiografia acadêmica (como veremos a seguir). Foram raríssimas as passagens nas quais deram voz a essa fala tão pronunciada nessa documentação. Americano do Brasil, por exemplo, dedicou um subtítulo de a Súmula à exposição do “Fastígio e declínio do ouro”. Em sua concepção, “[...] a indústria mineira entrava já em decadência, depois de quatro lustros de proventos fabulosos”257, isto é, após cerca de vinte anos de fausto, a produção aurífera viera a experimentar seu declínio, pois “[...] da superfície da terra, o metal amarelo recuara para o subsolo e para as correntes fluviais, onde sua extração demandava grandes trabalhos e aparelhamentos mais aperfeiçoados”258. Em suma, a decadência registrada nesse texto não coincide com a imagem desoladora descrita por administradores e viajantes, refere-se à ruína de uma atividade extrativa que, sem dúvida, atingiu a vida social e econômica da região. Colemar Natal e Silva, por seu turno, foi mais além na análise sobre o contexto da decadência aurífera em Goiás. Em sua História de Goiás, um dos subtítulos do capítulo XI foi nominado de “Decadência positiva da mineração”, no qual, em linhas gerais, argumentou que o declínio da mineração teve seu lado positivo, qual seja, possibilitou o desenvolvimento de outras atividades produtivas em Goiás: As novas tentativas empreendidas também por Luiz da Cunha, no sentido de levantar a mineração, velho ideal de todas as ambições de eminentemente, ético-política, na medida em que apresentava fenômenos pretéritos, comportamentos e modelos de condutas exemplares deveriam ser resgatados da experiência histórica regional. 257 Antônio Americano do Brasil,Súmula de História de Goiás, 2ª edição, Goiânia, Departamento Estadual de Cultura, 1961, p. 66. 258 Idem, p. 66. 392 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul quem e de além mar, deixaram pelos seus sucessivos insucessos patenteada a positiva decadência da mineração. Ia a população procedendo para a lavoura e para a indústria pastoril, ao passo que abandonava, pouco a pouco, as lavras259. A decadência presente nos textos desses historiadores tratava-se, sobremaneira, da ruína de uma atividade econômica que foi a responsável pelo fluxo migratório, pelo povoamento e estabelecimento efetivo da administração portuguesa na região, e não de uma representação que fixava um quadro social e cultural como típico de Goiás: a ociosidade, a letargia social, o desprezo pelo trabalho, a preguiça reinante e o isolamento. O projeto de “goianidade” subjacente a essa escrita da História obnubilava esse desenho cultural e social negativo debuxado por governadores, presidentes de província, naturalistas e viajantes europeus. Era uma “leitura nativa” do novecentos contrastando ou, melhor, filtrando, a partir de seu sistema de referências, o que lhe era pertinente dessa “leitura adventícia” do oitocentos. Os olhos historiográficos desses escritores preferiram não enfocar, no interior dessas fontes históricas, registros de experiências que esboçassem aspectos negativos como peculiares da região. Entretanto, a partir da constituição de uma historiografia acadêmica em Goiás, percebemos que muitas pesquisas sobre história regional acabaram por empreender outra interpretação sobre os relatos históricos contidos nessas fontes oitocentistas, em especial, sobre a questão da decadência goiana no período pós-mineratório. Na década de 1970, a produção histórica em Goiás experimentou uma notável inflexão. Essa reformulação na forma de se produzir conhecimento histórico em Goiás começaram a serpercebidas a partir de alguns acontecimentos capitais ocorridos nesse decênio: a realização, em 1971, do VI Simpósio Nacional de História da ANPUH em Goiânia, a defesa da emblemática tese de livre-docência 259 ColemarNatal e Silva,História de Goiás, 3ª edição, Goiânia, IGL, 2002, p. 337. 393 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul por Luis Palacín260, a criação do Programa de Mestrado em História da UFG e o doutoramento, na USP, das professoras Dalísia Doles261, Maria Augusta S. Moraes262 e Marivone Chaim263, fatos ocorridos entre 1972 e 1973. A conjunção desses fenômenos indicia que a produção historiográfica em Goiás estava, na década em apreço, tomando novos rumos e a escrita da história regional adquirindo uma nova fisionomia. Era a produção historiográfica acadêmica em seus prelúdios, assumindo novos contornos teóricometodológicos e estreitando seu diálogo com a comunidade científico-acadêmica no Brasil. As inflexões apresentadas pelo “fazer histórico” em Goiás eram, sobretudo, de ordem teóricometodológica: o exame crítico das fontes históricas utilizadas, o cuidado metodológico, o recurso a aportes teóricos debatidos no universo acadêmico, a predominância de uma história econômico-social em face de uma história política, a estratégia analítica e temática se sobrepondo à descritiva e factualista, a produção/apropriação de conceitos históricos, a formulação de hipóteses que passariam pelo crivo crítico de integrantes da comunidade acadêmica, enfim, elementos que refletiam a preocupação com a validação científica dos resultados investigativos.E sem dúvida, neste momento em que se estabelecia um novo modelo de historiografia em Goiás, Luis Palacín Gomez foi decisivo nos rumos tomados pela pesquisa histórica no estado. Em sua tese de livre-docência, Palacín, basicamente, construiu uma análise acerca da dinâmica econômica da mineração e do contexto social goiano entre o período de 1722 e 1822. Do ponto de vista metodológico, o historiador espanhol valeu-se, vigorosamente, de documentos oficiais: correspondências e relatórios dos governadores da Capitania e presidentes de Província (século XVIII e início do XIX), cartas régias, editais, bandos, portarias, ofícios, alvarás, regimentos e livros da Fazenda Real, dentre outros. Além disso, as LuísPalacín,1722-1822 – Goiás: Estrutura e Conjuntura numa Capitania de Minas. Goiânia. Tese de LivreDocência, Instituto de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal de Goiás, 1972. 261 Dalísia E. M Doles,As comunicações fluviais pelo Tocantins e Araguaia no século XIX, Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, 1972. 262 Maria A. S Moraes,Contribuição para o estudo político e oligárquico de Goiás, Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, 1972. 263 Marivone M. Chaim,Aldeamentos indígenas e sua importância no povoamento da capitania de Goiás no século XVIII (1749-1811), Tese de Doutorado em História, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, 1973. 260 394 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Memórias de Silva e Souza e de Antonil264, e a própria Corografia Histórica de Cunha Mattos e os Anais de Alencastre foram de extrema importância para a investigação. Todavia, acreditamos que, com essa tese, Luis Palacín acabou por consagrar outras fontes, que foram moderadamente utilizadas por Alencastre e, sobretudo, pelos historiadores autodidatas mencionados alhures, mas que, a partir de então, encontrariam grande acolhida metodológica entre a historiografia acadêmica: os relatos dos viajantes e naturalistas do século XIX (Auguste Saint-Hilaire, Emmanuel Pohl, Wilhelm von Eschwege, Luis D’Alincourt, Francis Castelnau). Irrefragavelmente, a partir de Palacín, esses registros históricos se constituíram em uma das fontes das mais acessadas pelos pesquisadores que investigaram história de Goiás no setecentos e no oitocentos. Deste modo, é possível depreender que, deste corpus documental selecionado, a economia mineradora e sua conjuntura de apogeu e decadência em Goiás foram analisadas a partir de três locais de enunciação: o olhar oficial, do governo português e dos administradores da antiga capitania; o olhar dos europeus, que estiveram em Goiás durante o século XIX; e a memória resgatada da oralidade herdada dos tempos da mineração e que perpassou também pelos séculos XVIII e XIX. Todavia, para discorrer sobre a “conjuntura da decadência” que Luis Palacín serviu-se, primordialmente, dos relatos desses viajantes europeus. De uma análise predominantemente socioeconômica, em que números, cifras, gráficos, estimativas ditaram a tônica explicativa para a “conjuntura de apogeu”, o que se percebe é que, para além do decréscimo da exploração aurífera, também representado quantitativamente, a decadência foi delineada, especialmente, por seus contornos socioculturais: a ociosidade, a letargia social, o desprezo pelo trabalho, a preguiça reinante e o isolamento. As memórias de Silva e Souza, escritas no século XIX, que falavam desse sentimento comum de tristeza e nostalgia dos goianos acerca dos momentos de fausto da mineração no setecentos, e os registros dos governadores de Capitania, que acusavam para os sintomas dessa crise, serviram de aporte metodológico para retratar essa conjuntura de decrepitude. Entretanto, foi nos relatos desses viajantes e naturalistas que Palacín encontrou maior sustentáculo documental para representar esse “estado de decadência” que assolou a região após a bancarrota das minas de ouro. 264 André João Antonil,Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas,São Paulo,IBGE, 1963. 395 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Para tornar mais transparente a questão, retomemos alguns argumentos desse pesquisador. Inicialmente, sob o primado da quantificação, Palacín frisou que a decadência da mineração foi resultado da quebra do rendimento das minas, mas que arrastou consigo outros setores a uma ruína parcial: (...) diminuição da importância e do comércio externo, diminuição dos rendimentos advindos dos impostos, diminuição da mão-de-obra por estancamento da importação de escravos, estreitamento do comércio interno com tendência à formação de zonas de economia fechada, um consumo dirigido à pura subsistência, o esvaziamento dos centros de população, ruralização, empobrecimento e isolamento cultural265. O autor realçou ainda que a produção bruta de ouro decaiu consideravelmente a partir de 1778, mesmo tendo essa exploração já dado mostras de desgaste no final da década de 50. Asseverou que essa conjuntura de decadência iniciou-se em 1778, concordando, então, com o parecer do governador Fernando Delgado F. de Castilho, e se arrastou pelo século XIX, pois a “partir de 1779, o quinto não mais alcançou as 15 arrobas, e em 1820 (“às vésperas da independência”) não chegava sequer a uma arroba; a mineração praticamente tinha desaparecido como atividade econômica significativa”266. Entretanto, alicerçado nos registros dos viajantes europeus, Palacín reforçou que a decadência psicológica e social antecipava ao esgotamento das minas: O mineiro médio preferia ver no fenômeno da decadência um efeito apenas do esgotamento das jazidas, enquanto o governo tendia a destacar a sonegação dos quintos pelo contrabando. Por isso, o LuísPalacín,1722-1822 – Goiás: Estrutura e Conjuntura numa Capitania de Minas,2ª edição, Goiânia, Oriente, 1976, p. 171. 266 Idem, p. 173 265 396 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul mineiro continuava sonhando – sonho que cada vez se tornava mais remoto – que novos descobertos ressuscitaram os dias gloriosos do passado (PALACÍN, 1976, p. 175). Pretendendo explicar os motivos dessa decadência da mineração, o historiador novamente se amparou nas considerações feitas pelos viajantes que buscaram argumentos para elucidar a questão. Dentre eles, o mais citado, certamente, foi o uso de técnicas obsoletas para a extração do minério. Palacín registrou que Eschwege, por exemplo, “atribuía toda a decadência da mineração à carência de conhecimentos técnicos e à falta de organização (...) o próprio governo nunca soube dirigir a mineração com uma legislação adequada” (PALACÍN, 1976, p. 176). Permanecendo à sombra desses relatos, o autor retomou sua interpretação enfatizando a fugacidade do período de prosperidade e a brusca transição para a ruína opaca, que impossibilitou “a sedimentação de uma verdadeira cultura em nenhum dos campos” (PALACÍN, 1976, p. 195).Apresentou ainda três manifestações as quais classificou como “profundas e duráveis da decadência: uma de caráter sócio-geográfico, a ruralização, as outras duas, a crise do trabalho e o derrotismo moral, com base na psicologia coletiva” 267. No tocante à ruralização da vida, assinalou que, no período áureo da mineração, a população se concentrava, em sua maioria, nos centros urbanos, mas com a decadência passou-se a uma rápida dispersão da população pelos campos: “confirmam-se, desta forma, as impressões recolhidas por Pohl e Saint-Hilaire sobre o abandono da Capitania por parte de grandes massas da população, sobretudo branca, a acentuar-se a decadência da mineração”268.Um dos grandes símbolos dessa decadência seria a fisionomia que adquiriram os antigos centros urbanos, locais de povoamento mineiro, outrora cheio de vida, “agora”, com a aparência decaída: “o capim cresce nas ruas, a maior parte das casas encontravam-se abandonadas, as habitações e construções começam a se desmanchar”269. Além disso, o gosto pela ociosidade, o desprezo pelo trabalho braçal, complementariam essa face da decadência em Goiás. A 267 Idem, p. 177. Idem, p. 109. 269 Idem, p. 198. 268 397 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul repulsa pelo trabalho apareceu, segundo o autor, em grande parte das fontes as quais pesquisou, mas foi no olhar europeu dos viajantes que este “atributo goiano” foi reforçado: Pohl exemplifica esta atitude, e suas conseqüências, com um caso que pode parecer grotesco: O ócio é a máxima felicidade dessa gente, escreve com referência aos brancos em Goiás. O próprio soldado raso que tem de levar uma carta da Real Fazenda ao palácio do governo, apenas a duzentos passos de distância, não a leva ele próprio. Manda-a por um negro escravo e a toma à soleira do edifício270. A delonga nesta exposição sobre essas bases interpretativas palacinianas tem uma justificativa: com Palacín, a “decadência” da sociedade goiana no período pós-minerador sedimentou-se como um conceito histórico que se lastreou pela historiografia regional. Nesta narrativa do espanhol, a “decadência” não representa um mero vocábulo significador do declínio de uma atividade econômica, mas como vimos, define um quadro social, econômico e cultural (com reflexos até psicológicos) que assolou Goiás a partir do último quartel do século XVIII e que perpassou o XIX. A partir do contato com essas fontes do oitocentos, Palacín absorveu uma determinada leitura sobre a realidade goiana do período e fixou a “decadência” como uma fisionomia histórica que definiria a região nessa quadra temporal. Acreditamos que a sedimentação do conceito de “decadência” como definidor da sociedade goiana no período pós-minerador abriga uma espécie de “nó existencial-perspectivometodológico-narrativo” que, por sua importância à compreensão dos caminhos trilhados pela historiografia regional, merece ser desatado. Primeiramente, é preciso demarcar essa questão também encerra outra diferença metodológico-narrativa-identitária em relação a produção histórica autodidata. Enquanto os estudiosos dessa fase, mesmo tendo contato com essas mesmas fontes, produziram uma 270 Idem, p. 199. 398 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul “desfocalização da decadência”, ofuscando uma possível representação negativa de Goiás e dos goianos do passado, a historiografia acadêmica, a partir da tese de Palacín, engendrou a “fixação da decadência” como um retrato social, econômico e cultural de ruína que marcou a região com a decrepitude da atividade mineradora. A “leitura nativa do passado” e o projeto de “goianidade”, impregnados na escrita da História dos estudiosos autodidatas, eclipsaram esse desenho cultural e social negativo tracejado por governadores de capitania, presidentes de província e, principalmente, pelos naturalistas e viajantes europeus. Em contrapartida, essa “leitura adventícia”, extraível dessas fontes do oitocentos, foi apropriada por Luis Palacín e, desde então, acabou se arraigando na produção historiográfica em Goiás. Por mais paradoxal que possa parecer, como conhecemos a maior parte das pesquisas realizadas por Palacín, não temos dúvida de que era um historiador que primava pela crítica das fontes. Entretanto, no que se refere a essa perspectiva dos viajantes acerca da “decadência goiana”, concebemos que o proceder metodológico desse espanhol foi atravessado por sua visão também “adventícia” que, no tocante a determinadas notas históricas, afinava-se com o tom de “decadência” que esses europeus do XIX conferiram à região. Partindo do princípio de que a leitura que fazemos da realidade que nos cerca é, em grande medida, relacional, por conseguinte, derivada da relação que estabelecemos com determinados referenciais valorativos, éticos, estéticos, políticos que possuímos e que incide na forma como construímos significados e damos sentido ao mundo social, acreditamos que, nessa pesquisa, a operação metodológica de Luis Palacín foi atingida, de modo subjacente, por sua “visão ainda alienígena” sobre Goiás. Como esse trabalho foi desenvolvido por meio de suas andanças pelos arquivos goianos durante a primeira década dos quase quarenta anos em que viveu no estado, julgamos que essa “perspectiva adventícia” contribuiu para que, ao elaborar essa investigação, assentisse com muitas apreciações que viajantes, governadores de capitania e presidentes de província endereçaram ao contexto de “decadência goiana”. Nenhum outro trabalho, no interior dessa historiografia acadêmica regional do novecentos, encontrou tamanha repercussão entre os historiadores do que essa tese de livredocência de Luis Palacín, diga-se de passagem, a única existente na área de História em 399 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Goiás. Ademais, é importante que se saiba que essa tese teve quatro edições: a primeira, publicada em 1972, pelo Departamento Estadual de Cultura e Editora Oriente; a segunda edição, em 1976, também pela Oriente; a terceira, em 1979, foi reeditada com um título “menos acadêmico”, “O Século do Ouro em Goiás” (editora Oriente) e, por último, a quarta edição, em 1994, publicada pela editora da UCG. Dentre as investigações acadêmicas no âmbito da história regional no estado, essa se tornou uma das obras mais editadas em Goiás. Só não teve mais edições que outro trabalho, também de sua autoria, o qual elaborou em parceria com a professora Maria Augusta Sant’anna de Moraes, “História de Goiás (17221972)”271, que, com feições didáticas e mais acessível a um público não especializado, alcançou sete edições. Mas vale lembrar que, concernente ao período pós-mineratório, as bases interpretativas são as mesmas da tese de livre-docência.Sendo assim, até a primeira metade dos anos 90, essa interpretação palaciniana acerca da “decadência” em Goiás ecoou entre os pesquisadores de história regional, constituindo-se, assim, numa espécie de tradição historiográfica em Goiás, tributária da percepção que os viajantes tiveram da região. Em face do que foi exposto sobre esse “nó existencial-perspectivo-metodológiconarrativo” que se instalou na historiografia em Goiás e do que aduzimos acerca da ressonância dessa tese, uma indagação mostra-se instigante: se essa interpretação “palaciniana” sobre a decadência goiana relacionou-se com sua “visão adventícia” do período, por que ela continuou sendo repetida na historiografia regional, inclusive por historiadores goianos, por mais de duas décadas? Sobre esse quesito, construímos algumas ilações. A primeira, acreditamos residir no fato de que nesta fase da historiografia regional, os historiadores não haviam sentido os impactos das ideias do pós-estruturalismo e nem da crítica narrativista, as quais não só evidenciaram o caráter narrativo dos textos historiográficos como também fizeram com que eles encarassem o discurso contido nas fontes como locais de enunciação, repletos de zonas de interdito, silêncios e de particularidades semânticas. A segunda, igualmente importante, cremos que esteja situada na premissa de que se apropriar ou citar dados, informações e/ou hipóteses formuladas por Palacín, em se tratando de historiografia regional, era “garantia de autoridade” nas asserções. 271 LuisPalacín,Maria A. S. Moraes,História de Goiás (1722-1972),Goiânia, editora da UFG, 1975. 400 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Não obstante, para termos consciência que nem tudo era consensual,já nos anos 1970, é possível localizarmos um lampejo crítico sobre essa interpretação hegemônica sobre a história regional, presente num trabalho de Paulo Bertran intitulado Formação Econômica de Goiás, de 1978. Esse“economista-historiador” realizou um exame abrangente (com ancoragem mais bibliográfica do que em fontes) sobre os diferentes momentos da economia goiana, desde a estrutura estabelecida pela mineração no século XVIII aos reflexos econômicos da instalação de Brasília no planalto central. Neste estudo, o que mais nos interessa é sua tentativa, talvez a primeira em trabalhos regionais, de repensar a propalada interpretação sobre a decadência de Goiás a partir da falência da mineração e, sobretudo, de problematizar o discurso dos viajantes que acabou por fixar uma paisagem da ruína goiana nessa quadra histórica. Apontando para os efeitos da mineração, típicos de qualquer lugar onde ela foi praticada, o autor argumentou que as marcas deixadas por essa atividade econômica no território goiano significariam, necessariamente, em traços de decadência: Finalmente o século da mineração em Goiás, em termos estritamente econômicos, constitui um regime de exceção no concerto das atividades produtivas do território. Caracterizar como decadência o fim da mineração em Goiás equivale considerar a extração aurífera atividade criativa e não predatória, como sempre foi em toda parte do mundo272. Logo em seguida, Bertran buscou “relativizar” a dimensão dessa decadência, assinalando, mais uma vez, as especificidades econômicas e sociais da atividade mineradora e indicando como determinadas condições regionais favoreceram a decrepitude da extração aurífera em Goiás: 272 Paulo Bertran,Formação Econômica de Goiás, Goiânia, Oriente, 197, p. 42 401 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul A economia aurífera atingia maturidade e a decadência viria nos umbrais do século XIX. Diminuíam-se os coeficientes de investimentos nas lavras de ouro, não se repunham escravos, a rentabilidade natural dos veeiros decaía. A decadência, vezes tantas ressaltada pelos viajantes da época existiu em termos. Mineração sempre foi negócio cigano e virulento, ignorante de fronteiras e de massa demográfica. Fluxo e defluxo de gente em quantidade não esperava mais tão logo descoberto ouro. Testavam-se as jazidas regionais: se promissoras erigia-se o arraial e logo nas adjacências punha-se gado a pastar. Via de regrar prosperava três décadas, dependendo da qualidade e dispersão das jazidas em torno e do acesso fácil às estradas de mercancia. Sua decadência e abandono também obedeciam a causalidades estritas273. Tentando contornar a pasmaceira econômica e social que, segundo viajantes e administradores portugueses, teria tomado conta da plaga goiana no século XIX, Bertran procurou compreender a região valorizando suas peculiaridades sociais, culturais e, inclusive, econômicas, para isso, definiu a economia goiana do período como sendo “de abastância”: Enfim, para a primeira metade do século XIX, é possível ter-se mantido a situação descrita em 1828. Por esta época constata-se ainda simultaneidade de existência da economia de mineração, com economia agropecuária de abastância e economia pecuária de exportação. [...] Enfim, a economia agrícola, propriamente, surge por excelência como um regime de transição entre a economia mineradora e a economia comercial pecuária. Nem economia de subsistência nem 273 Idem, p. 47. 402 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul comercial, a agricultura goiana do século XIX poderia caracterizar-se talvez como de abastância, vez que seu mercado só raras vezes ultrapassa as barreiras extra-regionais pelo proibitivo da relação preço/custo de transporte274. Como último ato dessa sequência crítica, Paulo Bertran, certamente enviesado por seu olhar nativo, disparou ironicamente contra a apreciação dos viajantes, os quais realçaram o ócio como apanágio do povo goiano: De resto, a ociosidade geral do povo só era condenada por viajantes e observadores vindos da apertada e difícil Europa – um Pohl, um SaintHilaire, um Cunha Matos – condenação essa não destituída de um talvez inconsciente fundo de inveja pelo pobre, sensual e non-chalant paraíso caboclo de Goiás nos anos 1800. São eles, em termos de folgança e despreocupação, os expoentes máximos da vida goiana, coincidindo com os momentos de afrouxamento da relação de troca extra-regionais e do consequente desinteresse por extrair e expatriar mais-valia do povo e do território275. Nos anos 1980, tivemos outro insight crítico dessa natureza e que esteve presente no artigo do professor Sérgio Paulo Moreyra intitulado “O olho que vê o mundo”, de 1987. Ao debruçar-se, especialmente, sobre os relatos de Saint-Hilaire, Moreyra apontou para a necessidade de uma leitura cuidadosa e crítica acerca das representações históricas edificadas a partir desses relatos dos viajantes: 274 Idem, p. 46-47. Idem, p. 48. 275 403 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Um excelente exemplo das armadilhas ideológicas que se escondem no bojo dessas memórias científicas, é o livro de Augusto de SaintHilaire, “Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela Província de Goiás”. Esse livro tem sido amplamente utilizado na historiografia brasileira e quase sempre sem que se questione, com os instrumentos da crítica histórica, o rigor de suas observações sociais. [...] Entre o que seus olhos viram e o que compreendeu, medeia uma distância, coberta por sua visão européia. As impressões do naturalista são as impressões do naturalista. É necessário ver hoje as coisas que ele viu, da forma pela qual ele não pôde enxergá-la, vê-las como ele não pôde vê-las276 . Na década de 1990, em uma conferência célebre, e que foi novamente publicada nos anos 2000277, Paulo Bertran dispara seu tom cáustico em desfavor daquilo que chamou de “paradigma da decadência”: Haja decadência! No caso extremo nada menos do que 157 anos de “decadência”. Deve ser erro de denominação, ou erro de conceito. Deve ser, quem sabe, puro e simples desconhecimento, falta de pesquisas sobre um século inteiro, o século XIX. Em dois e meio séculos de história de Goiás quase que de todo ignora-se um século Sérgio Paulo Moreyra, “O olho que vê o mundo”, Boletim Goiano de Geografia, v. 7/8, n. 1/2, jan./dez., Goiânia, 1987/1988, p. 164. 277 PauloBertran, “A Memória Consútil e a Goianidade”,Revista UFG, ano VIII, n. 1, junho, Goiânia, 2006, p. 62-67. 276 404 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul inteiro, o da “decadência”, justo quando em todos os quadrantes nasciam centenas de fazendas e dezenas de povoados278. Embora lampejos de crítica acerca desse conceito da “decadência” goiana tenham aflorado nas décadas de 1970, 1980 e 1990, quem ficou consagrado e se tornou o mais conhecido e badalado representante dessa crítica revisionista da historiografia regional, até pela maior densidade de sua pesquisa foi o historiador Nasr Nagib F. Chaul. Em sua tese de doutoramento, defendida na USP, em 1995, “Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da modernidade”, Chaul se propôs a discutir não só a criação do “estigma” da decadência pelos viajantes europeus, durante o século XIX, mas também como essa representação perpassou a historiografia de Goiás. Segundo o historiador em pauta, esses viajantes, “ao passarem por Goiás com seus olhos embotados pela realidade européia, conseguiram vislumbrar um aspecto comum: a decadência dessa capitania279”. Além disso, Chaul argumentou que essa idéia construída para Goiás do período pós-mineratório, baseada nos relatos legados pelos viajantes e governadores, foi continuada por outros estudiosos, inclusive historiadores que “[...] reproduziram a referida conceitualização, dando-lhe roupagens teóricas e metodológicas atualizadas, sem escapar, no entanto, da questão básica da decadência”280. Nessa pesquisa, Chaul ainda analisou como a representação da decadência legou frutos às interpretações da Primeira República em Goiás: da decadência surge a noção de atraso que perpassa toda a República Velha. Nesse aspecto, endereçou uma crítica aos estudos historiográficos que enfatizaram a “manutenção do atraso” como um artifício das oligarquias dominantes se perpetuarem no poder. Essa perspectiva teria sido intensamente divulgada nos estudos sobre o coronelismo na República Velha. Para rebater esse argumento, o autor demonstrou que, a partir da construção da estrada de ferro, houve um certo dinamismo 278 Idem, p. 66. Nasr F. N. Chaul,Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da modernidade, 2ª edição. Goiânia, editora da UFG, 2002, p. 22. 280 Idem, p. 67. 279 405 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul econômico na região e que, nem por isso, os grupos dominantes foram alijados do centro de poder. Chaul examinou, igualmente, como os grupos opositores a essa elite agrária dominante, no final dos anos 20 e início da década de 30, apropriou-se dessa representação do atraso de Goiás para assentarem seu discurso modernizador, impressos sobre um novo governo, o estado getulista, e a construção de uma nova capital, Goiânia. Destarte, depois da tese de doutorado de Nasr Chaul, que também repercutiu bastante entre os estudiosos de história regional, tornou-se procedimento metodológico comum entre esses especialistas, a busca por “relativizar” essas impressões que os viajantes europeus do XIX tiveram sobre Goiás e, por conseguinte, o conceito de “decadência”, que foi ancorado nessas fontes oitocentistas, mas fixado por Luis Palacín, não mais viçou como antes na historiografia regional, pelo contrário, passou a ser alvo de questionamentos. 406 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul CORUMBÁ DE GOIÁS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E FESTIVO281 Rosana Romenia Fernandes Leal UEG - Campus Pirenópolis [email protected] A cidade de Corumbá de Goiás é uma das cidades goianas pertencentes ao ciclo do ouro, segundo Curado (1996, p. 15): surgiu no ano de 1729, “devido a descoberta de ouro no local onde as águas do Ribeirão Bagagem encontram-se com as do Rio Corumbá - Poço Rico”. Esse motivo levou os descobridores a fixarem acampamento nas margens do rio, para que assim pudessem explorar melhor a jazida encontrada. Primeiramente a cidade ganhou o nome de Arraial de Nossa Senhora da Penha, posteriormente passou a se chamar Corumbá, nome dado devido ao rio que corta a cidade, mas pelo fato de existir uma cidade com o mesmo nome no estado do Mato Grosso, a denominação foi alterada para Corumbá de Goiás. De acordo com o site da cidade, no que diz respeito à descoberta da localidade, temos que: os fundadores de Corumbá pertenciam a uma bandeira organizada no arraial de Sant’Ana, hoje cidade de Goiás. Ali eles foram autorizados e orientados pelo superintendente das minas goianas, Bartolomeu Bueno da Silva (filho). Bueno, cujo apelido era Anhanguera, havia iniciado em 1726 o processo de colonização das terras dos índios Goiá. Essa bandeira compunha-se de sete paulistas e quatro 281 Fomento: PrP/UEG por meio do Projeto de Pesquisa: Pesquisa Girando Folia: apontamentos turísticos e gastronômicos em um das devoções ao Divino Espírito Santo – Pirenópolis/Goiás. Integrante do Grupo de Pesquisa Saberes e Sabores Goianos. Orientador: João Guilherme Curado. 407 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul portugueses, que eram homens livres. Dela também tomavam parte seus escravos de origem africana e indígena. O líder desta expedição sertanista era o Capitão Diogo Pires Moreira, natural da vila paulista de Jacareí, que anteriormente havia descoberto ouro nas Minas Gerais (www.corumbatur.com.br) Na cidade foram feitos inicialmente ranchos, uma das primeiras construções no local, assim como acontecia comumente em núcleos populacionais da época. Além das casas ocorria, obrigatoriamente, a construção de uma Igreja Matriz, lá destinada a Nossa Senhora da Penha de França. Somente algum tempo depois foram edificadas as demais casas do arraial, como de costume o núcleo urbano crescia em torno da igreja. Esta ocupação inicial é apresentada pelo pesquisador Hercílio Fleury, que tem por representação o desenho abaixo feito por Lúcia Curado, no qual remonta a década de 1730, e pode-se ver a capela e a casa dos bandeirantes que fundaram o arraial. Nesse período Corumbá de Goiás tinha como sua principal atividade econômica a mineração. Para a historiadora Gilka Vasconcelos Ferreira de Salles, a história econômica de Goiás é composta por três fases: 408 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul a primeira fase, de grandes feitos e lutas, de guerra ao gentio e procura de fontes de riqueza; a segunda, de exploração e formação de povoamentos incertos, muitas vezes provisórios; um terceiro momento, o trabalho agrícola, da fixação da propriedade rural e do labor artesanal, índice de futuros núcleos manufatureiros ou industriais (SALLES, 1992, p.13). Sendo assim, Corumbá de Goiás acompanhou a história econômica goiana, se encaixando nas fases mencionadas pela autora. Mesmo com o esgotamento da mineração, a cidade por conta de sua localização geográfica estratégica, acabou se tornando um entreposto de estradas e, consequentemente uma importante rota comercial para o Brasil, como é destacado abaixo: situada em um ponto estratégico na passagem das rotas terrestres Goiás-Paracatu e Goiás-Bahia, sua urbanização se consolidou ainda no século XVIII. A localidade resistiu à decadência da mineração e assumiu a função de entreposto comercial para o abastecimento da Província de Goiás (www.iphan.com.br). Esse fator ajudou para que o núcleo urbano não desaparecesse, as atividades ligadas a terra contribuíram para que Corumbá de Goiás continuasse existindo. Esse motivo também determinou o fato das pessoas do local se tornassem culturalmente ligadas à ruralidade. A história de Corumbá de Goiás evidencia muito bem a dinâmica pela que a Província de Goiás foi ocupada, alguns de seus casarões ainda são mantidos até hoje, sendo assim, para contribuir com a preservação desses monumentos, o Centro Histórico de Corumbá de Goiás foi tombando pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o tombamento ocorreu 409 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul por meio do Processo de Tombamento n° 1269-T-88, tendo sido inscrito sob o n° 143 às folhas 51 e 52 do volume II do Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico em 30 de setembro de 2008 e cujo tombamento foi homologado na Portaria n.°349 de 21 de dezembro de 2004 (IPHAN, PORTARIA Nº 68/2013). Na Igreja Nossa Senhora da Penha de França, um dos principais bens que fazem parte do acervo patrimonial tombado, além do prédio aparece ainda outros bens arrolados, como a imagem de Nossa Senhora da Penha, a imagem do Menino Jesus, a banqueta de prata do altar-mor, o crucifixo de marfim doado pelos Jesuítas (todas as peças do século XVIII); a lâmpada de prata do Santíssimo (1855); imagens do Senhor dos Passos (1888), do Sagrado Cojação [sic.] de Jesus (1898), de Nossa Senhora das Dores (1929) e do Senhor Morto (1930); quadros Jesus Crucificado eBatismo [sic.] de Jesus, de autoria de Luiz Gáudie Fleury (da década de 1910); quadros Sete Dores de Maria, de Nossa Sra. das Dores, do Arrependimento de São Pedro e Nossa Senhora do Rosário (todos eles do século XIX); o sino da torre do lado norte (1856); e o relógio dessa torre (1890) (www.iphan.com.br). Esse processo de preservação por registro oficial tem ajudado na manutenção do patrimônio na Cidade, pois ainda hoje o local preserva muitos de seus casarões seculares que constituem um interessante conjunto arquitetônico que possui certa funcionalidade para os corumbaenses e que também se constituem como atrativos para os visitantes e turistas. Concordamos com Coelho & Valva (2001), para quem o patrimônio, em princípio, trata-se da propriedade de bens de valor não apenas econômico, cuja posse não se liga exclusivamente a uma pessoa, mas a todo contexto populacional, mesmo que seu uso 410 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul esteja restrito a um grupo reduzido de pessoas. E esse caráter coletivo da posse vai se basear exatamente no interesse que tal hoje representa, tanto em nível histórico quanto cultural, estando geralmente ligada a fatos importantes da história local, regional ou mesmo nacional, como também a apropriação de conceitos e conhecimentos relacionados à fatura, à técnica e a elementos construtivos característicos de determinada cultura (COELHO & VALVA, 2001, p. 16). A Igreja da Matriz foi recentemente restaurada por ser um grande símbolo para a cidade, sendo uma das igrejas mais de Goiás, o monumento traduz um pouco da história tanto da cidade quanto do estado, principalmente relacionadas à religiosidade do povo goiano. Breve histórico das festividades corumbaenses Em Corumbá de Goiás o calendário anual já começa com festividades logo no primeiro mês. Em janeiro ocorre a tradicional Festa de São Sebastião, ela acontece geralmente entre os dias 11 e 20 de janeiro, com as missas seguidas de novena. No dia 20, o dia principal da festa, na Praça da Matriz acontece: leilões de gado, barraquinhas de alimentação e shows musicais de cantores locais após a missa matinal. Em fevereiro é promovido o Carnaval, com animados shows de bandas na Praça Major João Mendes, a organização do evento fica por conta da Prefeitura Municipal, por meio da Secretária de Cultura Esporte e Lazer. O próximo evento que acontece na cidade fica a cargo da Igreja Católica, geralmente no mês março ou abril, acontece uma das maiores celebrações religiosas: a Semana Santa. Corumbá de Goiás preserva suas tradições ligadas à Paixão de Cristo, por meio da Procissão de Ramos no domingo e da na Procissão do Encontro realizada na quarta-feira a. Já quintafeira, acontece o ritual do Lava-pés. 411 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul O dia mais solene deste conjunto de dias é a sexta-feira da Paixão, em que há encenação da Via Sacra pelas ruas da cidade. À noite sai da igreja São Sebastião a solene procissão do Senhor Morto que termina na Igreja da Matriz Nossa Senhora da Penha. Assim, como em várias das cidades colonizadas por portugueses, nos meses de maio/junho Corumbá de Goiás também promove a popular Festa do Divino Espírito Santo, e ainda comemora-se no mesmo período a Festa de Santo Elesbão e de Santa Ifigênia, santos de devoção dos negros. A Festa do Divino é organizada pelo imperador do Divino, este é indicado pelo padre da cidade (CURADO, 1996). A festa começa na zona rural com as Folias da Roça, que se constitui como uma caravana de pessoas liderada por um folião que porta a bandeirado Divino e passa pelo município com o objetivo de conseguir donativos para a realização da festa. Algumas das manifestações que ocorrem por ocasião da Festa do Divino receberam mais destaque no decorrer do tempo, como pro exemplo, a Folia do Divino que é bastante concorrida deste os tempos pretéritos, como podemos observar na imagem da chegada da folia em Corumbá de Goiás em 1930, quando os foliões desfilavam pela cidade a cavalo e entregavam suas bandeiras e seus donativos na Igreja da Matriz. Foto: Hecílio Fleury, s/d. 412 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul No feriado de Corpus Christi, as ruas da cidade são enfeitadas com tapetes elaborados a partir da junção de serragem colorida, borra de café, flores entre outros acessórios. A ornamentação é uma iniciativa dos fies católicos para a passagem da procissão. No mês de julho Corumbá de Goiás comemora seu aniversário e acontece desfile cívico pelo Centro Histórico, acompanhado pela Banda 13 de Maio (fundada em ????), constituída por alunos de escolas das redes municipal e estadual. Após esse evento, a cidade aguarda ansiosa pela principal festa da cidade, a festa em Louvor a Nossa Senhora da Penha, que de acordo com o historiador Ramir Curado, essa festa “já foi a maior e mais concorrida festa popular-religiosa” (CURADO, 1996). No entanto, atualmente a maior desta desse segmento é a Festa de Nossa Senhora da Penha que acontece em setembro, na qual são encenadas as Cavalhadas. Para esta festa os preparativos antecedem ao mês de agosto quando se inicia os ensaios das Cavalhadas e também os jantares dos cavaleiros, evento que anima as noites corumbaenses. O ápice da Festa ocorre entre os dias 06 e 08 de setembro, quando as ruas do Centro Histórico de Corumbá de Goiás são tomadas por barraquinhas e mascarados. Do outro lado do rio ocorrem as Cavalhadas no período vespertino atraindo moradores, visitantes e turistas das mais variadas localidades, inclusive estrangeiros. As festas natalinas populares são poucas e tem por espaço de realização a praça da Matriz. No entanto, as famílias corumbaenses ainda promovem rezas ou terços nos presépios. Pela área rural gira uma interessante Folia de Reis, que perpassa as festas de um ano para outro, uma vez que começa no dia 24 de dezembro e finaliza no dia 06 de janeiro. Considerações Finais Propor reflexões, mesmo que breves, sobre a arquitetura e as festas de Corumbá de Goiás foi tarefa bastante complexa, pois não há estudos sistematizados e as poucas pesquisas feitas sobre a localidade na maioria das vezes não são disponibilizadaspara consultas. 413 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Algumas obras importantes sobre Corumbá de Goiás foram produzidas pelo pesquisador Ramir Curado, do qual utilizamos como referência uma obra que é uma síntese didática de sua produção. Grande parte das informações aqui contidas é proveniente de observações participativas, pois sendo corumbaense e acadêmica do Curso de Tecnologia em Gestão de Turismo, passamos a valorizar ainda mais os aspectos patrimoniais (materiais e imateriais) de Corumbá de Goiás, daí a iniciativa de chamar ao debate para as festas e arquitetura corumbaense. Referências bibliográficas COELHO, Gustavo Neiva & VALVA, Milena d’Ayala. Patrimônio cultural edificado. Goiânia: UCG. 2001. CURADO, Ramir. Corumbá de Goiás: estudos sociais. Brasília: Editora Ser, 1996. 15p. IPHAN. PORTARIA Nº 68/2013. Goiãnia, 2013. SALLES, Gilka Vasconcelos F. de. Economia e escravidão na Capitania de Goiás. Goiânia: Ed. da UFG, 1992. www.corumbatur.com.br/historia. Acesso em 01/09/2014. www.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do;jsessionid=F4C47ED16F10FF293300A3084 E7C70BB?id=18208&retorno=paginaIphan acesso em 15/06/2014 414 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul TRANSFORMAÇÕES DAS PAISAGENS DO CERRADO: UMA HISTÓRIA AMBIENTAL DA GRAMÍNEA BRACHIARIA NA FRONTEIRA GOIANA (1960-2010) Rosemeire Aparecida Mateus Mestranda, TECCER/ UEG [email protected] Introdução Registramos na história de Goiás os diferentes momentos e modos de ocupação e exploração do território. Dentre esses modos, destacamos sob a perspectivada Historia Ambiental, a implantação e o cultivo do capim brachiaria como tecnologia para a pecuária extensiva no Cerrado goiano. O tema deste estudo é retirado da tensão entre brachiaria e as espécies nativas. Tensão que provocou uma nova configuração do Cerrado, porque exigiu das pessoas um novo jeito de se relacionar com esse bioma e de existir nele, uma vez que diversas espécies nativas “foram desaparecidas”, e com elas desapareceram saberes e expressões culturais para a manutenção da vida no referido ambiente. A implantação e cultivo cada vez mais intenso do brachiaria (quase uma norma) fez nascer um novo território que entra em tensão com os territórios existentes. Ativemo-nos ao período histórico de 1960 a 2010, no qual inicia o aparecimento do capim brachiaria por estas terras. Buscamos através dos registros do período abarcar as complexas relações de pressão e tensão vivenciadas por parcela da sociedade goiana, fenômenos advindos do desaparecimento de saberes e expressões culturais de espécies da fauna e da flora e da diminuição do Cerrado. Diante deste contexto impulsiona-nos a perguntar: como o agropecuarista ressignificou a sua relação com o Cerrado na presença do brachiaria? Discutindo à luz da historiografia ambiental, procurando ir além da história do desenvolvimento agroeconômico, buscando ressaltar fenômenos provocados por esse desenvolvimento, 415 nos valemos de uma leitura do Cerrado feita a partir da HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul transdisciplinaridade, proposta dos fundamentos teóricos metodológicos da História Ambiental. Para esta corrente historiográfica tal pressuposto possibilita o diálogo entre os diversos saberes envolvidos na pesquisa. Compartilhamos com as ideias de Roderick Nash (1970), para quem toda a paisagem que nos cerca deve ser encarada como um “documento histórico” à espera de interpretação. [...] compreender o papel que determinadas paisagens exercem tanto na constituição da memória coletiva como nas diferentes maneiras de percepção do espaço. [...] trata-se de uma perspectiva transdisciplinar, segundo a qual as disciplinas sociais podem sem meia culpa, incorporar às suas listas de variáveis analíticas elementos do mundo natural (apud ARAUJO, 2007, p.31-37). Em nossa pesquisa sobre a relação da gramínea com o Cerrado e suas manifestações para a vida humana, atentaremos aos estudos que contemplem migrações de espécies e suas implicações ecológicas, a introdução (in) voluntária de animais e plantas em novos biomas, a invasão biológica de espécies animais e vegetais e sua relação com a biodiversidade, assim como, trabalhos sobre a importância e uso de plantas e animais nativos no Brasil. São trabalhos como os desenvolvidos na Universidade Federal de Santa Catarina, através do Grupo de Pesquisa Laboratório de Imigração, Migração e História Ambiental (LABIMHA) que nos trarão um suporte e diálogo neste tipo de análise historiográfica. Um dos vértices fundamentais de nossa problemática na relação dessa gramínea com o Cerrado é o grande incentivo para o cultivo e, a adaptação impressionante desta gramínea ao longo dos anos. Seus desfeches devastadores neste Bioma, dada sua grande adesão como cultura de abastecimento alimentício para o gado e, sua enorme adaptação ao ambiente, se tratando de uma espécie exótica, é analisada a partir da perspectiva ambiental na qual as invasões biológicas são tidas como um dos piores problemas ecológicos atuais, por afetarem drasticamente os processos de homeostase dos Biomas. Os processos de extensão de dada(s) espécie(s) exótica(s): Constitui no estabelecimento de espécies animais ou vegetais de outras regiões – (...) em ecossistemas naturais ou manejados pelo homem, e seu posterior alastramento, de forma que passam a dominar o ambiente e a causar danos às espécies originais e ao próprio funcionamento dos ecossistemas. Em muitos casos, invasões biológicas causam a extinção de espécies nativas. (PIVELLO, 2005). 416 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Atualmente, no Brasil, há muitos estudos de história ambiental, como os de Marcos Lobato Martins (2007), Augusto José de Pádua (2010) e José Augusto Dummond (1991), que já somam décadas de pesquisas, possibilitando uma revisão do conceito de ambiente para além do espaço físico, incorporando as múltiplas racionalidades e culturas somadas às reflexões sobre os efeitos secundários da relação da ação humana sobre o ambiente. Justificativa O objeto da pesquisa reside no aparecimento do brachiaria em Goiás, sua pressão sobre o bioma do cerrado e, por extensão, sobre a maneira como o as pessoas passaram a se (re) apropriar ou se relacionar com ele após o uso intensivo do brachiaria que passou a fazer parte da paisagem rural de Goiás. Como se dá a sobrevivência das demais espécies na presença do brachiaria e a configuração da vida no Cerrado Goiano no período de implantação e consolidação do brachiaria? De que forma o ser humano vivencia esse processo quanto ao seu pertencimento ao território, a sua identidade, aos seus saberes e suas expressões culturais. Que formas de resistência foram construídas, o que desaparece e o que é reelaborado. Elegemos a fronteira goiana como espaço de análise de nosso trabalho pautado no impacto causado pela transformação da implantação do brachiaria bem como todo o processo histórico de práticas agrícolas ao longo das últimas décadas em Goiás - desde a lavoura de subsistência até as grandes agroindústrias, passando pela tradicional criação de gado às inovações tecnológicas da pecuária goiana. Intentamos discutir a complexificação das relações entre agropecuarista e cerrado a partir do advento do brachiaria em Goiás sob a perspectiva da história ambiental, uma vez que a construção das realidades históricas humanas é indissociável dos diferentes tipos de relação que as comunidades mantêm com o meio ambiente a que têm acesso. De acordo com Worster, A história ambiental nasceu, portanto de um objetivo moral, tendo por trás fortes compromissos políticos, mas, à medida que amadureceu, transformou-se também num empreendimento acadêmico que não tinha uma simples ou única agenda moral ou política 417 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul para promover. Seu objetivo principal se tornou aprofundar o nosso entendimento de como os seres humanos foram através dos tempos, afetados pelo ambiente e com que resultados (1991, p. 93-97). O período que estudaremos será de 1960 a 2010. Os anos 60 são o marco inicial da chegada do brachiaria em Goiás, por meio dos programas de desenvolvimento para o Brasil Central, o que provocou uma grande migração de pessoas de vários estados do Brasil para Goiás em busca de trabalho, terras e riquezas. Estabelecemos como limite final 1990, por entender que nesse marco temporal já está consolidada a cultura do brachiaria em nossa região. A análise dos anos 2000 contribui para a ampliação do olhar econômico e cultural da história de Goiás, trazendo reflexões para as questões atuais em relação ao cerrado, em seu espaço, além da dimensão do desenvolvimento agroeconômico, procurando ressaltar fenômenos provocados por esse desenvolvimento como é o caso do esvanecimento de determinadas memórias devido à diminuição de determinadas espécies, logo a diminuição de certas práticas ligadas a existência dessas espécies que sucumbem diante do desenvolvimento do brachiaria. Objetivos Buscamos com este trabalho compreender o impacto na diversidade cultural e biológica do cerrado goiano a partir da implantação e cultivo do brachiaria. Para atingirmos este intento, propomos estudar o processo histórico da chegada e substituição das pastagens nativas pelo brachiaria na fronteira goiana; a inventariar os saberes, memórias e hábitos do agropecuarista goiano em relação às paisagens e, analisar, a partir da História da Ciência, em consonância com a História Ambiental a divulgação científica das pesquisas que apresentam a viabilidade econômica do Cerrado por meio das novas gramíneas. Revisão de Literatura Os principais pressupostos teóricos que fundamentam nosso trabalho são os da História Ambiental que se pretende holística por incluir o maior número possível de vertentes para um determinado objeto de pesquisa e os conceitos que fazem parte de um conjunto de novos 418 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul paradigmas interpretativos para as ciências humanas que escapam a ocidentalização do conhecimento e que abrem espaço para outros saberes e razões. Pensamos que estudar a vida e a cultura rural de Goiás pelo viés da História Ambiental nos possibilita compreender e aprofundar como os seres humanos foram, através dos tempos, afetados pelo seu ambiente natural e, inversamente, como eles afetaram esse ambiente e quais os resultados dessas interações. A interação é na verdade uma das três dimensões básicas analisadas por Worster (1991) para quem pretende elaborar uma História Ambiental sobre determinada sociedade, considerando ainda para tal trabalho os aspectos de constituição socioeconômicas em sua inter-relação com determinado espaço geográfico e, por último, as dimensões cognitivas, culturais e mentais do ser humano, incluindo cosmologias, valores e ideologias. (PÁDUA, 2010, p.94 e 95). No que se refere aos recortes do estudo do ambiente, temos os estudos do geógrafo La Bleche que influenciou historiadores europeus do século XX. Segundo Martins (2007), La Bleche privilegia os estudos regionais, realizados sob a égide do conceito de “gênero de vida”. O gênero de vida é o resultado das influências físicas, históricas e sociais, presentes nas relações do homem com o meio. Nele, há o viés ecológico (o modo como o homem tira partido do ambiente) e o viés histórico (as relações que os homens tecem entre si). Os diferentes gêneros de vida, associados às diversas regiões naturais terrestres, constituem as marcas típicas dos lugares, as unidades elementares do espaço que se articulam num todo. (...) A ênfase da análise regional recai sobre valores simbólicos e as relações (inclusive as afetivas) entre os lugares frequentados pelos grupos sociais, negligenciando os aspectos naturais (MARTINS, 2007, p. 41). Sobre a relação da gramínea com o cerrado, atentaremos para estudos que contemplem migrações e suas implicações ecológicas, introdução (in) voluntária de animais e plantas em novos biomas, a invasão biológica de espécies animais e vegetais e sua relação com a biodiversidade, assim como trabalhos sobre a importância e uso de plantas e animais nativos. São trabalhos desenvolvidos na Universidade Federal de Santa Catarina, através do LABIMHA. E atentaremos aos estudos da EMBRAPA. Enfim, as abordagens da história ambiental possibilitam uma ampliação do campo do saber. E a grande quantidade de material da história ambiental está pronta, é necessário buscá-lo e 419 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul organizá-lo. O foco são os efeitos secundários da ação humana. Como por exemplo, as espécies do cerrado que foram extintas devido ao fortalecimento do brachiaria em Goiás. Metodologia A metodologia adotada em nossa pesquisa baseia-se na análise documental aliada à História Ambiental e no trabalho de campo por meio de entrevista. Fundamentamos nosso trabalho nos pressupostos teóricos da História Ambiental que preconiza uma perspectiva holística (dinâmica e complexa) por abarcar o maior número possível de vieses para um determinado objeto de pesquisa. Podemos exemplificar o propósito e metodologia das fontes, mediante novas perspectivas de investigação que se filiam às outras áreas do conhecimento, por meio de intersecções, a complexidade do objeto de análise (GALLINI, 2005, p8 e 9). Este fator de interação é uma das três dimensões básicas analisadas por Woster, para quem pretende elaborar uma História Ambiental sobre determinada sociedade, considerando que, para tal trabalho, os aspectos de constituição socioeconômicas em sua inter-relação com determinado espaço geográfico e, por ultimo, as dimensões cognitivas e culturais do ser humano, incluindo cosmologias, valores e ideologias. (PÁDUA, 2010, p. 94 e 95). Woster abre-nos a possibilidade de trabalhar com a História Ambiental numa perspectiva transdisciplinar definindo três grandes dimensões, a saber: a dimensão da ciência da natureza, onde os elementos orgânicos e inorgânicos, incluindo o ser humano, interagem entre si ao longo do tempo; como exemplo a migração e o processo de sobrevivência das espécies. A dimensão socioeconômica, a organização social dos grupos em interação com recursos naturais a que se têm acesso, os processos de produção e destinos que lhes são dados e os impactos ambientais. A dimensão simbólica das interações entre o ser humano e a natureza, as “negociações” que as diferentes populações estabelecem com o seu meio e sua representação ao longo do tempo, (apud PÁDUA, 2010, p. 95). Dispomos de grandes e diversas fontes históricas para o estudo da presença do brachiaria na fronteira goiana. Utilizamos arquivos de dados em órgãos oficiais e das Universidades do estado de Goiás. 420 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Usaremos georreferenciamento: instrumento de geoprocessamento para mapear a presença do brachiaria em Goiás. Buscaremos informações importantes das imagens orbitais do Cerrado a cerca de fenômenos perturbadores ao ambiente natural da fronteira goiana entre o tempo proposto: 1960 a 2010. Contemplando a afirmativa de Drummond em que o fator “tempo” é a forma mais provocativa de dar sentido à História Ambiental (SILVA, CARVALHO JR, SILVA, 2012, p. 80). Considerações Finais Enfim, as abordagens da História Ambiental possibilitam uma ampliação do campo do saber, considerando o ambiente parte constituinte da história da vida humana, bem como, dotada de uma historicidade própria. Acreditamos na afirmação de Worster (1991) que, “ao ignorar o mundo natural quando estuda o passado, os historiadores estimulam aos outros a ignorar o mundo natural no presente e o futuro”. Pois, apesar das ilusões homogeneizantes pregadas pela globalização, os historiadores ambientais afirmam que em cada lugar no mundo constroem-se relações únicas entre o ser humano e meio ambiente. Referências Bibliográficas ARAUJO, Alexandre Martins de. Memórias que Curam. In: Experiências e Memórias. Olga Cabrera (Org). Goiânia/Cecab: Ed. Vieira, 2001, p.87-89. DRUMMOND, José Augusto, Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, pp. 177-197, 1991. FRANCO, José Luiz de Andrade; SILVA, Sandro Dutra e; DRUMMOND, José Augusto e TAVARES, Giovana Galvão (Org.). História Ambiental: fronteiras, recursos naturais e conservação da natureza, Rio de Janeiro: Granamond, 2012. GALLINI, Stefania. Invitación a la historia ambiental. En: Revista Tareas Nro.120: Historia ambiental latiamericana. Mayo-Agosto 2005, p. 5-28. CELA, Centro de Estudios Latinoamericanos “Justo Arosemena”, Panamá. 421 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul MARTINS, Marcos Lobato. História e meio ambiente – São Paulo: Annablume; Faculdades Pedro Leopoldo, 2007. PÁDUA, Augusto José. As bases teóricas da história ambiental – Estudos avançados 24 (68), 81-101, 2010. PIVELLO, V. R. Invasões Biológicas no Cerrado Brasileiro: Efeitos da Introdução de Espécies Exóticas sobre a Biodiversidade. Disponível em: <http://www.ecologia.info/cerrado.htm>.Acesso em 02/10/11. SILVA, Carlos Eduardo Mazzetto. Os cerrados e a sustentabilidade: territorialidades em tensão. 2006. 271 f. Tese (Doutorado em Ordenamento Territorial e Ambiental) Departamento de Geografia, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro. SILVA, Nilton Correia da; CARVALHO JR, Osmar Abílio de; GUIMARÃES, Renato Frontes; SILVA, Sandro Dutra e. Geotecnologia e proteção ambiental. In: História Ambiental: fronteiras, recursos naturais e conservação da natureza, Rio de Janeiro, Garamond, 2012. WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, 1991, p.198-215. 422 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul A GÊNESE DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NA CIDADE DE GOIÁS Suzana Rodrigues Floresta282 As condições de saúde na cidade de Goiás Pelos idos do século XIX observou-se que a saúde pública era de responsabilidade das Províncias e da Coroa, mas cada família incumbia-se pelos cuidados sanitários domésticos. Posteriormente, essas responsabilidades foram sendo atribuídas aos governos municipais e cabia às autoridades legislar sobre o assunto. A este respeito, a transcrição de um trecho das Memórias Goianas283 sobre as condições sanitárias de Goyaz, ilustra o desalento da população: A Saúde pública em toda a Província está confiada a Providência [...] O escorbuto, a elephantiazes, a morfea, e as mais moléstias contagiosas se vão transmitindo de huns a outros pela livre communicação dos enfermos com os sãos, aquelles por falta de hum azilo correm as ruas da Cidade, mendigando o indispensável alimento, estes encarando todos os dias o lastimoso espectaculo se acostumao, perdem a sensibilidade, e a repugnância, e se misturao, e respirando o ar inficionado se fazem victimas das mesmas enfermidades; os primeiros reclamao de Vós os soccorros, e o bem geral exige 282 Professora efetiva da Universidade Estadual de Goiás, Campus Iporá. E-mail: [email protected] Memórias Goianas é uma publicação do Centro de Cultura Goiana (1980), está vinculado à Sociedade Goiana de Cultura (mantenedora da Universidade Católica de Goiás (1959) e de outras instituições e se ocupa, principalmente, da publicação e divulgação de preciosa documentação de seu acervo, para a preservação da memória historiográfica do Estado de Goiás. Nas duas últimas décadas do século XX o Centro de Cultura Goiana publicou uma coletânea denominada Memórias Goianas, contendo os relatórios dos governos da Província de Goiás abrangendo parte do período imperial – de 1835 até o início da República, em 1889. Embora contendo informações de caráter oficial – denotando modos ideológicos de condução dessas ações governamentais – a leitura e análise desses documentos foram imprescindíveis para compreender como se nascia, vivia, adoecia e morria em Goiás no final do século XIX. 283 423 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul providencias para que se não arruíne a saúde pública (MEMÓRIAS GOIANAS 3, 1986, p. 126) Na segunda metade do século XIX, Raymundo J. da Cunha Mattos formulou uma explicação que se tornou corrente sobre a má saúde da população de Goyaz. A principal característica deste modelo explicativo era o determinismo geográfico, ou seja, o clima e estações da região produziam em grande número de habitantes dessa Comarca e em quase toda a província broncoelles ou papeiras enormes. Climas, Estações e Enfermidades Endêmicas. O clima desta comarca é quente e úmido na maior parte do ano; nos meses de junho e julho é frio e úmido e nos de agosto e setembro quente e seco. A atmosfera esta muito carrega de nevoeiros e fumaça procedida das queimadas gerais nos meses de agosto e setembro. Desde outubro ate o fim de março caem chuvas copiosas e há trovoadas continuas, as mais perigosas porque grandes tufões de vento (...) A irregularidade da temperatura da atmosfera ou talvez a morada em lugares mui úmidos e contíguos aos rios e o uso de alimentos de má qualidade produzem em grande numero de habitantes dessa Comarca e em quase toda a província broncoelles ou papeiras enormes que muito desfeiam as pessoas que padecem do incomodo. Aqueles que habitam em lugares de águas salobras às vezes são acometidos de papeiras. As apoplexias são continuas; o mal venero faz estragos e por falta de médicos e cirurgiões morre imenso povo a mão de charlatões e empíricos (MATTOS, 1874, p. 275) Muita gente morreu de cólica e de repente. Foram males que fizeram maior numero de vítimas em Goyaz. As sangrias eram os remédios de muitas doenças. Purgantes e lavagens 424 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul eram aplicadas para todos os casos de cólicas mesmo que fosse uma apendicite supurada. E é bom que se diga que naquelas priscas eras, como hoje alguns charlatões eram considerados e atendiam a chamados para resolver problemas de saúde os mais variados e a sua terapêutica era um sacão de gatos, variando de um para outro no tratamento de espinhela caída, vento virado, gálico, afecções de corpo, etc... juntando-se aos medicamentos os chás de folha ou raízes, pós de chifres ou cascos de animais a até benzeduras (...) As parteiras ou curiosas, muito famosas, já que não era de bom tom chamar o médico para este casos, usavam para a mais rápida secagem do cordão umbilical azeite de mamona e pó de fumo torrado, causa talvez dos milhares de casos de tétano umbilical (...) Outro velho habito eram as fontes. Não conseguimos saber qual a origem desse método terapêutico, já usado pelos jesuítas nos começos da descoberta do Brasil (escarificação), mas, pela sua originalidade vamos relatar o procedimento. Havia a conceituação de que os homens, após os quarenta anos decaiam suas funções sexuais e acumulavam no organismo “humores e reimas PREJUDICIAIS. Então para revigorar o status a pessoa escarificava a barriga da perna (região popliteia) ate produzir uma ferida. Para que ela não cicatrizasse, alem de ser sempre ativada por um pedaço de madeira, colocava-se dentro desta ferida um grão de chumbo, maior ou menor, de acordo com a lesão, a fim de que se ficasse sempre “merejando” os “humores”. E isso transformado em fistula, era carinhosamente cultivado, amarrado com um pano, por via dela as “mermas” do corpo se escoavam e tornavam o individuo forte e sadio (BUENO, 1979, p.10) Outro método de cura, dos mais antigos era a sangria, panacéia universal para quase todos os males. A sangria comum era feira por intermédio das sanguessugas, material 425 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul constante e imprescindível do arsenal médico, que remota desde o século I a.C. Eram específicos para o caso de hepatite, lumbago e outros males tratamento dos olhos e dores de cabeça. Havia também o tipo de sangria sarjada, quando se lancetava as veias para o escoamento do sangue deletério, pratica efetuada geralmente pelos barbeiros que tinham também função de cirurgião. Em outros casos, quando um doente carecia de cuidados médicos, um facultativo era chamado à casa do paciente, onde fazia os exames preliminares, receitava e prescrevia os cuidados necessários. Em casos graves o doente era visitado várias vezes durante o dia e também à noite, se as circunstâncias assim o exigissem. As gestantes eram assistidas em suas próprias casas por parteiras, mulheres práticas nesse mister, sem nenhum conhecimento de obstetrícia. Ondina Albernaz descreveu a realização dos partos e o trabalho das parteiras informando muitos detalhes do processo, desde a preparação da gestante até o pós-parto: A parteira atendia a paciente, ajudava-a durante o parto, pegava a criança, cortava o umbigo, fazia o curativo, dava-lhe banho, vestia-a e a agasalhava fartamente, com camisa de pagão, paletó, cinteiro, cueiro de beata, sapatinhos de lã, touca com pedaços de algodão, em caso de pouco cabelo, depois era ainda enrolada em xale de lã. A parteira tomava conta da criança de seis a oito dias, tempo da queda do umbigo e de a parturiente deixar o leito, o que era feito com muito cuidado e precaução: calçada de meias, algodão nos ouvidos, evitando corrente de ar e sereno, nenhum esforço físico, subir escadas, leituras prolongadas, etc... Como precaução a cabeça era lavada antes do parto, pois durante o resguardo de quarenta dias não se permitia tal higienização. A alimentação consistia de sopas, de frango ou galinha; uma vez ou outra era permitida a carne de porco acompanhada de tutu de feijão, classificados como comida quente. O arroz, classificado como alimento frio, só se permitia após decorridos trinta dias. Somente após um longo período após o parto tornavam-se 426 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul permissíveis os alimentos tidos como reimosos. Nada de frutas, principalmente as ácidas. Antes das refeições um cálice de Água Inglesa; após as refeições uma fatia de marmelada de Santa Luzia. Leite e canjica faziam parte da alimentação (ALBERNAZ, 1992, p. 19-20). De certa forma, se pode dizer que os problemas de saúde em Goiás no final do século XIX e início do XX estavam relacionados a diversos fatores. Dentre eles, destacam-se: a carência de infra-estrutura, a qualidade da água e a falta de higiene dos moradores. Ondina Albernaz reforça a idéia de que a cidade de Goiás carecia de infraestrutura e água potável. Nas palavras da referida autora: A cidade não tinha infra-estrutura e a água das cisternas, por ser salobra, só era utilizada nas lides domésticas; água para se beber tinha que ser dos chafarizes, preferencialmente a da Carioca, por ser a mais potável. Os carregadores de água, em potes ou latas equilibrados sobre a cabeça, faziam deste trabalho profissão estável. A roupa dos habitantes da cidade era lavada na fonte, expressão da época que definia que o trabalho seria realizado nas águas correntes de rios e riachos próximos, tais como Vermelho, Bacalhau, Bagagem, Bacalhauzinho, Manoel Gomes e outros menores (ALBERNAZ, 1992, p. 30). Ofélia Sócrates do Nascimento Monteiro também fez algumas considerações sobre a falta de higiene presente no consumo da água na Cidade de Goiás. Em sua obra Reminiscências afirmou: Ainda não havia água encanada em Goiás (...) Para se beber, a água vinha da Carioca, chafariz de água límpida, mais pura que a do 427 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul imponente chafariz do Largo e a dos outros existentes na cidade. Por ficar mais afastado da parte central, sua condução custava mais caro que a dos outros chafarizes. Em toda casa a água de beber ficava na sala de jantar, em cantoneira pregada na parede. Junto do pote, na cantoneira, ou pendurada em prego, estava sempre bonita caneca esmaltada destinada a tirar a água de dentro dele. Isso não era nada higiênico porque as pessoas, principalmente as crianças, enfiavam também na água, a mão que segurava a caneca (MONTEIRO, 1974, p. 21-22). Estrutura e dinâmica da assistência social De acordo com Ondina de Bastos Albernaz, na obra Reminiscências, havia na cidade Goiás no campo da assistência social, o Hospital de Caridade São Pedro de Alcântara. O Hospital de Caridade só atendia carentes e indigentes, sendo o único da cidade e do Estado. Ainda que a criação deste hospital se devesse a uma Carta Régia de 25 de janeiro de 1825 por iniciativa de um grupo de cidadãos preocupados com a assistência social da localidade podese dizer que nunca se caracterizou como uma instituição integrante da estrutura do Estado. De fato, a confusão estabelecida entre medicina e caridade favorecia, desde aquela época, usos assistencialistas. O Hospital São Pedro d’Alcântara não fugiu a esta regra. Única instituição de assistência à saúde que existia em toda a Província, foi administrada sem que houvesse uma responsabilidade governamental direta com sua manutenção. No entanto, sempre dependeu da providência e magnanimidade das autoridades públicas (MEIRELES, 2010, p. 105). 428 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Foram comerciantes, fazendeiros e funcionários públicos abastados, tanto católicos quanto maçons, que o conceberam. Daí a presença em seu funcionamento, de certos traços religiosos, caracterizados pela proposta caridosa e misericordiosa. Infelizmente, a bibliografia a respeito do tema é bastante escassa e/ou não aborda a situação do município após a transferência da capital de forma objetiva. Por isso, pretende-se reproduzir aqui aqueles pontos de vista comumente encontrados entre os morados mais antigos da cidade de Goiás. Considerando que o enfoque desta pesquisa é a assistencial social, se pode antecipar ao ávido leitor que a situação era bastante problemática. Os principais estudos sobre o Hospital da Caridade São Pedro de Alcântara (MORAES, 1995; RABELO, 1997; SALLES, 1999; MAGALHÃES, 2004) mostram-no como “o eixo central do que se refere à assistência social”, abarcava funções e princípios caritativos cristãos, recolhendo alienados, menores abandonados, assistindo aos encarcerados, doentes e necessitados e, posteriormente, enterrando gratuitamente os indigentes. Prestava amparo material e espiritual à comunidade na vida e na morte (MAGALHÃES, 2004, p. 662). Em 1883, os primeiros dominicanos chegaram à Cidade de Goiás, obtendo do bispo, através de instrumentos jurídicos, o usufruto perpétuo da Casa de Goiás, ocupando inicialmente a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Durante o início da República, em 1889, a congregação religiosa das freiras dominicanas também se instala na cidade e, conforme sua tradição passa a se dedicar aos cuidados com a educação, saúde e assistência da população. Com a chegada das dominicanas, o Hospital da Caridade São Pedro de Alcântara passa por grandes transformações. Em 1908 esta Irmandade e a Junta Administrativa, iniciaram uma grande reforma com a ampliação das instalações tanto para o Hospital quanto para um espaço contíguo para servir de residência às irmãs de caridade. Em 1921, novas reformas e novas concepções de atendimento hospitalar vão sendo agregadas, tais como salas cirúrgicas e enfermarias mais equipadas (Cf. MAGALHÃES, 2004). Esta congregação religiosa, além de se encarregar de trabalho administrativo hospitalar, funda também o Colégio Santana e o Asilo São Vicente de Paulo. Este asilo também fazia parte da assistência social. 429 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Os primeiros trabalhos deste grupo foram dedicados à fundação de um espaço, na Cidade de Goiás, com o principal objetivo de abrigar e assistir mendigos, velhos e doentes mentais. Esta iniciativa deveu-se a motivos sociais e econômicos, com cunho caritativo. De um lado, a mendicância aumentava a olhos vistos e conviver com esta população perambulante nas ruas, ameaçava a “harmonia social”, isto é, o sossego da sociedade vilaboense. De outro, gastava-se muito com aluguéis para o abrigo e assistência a estes necessitados (MEIRELES, 2010, p. 109) Construído em 1908, abrigava retardados e “bobos”. Era dirigido pelas dominicanas e assistido por uma sociedade filantrópica. De acordo com Meirelles (2010), a iniciativa dos vicentinos deveu-se a motivos sociais e econômicos, com cunho caritativo. Em 25 de julho de 1909, o Asilo começou a receber seus primeiros internos. Prudente (2006) relata este começo assim: Os confrades dirigiram para o antigo asilo localizado na Rosa Gomes, onde tem-se um beco, do qual chegava ao depois chamado de Chácara do Sr. Santomé; e buscaram os futuros asilados, carregando nos braços os que não podiam andar e os portadores de necessidades especiais, chamados então de “bobos” ou idiotas [...]. No primeiro dia tiveram onze asilados, dos quais quatro eram homens e sete mulheres. Oito dias depois mais uma senhora foi asiladas (PRUDENTE, 2006, p. 6869) A referida autora ainda enfatiza que desde os primórdios até os dias de hoje, esta instituição foi preferencialmente dirigida a receber “bobos”, que para lá eram encaminhados ou deixados na soleira de sua porta de entrada, tornando-se referência nesta área em toda a região. Mas, atualmente, apesar da qualidade assistencial que oferece, “transformou-se na 430 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul porta de saída da vida para os “bobos” que são lá deixados, afetivamente carentes, sem serventia para os “beneméritos” que os acolheram quando eram jovens e largados no esquecimento por suas próprias famílias” (PRUDENTE, 2006, p. 78) Ao retratar o “comércio miúdo” da Cidade de Goiás, Ondina Albernaz informou inicialmente que “a cidade contava também com uma farmácia dirigida pelo farmacêutico Luiz de Camargo” (ALBERNAZ, 1992, p. 19). Mais adiante, na mesma obra, afirma a existência de mais duas farmácias: “contávamos com duas farmácias: a do doutor Perillo Júnior, o primeiro farmacêutico formado da cidade, e a do Hospital da Caridade” (Op. cit. p. 27). Portanto, supõem-se que haviam apenas três farmácias na cidade de Goiás no começo do século XX para atender uma população de aproximadamente 21.223 pessoas284. Além disso, todas as mercadorias chegavam à cidade em carros de bois ou tropas de burros. Transportados desta forma, passando por estradas quase intransitáveis e atravessando rios cheios, supõem-se que os sacos de lona que abrigavam o conteúdo nem sempre resistiam aos embates da longa viagem, assim, em acréscimo ao atraso muito comum à época, podiam os remédios chegarem danificados. Considerações Finais Meireles (2010) afirma que “o cenário que se constrói nos últimos anos do século XIX na Cidade de Goiás, com um evidente reforço da atividade religiosa católica, terá grande importância no desenrolar dos acontecimentos políticos que se desdobrarão nas décadas seguintes, desembocando na transferência da capital para Goiânia” (MEIRELES, 2010, p. 105). A idéia de mudança da capital há muito existia, e chegou a ser registrada na carta magna do Estado. Entretanto, Couto Magalhães em 1863 foi quem proclamou com mais vigor a necessidade da mudança da capital. Escreveu abordando esse imperativo, em seu livro 284 De acordo com Juscelino Polonial as cinco cidades mais populosas de Goiás em 1920 eram: Catalão (38.574 habitantes); Boa Vista do Tocantins (25. 786 habitantes); Morrinhos (24.502 habitantes); Goiás (21.223 habitantes) e Ipameri (19.227 habitantes). Interessante destacar ainda que a população do Estado de Goiás basicamente dobrou passando de 227.572 habitantes em 1890 para 511.919 habitantes em 1920. Para o referido autor, a população de Goiás crescia, desde fins do século XIX, fruto da expansão do capitalismo para o interior. Ver: POLONIAL, Juscelino. Terra do Anhanguera. História de Goiás. Goiânia: Kelps, 1997, p. 83-84. 431 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul “Viagem ao Araguaia”: Quanto à insalubridade, não conheço, entre todos os lugares que tenho viajado, onde se reuniam tantas moléstias graves. Quase se pode assegurar que não existe aqui um homem são. Quanto às condições comerciais... Os meios de transportes são imperfeitos, a situação da cidade encravada entre serras, faz com que sejam péssimas e de difícil trânsito as estradas que aqui chegam. Em uma palavra... A Cidade de Goiás não reúne as condições necessárias para uma capital como ainda reúnem muitas para ser abandonada (MAGALHÃES apud CHAUL, 2001, p. 66) Essas acusações contra a Cidade de Goiás, a insalubridade de seu clima e sua má localização entre morros e montanhas, serviram para justificar a idéia de que a cidade não comportaria uma grande população e não poderia servir de centro administrativo da Capitania. Assim, a 23 de março de 1937, foi assinado o decreto nº. 1816, transferindo definitivamente a capital estadual da Cidade de Goiás para Goiânia. a criança abandonada poderia viver, adoecer e morrer na Cidade de Goiás? Referências Bibliográficas ALBERNAZ, Ondina de Bastos. Reminiscências. Goiânia: Kelps, 1992. BUENO, Jerônimo Carvalho. História da Medicina em Goiás. Goiânia: Oriente, 1979. CHAUL, Nasr Fayad. Caminhos de Goiás: da Construção da Decadência aos Limites da Modernidade. Goiânia: UFG, 2001. MAGALHÃES, S. “Hospital da Caridade São Pedro de Alcântara: assistência e saúde em Goiás ao longo do século XIX”. Revista História, Ciências e Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, set.-dez. 2004. 432 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul MATTOS, Raymundo J. Cunha "Explicação da má saúde da população de Goiás". Revista do Instituto Geográfico do Brasil. 2° trimestre de 1874 MEIRELES, Marilucia Melo. Os “bobos” na tradição da cultura de Cidade de Goiás: enigmas e silêncios sobre um tipo característico de figura do povo. Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Psicologia – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo). São Paulo: 2010. MEMÓRIAS GOIANAS 3. Relatórios dos Governos da Província de Goiás 1835-1843. Goiânia: Editora da UCG, 1986. MONTEIRO, Ofélia Sócrates do Nascimento. Reminiscências; Goiás de antanho, 1907 a 1911. Goiânia: Oriente, 1974. MORAES, Cristina de Cássia Pereira de. As estratégias de purificação dos espaços na capital da província de Goiás (1835-1843). Dissertação de mestrado, Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Goiás. (mimeo), 1995. PRUDENTE, T. Cotidiano e Preservação: Asilo São Vicente de Paulo da Cidade de Goiás. Dissertação (Mestrado profissional em Gestão do Patrimônio Cultural) – Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia – IGPA, Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2006. RABELO, Danilo. Os excessos do corpo. A normatização dos comportamentos na cidade de Goiás (1822-1899). Dissertação de mestrado. Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal de Goiás. (mimeo), 1997. SALLES, Gilka Vasconcelos Ferreira de. “Saúde e doença em Goiás (1826-1930)”. In: FREITAS, Lena Castelo Branco de (Org.). Saúde e doenças em Goiás. A medicina possível. Goiânia: UFG, 1999, PP. 63-127. 433 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul OS ALTARES DAS FOLIAS DO DIVINO ESPÍRITO SANTO: UMA DAS EXPRESSÕES DA RELIGIOSIDADE PIRENOPOLINA Tereza Caroline Lôbo UEG/Unidade Universitária de Pirenópolis285 [email protected] As folias giram pelo mundo Os rituais de peditório de esmolas para realização de festas são manifestações da cultura popular presentes em várias localidades do Brasil (CASCUDO, 1972). Estas manifestações da religiosidade popular tem origem incerta e remota, conforme pesquisa realizada por Pessoa que ao escrever sobre estas devoções afirma que estas espalharam-se por toda a Europa como parte das grandes peregrinações, a exemplo do que já acontecia em Santiago de Compostela, Terra Santa e Roma. Como herança direta dessas peregrinações, surgiram então os cânticos populares, muito importantes em toda a Europa medieval, chamados Noëls na França, Villancicos na Espanha e Folia em Portugal. Provavelmente, esses cantos, acrescidos do teatro de Gil Vicente, depois de José de Anchieta e Manoel da Nóbrega, constituem as matrizes mais diretas das diversas devoções existentes no Brasil, como reisados, boi-dejaneiro, boi-de-reis, pastorinhas e, especialmente, no chamado O presente trabalho está vinculado ao Grupo de Pesquisa em Turismo e Gastronomia Canela d’Ema e à pesquisa “Artes e Saberes nas Manifestações Populares” que conta com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás — FAPEG, conforme Chamada Pública nº 005/2012. 285 434 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul "corredor das bandeiras" (SP, MG, GO, MS), as folias de reis (PESSOA, 2007, p.65). Este giro pelo mundo produziu diferentes linguagens festivas, formas variadas de manifestação que deram a cada uma a singularidade que lhe é peculiar. Ao chegar ao Brasil, vindas de Portugal as folias foram traduzidas se adequando a cada realidade, daí a especificidade de cada uma destas manifestações da religiosidade popular. Existem várias versões sobre a origem das Folias de Divino. Uma delas é que partiu da própria Igreja a iniciativa de instituí-las como uma forma de estender as cerimônias religiosas da Festa do Divino até os moradores de fazendas, sítios e chácaras (DEUS e SILVA, 2003, p. 56). Em Goiás um estado que tem a agropecuária como atividade econômica principal e por isso a vida rural está na constituição das identidades locais, as folias têm uma representatividade reconhecida e se fazem presentes em diversos municípios goianos. Cidades como Goiânia e Anápolis, maiores centro urbanos do estado, mesmo com a intensa modernização das últimas décadas, têm variadas manifestações de folias não sendo festividades restritas apenas às pequenas localidades. A singularidade de cada uma destas manifestações tem propiciado uma gama de estudo sobre as folias buscando seu passado e sua interpretação no presente. Os estudos apresentam estas práticas aliadas a sua tradição, como manifestação folclórica ou religiosa. Estes festejos, em Goiás, têm sido pesquisados, por Pessoa (1993 e 2001), Coelho (2011) e por nós que desde 2013 desenvolvemos o projeto “Artes e Saberes nas Manifestações Populares” com financiamento do Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg). Este tem como objetivo estudar as Folias e os terços cantados nas cidades de Anápolis e Pirenópolis. No município de Pirenópolis encontram-se desde o século XIX diversas manifestações de folias, giradas ao longo do ano em homenagem a diferentes santos de 435 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul devoção, como a de Santo Reis, realizadas nas fazendas e na área urbana, a de São João, no distrito de Lagolândia, a de Sant’Ana, no povoado da Capela do Rio do Peixe, dentre outras, mas as que têm um maior público participante é sem dúvida as Folias em homenagem ao Divino Espírito Santo. Acontecem atualmente, em Pirenópolis, três Folias do Divino durante as comemorações ao Espírito Santo: duas folias rurais e uma urbana. As folias rurais fazem seu giro – caminho circular percorrido pelos foliões a cavalo - pela zona rural e a folia urbana, girada a pé pelos bairros periféricos da cidade, cumprindo também uma rota circular. Apesar dos rituais serem recorrentes, cada uma tem suas especificidades, é um evento singular para quem participa. A Folia da zona rural, conhecida como Folia da Renovação Cristã, sai numa sextafeira, três semanas antes do domingo de Pentecostes, e é comandada por foliões e devotos ligados à Igreja, é comumente chamada de “Folia do Padre”. A outra Folia rural – Folia do Mateus Machado em alusão ao local de onde teria surgido - e a Folia urbana ou Folia da Rua – autodenominada por percorrer seu trajeto pelos bairros da cidade - saem uma semana depois, configurando um final de semana com saídas e chegada de folias. São momentos de intensas festividades marcadas por desfiles de cavaleiros montados e animados “pousos” nas fazendas e nas casas de pernoites dos foliões. Estas práticas populares ao se materializarem em momentos de festas ressignificam as paisagens e os lugares, construindo identidades variadas e diversas. Identidades estas resultantes das relações estabelecidas entre seus atores cujas ações figuram entre o tradicional e o moderno. No festejo ao Divino, as folias englobam tanto a parte religiosa, com destaque para a fé e a devoção demonstradas pelos foliões e partícipes, quanto a profana, que atrai pessoas interessadas nas comidas e bebidas distribuídas e nos bailes que acontecem depois de cumprida a parte religiosa dos rituais. A folia na sua dinâmica é um patrimônio cultural pertencente a sociedade pirenopolina que também está em constante transformação, e para compreender sua realidade é necessário observá-la como produto da sociedade que a gestou ao mesmo tempo que tem que decifrar as interrelações dos elementos que a compõe. Ao descrever as manifestações festivas destas folias realizadas em comemoração ao Divino Espírito Santo como integrante 436 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul vital da cultura de Pirenópolis e dentro desta visão observar seus símbolos e rituais espera-se conhecer mais sobre a manifestação da cultura local, bem como as pessoas que as vivenciam. Olhares sobre as folias e seus altares O projeto de Iniciação Científica intitulado Patrimônio e turismo: a Folia do Divino Espírito Santo em Pirenópolis/Goiás está vinculado ao Grupo de Pesquisa em Turismo e Gastronomia Canela d’Ema - da Universidade Estadual de Goiás, Unidade Universitária de Pirenópolis - e objetiva compreender as Folias como patrimônio focando sua dinâmica na atualidade e sua convivência com o turismo. O trabalho é parte de um projeto maior, financiado pelo Fundo de Amparo à Pesquisa de Goiás (Fapeg), que está estudando e produzindo um farto material audiovisual sobre as Folias de Reis e os terços cantados em Anápolis e Pirenópolis. As fotografias das Folias do Divino produzidas no campo - nos anos de 2013 a 2014 - denotam os aspectos paisagísticos do local da festa, os rituais, os símbolos, os momentos, os gestos e as maneiras de ser no mundo de quem vivencia estas festividades. Entendemos que as fotos não são apenas ilustrativas, mas, são mensagens que se processam como documento, como um auxílio à memória e, às vezes, como substituto de textos descritivos. Na produção deste material partimos da premissa de que na Folia “existe uma gama variada de sistemas sígnicos que, sendo fruto das relações sociais, compõe o quadro cultural de uma sociedade” (GANDARA, 2005, p.1780), no caso, a sociedade pirenopolina. Servindo, em última instância, à caracterização do olhar sobre os festejos, ou seja, revelando as identidades presentes nas celebrações e a realidade que se procura interpretar. Os símbolos da Folia do Divino são muito importantes para a compreensão desse ritual, como é o caso da bandeira do Divino, de cor vermelha, com a pomba branca bordada ou pintada ao centro. Em cada lugar as pessoas fazem um tipo diferente de bandeira e em geral ele é muito devotada (DEUS e SILVA, 2003, p. 56). 437 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Ao observar as imagens dos altares das folias produzidas durante a pesquisa de campo e avaliar as várias leituras possíveis das imagens realizadas instigava-nos descobrir o que estava por trás desse pequeno cenário e quais as histórias que fundamentavam sua disposição. Nestes altares se materializam as práticas e representações da religiosidade presentes nas Folias do Divino Espírito Santo de Pirenópolis. Os altares encontrados nas casas que abrigaram as Folias para os seus pousos demonstram a fé, a devoção e a arte dos anfitriões. Estes cenários dizem muito sobre as pessoas do lugar, percebidos no esmero da elaboração dos oragos que chamam atenção e atrai os olhares, como os nossos, que ao organizar o material fotográfico produzido sobre as Folias deparamos com dezenas de fotos de altares. E, percebemos ser possível observar nos objetos que compõem os altares formas variadas e complexas de se relacionar com a fé, com a cultura e com as tradições. Ao focar nos altares das Folias do Divino –– entendemos que as crenças que estão ali expressas são manifestações da religiosidade dos donos da casa, pode-se perceber que a festa é em homenagem ao Espírito Santo, mas os santos de devoção dos anfitriões se fazem presentes: São Judas Tadeu, Nossa Senhora Aparecida, São José, dentre outros, sozinhos e não raro compondo um grupo de santos. Estes interlocutores entre o mundo dos homens e o mundo de Deus estão dispostos obedecendo uma hierarquia cuja centralidade é ocupada pelo santo de maior devoção, e este quase nunca é o Espírito Santo como pode ser observado na figura 1. 438 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Figura 1: Altar da folia tradicional. Fotografia: Lôbo, 2013. O esmero na elaboração dos oragos chama atenção, atrai os olhares e alimenta a devoção configurando em diversas representações que simbolicamente permeiam a memória social. Estes altares possibilitam a manifestação do sagrado sob a forma de hierofania no espaço, ou seja, são lugares repletos de sentidos para as práticas religiosas (ROSENDAHL, 2005). É o local de repouso das bandeiras consideradas sagradas pelos foliões e é no contato com as bandeiras e aos pés do altar que os devotos rendem suas graças. Os altares e a vivência com o sagrado As casas e fazendas que receberão os pousos e a passagem da folia iniciam sua preparação com antecedência, os espaços de moradia são intensamente alterados. Altares são detalhadamente montados para receber as bandeiras, quintais são enfeitados com bandeirolas coloridas e/ou da cor do Divino – brancas e vermelhas – os espaços de realização dos pousos são transmudados para acolher os foliões e seus cavalos e os visitantes, pastos são abertos para estacionamento de carros, áreas de acampamentos são criadas, as cozinhas são adaptadas 439 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul para a feitura de grandes quantidades de comidas, para citar alguns exemplos de transformação do espaço para a realização dos pousos de folias. Na chegada à fazenda ou casa os foliões fazem uma evolução formando um “s” e param diante de um arco de folhas enfeitado com flores e preparado na entrada da casa, este estabelece as fronteiras entre o sagrado e o profano, entre o mundo da folia e o mundo do cotidiano. Neste momento entram em cena os músicos que cantam versos rimados louvando o Divino e citando o que veem no arco. No centro deste arco avista-se uma xícara que representa um presente guardado pelos proprietários – normalmente uma garrafa de pinga ou refrigerante enterrada e que deve ser encontrada para que as bandeiras possam passar embaixo do arco e entrar na casa. As bandeiras são entregues aos donos da casa que as conduzem até o altar preparado e enfeitado para a festa, aí acontecem mais cantorias. O altar fica dentro da casa, sendo o responsável por trazer as bandeiras para a intimidade da residência. Quando as bandeiras transpõem a porta de entrada da casa a realidade é ressignificada por meio de uma performance ritual, com isso, o espaço da casa sacraliza-se, é um espaço transcendente e mítico. O altar torna a vivência com o sagrado uma realidade concreta e não imaginada. Construir altares carregados de simbolismo não é mérito do homem do passado e nem tão pouco do homem moderno “a mais pálida das existências está repleta de símbolos, o homem mais ‘realista’ vive de imagens (ELIADE, 1991, p.12 e 13). No entanto, a vida moderna dessacralizada, está carregada de simbolismos e cheia de mitos semi-esquecidos, de hierofanias decadentes, de símbolos abandonados. Ainda dentro deste raciocínio, o interesse pelas imagens não diminuiu, mas “oferecem um possível ponto de partida a renovação espiritual do homem moderno” (ELIADE, 1991, p.14 e 15). Os altares das folias despertam e alimentam as nostalgias e recolocam o homem em um universo do imaginário repleto de símbolos e vivências mitológicas. Há uma necessidade premente de estudar os sentidos e os símbolos presentes nestes altares, não seus significados, pois concordamos com Eliade (1991) quando este diz que “traduzir” as imagens em termos concretos é uma operação vazia de sentido. 440 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul As Imagens são, por suas próprias estruturas, multivalentes. Se o espírito utiliza as Imagens para captar a realidade profunda das coisas, é exatamente porque essa realidade se manifesta de maneira contraditória, e consequentemente não poderia ser expressada por conceitos (ELIADE, 1991, p.11). O oratório comumente encontrado nas residências dos devotos não são suficientes para compor o espaço do sagrado, e por isso uma mesa é improvisada em um canto da casa para dar suporte aos objetos que comporão uma estrutura artisticamente construída. Com relação ao canto da casa nos aportamos em Bachelard, quando este estuda os espaços da intimidade com base numa fenomenologia do habitar, eis o ponto de partida de suas reflexões: todo canto de uma casa, todo ângulo de um quarto, todo espaço reduzido onde gostamos de encolher-nos, de recolher em nós mesmos, é, para a imaginação, uma solidão, ou seja, o germe de um quarto, o germe de uma casa (BACHELARD, 1993, p. 145). Os tecidos coloridos cobrem a mesa e as paredes e juntamente com as fitas e flores dão cores variadas à decoração. Flores, folhas, vasos com plantas demonstram a presença da vida e juntamente com a luz das velas afastam a solidão de um espaço de refúgio construído para intimidade e reclusão. O altar é o refúgio seguro das bandeiras, construído para abrigálas ao longo da noite, responsável pela pausa no giro. Este espaço da imobilidade é também o lugar de encontro com nós mesmo, da mediação entre o homem e a divindade, ou ainda, “o canto é casa do ser” (BACHELARD, 1993, p. 147). Este canto imóvel e seguro do altar é invadido pelos cânticos entoados pelos foliões, que numa sequência rimadas cantam o sagrado ali materializado. O ritual no altar tem por função precípua realizar a mediação entre este e o outro mundo, entre o mundo dos vivo e dos mortos, dos homens e dos santos. As fotos de familiares que já morreram dividem espaço com os santos no altar, assim como, fotografias dos moradores da casa em momentos de festas e lazer costumam ocupar lugar próximo às divindades (Figura 2). 441 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Figura 2: Altar da Folia Tradicional na Fazenda do Cacada. Fotograifa: Luz, 2014. A disposição e a natureza dos objetos e das imagens presentes obedecem a uma hierarquia própria de quem o organizou, acreditamos que as ações de elaboração do altar estejam carregadas de intencionalidades e que as imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser. Por isso, seu estudo nos permite melhor conhecer o homem, ‘o homem simplesmente’” (ELIADE, 1991, p.8 e 9). Os deslocamentos realizados pelas folias traçam um mapa das relações sociais estabelecidas entre foliões e devotos indicando quais as casas e os locais que serão visitados e a qualidade das relações estabelecidas. Ao percorrer um caminho ritual as folias congregam pessoas entorno de uma devoção e com isso expressam a religiosidade dos que participam. 442 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Os altares cumprem dentro das manifestações ritualísticas das folias uma dupla e contraditória missão, qual seja: a de criar um espaço de intimidade e individualidade em que o devoto, ladeado pelas bandeiras com toda sua sacralidade, pode vivenciar o sagrado e por outro lado é o responsável pela constituição de uma ampla rede de sociabilidade que atrai multidões de partícipes que são autorizados pelos rituais a adentrar o nicho da intimidade que é o lar do devoto que sede sua casa para o pouso das bandeiras. Considerações Finais As bandeiras das folias terminam suas viagens no altar onde se encontra a Coroa do Divino, um dos símbolos mais significativos da Festa do Espírito Santo de Pirenópolis, datada da segunda década do século XIX, segundo Jayme (1971). É toda em prata com um Divino em ouro maciço no alto, seu maior valor está na devoção dos fieis que lhe atribui inúmeras graças. Fica entronizada na casa do Imperador durante o ano, é deste altar que saem e chegam os rituais que dão estrutura à Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis. As novas formas de ver o mundo inauguradas pela pós-modernidade – com todos os sentidos abarcados pelo termo - ampliam o desafio de entender uma atividade tão complexa quanto as festas populares, especificamente as Folias do Divino, Trata-se, portanto, de assumir teoricamente as folias como “fatos sociais totais” (MAUSS, 2003) na medida em que a compreende como um fenômeno social interligado a outras dimensões da vida humana, como o modo de ser no mundo das populações que coabitam uma localidade. A inegável complexidade do tema abordado não permite uma síntese, mas amplia a rede de discussão que permitirá uma proximidade de entendimento da temática cujo desafio permeia o campo da subjetividade das ideias, dos valores, dos símbolos que constituem as formas de vida no lugar. Referências bibliográficas BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993. 443 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro. Ed. Tecnoprint S.A., 1972, 930p. COELHO, Tito Oliveira. Interpretando interação espacial: fixos e fluxos, peregrinação, migração e ritual na folia de reis. In: Textos escolhidos de cultura e arte populares. Rio de Janeiro, v.8, n.1, p. 179-192, mai. 2011. DEUS, Maria Socorro de. SILVA, Mônica Martins da. Histórias das festas e religiosidades em Goiás. Goiânia: Editora Alternativa, 2003. ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. Tradução: Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes. 1991. GANDARA, Gercinair Silvério. Rio Parnaíba: velho monge entre a história e a imagem. In: Fragmentos de Cultura. Vol. 15, nº 12, p. 1779-1796, dez. 2005. JAYME, Jarbas. 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Disponível em http://www.lasics.uminho.pt/ojs/index.php/geoworkingp/article/view – acesso em 23/set/2014. 444 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul FRONTEIRAS DO COMÉRCIO E A EXPANSÃO DA RURALIDADE COLONIAL NA AMÉRICA PORTUGUESA (primeira metade do XVIII) Tiago Kramer de Oliveira286 Este pequeno texto aborda a expansão da ruralidade colonial na primeira metade do século XVIII, nos territórios da capitania de São Paulo. Nosso objetivo é problematizar a relação entre a formação de ambientes rurais e as práticas mercantis. Defendemos que a presente análise fortalece nossa interpretação de que a espacialização de ambientes rurais ocorrida no período não é consequência imediata dos descobertos auríferos. Também não corroboramos com o argumento de que o investimento no meio rural significaria a adoção de um projeto aristocrático de reprodução social em detrimento do setor mercantil. Parece-nos que a expansão da ruralidade corresponde às mudanças nas fronteiras do capital mercantil na primeira metade do século XVIII. Mudanças que impactam na intensificação da exploração escravista nos setores da economia não diretamente ligados à produção para o mercado atlântico. Tratar da ampliação das fronteiras do capital mercantil na América significa, entre vários outros aspectos, tratar dos caminhos do comércio. O único caminho regular que ligava as minas de Cuiabá com praças mercantis do litoral atlântico - no período entre aconsolidação das primeiras conquistase 1737 - era a rota das monções. Nestes quase vinte anos entre as primeiras explorações e a abertura do caminho de terra entre Cuiabá e Goiás, os homens de negócio que controlavam – ou que participavam do controle – dessa rota, tiveram o privilégio de abastecer um mercado que, embora pequeno, tinha um poder de compra que permitia elevadíssimos preços. Rotas terrestres certamente barateariam os custos e, como aponta Nauk M. de Jesus, existiram propostas de abertura de caminhos de terra. A insistência de Rodrigo César de Meneses em não permitir que se abrissem novas rotas para as minas de Cuiabá encontrava justificativa não apenas na defesa dos interesses do rei, mas em interesses do próprio Rodrigo César e de sua “sociedade mercantil que conectava o Brasil a Angola, por meio do tráfico de 286 Professor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. 445 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul escravos e extravio de metais preciosos”. O governador, impedindo “a utilização de novas rotas, procurava resguardar os interesses econômicos que possuía nas Minas do Cuiabá”287. E os interesses de Rodrigo César não estavam circunscritos apenas na manutenção da rota entre São Paulo – mais precisamente Araritaguaba, na vila de Itu - e Cuiabá, mas também na rota de São Paulo ao litoral do Rio de Janeiro. Caminho que não apenas abastecia a rota das monções, como também os caminhos que levavam às minas de Goiás e às Minas Gerais. Poderíamos citar vários outros exemplos, mas os elementos que temos, relacionados às pesquisas tanto de Maria A. M. Borrego quanto às de Nauk Maria de Jesus, já são suficientes para percebermos que os agentes mercantis que atuavam no comércio de Cuiabá compunham redes de comércio coloniais e articulavam-se a redes que envolviam interesses das elites da nobreza reinol. O que nos interessa aqui é perceber como estes “interesses” articulam-se à espacialização da economia colonial, construindo outro tipo de “rede”, costurada pela relação que as múltiplas espacializações tinham entre si. Ao longo da rota das monções espacializavam-se ambientes rurais para abastecer os “viandantes”. No extremo leste da rota das monções, em Araritaguaba – no termo da vila de Itu – várias sesmarias eram concedidas “para a facilidade e conveniência de acharem mantimentos (...) os que vem das Minas do Cuiabá”288. Silvana Godoy aponta que em 1728, mesmo ano em que houve várias concessões de sesmarias nas minas do Cuiabá, foram concedidas sesmarias em Araritaguaba “com o objetivo de atender as rotas que iam para as minas”289. A produção de mantimentos envolvia também os pequenos produtores livres pobres290. O percurso de Cuiabá a Araritaguaba era só uma parte do caminho feito pelas mercadorias. Os membros das redes mercantis paulistas iam regularmente ao Rio de Janeiro, ou faziam encomendas ao mercado fluminense291. Era uma elite, portanto, que ocupava um 287 JESUS, Nauk Maria. Na trama dos conflitos: a administração na fronteira oeste da América portuguesa (1719-1778). Tese de Doutorado. Niterói: UFF, 2006 p. 161-162. 288 Requerimento de Sesmarias de Bernardo de Quadros e Sebastião (...), 18-10-1724. Requerimentos de sesmarias. APESP, doc 80-01-47. 289 GODOY, Silvana Alves de. Itu e Araritaguaba na rota das monções (1718-1828). Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 2002, p. 134. 290 GODOY, Silvana Alves de. Op. cit., p. 144. 291 BORREGO, Maria A. M. A Teia mercantil: (...). p. 77. 446 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul lugar intermediário nas relações de comércio no âmbito do império português. Acima estavam os homens de negócio do Rio de Janeiro e de Lisboa. Abaixo um universo de “vendeiros”, varejistas de diversos segmentos sociais292. A abertura de um caminho que pudesse ligar por terra São Paulo ao Rio de Janeiro parecia urgente aos olhos de Rodrigo César de Meneses, e por ele deveria passar o ouro de Cuiabá. Em documento de 1725, o governador escreve a D. João V, Por entender ser conveniente a segurança da Real Fazenda de vossa majestade, principalmente para a remessa dos quintos, que vão para o Rio de Janeiro e por evitar o risco que se lhe pode seguir no transporte por mar do porto de Santos àquela cidade, ajustei com alguns homens principais e poderosos desta capitania a que fossem fazer a abertura do dito caminho ao qual já deram princípio para ver se podiam vencer as muitas dificuldades que tem por respeito de matos grossos, e algumas serras, e porque desse serviço se segue utilidade a Real Fazenda sem ela entrar com despesa alguma convindo também muito a todos os povos desta capitania, me parece aprovará vossa majestade, a seu serviço que tomei sobre este particular (...)”.293 (grifos nossos) Sabemos dos interesses particulares que moviam o governador a se empenhar na abertura do caminho. Ele tinha, inclusive, ligações bastante suspeitas com o provedor do registro de Parati294. Mas as intenções de Rodrigo César são apenas uma pequena parte que emerge de um conteúdo submerso ao documento. Em um requerimento de sesmarias de 1725, 292 Sobre a hierarquia do comércio, ver os trabalhos de Júnia Furtado e de Cláudia M. das G. Chaves. FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2006. CHAVES, Cláudia M. das G. Perfeitos Negociantes: mercadores das Minas Gerais Setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999. 293 CARTA do governador e capitão general da capitania de São Paulo, Rodrigo César de Meneses, ao rei D. João V. 23-04-1725. AHU_ACL_CU_023, Cx. 1, doc. 51. 294 JESUS, Nauk Maria. Na trama dos conflitos: (...). Op. cit., p. 110. JESUS, Nauk Maria. “As versões de ouro em chumbo: a elite imperial e o descaminho de ouro na fronteira oeste da América Portuguesa (1722-1728)”. In FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima. Na trama das redes: políticas e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 536-537; 543. 447 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul podemos nos aproximar das práticas dos “homens principais e poderosos” citados pelo governador. Dizem o capitão mor Domingos Antunes Fialho, o sargento mor Domingos Rodrigues de Carvalho, Antônio da Silva, Antônio Ribeiro do (...) e os mais assinados ao pé desta, moradores que são na vila de Santo Antônio de Guaratinguetá desta capitania da cidade de São Paulo que eles suplicantes os foram por mandado e ordem de v. excelência, como leais verdadeiros vassalos de sua majestade que Deus guarde, a custa de suas vidas e fazendas e risco de suas vidas e escravos, a abrir o caminho que vai da dita vila até Santa Cruz (...) a picada (...) se acha aberta (...) para o ano vindouro de mil setecentos de vinte e seis fazerem o caminho e por mesmo capaz de por ele se caminhar gente de pé e cavalo, serviço este muito útil e necessário para a segurança dos reais quintos das minas do Cuiabá, na condução deles por terra, e também pelo dito caminho entrar todo o comércio, tanto da Capitania do Rio de Janeiro como desta de São Pauloe por prêmio de tão grande serviço que os suplicantes (...) sem remuneração dele, só rogam a V. Excelência (...) as terras que se acham na Serra do Mar para nelas fazerem suas roças, plantando (...) o mantimento necessário para os viandantes e (...) pagar os dízimos”295. (grifos nossos) O caminho de fato foi aberto, consolidando a rota São Paulo – Mogi – Jacareí Taubaté – Pindamonhangaba - Guaratinguetá – Parati - Rio de Janeiro. 295 Requerimento de Sesmarias de Domingos Antunes Fialho Domingos, Rodrigues de Carvalho, Antônio da Silva, Antônio Ribeiro e outros. 02-08-1725. Requerimentos de sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP, doc. 80-02-19. 448 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Jundiaí Figura 1. Detalhe: Territórios entre as capitanias de S. Paulo e Mato Grosso, 1754, apud GARCIA, João Carlos (coord.) A mais dilatada vista do mundo: inventário da coleção cartográfica da Casa da Ìnsua. Portugal, 2000, p. 294. (destacamos o caminho de São Paulo ao Rio de Janeiro, inserimos a vila de Jundiaí, em localização aproximada)296. Observando o mapa, notamos que na cidade de São Paulo bifurcam-se dois caminhos que levam às regiões mineiras da capitania. Um, rumo a oeste, levava até o povoado de Araritaguaba e a partir daí às minas de Cuiabá, e outro, ao norte, passando por Jundiaí e pelo povoado de Mogi (no topo esquerdo do recorte), levava às minas de Goiás. Para o litoral, temos dois caminhos, um que leva ao litoral paulista e outro para o Rio de Janeiro. Destacamos em vermelho uma parte da rota a qual iremos nos ocupar de forma mais detida. Houve, entre 1720 e 1740, uma quantidade considerável de requerimentos de sesmarias para terras localizadas nos termos das vilas que ficavam no caminho entre Taubaté 296 A cópia digital do mapa, foi retirada do trabalho de João Antonio Botelho Lucídio. LUCIDIO, João Antonio. B. A Vila Bela e a ocupação portuguesa do Guaporé no século XVIII. Projeto Fronteira Ocidental Arqueologia e História – Vila Bela da Santíssima Trindade / MT. Relatório final. Fase 2 , Cuiabá: Governo de Mato Grosso/Secretaria de Estado de Cultura/ Coordenadoria de Preservação do Patrimônio Cultural, Histórico, Artístico e Arqueológico OdirBurity, 2004, p. 43. 449 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul e Rio de Janeiro. Entre eles, claro, vários requerimentos dos “homens principais” citados por Rodrigo César, todos moradores da vila de Guaratinguetá. Para John Manoel Monteiro, o início do século XVIII, marcaria uma reversão na agricultura paulista e “a abertura das minas repercutiu na organização agrária do planalto em pelo menos dois sentidos importantes”: Primeiro, devido ao custo proibitivo do transporte e a crescente escassez de mão-de-obra indígena, os principais produtores que permaneceram no planalto reorientaram sua produção comercial, transformando searas em pastos e montando alambiques. Segundo, a migração intensa de boa parte da mão-de-obra indígena para as zonas auríferas e a concentração do restante nas unidades maiores confinaram a vasta maioria dos colonos rurais a uma existência marginal e pauperizada. Muitos homens abandonaram seus modestos sítios em prol da fortuna, alguns poucos tornando-se ricos nas distantes minas das Gerais, Mato Grosso e Goiás. Mas, para os que ficaram, a idade do ouro significou o aprofundamento da pobreza rural, processo já em marcha desde a segunda metade do século XVII com o vertiginoso declínio da escravidão indígena297. Analisando os requerimentos de sesmarias, parece que a circulação de ouro das minas e a abertura de rotas de abastecimento teriam efeito diverso na agricultura paulista do que o exposto por Monteiro. Vejamos com mais detalhes as características dos requerimentos de sesmarias para a região entre Taubaté e Parati298. 297 MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 225-226. 298 Antes de tudo é preciso que tenhamos certo cuidado com a utilização dos requerimentos – ou mesmo as cartas de sesmarias - como uma forma de caracterização das atividades rurais. Estes documentos constroem uma narrativa que se apropria de enunciados que legitimam a posse da terra. Para a primeira metade do século XVIII, não havia a exigência da enumeração de informações padronizadas, como se possui ou não escravos e em que quantidade. Por exemplo, quase a totalidade dos requerimentos, referentes às terras que estão nos caminhos entre Guaratinguetá e Rio de Janeiro, informam que a atividade desenvolvida é/ou será “plantar mantimentos” para abastecer os “viandantes”. Os requerentes sabiam que era este o interesse da Coroa e do governador da capitania. 450 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Para o período entre 1721 e 1740 localizamos 46 requerimentos299. Destes, 50% declaram que as terras estão localizadas ao longo do caminho entre Taubaté e Rio de Janeiro. Todos os requerentes informam o local de moradia; apenas dois não são moradores da região entre Taubaté e Parati, e 82% são residentes no termo da vila onde as terras estão localizadas; 32% não informam claramente qual atividade produtiva desenvolvem ou irão desenvolver. Entre os que informam, a agricultura está presente em todos os requerimentos e, apenas em 10% deles, associado à pecuária. Sobre a extensão das terras, 78,2% estão acima da medida de 1,0 léguas em quadra, sendo que 10,8% têm as extensões maiores, todas de 1,0 por 3,0 léguas. 66,6% ainda não exploravam as terras que requeriam enquanto 34,4% já desenvolviam atividades produtivas nas terras.Quanto ao que podemos chamar de “forma de legitimação da posse”, 6,5% afirmam ter adquirido as terras por compra, 10,8% alegam estar pedindo terras devolutas contíguas às que já possuem, 13% pedem terras ainda não exploradas alegando serviços prestados300, e 67,3% alegam apenas tratarem-se de terras devolutas nunca antes possuídas301. Temos, no período em questão, um grupo de pessoas em condições de explorar terras em extensões que só podem ser justificadas pela utilização do trabalho escravo. Os requerentes eram, portanto, em sua grande maioria, senhores de escravos moradores das vilas próximas às terras. Não era praxe, nas cartas de sesmarias do período, discriminar informações sobre a posse de escravos. Mesmo assim 15,2% dos requerentes afirmavam possuir escravos, e 11,6% diziam ter “muitos” ou “bastantes escravos”302. O que não quer dizer que não plantavam “mantimentos”, mas poderiam manter outras atividades, como os engenhos, que talvez não fosse conveniente mencionar nos requerimentos. 299 Requerimentos de Sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP. 300 Alegam terem aberto caminhos, lutado contra os índios a serviço do rei, entre outros. 301 Apenas um dos requerimentos, faz referência a uma terra “abandonada”. 302 É o caso de um morador de Pindamonhangaba que, ainda em 1723, diz ser “possuidor de escravos do gentio da guiné e da terra, com toda a fábrica necessária”. Requerimento de sesmarias de Antonio Cabral da Silva, 3103-1723. Requerimentos de Sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP, doc. 80-01-15. E também de Manoel de Siqueira Cardozo morador de Guaratinguetá que em 1739 pede uma extensão de terras “de uma légua por duas léguas” e diz possuir escravos “bastantes para levantar engenho”. Requerimento de sesmarias de Antonio Cabral da Silva, 29-07-1739. Requerimentos de Sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP, doc. 80-04-01. Um morador do “distrito de Minas Gerais”, requerente deterras em 1735 declara que “se acha com bastantes família e escravos em que possa plantar seus mantimentos e que tem notícia que no distrito de Guaratinguetá entre a serra de Mantiqueira e o caminho velho estão muitas terras devolutas”. Requerimento de sesmarias de Domingos Rodrigues Correa, 30-10-1735. Requerimentos de Sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP, doc. 80-02-48. 451 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Para as terras no termo da vila de Jundiaí, no caminho para as minas de Goiás, o padrão não é diverso do que encontramos para os caminhos de Guaratinguetá para o Rio de Janeiro. Das 20 sesmarias requeridas em Jundiaí entre 1728 e 1740, 65% eram nos caminhos, 75% já ocupavam a terra. Dos 17 requerimentos que especificaram o local de moradia do requerente, 76,4% eram moradores do termo da vila de Jundiaí303. Tendo em vista o contexto apresentado por John Manoel Monteiro, não nos parece absurdo propor que, ao contrário de provocar a desestruturação da agricultura planaltina, o fluxo de pessoas e de mercadorias entre São Paulo e o Rio de Janeiro, ocorrido a partir da exploração aurífera, foi responsável pela dinamização da exploração de atividades rurais, até então em crise devido à falta de mão-de-obra escrava indígena. Mas, se a situação anterior era de crise, como estes homens reuniriam condições para comprar escravos e abrir caminhos às próprias custas? A pesquisa de Maurício Martins Alves, sobre a economia de Taubaté entre 1680 e 1729, revela aspectos importantes de uma significativa mudança em curso nas características das práticas econômicas e da estrutura fundiária. Em uma tabela, o autor discrimina a “composição da riqueza por setor econômico” a partir dos inventários. Comparando os dados de 1680 com os de 1720, temos variáveis que se destacam. Os escravos correspondiam a 74,34% da renda total inventariada em 1680, já em 1720 correspondiam a 48,78%. As dívidas ativas e passivas somadas passaram no mesmo período de 17,73% para 35,49%. O autor expõe dados sobre a “participação dos gentios da guiné, carijós e mestiços” no número total de escravos inventariados. Em 1680 o número de escravos africanos passa de 0,92% para 45,85% do total do plantel, o de escravos índios de 97,91% para 41,53% e o de mestiços de 1,17% para 12,62%. Outro aspecto relevante é a questão da relação entre a dívida passiva e ativa e as formas de uso da liquidez e do crédito. Entre 1680 e 1720, em relação à renda total dos inventários, as dívidas ativas passam de 6,76% para 19,51% e as passivas de 10,97% para 303 Requerimentos de Sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP. 452 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul 15,98%304. A superação das dívidas ativas em relação às passivas ocorre na década de 1700305. Alves explora as transações de bens rurais que envolvem aqueles que detêm a maior parte da dívida ativa. Segundo o autor, entre “1690 e 1700 estes grandes prestamistas mais vendem do que compram bens rurais. Nas décadas de 1710 e 1720, porém, essa situação se inverte”. Segundo Alves “essa maior procura por bens rurais ocorre justamente nas décadas de consolidação da produção de açúcar”306. O autor inclui o investimento em escravos africanos como a principal marca da conversão de capitais da atividade mercantil para a produção rural. Para explicá-la, o autor segue a percepção de Fragoso e Florentino, justificando-a por fatores “extra-econômicos”. Para Alves, “a elite permite-se até perder dinheiro, nunca o poder sobre as pessoas”307. Havia na década de 1720, na região de Taubaté, uma elite “mercantilizada”, impulsionada pela recuperação dos preços do açúcar, pelas explorações auríferas, e articulada ao mercado transatlântico de escravos. “Homens poderosos e principais” com condições de converter e de conceder empréstimos, e com “cabedais” para abrir caminhos e investir em terras e escravos negros e índios. A exploração do ouro das minas do Cuiabá e do Mato Grosso (e também o de Goiás e Minas Gerais) e seus efeitos sobre a abertura de novas áreas de exploração de atividades rurais, não pode ser pensada sem sua articulação ao movimento precedente e em curso de acumulação mercantil e transformações na estrutura fundiária, tanto nas formas de exploração quanto em sua base social. Os grupos mercantis da cidade de São Paulo também pareciam dispostos em investir na expansão das atividades rurais. Mas, como vimos, a presença de moradores da cidade de São Paulo era praticamente inexistente nos requerimentosdas terras que ficavam no mais importante caminho do comércio entre Rio de Janeiro e São Paulo e também nos caminhos 304 ALVES, Maurício M. Caminhos da pobreza: a manutenção da diferença em Taubaté (1680-1729). Taubaté/SP: Prefeitura Municipal de Taubaté, 1998, p. 39. 305 ALVES, Maurício M. Op. cit., p. 83. 306 ALVES, Maurício M. Op. cit., p. 87. 307 ALVES, Maurício M. Op. cit., p. 93. O livro de Alves é o resultado de uma dissertação orientada por Manolo Florentino. 453 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul para as minas de Goiás. Mas outra amostra de requerimentos, agora para a região de Curitiba – e nos caminhos que levavam a ela - denota características bem diversas. De um total de 60 requerimentos de sesmarias para os “campos gerais de Curitiba” e em seus caminhos, entre 1720 e 1740, apenas 21,6% eram de requerentes que informavam viver em regiões próximas das terras requeridas, 41,6% não informaram o local de moradia. Entre os que informaram 62,8% diziam ser moradores de São Paulo (20%), Santos (14,2%) e Paranaguá (14,2%). Quanto à atividade produtiva, apenas 1,6% (um único requerimento) requeria terras para agricultura, 8,3% não informaram, 15% requeriam terras tanto para a agricultura quanto para a pecuária e 75% requeriam as terras apenas para a pecuária. Quanto à extensão, 16,6% tinham entre 0,5 léguas em quadra e 1,0 léguas em quadra, 71,6% tinham entre 1,0 léguas em quadra e 1,0 por 3,0 léguas e 8,3% tinham terras em extensões maiores que 1,0 por 3,0 léguas. Em relação à forma de obtenção, 3,3% por compra, 11,6% pediam terras contíguas às que já possuíam, 5% requeriam heranças, 8,3% alegavam pedir “terras devolutas” em função de serviços prestados e 73,3% afirmavam apenas tratarem-se de terras nunca antes exploradas por outrem. 73,3% também é o percentual de requerentes que pediam terras onde já desenvolviam atividades agropastoris308. Pelo perfil das terras, podemos afirmar que havia um significativo investimento na criação de gado nos campos de Curitiba na primeira metade do século XVIII. Ao contrário da região de Taubaté ao Rio de Janeiro, a grande maioria dos requerentes já haviam conquistado as terras que pediam por sesmarias e iniciado a criação de extensos plantéis de “gado vacum” e também, embora em menor medida, a criação de“gado cavalar”309. 308 Requerimentos de Sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP. Como o próprio Luiz Rodrigues Villares que, então morador de São Paulo, afirmava ter, desde 1720, ocupado terras nos campos de Curitiba e “povoado de escravos com princípio de 500 cabeças de gado vacuns e 50 de cavalar”. Requerimento de sesmarias de Luiz Rodrigues Villares e Antonio Lopes Thomar, 12-02-1725. Requerimentos de Sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP, doc. 80-01-70. Outro morador de São Paulo afirma que no caminho que vai para Curitiba ocupava terras, desde 1721, com “currais de gado vacum e cavalgaduras”. Requerimento de sesmarias de Francisco Xavier de Sales,). (..)-10-1732. Requerimentos de Sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP, doc. 80-06-01. Da vila de Jundiaí, um requerente havia comprado terras em Curitiba onde criava “mil e quatrocentas cabeças de vacum e cento e sessenta de cavalar”. Requerimento de sesmarias de Manoel Gonçalves da Costa, 21-05-1735. Requerimentos de Sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP, doc 80-03-46. Um morador da vila de Curitiba, em 1735, declarava possuir uma “fazenda de gado vacum e cavalar”, com trezentas cabeças de gado e oitenta éguas. Requerimento de sesmarias de Manoel Rodrigues da Mota (tenente coronel), 01-12-1735. Requerimentos de Sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP, doc. 80-02-50. 309 454 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Não há dúvida que parte dos lucros oriundos de atividades mercantis desenvolvidas em localidades como a cidade de São Paulo e vila Santos foi investida na criação e no comércio de gado. Gado que percorria muitos caminhos, entre eles os caminhos para Minas Gerais e Rio de Janeiro, passando por importantes entrepostos, como por exemplo, Guaratinguetá310. A imbricação entre comércio e atividades rurais na primeira metade do século XVIII, parece ser fundamental tanto para compreender as práticas mercantis quanto para explorarmos as características da espacialização de ambientes rurais diversos e interligados por este mesmo comércio. A questão do investimento de lucros das atividades mercantis em atividades agrícolas e pastoris deve ser, contudo, analisada com mais cuidado. Voltando ao estudo de Alves sobre Taubaté, percebemos que as mudanças na estrutura fundiária da região ocorreram em um período de decréscimo da população. Entre 1680 e 1710, a população livre passa de 208 para 173. Em 1720 a população livre voltaria a ser a mesma que em 1680, mas o número de escravos inventariados – entre negros e índios - passa de 1.196 em 1680 para 602 em 1710. Com um decréscimo profundo da presença indígena tanto em termos relativos quanto absolutos. No entanto, no mesmo período, o monte bruto dos inventários passou de 35:552$347 para 142:742$904311. O valor das riquezas, portanto, mais do que triplicou. No período entre 1700 e 1720 - no qual ocorreria essa mudança de um setor rentável para outro menos rentável - as dívidas ativas subiram de 8:905$148 para 21:940$415312. Se as dívidas ativas são maiores, não pode existir abandono do setor mercantil, por mais que as evidências documentais mostrem a compra de terras e escravos por parte dos maiores prestamistas. Em relação aos comerciantes de São Paulo, Borrego aponta que o grupo dos comerciantes – entre eles os mais abastados - não abandonou as atividades mercantis em favor de meios supostamente mais aristocráticos de obter renda. Contudo, pelo número de escravos em posse da elite mercantil paulista, podemos inferir que estes também investiam em 310 BORREGO, Maria A. M. A Teia mercantil: (...). p. 89. Em uma amostra de 32 inventários em 1680 e de 38 em 1720. ALVES, Maurício M. Op. cit., p. 39. 312 ALVES, Maurício M. Op. cit., p. 83. 311 455 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul atividades rurais:56,7% dos comerciantes estudados por Borrego possuíam entre 10 a 29 escravos e 13,2% tinham entre 30 e 49 escravos313. Não temos espaço para discutir as implicações dessa análise para um quadro geral, mas defendemos que o estudo dos requerimentos de sesmarias revelaa imbricação entre comércio e expansão das atividades rurais e contribui para expor um dos aspectos essenciais das mudanças nas fronteiras do comércio entre as últimas décadas do século XVII e primeira metade do século XVIII: a relação entre as recém formadas elites mercantis locais e a interiorização da exploração mercantil e escravista. Referências Bibliográficas ALVES, Maurício M. Caminhos da pobreza: a manutenção da diferença em Taubaté (16801729). Taubaté/SP: Prefeitura Municipal de Taubaté, 1998, p. 39. CHAVES, Cláudia M. das G. Perfeitos Negociantes: mercadores das Minas Gerais Setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999. FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2006. GODOY, Silvana Alves de. Itu e Araritaguaba na rota das monções (1718-1828). Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 2002. JESUS, Nauk Maria. “As versões de ouro em chumbo: a elite imperial e o descaminho de ouro na fronteira oeste da América Portuguesa (1722-1728)”. In FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima. Na trama das redes: políticas e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. JESUS, Nauk Maria. Na trama dos conflitos: a administração na fronteira oeste da América portuguesa (1719-1778). Tese de Doutorado. Niterói: UFF, 2006. LUCIDIO, João Antonio. B. A Vila Bela e a ocupação portuguesa do Guaporé no século XVIII. Projeto Fronteira Ocidental Arqueologia e História – Vila Bela da Santíssima Trindade / MT. Relatório final. Fase 2 , Cuiabá: Governo de Mato Grosso/Secretaria de Estado de 313 BORREGO, Maria A. M. A Teia mercantil: (...) p. 229. 456 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Cultura/ Coordenadoria de Preservação do Patrimônio Cultural, Histórico, Artístico e Arqueológico OdirBurity, 2004, p. 43. MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 457 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul TERNO DE REIS HUMILDES EM ALEGRIA: DISCUSSÕES SOBRE RELIGIOSIDADE, CULTURA POPULAR E TRADIÇÕES AFRO-BAIANAS Fabiane da Silva Andrade O presente artigo apresenta discussões acerca das festividades aos “santos Reis” desenvolvidas pelo Humildes em Alegria, grupo de Terno de Reis que surgiu e se manteve na rua da Alegria, localizada no bairro do Andaiá, na cidade de Santo Antonio de Jesus314. Para tanto, a memória dos integrantes do referido grupo e dos moradores locais, foi a pedra de toque para podermos conhecer e analisar esse festejo, característico das comemorações afrobaianas. O surgimento do referido grupo, segundo narrativas dos moradores locais, tem origens míticas, sendo fruto de uma revelação tida em sonho por D. Maria Bernardina de Jesus. Segundo os narradores, Maria Bernardina de Jesus, que doravante chamaremos de D. Bernarda, teria sonhado com a representação bíblica da visita dos três Reis Magos ao Messias. Desde então se sentira na obrigação de efetuar os festejos de Reis, o que foi feito a partir da elaboração de um Terno de Reis, como forma de atender ao pedido que recebera em sonho. No entanto, o interesse popular pelas festividades de Reis e a permanência das revelações levaram-na a manter o festejo que se estendeu até o ano de 1993, ano da morte de D. Bernarda. No Brasil, as festividades aos Reis Magos passaram por diversas mudanças, adquirindo características regionais, locais e por vezes, étnicas. Vainfas e Souza ao abordarem as festas religiosas mantidas na Bahia, a partir das influências jesuíticas, chamam atenção para o fato de que nesse espaço as festividades católicas não se desenvolveram apenas a partir dos ensinamentos jesuíticos, uma vez que “os santos da Bahia seriam múltiplos, muito mais numerosos do que os mil santos da Igreja e mais do que podiam imaginar os nossos primeiros 314 A cidade de Santo Antonio de Jesus situa-se no recôncavo baiano, tendo uma área territorial de 259 KM2 e população de 84.256 habitantes, segundo o senso desenvolvido pelo IBGE em 2007. 458 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul jesuítas“.315 Pois na Bahia, assim como em quase todo o Brasil, as manifestações católicas se mestiçaram, foram relacionadas com elementos culturais tipicamente indígenas e afrobrasileiros. Dessa forma, as festividades católicas, desde o Período Colonial já apresentavamse hibridizadas. O Humildes em Alegria, por ser um Terno de Reis, não trazia em si a tradição de formar músicos ou de fazer os giros, como acontece nas Folias, mas havia o hábito de visitar casas pré determinadas e também de levar à frente a bandeira do grupo, por vezes chamada de estandarte. Nos Ternos prioriza-se os desfiles e a indumentária. As comemorações aos Santos Reis se estabeleceram entre as mais diversas camadas sociais, sendo mais recorrente a presença de tais festejos entre a população pobre e interiorana que celebra com alegria e devoção a visita dos Magos ao Messias316. Araújo ao fazer um panorama das festividades populares da Bahia, descreveu em breves linhas o Terno de Reis Humildes em Alegria: No final do mês de janeiro sai às ruas de Santo Antonio de Jesus o Terno de Reis Humildes em Alegria, concebido há aproximadamente vinte anos por Maria Bernardina de Jesus, de 54 anos. Durante as suas apresentações, o quarteirão de sua sede, no bairro de Andaiá, transforma-se em local de festas e ponto de atração para o povo da cidade.317 As informações apontadas por Araújo nos permitem a princípio situar o ano de início das festividades que, teriam se dado em 1966, quando D. Bernarda, ainda muito jovem, com cerca de trinta e seis anos de idade, organizou o referido Terno de Reis. 315 VAINFAS, Ronaldo; SOUZA, Juliana Beatriz de. Brasil de todos os santos. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 9. 316 Maiores informações ver: PESSOA, Jadir de Morais; FÉLIX Madeleine. As Viagens dos Reis Magos. Goiânia: ed. Da UCG, 2007. 317 ARAÚJO, Nelson de. Pequenos Mundos: Um panorama da cultura popular da Bahia. Tomo I – O Recôncavo. Salvador: Universidade Federal da Bahia (EMAC). Fundação Casa de Jorge Amado, 1986. p. 198. 459 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Araújo, além de descrever as festividades do grupo, entrevistou D. Bernarda a fim de compreender o impulso inicial que a levou a organizar o Humildes em Alegria: Eu estava muito jovem. Tive um sonho que me disse que eu tinha de fazer terno. Uma voz me disse: “Faça um terno de Reis”. “Meu Deus, como é que eu vou fazer um terno de Reis, se é tão difícil?” A voz respondeu: “Faça! Experimente! Tenha coragem, enfrente a realidade!” Foram três dias de sonho. E eu fiz o terno.318 A narrativa acima tem uma importância muito singular por ser a única que nos apresenta a própria D. Bernarda falando do Terno de Reis. Ao se referir ao início do grupo, destaca o sonho que tivera, ressaltando a permanência desse durante três dias. O que poderia ser associado ao número dos primeiros visitantes do Messias, pois de acordo às narrativas bíblicas319, foram três os Magos que se dirigiram para o local de nascimento de Cristo. As apresentações do grupo surgiram, portanto a partir de uma revelação mítica, tida em sonho, o que caracteriza a sacralidade da festa, que passa a ser notada pelos moradores da localidade como uma festa da “Igreja”, ou seja, uma manifestação religiosa. Cabe destacar que é recorrente nas festividades do catolicismo popular a relação entre o desenvolvimento de um festejo devocional com sonhos ou revelações. Muitas festividades em homenagem aos Santos Reis têm início por motivos religiosos como promessas devocionais que são direcionadas e esses “santos”. Em outros casos os motivos de serem iniciados grupos de Terno de Reis, partem, como a exemplo da descrição acima, de revelações. As revelações de D. Bernarda passam a ser notadas como elementos sacralizados que, revelam desígnios a serem seguidos pelo grupo. Eliade320 ao analisar questões referentes às manifestações do sagrado entende que as relações do sagrado encontram-se intermediadas pela relação com os elementos simbólicos que expressam a sacralidade, mas também 318 ARAÚJO, 1986. Op cit., p. 199. Evangelho de São Mateus. Cap I, versículo de 9 a 11. In Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. Paulus, 1991. 320 ELIADE, Micea. Tratado de História das Religiões. [tradução Fernando Tomaz e Natália Nunes]. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 319 460 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul encontram-se vinculadas às vivências dos indivíduos. Determinados elementos passam a ser notados como sagrado ou a representarem a sacralidade em situações históricas específicas, o que aponta a inter-relação entre os processos sociais e a manutenção ou criação de crenças e de ritos por comunidades. Na entrevista com D. Bernarda, transcrita por Araújo percebemos ainda que, não havia a intencionalidade dela desenvolver as festividades aos Reis Magos. Transparece a resistência em efetuar o festejo, possivelmente por perceber as dificuldades que se imporiam para a efetivação deste. Inferimos, no entanto que a insistência da voz e dos recorrentes sonhos levaram D. Bernarda a organizar o Terno de Reis Humildes em Alegria, que manteve suas apresentações durante 27 anos. A presença da religiosidade afro-baiana no Humildes em Alegria As festividades católicas do Período Colonial foram trazidas para o Brasil pelos europeus. Essas práticas tinham, inicialmente, como um dos objetivos a catequização dos negros e índios da Colônia. No entanto, aqui, os rituais passaram a ser ressignificados, ganhando novas formas de expressão, já que, segundo Abreu, as práticas barrocas foram alteradas mantendo-se “as festas de santos e procissões, expressivos sinais de força do catolicismo, independente da ortodoxia oficial”.321 Desta forma, as práticas populares passaram a associar ao catolicismo oficial elementos típicos de festividades consideradas profanas. As missas e orações passam a ser associadas a desfiles animados, repletos de música, festa e diversão. Outras tantas vezes, os rituais ganham independência e se afastam das imposições Católicas, tomando um caráter intensamente popular. As festividades católicas no Brasil Colonial, muitas vezes, foram apropriadas pelos negros devido a sua associação a elementos típicos das crenças e festividades africanas. As tradições cristãs, a partir desse contato, passaram a ser transformadas, os negros deram-lhes ABREU, Marta. O Império do Divino – Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro 1830-1900. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999. p.35. 321 461 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul novas significações, e assim, africanizaram-nas322. Nesta perspectiva, Abreu, ao analisar a religiosidade que se desenvolveu no Brasil, afirma que “Os leigos tornaram-se os maiores agentes do catolicismo barroco, repleto de sobrevivências pagãs, com seu politeísmo disfarçado, superstições e feitiços, que atraiam muitos negros, facilitando sua adesão e paralela transformação”.323 Segundo a autora, o catolicismo desenvolvido no Brasil não deve ser tomado como uma religião pura, mas percebido na sua inter-relação com as demais tradições religiosas mantidas e desenvolvidas no território brasileiro. A presença de elementos religiosos diversos pode ser notada nas festas de Reis que se desenvolveram no Brasil, visto que desde o Período Colonial, quando os europeus trouxeram tal festividade para o território nacional com a finalidade de catequizar os negros da Colônia, estes passaram a ver na festa uma possibilidade de associação a ritualísticas das festividades africanas, inserindo nas representações da adoração bíblica ao Menino Jesus, simbologias da festa de coroação de Reis Negros, típicas do Congo324. Souza chama nossa atenção para a interligação que havia no século XIX entre a coroação do Rei negro e a igreja católica: “No dia de reis, quando a irmandade festejava o ‘santo Baltasar’, o capelão coroava os reis na missa e lavrava no livro da irmandade o termo de eleição do rei, da rainha e dos demais cargos”325. O Rei negro era coroado no interior da igreja católica e por um representante direto da instituição. No entanto, com o passar dos anos, as festividades de coroação aos Reis negros passam a ganhar outros significados, dissociando-se da ação direta da Igreja Católica. Seria enganoso afirmarmos que os negros no Período Colonial se adaptaram ao modo de vida europeu, como seria do mesmo modo enganoso afirmarmos que eles mantiveram seus cultos e tradições tais quais faziam na África. No Brasil foi preciso adaptar seus costumes, suas tradições e entrecruzar elementos culturais de etnias africanas diversas, bem como relacionar cultos afros às tradições cristãs católicas, a fim de manter suas tradições, 322 Para maiores informações sobre as relações entre a religiosidade africana e o catolicismo no Brasil Colonial ver: BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. 2ª Ed. Editora São Paulo: São Paulo, 1985. 323 ABREU. Op. cit: p.34. 324 Maiores informações sobre as festividades desenvolvidas pelos negros escravizados no Brasil Colônia podem ser encontradas em: SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil Escravista: história da festa de coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. 325 SOUZA, op., cit., p.251. 462 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul mesmo que elas tivessem sido amplamente alteradas e adaptadas à realidade imposta pela situação de escravidão e de desterritorialização. As mudanças que se processaram na religiosidade africana no território brasileiro podem ser associadas a diversos fatores. Prandi destaca que “a religião africana no Brasil constitui-se como religião de negros católicos que já haviam perdido a família africana, com seus clãs, genealogias e antepassados”.326 Desta forma, os cultos desenvolvidos no Brasil não são os mesmos que se mantiveram na África. No território brasileiro não houve a manutenção das etnias e clãs africanos, o que levou os negros do Período Colonial a repensarem suas manifestações alterando-as e associando-as à religião imposta pelos europeus, o catolicismo. Aos negros escravizados era permitido desenvolver folguedos e festividades que, segundo a perspectiva jesuítica, serviriam como válvula de escape, seria uma forma de darlhes uma liberdade forjada, de permitir-lhes uma ingênua diversão. No entanto, Nesse espaço permitido, porque inofensivo na perspectiva branca, os negros reviviam clandestinamente os ritos, cultuavam deuses e retomavam a linha do relacionamento comunitário. Já se evidencia aí a estratégia africana de jogar com as ambigüidades do sistema, de agir nos interstícios da coerência ideológica.327 A falta de conhecimento do “branco” acerca da cultura negra, ou o seu desinteresse por ela, proporcionou os espaços necessários para que os negros pudessem manifestar suas crenças, desenvolver seus ritos e manter sua cultura, mesmo que para isso tivessem que transfigurá-la, dando-lhe uma aparência cristã. Assim, ao conhecermos os elementos que compõem a festa de Reis do Humildes em Alegria, percebemos que muitos são heranças de rituais e festividades africanas, o que nos conduziu a buscar entender: como esse imbricamento teria se processado, como seria possível a uma senhora como D. Bernarda, idealizadora e organizadora da festa do Humildes em 326 PRANDI, Reginaldo. Segredos Guardados: Orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.p.143. 327 Idem, p. 93. 463 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Alegria, conhecida no bairro por seu fervor cristão, ter conhecimento e inserir de forma tão hábil elementos de origem afro-baiana na festa de Reis? Esse questionamento está aí fundamentado e nos faz buscar entender as possibilidades de hibridização328 dessa festa, a partir da relação de diversos elementos simbólicos que rememoram passagens bíblicas, mas também rituais afro-brasileiros. No entanto, não será nosso objetivo aprofundar discussões acerca das religiões africanas que se desenvolveram no Brasil, analisaremo-nas apenas no que for tocante às festividades desenvolvidas pelo Terno de Reis Humildes em Alegria. As transformações que continuaram se desenvolvendo no catolicismo desde o Período Colonial até os dias atuais devem-se, em grande parte, ao fato das pessoas menos abastadas tomarem pra si festividades e rituais, reproduzindo-os a partir de suas necessidades e possibilidades, o que passou a gerar diversas maneiras de festividades e de ritualísticas que não mais se identificavam ao proposto pelo catolicismo, mas atendiam às necessidades do povo. Esse seria o chamado catolicismo popular, que não se limita a repetir os preceitos católicos, passando a dar-lhes novos significados e a associá-los a elementos e simbologias de outras religiões, o que facilitava, durante o período escravista, a associação feita pelos negros entre o catolicismo e suas festividades, inserindo aí características pagãs e africanas. As festas de Reis organizadas por D. Bernarda eram consideradas, na rua da Alegria, uma festa de Igreja, porém, muitas características da cultura afro-baiana nela se expressavam, como a inserção de baianas que se ornavam com jarros de flores na cabeça, a coroação dos Reis Negros, a presença de canções que se referiam às oferendas feitas nos terreiros aos orixás. As festas do Humildes em Alegria revelavam nas suas práticas as relações com as tradições afro-brasileiras, como fica expresso na seguinte narrativa de Eliseu: Fui colocando as baianas que eu também dei oportunidade a... ao misticismo, né? Coloquei baianas e aí eu fiz um, um conjunto, o terno de reis eu, tipo um conjunto, tipo um...porque ela gostava, ela tinha afinidade, ela já tinha sido vice-presidente de uma escola de samba, 328 Utilizamos este conceito na perspectiva apontada por Burke em seu livro, Hibridismo Cultural, citado anteriormente. 464 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul ela já tinha frequentado candomblé, ela já tinha feito muitas e muitas coisas. Então eu globalizei em cima da crença, em cima da religiosidade dela eu globalizei tudo e joguei no Terno de Reis de Bernarda.329 Eliseu ao usar a expressão ela refere-se à D. Bernarda, que, de acordo com as narrativas, relutou muito em inserir a ala das baianas no Terno, uma vez que a relação entre elas e a religiosidade afro-brasileira é facilmente identificável. Nas práticas do grupo, os elementos de rememoração da tradição afro eram expostos de maneira sutil, a fim de que a festa mantivesse a impressão de uma festa puramente católica. Eliseu, ao tratar da inserção da ala das baianas, nos informa sobre elementos que rememoravam não apenas as experiências da religiosidade africana no Brasil, mas também as vivências pessoais de D. Bernarda. Experiências essas que se destacam por estarem interligada às ressignificações das festividades do Humildes em Alegria. Segundo os narradores, D. Bernarda teria sido iniciada, ainda muito jovem, num terreiro de candomblé, segundo D. Nina, amiga de D. Bernarda. Ela teve como “madrinha”termo que atualmente chamaríamos de mãe de santo- uma senhora conhecida por Vitorina Grande. Na rua da Alegria emergem várias versões acerca da relação entre o Terno e o candomblé. Alguns afirmam que D. Bernarda fez o Terno e a partir de então parou de frequentar o terreiro, outros afirmam que ela manteve a fé cristã associada às crenças do candomblé. Tide, moradora do bairro e amiga de D. Bernarda, relembra: Foi um sonho. Disse que ela frequentava, ela gostava de frequentar, é... é... é, casa, casa de, de, de mãe de santo, candomblé, essas coisas. E um certo dia ela sonhou, o Espírito Santo, sonhou com o Espírito Santo, dizendo pra que ela afastasse dessas casas e fizesse um Terno de Reis, pra que ela realizasse enquanto ela vida tivesse, pra ela 329 Entrevista com Eliseu dos Santos, 52 anos, em 19/11/2007. 465 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul realizar esse Terno de Reis todo ano. E daí pronto, a partir daí não frequentou mais as casas.330 Tide, apesar de ter convivido muitos anos com D. Bernarda, não sabia de sua relação com o candomblé. As informações acima foram obtidas numa conversa que Tide manteve com D. Lúcia, irmã de D. Bernarda, pouco antes de começarmos a gravar a entrevista. A maioria dos moradores do bairro e integrantes da festa sequer conheciam as experiências que D. Bernarda trazia consigo acerca da religiosidade afro-braileira; conheciam apenas sua relação com o catolicismo. Um segundo elemento que nos atraiu atenção na narrativa de D. Nina foi o fato dela afirmar que D. Bernarda “deu pra fazer o caruru na casa dela”, o que reforça a ideia de que D. Bernarda se afastou do espaço geográfico do terreiro, mas não de suas crenças e de sua devoção à Santa Bárbara, associação feita ao orixá que na religião africana é Iansã. Ao analisar os elementos que compunham a festa do Humildes em Alegria, emergia a inter-relação de simbologias do catolicismo e do candomblé. As impressões deixadas pelo Terno de D. Bernarda para os moradores do bairro era de uma festividade de devoção cristã, desenvolvida por uma senhora devota à Igreja e que tinha uma fé tão intensa que os próprios “santos” lhe revelavam os detalhes das canções e da ritualística do Terno de Reis, como destaca Tide: Aí os cantos, as letras das músicas vinha num sonho também, ela dormia e de noite vinha no sonho, e aqueles pensamentos, as letras. De manhã ela memorizava e colocava a melodia e pronto, e aí se dava os cantos, dava os cantos que apresentava, no Terno de Reis, né?331 Segundo a narrativa de Tide, D. Bernarda recebia as revelações à noite, enquanto dormia. Ela sonhava com as canções e no dia seguinte associava as letras à melodia. Assim 330 331 Entrevista realizada com Clotildes Nunes Mello, 56 anos, em 16/01/2008. Entrevista realizada com Clotildes Nunes Mello,56 anos, em 16/01/2008. 466 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul como as canções, as indumentárias do grupo e os elementos que deveriam compor o cortejo eram revelados a D. Bernarda. É típico do Recôncavo Baiano a crença na relação com as divindades e santos através dos sonhos, que passam a ser considerados como revelações. No tocante à D. Bernarda, há mais de uma possibilidade de entendimento destes sonhos, pois sua crença fervorosa e extrema vivência católica poderiam ter proporcionado estes contatos com os santos. Em contra-partida, os sonhos poderiam também ser fruto da sua relação com o seu orixá, neste caso Iansã, sendo-lhe reveladas as exigências desta entidade. Essas relações com o sagrado permeiam as vivências de D. Bernarda e permitem entendermos o entrecruzar das religiosidades africanas e católicas no Brasil, percebendo suas mútuas influências nas vivências dos indivíduos que a elas se agregam. O imbricamento entre elementos católicos e da religiosidade afro-brasileira pode ser percebido no Humildes em Alegria, nas narrativas sobre D. Bernarda e sua possível desvinculação do terreiro; assim passamos a buscar entender de que maneira o Terno poderia funcionar como uma manutenção de seu compromisso com o santo. Desta forma, passamos a analisar elementos típicos das festividades do Humildes em Alegria, como a escolha e coroação dos Reis do Terno. Segredo, Poder e Ressignificações: A coroação dos Reis do Terno. Nas festividades do Humildes em Alegria muitas características se revelam, porém o elemento mais lembrado pelos entrevistados refere-se aos sonhos, às revelações que D. Bernarda recebia. Na organização do Terno, as escolhas dos integrantes e toda a ritualística da festa encontravam-se permeados por segredos que pertenciam apenas a D. Bernarda. Mesmo Eliseu que trabalhou durante muitos anos auxiliando diretamente nos ensaios e nas apresentações do Terno, revela a dificuldade de ter acesso aos saberes de D. Bernarda: No quinto ano eu comecei a me interessar mais com ela, aquela coisa toda, e comecei e ser aquele pivetinho, aquele molequinho que ficava 467 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul assim observando, quando foi no sexto ano em diante aí eu já comecei a trabalhar com ela, ajudando ela. Ela não me dizia ainda quem era a Rainha, nem quem era o Rei, nem quem era nada, era segredo absoluto, por quê? Porque a, o cargo chefe do Terno de Reis, o segredo total estava encima do Rei e Rainha, das peças principais né, Reis, Rainha, porta-estandarte, princesa.332 Na fala de Eliseu vários fatores se destacam, afinal ele já participava da organização da festa, há cerca de cinco ou seis anos, conforme fica expresso em sua narrativa. Sua participação, a princípio, se reduzia a auxiliar, sem ter poder sobre as tomadas de decisões, o que só veio ocorrer cerca de seis ou sete anos após sua entrada no grupo. Mesmo sendo pessoa de confiança de D. Bernarda e já tendo demonstrado seu interesse pela organização do evento, Eliseu desconhecia os segredos da festa de Reis do Humildes em Alegria. Após ter desenvolvido uma relação de confiança extrema com D. Bernarda, Eliseu passa a conhecer a organização, tendo acesso inclusive à tomada de decisões referentes ao grupo. Cabe ressaltar que a cultura africana se edifica sobre uma tradição de oralidade intensa. Oralidade essa diretamente relacionada a uma vivência, ou seja, muitos elementos da tradição, como os segredos, são aprendidos no cotidiano, nas experiências práticas. Ter acesso ao segredo é ter uma vivência que permita conhecer os detalhes sobre a preparação das festas e de rituais. Ailma, sobrinha neta de D. Bernarda, rememora a curiosidade que tinha em saber sobre questões referentes aos “segredos” da festa, relata que muitas vezes ela dormia na casa de D. Bernarda e auxiliava diretamente na organização das fantasias e de parte do festejo; no entanto, 332 Entrevista realizada com Eliseu dos Santos, 52 anos, em 19/11/2007. 468 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul teve muita coisa que foi fechado mesmo, e hoje não se pode fazer por causa disso, porque era muito fechado. Tudo bem que a beleza que era aquele segredo da Rainha e do Reis era muito bonito isso, mas assim as outras coisas a gente poderia ter mais acesso.333 O relato de Ailma expressa bem a função do segredo na festa. Muitas coisas eram fechadas, os integrantes do grupo não tinham acesso a boa parte da organização do festejo. Mesmo a família de D. Bernarda conhecia muito pouco sobre a preparação da festa, o que muitos moradores apontam como motivo para que o Terno de Reis tenha se encerrado com a morte de D. Bernarda, seus segredos teriam se perdido sem que fossem transmitidos a outra pessoa. Alguns fatores ainda podem ser destacados na fala de Eliseu. Ao afirmar que os Reis, Rainhas e Princesas eram o “carro chefe” do Terno de Reis ele nos chama atenção para perceber que nas festividades do grupo havia destaque para uma corte negra composta por figuras de prestígio, figuras que rememoravam as cortes africanas existentes na África cristianizada. Essa é uma tradição mantida ainda no Brasil colonial. Muitas vezes é descrito por folcloristas e viajantes estrangeiros o hábito de coroar Reis Negros nas festividades coloniais, bem como o hábito de desfilar pelas ruas com sua corte, conforme destaca Henry Koster: Quando se aproximaram, descobrimos, no meio, o Rei, a Rainha e o Secretário de Estado. Cada um dos primeiros trazia na cabeça uma coroa de papel colorido e dourado. O Rei estava vestido com uma velha roupa de cores diversas, vermelho, verde e amarelo, manto, jaleco e calções. Trazia na mão um cetro de madeira, lindamente dourado. A Rainha envergava um vestido de seda azul, da moda antiga.334 333 334 Entrevista realizada com Ailma Souza Santos, 41 anos, em 19/11/2007. CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia do folclore Brasileiro, Vol. 1. São Paulo: Global, 2003. p. 73. 469 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Apesar de se destacar a eleição e coroação do Rei Negro, todo um séquito de cargos era escolhido e desfilava ao lado da figura real nos festejos realizados com autorização da Coroa Portuguesa no Brasil escravista. As insígnias como a coroa e o manto são tradicionais nas representações de figuras reais tanto da realeza européia, quanto das festividades afro-brasileiras, como descreve Souza: Símbolos católicos que tinham funções de amuletos, bastões de mando, e mesmo a coroa, símbolo do poder do rei e da sua ligação com o sobrenatural, eram objetos utilizados em rituais das festas de reis negros, nas quais as coroações também podem ser associadas a práticas africanas tradicionais.335 Nesse processo Souza ressalta a necessidade de percebermos a hibridização que se processou na cultura africana, ainda na África, porque é, muitas vezes, erroneamente difundida a ideia de que a cultura africana se europeizou após o tráfico de escravos para a América; esquece-se que esse processo se desenvolveu de maneira intensa ainda na África, gerando inclusive a cristianização de muitos Reis de nações africanas. Não se pode negar o fato de que na América, devido às condições às quais os negros eram expostos, o processo de europeização se manifestou de forma mais intensa; não por negação à ancestralidade e às tradições africanas, mas pela necessidade de adaptação à realidade escravista imposta pelo “branco”. Pensar no imbricamento entre os festejos de coroação dos Reis Negros na África e sua associação a elementos cristãos nos leva a perceber que a hibridização cultural foi intensa e ocorreu desde os primeiros contatos entre europeus e africanos. Os resquícios 335 SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil Escravista: história da festa de coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 224. 470 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul desse processo ainda hoje são encontrados em manifestações de celebração que rememoram ritualísticas, como ocorre nas festas de Reis do Humildes em Alegria. No Humildes em Alegria eram escolhidos como os Reis da festa sempre figuras que representassem o povo africano. Essa escolha tornava-se momento de curiosidade, rivalidade e principalmente de celebração aos escolhidos. D. Balbina336 nos conta que nem mesmo os escolhidos para representarem os Reis sabiam de sua escolha: “Não, falava bem antes, ficava pensando lá, mas no dia é que dizia, faltando dois dias é que dizia”. O filho de D. Balbina foi Rei em um dos desfiles do Terno e ela nos disse que só soube da escolha oito dias antes, quando foi necessário providenciar o tecido para confeccionar a fantasia do Rei. D. Ninha337, que morou no Andaiá durante as festividades do Humildes em Alegria, nos conta que, por ser costureira e pessoa de confiança de D. Bernarda, muitas vezes confeccionava as roupas dos Reis e Rainhas sem que os escolhidos soubessem que seriam os Reis da festa. O mistério em torno da vestimenta e da escolha dos Reis e Princesas era tamanho que para levar as roupas para costurar ou para levá-las para que D. Bernarda as visse era preciso enrolá-las num lençol branco afim de que os demais moradores da rua não vissem a roupa e não soubessem quem a usaria. Todos ficavam atentos tentando descobrir quem seriam os Reis daquele ano, daí a necessidade de camuflar as fantasias para que os olhares já curiosos ficassem ainda mais atentos à festa. Além da existência dos Reis da festa, havia a presença da figura feminina, a Rainha do Terno era, ao lado do Rei; a figura mais esperada do desfile. Todo o mistério que permeava sua escolha, a eleição, as fantasias criava em torno dos Reis um ar de curiosidade e de admiração coletiva. Eliseu aponta, em suas narrativas, a possibilidade de que a Rainha Negra fosse utilizada como meio de afirmação identitária, uma vez que D. Bernarda era uma mulher negra: “ela também não esqueceu de colocar dentro do Terno de Reis uma pessoa negra, 336 Entrevista realizada com a Sra Balbina de Jesus , 78 anos, em 17/06/2007. D. Ninha tinha 60 anos e, numa entrevista feita com sua filha, nos deu informações valiosas sobre a organização das festividades do Humildes em Alegria. A entrevista realizou-se no dia 29/01/2008. 337 471 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul porque ela era negra e era apaixonada por negros. Ela colocava uma rainha negra no Terno. Se bem que isso não faz parte do Terno de Reis, mas ela botava.”338 A consciência de que novos elementos eram acrescentados no Terno de Reis fica explícita na fala de Eliseu ao afirmar que, mesmo sabendo que a Rainha Negra não fazia parte do Terno, ela (D. Bernarda) colocou a Rainha Negra e a manteve durante todos os anos da festa. Perceber a consciência da criação de um elemento é essencial para notarmos que havia o desejo no grupo em buscar inovar as apresentações, mantendo o interesse de pessoas das mais diversas faixas etárias, pois desde crianças de sete anos até senhoras de terceira idade desfilavam e se divertiam nas festas do Humildes em Alegria. Além disso, os segredos que circundavam as figuras dos Reis da festa levavam muitos jovens a ambicionarem o cargo, participando intensamente dos ensaios e da organização do festejo. A festa, em seus muitos usos, servia para demonstrar anseios, desejos, era um espaço onde a cultura local se expressava e poderia ser conhecida por pessoas de outros espaços da cidade. Na interação da comunidade com a festa é que emerge a relação entre as vivências cotidianas e a cultura que uma localidade quer expressar. A festa de Reis do Humilde em Alegrias não era apenas uma comemoração que ocorria uma vez no ano. Era fruto da labuta de indivíduos que passavam meses organizando, planejando, construindo o Terno. Construção essa, sempre acompanhada de perto pelo olhar atento de D. Bernarda, conhecida por muitos moradores como “a dona do Terno”. Seu poder de decisão se fundamentava na crença mística da revelação divina da festa, e na sua relação com os sonhos, momento em que eram reveladas as fantasias e as canções para inovar os desfiles do grupo. Notamos, portanto, que os festejos em homenagem aos Santos Reis, apesar de serem desenvolvidos das mais diversas maneiras em localidades distintas, trazem consigo o fato dessa festa se manter independente das amarras da Igreja, sendo uma comemoração de caráter popular que agrega em si elementos católicos e rememorações de festividades e tradições afro-brasileiras. 338 Entrevista realizada com Eliseu dos Santos, 52 anos, em 26/03/2003. 472 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul DA RELIGIOSIDADE POPULAR À DEVOÇÃO AO DIVINO PAI ETERNO Dalva Pedro da Silva Mestranda em Ciência da Religião/PUC-GO Especialista em História Oral/UFG [email protected] Introdução Refletir sobre o tema religiosidade popular, no contexto da devoção ao Divino Pai Eterno em Trindade GO. Nesse sentido, esta discussão não visa estabelecer definições distintivas do catolicismo popular e da religiosidade popular. Mas sim como foco de reflexão e de entendimento do conjunto de práticas simbólicas, com raízes populares nas várias expressões e atividades: participação dos devotos na romaria, peregrinações, via-sacra, reza do terço do ajoelhar e beijar a cruz e imagens de santos, do rezar nas novenas, acompanhar procissões e o pagar promessas. Um dialogar sobre Religiosidade Popular Na intenção de abrir ao diálogo de compreensão sobre o termo religiosidade popular, recorremos a uma investigação feita por Isnard de Albuquerque Câmara Neto (2005), referente ao artigo Diálogos Sobre Religiosidade Popular. De acordo com este autor citado, ele diz que Oscar Beozzo, por exemplo, defende a substituição da expressão “religiosidade popular” por “práticas religiosas das classes populares”, do qual, salvo melhor juízo, julgamos lícito discordar, pois o autor insiste em tê-la como exclusivo “patrimônio de classes 473 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul sociais exploradas e oprimidas” (BEOZZO, 1982, p. 745), desconsiderando que as manifestações de religiosidade popular independem de classe social. Dependem talvez do grau de relação de “ortodoxia” que o devoto mantém com – no caso em tela – o catolicismo oficial. Günter Paulo Süss, no entanto, é muito pertinente ao defender que o catolicismo popular estabelece um limite com a religiosidade popular global, tendo em vista que esta “abrange todos os costumes evidências religiosas do povo, sejam eles de origem africana, indiana, protestante, católica, espírita ou pagã” (SÜSS, 1979, p. 28, apud NETO, 2005, p.1). Referente à questão religiosidade popular faz-se presente nessa discussão, a Santíssima Trindade como figura de relevada importância dentro, do universo das devoções dos ( associados:filhos do Pai Eterno). A devoção ao Divino Pai Eterno e a realização da romaria religiosa de Trindade/Go, têm características peculiares, essa devoção perpassa pelo festejo das novenas e se caracterizam por serem manifestações de fé de agradecimento por benefícios alcançados e renovação dos pedidos perante a imagem do Divino Pai Eterno. A percepção de um lado, dessa presença, do rezar nas novenas, procissões, celebrar, e do alegrar se constitui na certeza de que por traz de todo um sentimento de paz e gratidão, existe um motivo religioso transcendente muito forte, presente na festa no Divino Pai Eterno. Em contra partida, dentro de toda a participação dessa romaria, há dentro do conjunto da festa do Divino Pai Eterno pessoas, que festejam sem ao menos intencionar que a festa da Trindade santa tem seu objetivo principal o celebrar religioso. Segundo entendimento desses participantes últimos citados, o que eles visam no momento da festa são, os reforços financeiros de seus comércios: vendas de lembrancinhas, velas, escapulários, terços, camisetas, imagens dentre outros matérias. Bancas de comidas, locais com músicas, danças e vários outros tipos de shows sertanejos e populares, momentos que ilustram o universo da festa, e que são atrativos para economia local. O sentimento de agradecimento de cada romeiro diante do conjunto, de variedades e oportunidades festivas, durante o período da festa, que os romeiros sentem confortados por 474 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul estarem na festa do Divino Pai Eterno de estar no santuário da Santíssima Trindade. Desta forma alegram e agradecem por toda essa composição promovida pela festa. Observada pelo horizonte do comércio e do religioso, a festa de Trindade é entendida como sagrada, e profana, e essa constatação é notória, ao perceber que os devotos, assim que acabam de participar da procissão ou novenas, em seguida fazem uma pausa para suas compras ou passeios pela cidade, até mesmo, para sentir como é tão grande a força do Pai Eterno sobre seus filhos. Força que indiferente de classes sociais ou crenças religiosas, as pessoas sentem a necessidade de algo superior por meio da religião para que elas sintam-se protegidas. Eu nunca senti uma paz tão imensa como senti ao chegar ao santuário do Pai Eterno. Tenho feito essa caminhada há dez anos, cada vez, venho agradecer maravilhosas bênçãos recebidas, por isso eu vejo essa questão do comércio e outras atuações das pessoas na festa, seja no comercio local ou de outras pessoas que vem venderem suas mercadorias no momento da romaria. Penso que desta forma elas não ganham só com as vendas, mas sim contam com a proteção que o Pai Eterno é capaz de promover para uni-las, pois é um sentimento de harmonia e de partilha que sentimos nesta belíssima romaria. Aqui sentimos todos iguais, diz uma devota do Pai Eterno na festa de 2014 (Virginia Correia Neto). Com a fala dessa devota, compartilho com o quê reflete Brandão, em um de seus estudos sobre religiosidade Popular, “OS Deuses do Povo”, esse autor refere que mais que o milagre as pessoas esperam serem protegidas pela religião e nela a presença dos santos. Na verdade, muito mais que o milagre, os sujeitos subalternos esperam da religião a proteção. Mesmo um fiel que nunca tenha sido escolhido para um milagre, continua devoto, desde que se reconheça ligado ao sagrado e protegido por alguma de suas forças. 475 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul No entanto, mais ainda do que proteções, camponesas e proletárias procuram encontrar a identidade que a crença e a prática religiosa sobrepõem aos nomes comuns dados ás categorias “dos pobres”, segundo a posição de suas práticas econômicas. Mas, tanto quanto ou um pouco mais do que uma identidade que legitima, ao mesmo tempo, o sujeito e a classe, eles esperam da religião um inventário de certezas fundamentais – mesmo quando vagas – sobre a vida o mundo e as contradições das entre ambos. O sentimento de “estar”, o reforço da identidade e as certezas do saber religioso que fazem o miolo da crença popular no sagrado, serve menos à filosofia do pobre do que à experiência de poder religioso de que os clientes, fiéis e leigos de baixo parecem ser muito mais exigentes e usuários do que os clientes, féis e leigos. Falo isso aqui, da experiência pessoal e de participação do sujeito nos rituais e efeitos do sagrado – da festa ao milagre – e da experiência de ser parte da comunidade de fé, por sua conta e risco criadora e reprodutora, tanto de rotinas quanto de prodígios religiosos. (BRANDÃO, 1985, p.140-141). Entrega Devoção e Fé. Como pode ser descrita a romaria do Divino Pai Eterno. E o mais importante dessa devoção é a atribuição que a ela é dada, como a maior festa no mundo dedicada à Santíssima Trindade. Isso faz com que a cidade de Trindade, receba o título de capital da fé em Goiás, um lugar único e sagrado cheio de bênçãos e graças derramadas do céu pelo Pai Eterno. Desde a descoberta do medalhão, por volta de 1840, quando ela foi encontrada pelo casal de agricultores (Constantino Xavier Maria e Ana Rosa Xavier) encontram às margens do córego Barro Preto, um medalhão com a representação da Santíssima Trindade coroando a Virgem Maria aos Céus. Como eram pessoas de grande fé e religiosidade, neste ponto apoiado pela esposa após encontrar o medalhão sagrado, eles beijaram-na e levaram-na para casa. 476 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Constantino e seus familiares começaram a rezar diante do medalhão encontrado, então a partir desse acontecimento a notícia se espalhou e aos poucos outros moradores locais, passaram a rezar junto á Santíssima Trindade (representada na Imagem do Medalhão). Há mais de 170 anos, segundo relatos históricos da biblioteca de Trindade (GUIA DO TURISTA, 2013 p.4). O Pai elegeu uma cidade e escolheu um povo para revelar ali a face do Seu Amor. Um povoado na época simples, humildes e tementes à Palavra de Deus. Com poucas economias, porém rico de caridade e animados pela esperança. Características que são as mais importantes para o alicerce de uma devoção. Repercussão de fé e devoção que hoje está no coração de milhões de fiéis devotos em todo o mundo. Local que antes conhecido como Barro Preto, mais tarde recebeu o nome de Trindade, cidade que fica a cerca de 18 km da capital Goiânia(GO). Universo histórico que perpassa pela representação simbólica e artística do medalhão, expressada nas três pessoas divinas, Pai, Filho e Espírito Santo que segundo o significado dado a imagem se caracteriza pela imagem do Pai, mais velho, lembrando Deus Pais; do Filho mais jovem lembrando Jesus e do Espírito Santo, em forma de pomba, como é narrado no Evangelho, coroando Maria Santíssima, mãe de Jesus. O Medalhão (Figura da Santissíma Trindade coroanda a virgem Maria) Fonte: biblioteca de Trindade – GO. Brasil 477 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Entre Europa África e América: o Império português no Atlântico Sul Os devotos do Divino Pai Eterno, saem de vários lugares do Brasil e até mesmo de outros Paises com destino ao Santuário Basílica do Divino Pai Eterno. Um lugar de paz, onde os fiéis buscam sentido para a vida, alívio para suas dores e agradecem as graças recebidas. Festa esta que tem seu começo todos primeiros domingos do mês de julho de cada ano. Durante os nove dias que antecedem a festa, são celebradas várias missas e novenas; ocorrem encontros de jovens, acolhimento aos carreiros do Divino Pai Eterno (procissão de carro de boi), foliões, cavaleiros e muleiros. Muitos devotos percorrem, a pé, o trajeto entre os municípios de Goiânia e Trindade, chegando até o Santuário Basílica, como forma de pagar promessas, e agradecer bençãos alcançadas. Os peregrinos também partem de outras cidades e estados. Mais de 2,8 milhões de devotos passam pela Romaria durante os dez dias de festa e vários outros fazem visitas ao longo do ano. Diante da realidade exposta sobre a devoção ao Divino Pai Eterno, a romaria contribui efetivamente para engrossar o número de devotos na festa religiosa de Trindade. Uma manifestação pura e sagrada da religiosidade popular dos tempos atuais. Autoridades eclesiástica, governamentais e parte da sociedade civil investem em diferentes aspectos como na organização da festa, na infra-estrutura da cidade e no comércio. Investimento este mantenedor do santuário. O santuário do Divino Pai Eterno, local estrategicamente privilegiado na formação de base da Fé e do catolicismo popular em Goiás. O catolicismo popular acredita na intervenção dos santos, promessas e votos, privatizando a devoção ao santo ( Divino Pai Eterno). Os eventos e locadlidades produzidos são nos santuários para os quais caminham os devotos e perigrinos do Pai Eterno. Sobre este caminhar Stoddard, 1988ª:108 citado por Santos diz que, “Para alguns pergrinos, a finalidade da viagem não é simplesmente a de chegar ao destino; a deslocação em si próprio é um acto de culto. Os méritos da peregrinação são aumentados através do sofrimento dos sacrifícios encontrados ao percorrerem-se longas ditâncias, espacialmente quando realizadas a pé (SANTOS, 2006, p.524). 478 HTTP://CONGRESSOINTERNACIONALDEHISTORIA.WORDPRESS.COM | ANAIS VOL. 1, Nº 1, 2014 / ISSN 2358-7148 Ent