2014
ENTRE EUROPA, ÁFRICA E
AMÉRICA: O IMPÉRIO
PORTUGUÊS NO
ATLÂNTICO-SUL
Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
EXPEDIENTE
ENTRE EUROPA, ÁFRICA E AMÉRICA: O IMPÉRIO PORTUGUÊS NO ATLÂNTICO-SUL
ANAIS | VOLUME 1, NÚMERO 1, 2014
ISSN 2358-7148
EDITOR
PROF. DR. FERNANDO LOBO LEMES (PUC-GO/CAPES)
COMISSÃO EDITORIAL
PROF. DR. EDUARDO GUSMÃO DE QUADROS (PUC-GO/UEG)
PROF. DR. EDUARDO JOSÉ REINATO (PUC-GO)
PROF. DR. FERNANDO LOBO LEMES (PUC-GO/CAPES)
PROFª DRª RENATA CRISTINA DE S. NASCIMENTO (UFG/UEG/PUC-GO)
COMISSÃO CIENTÍFICA
DRª. ANA TERESA MARQUES GONÇALVES (UFG)
DR. ADAÍLSON JOSÉ RUI (UNIFAL)
DR. ADEMIR LUIZ DA SILVA (UEG)
DRª. ALINE DIAS DA SILVEIRA (UFSC)
DRª. ARMÊNIA MARIA DE SOUZA (UFG)
DRª. DIANE VALDEZ (UFG)
DR. EDUARDO GUSMÃO DE QUADROS (PUC-GO)
DR. EDUARDO JOSÉ REINATO (PUC-GO)
DR. FLÁVIO FERREIRA PAES FILHO (UFMT)
DR. GILBERTO CÉSAR DE NORONHA (UFU)
DRª. IVONI RICHTER REIMER (PUC-GO)
DRª. MARIA CRISTINA NUNES FERREIRA NETO (PUC-GO)
DRª. MÔNICA MARTINS DA SILVA (UFSC)
MS. MURILO BORGES SILVA (UFG)
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
ESCOLA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES E HUMANIDADES
PROGRAMA DE MESTRADO EM HISTÓRIA
CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
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Entre Europa África e América:
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SUMÁRIO
TEXTOS COMPLETOS
ADOLPHO RANDES MESQUITA FERREIRA
ALAN RICARDO DUARTE PEREIRA
ALEXANDRE FRANCISCO DE OLIVEIRA
ANDRÉ MARIANO NERI
BRUNA DE OLIVEIRA SANTOS
CHRISTIANE FIGUEIREDO PAGANO DE MELLO
CLEIGINALDO PEREIRA DOS SANTOS
DALVA PEDRO SILVA
EDNA MARA FERREIRA DA SILVA
ÉRICA DANIELLE MESQUITA
FABIANE DA SILVA ANDRADE
FERNANDO BUENO OLIVEIRA
GUSTAVO VELLOSO
HAMILTON MATOS CARDOSO JÚNIOR
HILMA APARECIDA BRANDÃO
ISABELLA NOGUEIRA
JACIELY SOARES DA SILVA
JAEL FLÁVIA DE PAIVA ARAÚJO
JOÃO GUILHERME CURADO
JOÃO PEDRO PEREIRA ROCHA
JOELMA GONÇALVES MARÇAL
JOILSON DE SOUZA TOLEDO
JOSÉ CORDEIRO MENEZES NETTO
LEO CARRER NOGUEIRA
MARCELO RODRIGUES SIQUEIRA
MARCOS ROBERTO PEREIRA MOURA
MAX LANIO MARTINS PINA
MAYARA PAIVA DE SOUZA
NAYARA KATIUCIA DE LIMA DOMINGUES DIAS
NILTON RABELO URURAHY
PATRÍCIA DA SILVA SOARES
PEPITA DE SOUZA AFIUNE
RACHEL SILVEIRA WREGE
ROBERVAL AMARAL NETO
ROGÉRIO CHAVES DA SILVA
ROSANA ROMENIA FERNANDES LEAL
ROSEMEIRE APARECIDA MATEUS
SUZANA RODRIGUES FLORESTA
TEREZA CAROLINE LÔBO
TIAGO KRAMER DE OLIVEIRA
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Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
COZINHA: ESPAÇO FESTIVO – FOLIA DO DIVINO
ESPÍRITO SANTO EM PIRENÓPOLIS/GO1
Adolpho Randes Mesquita Ferreira
UEG - Câmpus Pirenópolis
[email protected]
A produção aurífera em Meia Ponte foi uma atividade realizada em área urbana, como
na maioria dos demais núcleos auríferos dos séculos XVII e XVIII que existiram no Brasil.
Findando este período dedicado à extração do ouro em Goiás, a ruralização foi
intensificada, com produções agrícolas voltadas para a subsistência. Produções estas que
foram intensificadas no século XIX, destacando-se principalmente o Comendador Joaquim
Alves de Oliveira, com sua significativa produção no Engenho de São Joaquim, que não era
voltado apenas ao cultivo da cana-de-açúcar, havendo outras produções agrícolas em sua
propriedade (COSTA, 1978).
Meia Ponte sendo uma localidade colonizada por portugueses manteve muitas das
influências lusitanas, especialmente as culturais e devocionais que se fixavam com grande
força e foram se adaptando às conformidades locais, com ênfase para a festividade ao Divino
Espírito Santo, que segundo Jayme (1971) teve o primeiro documento em 1819, mas, no
entanto não há registro até os dias de hoje de quando ocorreu a primeira Folia do Divino, que
provavelmente anteriormente ao ano de 1819.
Dentro das comemorações ao Divino Espírito Santo, outras festividades foram
também se destacando, tais como as Cavalhadas com suas encenações equestres
representando a batalha entre os mouros e os cristãos e as Folias com ênfase na ruralidade,
festejos estes que ocorrem durante a celebração de Pentecostes, e que são assimilados ao
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Fomento: PrP/UEG por meio do Projeto de Pesquisa: Pesquisa Girando Folia: apontamentos turísticos e
gastronômicos em um das devoções ao Divino Espírito Santo – Pirenópolis/Goiás, do qual é bolsista PVIC/UEG.
Integrante do Grupo de Pesquisa Saberes e Sabores Goianos. Orientador: João Guilherme Curado.
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período das colheitas. Tais manifestações foram implantadas no mesmo período em que Meia
Ponte despontava para a agricultura.
As Folias do Divino são realizadas por pirenopolinos há quase dois séculos e
receberam no ano de 2010 o reconhecimento institucional, via Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan), junto com as demais manifestações que constituem a
Festa do Divino de Pirenópolis, quando passou a ser considerada como Patrimônio Cultural
do Brasil, enquanto uma celebração de extrema significação para a compreensão da cultura
nacional. Vale destacar que outras festas de maior porte ainda não possuem tal
reconhecimento, o que acaba por fortalecer ainda mais a devoção e a tradição anual dos
festejos ao Divino.
Gastronomia de Folia
Para um profissional ser reconhecido no mercado de trabalho é exigido um padrão de
qualidade nos serviços prestados, entretanto para que tal qualidade exista necessita-se de um
conhecimento ou aptidão para desempenhar a função pretendida.
Na gastronomia de Folia não é diferente, essa premissa é indispensável, por isso para
que aquela cozinheira faça uma quantidade imensa de comida é necessário que disponha a tal
tarefa e que conheça algumas técnicas de trabalho exigidas em cozinhas de grande porte e
improvisadas. Também as habilidades básicas são fundamentais e estas foram em algum
momento da vida os cozinheiros de Folia foram ensinados e/ou aprenderam no dia-a-dia com
suas mães ou antepassados.
O ato de temperar as grandes panelas ou tachas exigem padrões a serem seguidos, e
como se trata de uma festa tradicional talvez as receitas ali reproduzidas tenham significâncias
diversas para quem as prepara, oferece ou se alimente de tal refeição.
Para se ter uma dimensão da quantidade de comida servida em cada
pouso de folia, seguem algumas informações do servente Adão Soares
“Gaúcho”, responsável pela equipe de três cozinheiras e oito serventes
que trabalhavam na fazenda Santa Rita, por três dias seguidos, durante
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a folia do ano 2000. Na ocasião, foram cozidos 100 quilos de arroz, 30
quilos de feijão com 20 de pele de porco, 120 de costela de boi com a
mesma quantidade de mandioca para janta e almoço do dia seguinte,
além dos 60 quilos de tomate e de igual porção de repolho (VEIGA,
2008, p. 5).
Sendo de uma família com tradição em Folia de Reis na cidade de Anápolis, que ainda
não foi estuda e acadêmico de gastronomia em Pirenópolis, mantive o interesse pelas festas de
folia, em especial pelas cozinhas de folias.
Aqui em especial, abordaremos a Folia do Divino Espírito Santo realizada pelos
pirenopolinos que é uma festa de renome nacional. Assim, associando os conhecimentos
adquiridos desde a infância pela participação familiar na produção da Folia de Reis e as
técnicas e experiências aprendidas no Curso de Gastronomia, fomos desenvolvendo pesquisas
sobre comidas de folias no decorrer da formação acadêmica e que buscamos aprofundar em
nossas investigações.
Inicialmente buscamos contextualizar historicamente as origens da Festa do Divino
Espírito Santo:
as primeiras devoções ao Divino datam de 1321 em Portugal. A folia
foi trazida ao Brasil no início da colonização portuguesa. Apesar de
ser realizada em vários estados brasileiros, foi em Pirenópolis que
encontrou maior força. A primeira Folia realizada na cidade goiana foi
em 1819, promovida pelo Coronel Joaquim da Costa Teixeira,
consagrado Imperador do Divino (PERES, 2010, p. 36).
A Folia do Divino Espírito Santo rural de Pirenópolis é um grande nicho de pesquisa,
além de ser uma das principais festas contidas no calendário na cidade, relembrando ainda que
foi a Festa do Divino é considerada desde 2010, como Patrimônio Cultural do Brasil,
aumentando desta maneira a importância de estudos sobre esta temática. Nos dedicamos,
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especialmente, às pesquisas sobre a produção de comidas que envolvem saberes e fazeres
transmitidos há várias gerações. Além de ser um atrativo para centenas de pessoas todos os
anos que se deleitam com as comidas ofertadas.
Uma grande dificuldade na pesquisa que envolve o estudo de folia é a sazonalidade.
Assim como as demais folias a Folia do Divino Espírito Santo de Pirenópolis ocorre apenas
uma vez a cada ano, criando uma dificuldade na coleta de informações, agravada ainda pelo
fato desta festividade ser realizada na área rural e alguns locais serem muito distante da
cidade, como foi percebido nos diversos pousos visitados nos anos de 2013 e 2014, o que não
foi empecilho para que a pesquisa fosse realizada.
Uma percepção gastronômica indica que tais refeições servidas são de grande
importância, pois nas comidas de folia é possível perceber que estão agregados aromas e
sabores únicos. Mas, no entanto, no momento do preparo agregar todos estes valores é um
desafio quando se considera que os alimentos são preparados em enormes panelas e tachas.
Portanto, vivenciar tal produção é de uma riqueza cultural e didática inestimável para um
profissional da gastronomia.
Cozinhar é algo necessário, seja você um consumidor ou mesmo um cozinheiro, a
gastronomia está ligada diretamente a nossa história, pois sem ela nem seríamos capazes de
contar nossa trajetória. Diferentemente de outras áreas do conhecimento a gastronomia prima
pela prática. Enquanto um historiador não precisa ter vivido a ascensão do Império Romano
para falar de sua imponência, o gastrônomo necessita cozinhar para aprender as habilidades
básicas para preparações dos alimentos, ou seja, ele precisa praticar.
Todas as pessoas comem (e isso é quase sempre feito algumas vezes
por dia), e a maioria está frequentemente, se não diariamente,
envolvida na preparação de uma refeição, mesmo que simplesmente
arrumando diferentes alimentos no prato, ou realmente os combinando
como ingredientes de uma receita (ALLHOFF; MONROE, 2012, p.
297)
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Considerando que “a alimentação é o combustível para nossa vida, uma vez que nos
fornece subsídios para a realização de nossas tarefas diárias” (www.sermelhor.com), foi
iniciada uma investigação sobre a importância da comida que é preparada e servida em um
Pouso de Folia, daí nos deparamos com o seguinte dilema: por que os devotos foliões deixam
seus acampamentos, com a comida que trouxeram e que preferem consumir, saciando suas
fomes junto à mesa com a comida de folia oferecida pelo anfitrião. No entanto, logo este
dilema se torna obsoleto, pois os foliões são movidos pela devoção ao Divino, e cear junto à
mesa e uma forma de agradecimento, alem de comunhão com os demais foliões presentes no
giro da Folia.
Trazendo conhecimento outrora vivenciado em Anápolis na Folia de Reis, somados às
informações de estudos e pesquisas bibliográficas sobre folias, fomos acrescentado dados e
direcionando a pesquisa desenvolvida sobre Folia do Divino Espírito Santo de Pirenópolis,
como pode ser evidenciado em uma de nossas investigações:
o “giro” da Folia do Divino Espírito Santo em Pirenópolis tem por
característica ritual a promoção de Pousos de Folia, quando os foliões
são recebidos em casas ou fazendas pré-determinadas realizando ali
uma parada noturna a cada noite para descanso, mas que implica em
diversas manifestações populares, como: orações, cantorias e
alimentação (FERREIRA; OLIVEIRA, 2013, p.1).
Dentre os conhecimentos adquiridos pela pesquisa vale ressaltar que foi de extrema
importância o ato de vivenciar os rituais de alimentação passo a passo, desde seu preparo até o
consumo pelos foliões, pois neste ínterim foram vivenciadas as práticas utilizadas por
cozinheiras e cozinheiros, sendo que pudemos catalogar as práticas na cozinha por meio de
fotos, vídeos e principalmente por entrevistas direcionadas que foram concedidas por eles
enquanto preparavam as comidas a serem degustadas posteriormente pelos foliões. Portanto,
metodologicamente salientamos que
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existem dois instrumentos do tipo lápis-e-papel: questionário e
formulário. A origem de ambos reside numa forma de coleta
denominada entrevista – que consiste em fazer interagir verbalmente,
cara a cara, pesquisador (entrevistador) e interlocutor (entrevistado)
(COSTA, 2001, p. 75).
Assim, por ocasião dos trabalhos de campo durante os pousos de folia, realizamos
também diversas conversas informais com algumas cozinheiras e cozinheiros, quando foram
feitas trocas de experiências e promovida uma breve coleta de informações visando o
aprimoramento das informações sobre as cozinhas de pousos de folias. Informações estas que
depois foram sistematizadas.
Informações coletadas em livros e artigos foram de grande importância como suporte
bibliográfico, especialmente as que citam a Folia do Divino Espírito Santo de Pirenópolis.
Assim seguimos as orientações da condução de pesquisas, quando
as fases da pesquisa de campo requerem, em primeiro lugar, a
realização de uma pesquisa bibliográfica sobre o tema em questão. Ela
servirá, como primeiro passo, para se saber em que estado se encontra
atualmente o problema, que trabalhos já foram realizados a respeito e
quais são as opiniões reinantes sobre o assunto. Como segundo passo,
permitirá que se estabeleça um modelo teórico inicial de referência, da
mesma forma que auxiliará na determinação das variáveis e
elaboração do plano geral da pesquisa (LAKATOS; MARCONI,
2003, p. 186).
Com as orientações das referidas autoras, partimos para uma pesquisa de campo mais
elaborada e aprofundada em 2014, devido às leituras direcionadas realizadas posteriores ao
campo do ano de 2013.
Assim, chegamos a um dos pontos máximos do pouso: a janta, que é prepara com
significativa antecedência, em relação à chegada dos foliões que ocorre no final da tarde de
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cada dia do giro. A janta se constitui em enormes quantidades de comidas. Em conversas
informais com uma das cozinheiras de pousos, ela nos relatou que a preparação da comida de
alguns pousos é iniciada até com um dia de antecedência.
O momento da janta é por numerosos foliões esperado com ansiedade, pois a janta é
servida em uma grande mesa e serve para agregar as pessoas e promover orações conjuntas,
uma verdadeira comunhão abençoada pelo Divino, para quem os foliões promovem,
posteriormente o rito de agradecimento de mesa.
Tachas que comportam mais de cinquenta quilos de alimentos são utilizadas na
preparação do cardápio que pouca variação apresenta na maioria dos pousos. Existem casos
em que o dono da casa, não possui posses para ofertar os alimentos aos foliões, nestas
situações pedem ajuda a políticos, comerciantes e até mesmo aos organizadores da Folia.
Estas pessoas normalmente são pagadoras de promessas, que ao receberem as graças
solicitadas, oferecem pouso em devoção ao Divino.
Para a preparação dos alimentos a serem servidos durante os pousos, os cozinheiros
contam com uma cozinha quase toda improvisada. Nestes locais evidenciamos a precariedade
de trabalho, sendo que faltam desde mesas até mesmo equipamentos comuns que auxiliariam
na condução dos trabalhos. Visando sanar as deficiências os proprietários das fazendas fazem
fornalhas que sustentam as grandes tachas, sendo, no entanto, o calor excessivamente alto.
Com isto transformar um alimento em comida saborosa torna-se um grande desafio, mas os
empenhos de todos suprem todos estes reveses.
Questões como as mencionadas foram evidenciadas durante a preparação da janta no
Pouso de folia promovido no povoado de Caxambú, quando nos propusemos a atuar
efetivamente na cozinha. Aprendemos então que não existem limites para atuação, e que o
conhecimento pode ser repassado mesmo por alguém que nunca esteve na academia, mas que
possui significativa prática acumulada em décadas de preparação de comidas em festas como
nos Pousos. Ser um pesquisador participante e atuante na cozinha de um pouso proporcionou
conhecimentos e experiências impossíveis de serem capturados por meio de entrevistas ou só
de observações.
Logo após os rituais junto à mesa e com o fim da janta, a festa que atrai o grande
público aos pousos de folias começa, e se caracterizam por muita música mecânica, danças,
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bebidas e ainda muita comida comercializada pelos vendedores temporários, se estendendo
madrugada adentro. A quantidade de pessoas aumenta consideravelmente, havendo pousos
que recebem cerca de 10 mil participantes.
Dessa maneira, as folias possuem características de agregação, como observou
Jurkevics (2005) em relação às festas religiosas pelo Brasil, quando
nessas ocasiões, era comum a participação não apenas dos moradores
locais, como também dos arredores que, compondo as diversas
irmandades e ordens terceiras, organizavam os eventos, sobretudo
para celebrar seus santos protetores. As festas organizadas pelas
confrarias mesclavam as missas, os sermões, os te-deuns, as novenas e
procissões com danças, coretos, fogos de artifício, barracas de comida
e bebidas (JURKEVICS, 2005, p. 75).
Na etapa da festa, em que os rituais já se cessaram após a janta, agradecimento, pedido
de esmola e dança de catira, é que os cata-pouso entram em cena. São aqueles personagens
que vão apenas à parte da festa onde o som mecânico e a ebriedade predominam, não tendo
estes instantes nenhuma ritualidade, conforme observou Pinto (2009). Neste ensejo, chegam
também as barracas de comerciantes temporários onde se pode encontrar as mais diversas
bebidas e comidas. Mas se ainda houver um folião desavisado que queria a comida de pouso,
é possível conseguir um bom caldo de mandioca com carne ou mesmo sobras da comida
servida, na cozinha da casa em que acontece o pouso.
Tendo findado o som e ocorrido a dispersão da multidão que se junta no pouso
temporariamente por volta das quatro da madrugada, os foliões vão se recolher em seus
acampamentos, enquanto os cata-pouso tomam seus carros ou vans e destinam a volta para
casa.
Não demora muito e é possível ouvir sons dos instrumentos dos músicos da Folia,
realizando a alvorada que anuncia que mais um dia da Folia está chegando, assim vários
foliões se levantam para o café da manhã. Comumente o café é bem forte, para ajudar a
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acordar. Um complemento comum é o pão francês com molho de carne. Em alguns pousos
são servidas quitandas e bolos no lugar do pão.
Logo após o café, chega a hora daqueles foliões que são os responsáveis pelos
acampamentos de cada turma desmontá-los, para seguir para o próximo pouso. Paralelamente
o pessoal da cozinha que havia levantado para o preparo do desjejum, começam as atividades
para aprontar o almoço. O cardápio do almoço é bastante parecido com o da janta servido na
noite anterior, só que em menor quantidade, pois vários foliões já estão na estrada levando o
acampamento para o outro pouso, organizando, assim, mais uma migração durante o giro da
Folia.
Considerações Finais
O simples ato de cozinhar já é considerado por muitos como uma forma de
agradecimento e também uma maneira de exteriorizar tudo aquilo que se gostaria de
transmitir. A comida traz consigo todo sentimento que o cozinheiro tem dentro de si, temática
esta reproduzida em vários livros e filmes, mas que se aplicado à Folia desvenda a devoção e
a religiosidade de um povo como o pirenopolino.
Discussões anteriores nos indicam que a comida é considerada como um meio de
transmissão de mensagens, e percebemos que na Folia ela se preta como fonte de alimentação
física e espiritual, pois é reverenciada e agradecida, como uma forma de comunhão entre os
foliões e destes com o Divino Espírito Santo.
Mesmo diante do improviso que geralmente caracteriza uma cozinha de folia, que se
constitui em uma ampliação improvisada da cozinha da fazenda, onde poucos são os
utensílios ou mesmo equipamentos que poderiam facilitar a preparação de alimentos em
grandes quantidades e em pouco tempo, há um contentamento nítido entre as cozinheiras, os
cozinheiros e demais auxiliares, que promovem uma verdadeira festa enquanto preparam as
refeições.
Assim, a satisfação dos devotos diante da mesa posta se torna nítida no momento em
que se entoa um canto específico, antes de se servirem, cujo refrão é reproduzido no intuito de
demonstrar parte da religiosidade devocional dos foliões e dos demais presentes:
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Ao Senhor oferecemos, aleluia!
O alimento que teremos, aleluia!
Referências Bibliográficas
ALLHOFF, Fritz; MONROE, Dave (Orgs.). Comida & filosofia: coma, pense e seja feliz.
Trad. Mariana Hermann. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2012. 364p.
COSTA, Lena Castello Branco Ferreira. Arraial e coronel: dois estudos de história social.
São Paulo: Cultrix, 1978. 206p.
COSTA, Sérgio Francisco. Método científico: os caminhos da investigação. São Paulo – SP;
Ed. Harbra; 2001. 104p
FERREIRA, Adolpho Randes Mesquita; OLIVEIRA, Alexandre Francisco de. Pouso de Folia
e suas comidas. In: Anais do VI Simpósio Internacional de História: Culturas e
Identidades. Goiânia: UFG, 2013. 1p.
JAYME, Jarbas. Esboço Histórico de Pirenópolis. Goiânia: UFG, 1971. 624p.
JURKEVICS, Vera Irene. Festas religiosas: a materialidade da fé. In: História: Questões e
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LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia
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PERES, Eraldo. Festa Brasileira: folias, romarias e congadas. São Paulo - SP; Senac
Editoras/ Impresão Oficial, 2010. 160p
PINTO, Divino da Silva. A Folia do Divino como atrativo turístico. Pirenópolis: UEGUnU/Pirenópolis, 2009. 30f. (Graduação em Tecnologia em Gestão de Turismo).
VEIGA, Felipe Berocan. Os gostos do Divino: análise do código alimentar da festa do
Espírito Santo em Pirenópolis, Goiás. In: Candelária: Revista do Instituto de Humanidades,
Rio de Janeiro: IH-UCAM, ano V, Jan-Jun, 2008, pp. 135-150.
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AMÉRICA PORTUGUESA E O PROCESSO DE COLONIZAÇÃO:
O CONCEITO DE NOBREZA DA TERRA E O ENRAIZAMENTO
EM UMA SOCIEDADE DE ANCIEN RÉGIME
Alan Ricardo Duarte Pereira2
Introdução
Em 1778, o juiz ordinário e presidente da Câmara de Vila Boa na Capitania de Goiás,
José Cardoso da Fonseca escrevia a rainha D. Maria I sobre o governo de José Almeida
Vasconcelos, o Barão de Mossâmedes3. O juiz ordinário acusava-o, categoricamente, de
nepotismo, arbítrio e, especialmente, de colocar na Casa de Fundição seus familiares e
desprezando “as Reaes Ordens, e o disposto no Regimento respectivo, mudando uns, e
tirando outros fora do devido tempo”. O governador de Goiás também era criticado por
rematar, sem nenhuma consulta aos oficiais da Câmara, a carne por contrato – “por payzoens
e affectos particulares”, escrevia o juiz ordinário. Todo o seu nepotismo e arbítrio era
reforçado, ademais, com a ajuda de duas figuras importantes na capitania: os corregedores e
os ouvidores.
Os corregedores, juntamente com o governador da capitania, eram responsáveis por
cobrar e receber os rendimentos do Conselho e, nessa tarefa, a Câmara não era senhora
alguma – isto é, tanto o corregedor como o governador não procuravam, de antemão, a
Câmara para a aprovação de suas ações. Por sua vez, os ouvidores eram acusados de camuflar
as leis e ordens régias que foram enviadas a capitania. Essa situação gerou, segundo o juiz
ordinário, a necessidade de enviar algumas pessoas a outras capitanias – provavelmente em
Minas Gerais ou Mato Grosso – para se informarem, em detalhes, das principais leis e ordens
régias da Coroa portuguesa.
2
Mestrando em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Tutor a distância no curso de especialização
(lato senso) “História e cultura afro-brasileira e africana”. Membro da Associação Brasileira de Estudos do
Século XVIII. E-mail: [email protected].
3
Ver: AHU-Goiás. ACL_CU_008, Cx. 30, D. 1925.
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Para além dessas críticas e conflitos entre o juiz ordinário, José Cardoso da Fonseca, e
o governador de Goiás, José Almeida Vasconcelos, um aspecto sobressai: ao escrever sobre a
entrega do governo, o juiz ordinário utiliza, muito rapidamente, uma expressão peculiar: a
nobreza da terra. Assim, segundo o documento escrito pelo juiz ordinário, em presença do
corregedor e da nobreza da terra, o Barão de Mossâmedes entregou, no ano de 1778, o
governo de Goiás.
Tratando dos documentos de Goiás presente no Arquivo Histórico Ultramarino, esse
documento de 1778 talvez seja o primeiro – e, certamente, o único – a utilizar, explicitamente,
o termo nobreza da terra para a região de Goiás. Para tanto, ao deparamo-nos com esse tipo
de expressão, subitamente, um emaranhando de questões aparecem. Se o conceito de nobreza
é, antes, proveniente da Europa – e, nesse caso, um título que somente governadores e reinóis
portugueses detinham – como utilizá-los para caracterizar, na América portuguesa, a elite
regional que angariava, com o passar do tempo, privilégios concedidos pelo rei português? O
termo indicava que essa nobreza detinha somente terras – resultado da distribuição de
sesmarias – ou implicava, necessariamente, em outros elementos? Se existiam outros
elementos que conferiram, na América portuguesa, o status de nobre quais seriam? De que
forma estes elementos relacionavam, direita ou indiretamente, com as políticas e ações da
Coroa nas suas possessões de além-mar? Trata-se, portanto, de uma regra geral – todos
poderiam ser nobres ao prestarem serviços a Coroa portuguesa – ou, na verdade, era uma
camada da sociedade colonial restrita? Em regiões auríferas – como em Goiás, Minas Gerais e
Mato Grosso – a nobreza da terra se destacou e, portanto, se tornou um dos principais grupos
sociais ou, na verdade, só podemos encontrar efetivamente nobreza na região nordeste em que
os senhores de engenho, ao possuírem escravos e cabedais volumosos, puderam, com efeito,
adquirir o status de nobreza?
Sem dúvida, esses questionamentos são importantes para uma compreensão elementar
da nobreza na América portuguesa. Em geral, ao levar em consideração a possessões de alémmar observa-se que nos setecentos a contabilidade que regia a relação rei/vassalo no Ancien
Régime se resumia, basicamente, na recompensa dos serviços prestados pelos súditos. Faziase necessário o incentivo ao prêmio para o vassalo se prontificar a realizar feitos em benefício
da Coroa portuguesa. Para tanto, no estudo da América portuguesa a concessão de mercês aos
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súditos tornou-se, com o passar do tempo, fundamental para efetivar a conquistar. Assim, para
explicar esse processo, o conceito de nobreza da terra é, sem dúvida, uma chave-interpretativa
utilizada, atualmente, pela historiografia. Desse modo, o presente trabalho tem como objetivo
fulcral analisar, a partir da contribuição de alguns autores (Fragoso, Bicalho, Monteiro,
Olival), o conceito de nobreza da terra na América portuguesa no século XVIII.
A nobreza da terra e a colonização da América portuguesa
Ademais, em relação à profícua e variada produção historiográfica do Brasil Colonial4
vem esquivando-se, nos últimos anos, de uma visão dicotômica de sociedade apenas
Qual o sentido da expressão ‘Brasil Colonial/Colônia’ no debate historiográfico? Ao realizar essa pergunta,
verifica-se que o termo Brasil Colonial/Colônia apresenta, desde sua utilização no século XVIII, uma variedade
de significados, mas que reflete, historiograficamente, determinadas concepções que vigoraram na academia (no
Brasil e, não raro, no exterior). O trabalho – muito incipiente, infelizmente – produzido em meados de 1996 pela
historiadora Loraine Slomp Giron e Heloisa Eberle Bergamasch intitulado Colônia: um conceito controverso
sumariza, em poucas linhas e muito brevemente, a trajetória desse conceito no Brasil Colonial e, por
conseguinte, na criação de colônias feita pelos (e para os) imigrantes no período Imperial ao longo de todo
século XIX (especificamente de 1756 a 1895). O objetivo do trabalho dessas historiadoras é, tão somente,
analisar o conceito de colônia na História do Brasil, mas, acima de tudo, verificar como o conceito e o processo
de imigração andaram, no século XIX e XX, diuturnamente unidos. Segundo as autoras, o conceito de colônia –
conforme o próprio titulo da obra evoca – é, sem dúvida, polissêmico e, no decorrer do tempo, foi permeado por
mudanças que, na verdade, correspondem às transformações de cunho social e econômicas. Em termos gerais, o
conceito de colônia é dividido, embora passível de questionamento e flexibilização, em quatros momentos da
história brasileira: primeiramente, de 1530 até 1822; num segundo momento, de 1822 a 1850; depois de 1850 até
1889 e, por último, de 1889 a 1914. Para nosso estudo, o período de 1530 até 1822 (mais especificamente, a
chegada da família da Real em 1808) é, além de importante, o ponto privilegiado de nossa análise. Para as
autoras, o conceito de colônia pode ser pensado, em suma, através da contribuição de alguns historiadores que,
ao analisarem esse período em suas investigações, elaboraram, com efeito, um aporte teórico-metodológico
capaz de fornecer integibilidade ao processo de colonização e toda a engrenagem organizada por Portugal.
Assim, antes de 1822, segundo essa concepção historiográfica, o termo Colônia refere-se, exclusivamente, ao
Brasil e a relação estabelecida com a Metrópole (Portugal). Nesse sentido, a colônia é, então, submetida a Coroa
portuguesa de caráter centralizador e a criação de órgãos de exploração e extração de riquezas. A produção
agrícola e a escravidão tornaram-se imprescindíveis para manter o funcionamento da colônia. A partir disso, o
chamado sistema colonial tem como base a submissão, por completo, da colônia aos interesses (meramente
econômicos) da metrópole. O Império português, nesse sentido, é o centro administrativo responsável, não
somente por manter a colônia, mas, sobretudo, a razão para a existência da colônia. A função da colônia é,
simplesmente, de uma economia completar, por isso, sujeita ao poder centralizador de sua metrópole. Tanto
Novais, como Alfredo Bosi são unânimes em afirmar, ademais que a colônia é “[...] parte de um binômio, não
podendo existir sem a Metrópole” (GIRO; BERGAMASCH, 1996, p. 15). Percebe-se, nesse contexto, que entre
a Metrópole e a Colônia estabeleceram, em comum acordo, o ‘pacto colonial’, ou seja, o mecanismo usado pela
Coroa portuguesa com o fulcro de favorecê-la economicamente e, por consequência, deixar a Colônia
dependente. Assim, a relação entre os dois mundos configura-se em dois planos: um centro que decide
(metrópole) e, por outro lado, o outro que obedece (colônia). Para Bosi (1993, p. 26), o conceito de colônia
refere-se, etimologicamente, a ideia “Colo significou na língua de Roma, eu moro, eu ocupo a terra e, por
4
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fundamentada no comércio e na escravidão e discutindo, nesse contexto, o estudo de elites
coloniais5 como uma forma de compreender – para além de uma visão externalista e/ou
econômica – o Brasil a partir da expansão portuguesa.
Acrescentou, grosso modo, que nos domínios ultramarinos desenvolveram práticas
administrativas e sociais complexas, pois, a conquista ultramarina abriu um campo extenso de
prestação de serviços à coroa, o que, por sua vez, criou com a remuneração desses serviços
uma nobreza da terra, ou seja, sem dignidades ou hereditária, mas, de superfície fluída e
volátil. Portanto, se no debate historiográfico do Brasil Colônia surgiram obras que, de certa
forma, elaboraram uma dicotomização entre a relação Brasil e Portugal (com frequência,
Portugal era tido como a metrópole desenvolvida em discrepância do Brasil Colônia
dependente em todos os sentidos)6, por outro lado, e mais atualmente, os historiados7 que
estudam com afinco e profundidade o período colonial, demonstram que nos domínios
ultramarinos desenvolveram, por sua vez, práticas administrativas complexas e, nem sempre a
estrutura social aqui implantada seguiu, de fato , as mesmas formas. Acrescenta que,
Nos últimos anos, a historiografia sobre a América lusa – em estreito
diálogo com a historiográfica portuguesa sobre a sociedade de Antigo
extensão, eu trabalho, eu cultivo o campo [...]. Colo é matriz de colônia enquanto espaço que está ocupando,
terra ou povo que se pode trabalhar e sujeita”.
5
Para tanto, considera-se que “Essa ampliação na perspectiva das análises históricas é bastante importante em
termos historiográficos. Elas significam, em primeiro lugar, que a análise das relações de poder no universo
colonial ultrapassou a visão liberal que impunha uma avaliação depreciativa do que então era nomeado como
“ineficiência”, “desgoverno” e “caos administrativo”. Na tentativa de compreender a lógica da distribuição e da
concorrência entre os diversos poderes na metrópole e nas áreas coloniais, temas clássicos como a administração
colonial, que antes apareciam secundariamente em obras de caráter geral, ganharam historicidade e passaram a
ser examinados em conjunturas específicas e na relação com as dinâmicas imperiais (...). Em segundo lugar, mas
simultaneamente, a dualidade Brasil-Portugal, que havia presidido boa parte de nossa produção historiográfica,
pôde ganhar outras dimensões e conectar-se a outras regiões do Império. As trocas atlânticas passaram a ser
compreendidas também a partir de suas conexões com os mercados asiáticos, e os mecanismos do poder podiam
ser agora estudados na sua dimensão imperial. Em vários sentidos, não se trata mais de pressupor uma separação
irredutível entre Portugal e o Brasil, nem de considerar uma “realidade” colonial que, desde o início, como uma
semente a germinar, se contrapunha ao domínio metropolitano”. (LARA, 2005, p.32-33).
6
Na historiografia brasileira destacam-se, de fato, duas obras fundamentais que influenciaram e, ao mesmo
tempo serviram, certamente, como base explicativa para o Brasil Colonial (sobretudo a explicação para o
fenômeno classificado de ‘crise do sistema colonial’): Padro (1977), em Formação do Brasil Contemporâneo
e, do mesmo modo, a obra de Novais (1979) em Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (17771808).
7
Para um entendimento do Brasil Colônia a partir da perspectiva dos domínios ultramarinos ver, por exemplo, as
seguintes obras:, Bicalho (2005), Fragoso (2007, 2000, 1998), Hespanha (1994), , Olival (2001) e Mello ( 2000).
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Regime – tem dado grande destaque às discussões acerca das elites
coloniais. Em meio a estes estudos sobre as elites, um dos problemas
bastante discutido diz respeito ao emprego do conceito de nobreza para
as elites coloniais. Nos estudos sobre a nobreza no reino, coloca-se em
meio às discussões uma questão, que diz respeito ao grande
alargamento que o conceito de nobreza passa a sofrer ao longo do
tempo (sobretudo a partir do século XV), o que fez com que, em certa
medida, tal conceito não se configurasse exatamente como um circuito
de classificação social tão restrito no reino lusitano, se for visto níveis
comparativos com seu emprego em outros Estados modernos como o
espanhol e o francês. Deixando de ser um atributo diretamente ligado
ao desempenho de uma função (no caso militar, ligado ao contexto de
constituição do reino, e formação do Estado Nacional) – o conceito de
nobreza, a partir do século XV, passa a ser, antes de tudo, um
designativo de qualidade daquele que o detinha. (NOGUEIRA, 2008, p.
5).
Nesse sentido, ao estudar o Brasil no período da expansão portuguesa e o processo de
colonização de outras áreas ultramarinas, é fundamental constatar que a estrutura social criada
na América portuguesa não foi, de maneira exata, uma cópia fiel do modelo hierárquico e
econômico de Portugal. Por conseguinte, encontramos a coexistência de aspectos similares e
discrepantes, mas que, sem dúvida, constituíram como estruturantes da sociedade colonial
resultando, segundo Jancsó (2000), na conjugação simultânea de aspectos ‘replicantes e
desviantes’.
O termo ‘nobreza da terra’8 no Brasil Colonial é seguido, evidentemente, de variações
8
No estudo sobre as elites coloniais e a nobreza da terra, a historiadora Bicalho assinala, de maneira
esclarecedora, que “Há historiadores que afirmam que a designação qualidade nobreza da terra só pode ser usada
ao nos referirmos à açucarocracia pernambucana. Alguns argumentam que, de toda a América portuguesa, só
tem Pernambuco colonial o termo nobreza da terra aparece na documentação. Daí ser legitima a utilização do
termo no que concerne às demais capitanias da América portuguesa. O termo, no entanto, aparece em diferentes
fontes da época . Só a título de exemplo, na carta 5º das Cartas Chilenas, de autoria de Thomas Antónia
Gonzaga, lemos entre os versos 201 e 205. Acaba-se a função e o nosso chefe / à casa, com bispo recolhe/ A
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semânticas e , portanto, de caráter polissêmico – em alguns casos esse termo é polêmico. Para
ter uma ideia concreta do conceito e não utilizá-lo inadequadamente, seguem-se, em geral e
atualmente, três perspectivas de interpretação nomeadamente no período colonial. No
Nordeste, e, principalmente, a região do Pernambuco, o historiador Mello (2008, 1995, 1989)
caracteriza a nobreza da terra a partir de três aspectos: uso orgânico da palavra, discurso
genealógico e, por último, um imaginário nativista. Ao utilizar o termo nobreza da terra,
pretende-se, garante o respectivo historiador, alagar tal conceito para outras camadas da
sociedade – além dos indivíduos do Reino – mas, acima de tudo, os descendentes (filhos e
netos) que participaram da luta contra os holandeses.
Em contraposição a Pernambuco, nos últimos anos e em decorrência dos estudos para
a região do Rio de Janeiro, o historiador Fragoso ( 2007, 2000, 1998) concebe a nobreza da
terra, dentre outras coisas, pela noção de ‘elites locais’, poder municipal, origem de um oficial
ou régio, concessão de mercês, cargos administrativos, etc. No entanto, o ponto de fundador –
historicamente e socialmente – é, para Fragoso (1998), o ‘ideário da conquista’,resultado,
afinal, da luta contra os franceses e tamoios em 1566 e 1620.
Dentro da ampla produção historiográfica sobre a nobreza da terra, as regiões do
Nordeste e Rio de Janeiro são, até o presente momento, o epicentro e, em certa medida, o
nobreza da terra os acompanha / Até que montam a dourada sege). No entanto, o que se pretende aqui não é
discutir se o termo encontra-se ou não documentação e, sim a construção a partir de certos atributos das elites
coloniais de diferentes capitanias.” (BICALHO, 2005a, p. 24). Diante dessa constatação e de acordo com
Koselleck (2006), considera-se que a formulação de conceitos no conhecimento histórico corresponde, em linhas
gerais, a dois níveis: com expressões de uma época que são transmitidas em documentos (oficiais ou não) para
refletir sobre si própria que, mais adiante, o historiador utilizar-se-á como recurso heurístico de acesso ao
passado e, segundamente, os conceitos e categorias criadas pela comunidade científica ou, mais precisamente,
pelo saber historiográfico. Desse modo, podemos inferir que o conceito de ‘nobreza da terra’circula, ademais,
nos dois níveis, mas de acordo com a região (no caso de Pernambuco) e o período histórico, como também, pela
formulação dos historiadores no presente, com o objetivo de acessar o passado (mesmo que tais formulações não
encontrem existência nas fontes). Assim, com relação aos conceitos, podemos inferir, em última análise, que
“Quando o historiador mergulha no passado, ultrapassando suas próprias vivencias e recordação, conduzidos
por perguntas, mas também por desejos e inquietações, ele se confronta primeiramente com vestígios que se
conservaram até hoje, e que em maior ou menor número chegaram até nós. Ao transformar esses vestígios em
fontes que dão testemunho da história que deseja apreender, o historiador sempre se movimenta em dois planos.
Ou ele analisa fatos que já foram anteriormente articulados na linguagem ou então, com a ajuda de hipóteses e
métodos, reconstrói fatos que ainda não chegaram a ser articulados, mas que ele revela a partir desses vestígios.
No primeiro, os conceitos tradicionais da linguagem das fontes servem-lhe de acesso heurístico para
compreender a realidade passada. No segundo, o historiador serve-se de conceitos formados e definidos
posteriormente, isto é, de categorias científicas que ‘são empregados sem que sua existência nas fontes possa ser
provadas.” (KOSELLECK, 2006, p. 305 ).
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ponto privilegiado e configurador das análises. No entanto, nos últimos anos, os trabalhos de
historiadores para a região de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás ganham, paulatinamente,
uma contribuição significativa. Para Minas Gerais, a tese de doutoramento na Universidade de
Brasília da Stumpf (2009) é, em linhas gerais, a tentativa de entender a nobreza na sociedade
mineira pela solicitação de mercês régias e hábito das ordens militares. Afirmar que
A renovação historiográfica sobre as formas de integração das
diferentes partes da América na monarquia portuguesa trouxe novas
perspectivas analíticas acerca das elites coloniais, em particular no que
se refere às suas esferas de atuação e às estratégias percorridas para a
consolidação do seu prestígio local. O pressuposto de que as relações
entre o centro político e os domínios ultramarinos pautaram-se também
pela
negociação
tem
contribuído
para
que
alternativas
de
engrandecimento social específicas do contexto americano passassem a
dividir a atenção dos historiadores com aquelas que percorriam as vias
oficiais. Não surpreende, portanto, a ênfase dada ao impacto gerado
pelo sistema de doação de mercês régias na consolidação das
hierarquias sociais na América e a sua importância na formação de uma
nobreza reconhecida jurídica e oficialmente, tema que nos interessa em
particular. Não se trata de analisar esta conquista como um imenso
Portugal, mas de considerar que seus habitantes também acolheram os
critérios hierárquicos trazidos pelos colonizadores [...]. A recente
historiografia brasileira tem atentado para isso e, não obstante as
pesquisas versem sobre territórios específicos que compunham a
América, elas permitem concluir que em todos os cantos desta
conquista estratégias de afirmação social se repetiam, embora
ganhassem relevâncias distintas a depender das realidades locais
(STUMPF, 2009, p. 119-121).
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É necessário pontuar, nesse quadro historiográfico, que a nobreza da terra foi
caracteriza, quase sempre, como os ‘senhores de engenho e dono de escravos’ (especialmente
na região de Pernambuco), o que, por sua vez, remete a associação da nobreza da terra com
dois aspectos: poder e riqueza. Segundo Silva (2005), a riqueza, para muitos historiadores,
constitui um dos aspectos latentes da nobreza. Porém, a nobreza no período moderno e, de
igual modo, mas num contexto histórico diferente, nos domínios ultramarinos no Brasil, foi-se
abrindo paulatinamente. Por consequência, admite-se que nem sempre riqueza e nobreza
estavam relacionadas, uma vez que o fundamental, no período moderno, eram as ações dos
indivíduos e não seu poder material.
A dificuldade de entender o termo nobreza da terra ou, mais exatamente, a dinâmica
que envolvia o enobrecimento de certo indivíduos recai, em linhas gerais, no fato que,
Veja-se assim que a historiografia ao utilizar conceitos generalizantes
para denominar os grupos que possuíam hegemonia social, elites ou
nobrezas da terra, acaba por minimizar a hierarquia entre as nobrezas e,
paradoxalmente, por desconsiderar o que ela própria enfatiza: também
na América portuguesa o monarca era a instância máxima de ordenação
social e a importância de um indivíduo à escala local era mais
acentuada quando se baseava na influência da monarquia na definição e
na estruturação dos grupos sociais. Observa-se assim que é justamente
porque distintos padrões societários (local e reinol) coexistiam que
podemos afirmar que a nobreza colonial era heterogênea, hierarquizada
em distintos patamares cujo acesso dependia, fundamentalmente, das
estratégias ascensionais percorridas. Se a notoriedade atribuída
localmente era uma forma de nobilitação 32, aquela advinda da
anuência régia explícita ainda era mais importante, razão pela qual no
interior das nobrezas coloniais um grupo se sobressaía por ser portador
dos mesmos atributos que definiam as nobrezas civis na monarquia
portuguesa em todos os seus quadrantes (STUMPF, 2009, p. 125-126).
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Portanto, nesse contexto, o conceito de ‘economia da mercê’ 9é imprescindível para o
estudo da nobreza no Brasil. Segundo a perspectiva da autora portuguesa Olival (2001), a
economia da mercê éintegrante de uma sociedade de ultramar baseada, não somente em
relações escravista e comercial, mas, principalmente, nas ideias e práticas de Antigo Regime.
Trata-se, nesse sentido, de uma economia moral de regras não escritas formalmente, mas que,
na América portuguesa, resultaram “[...] numa série de compromissos com as elites locais e
com concepções enraizadas de uma distribuição adequada [...]” (MENDES, 2010, p. 11). Essa
abordagem ressalta – oriunda, em grande parte, da contribuição de autores portugueses, como
Olival (2001) e Hespanha (1993, 1994, 2009) e, sobretudo, Monteiro (2011, 2007 e 1988) –
que, no caso ibérico, o paradigma jurisdicional do século XVI a XVIII (viés corporativo da
sociedade) conferia a figura do monarca seu papel no corpo social e político de manter a
ordem em Portugal e nos domínios ultramarinos através da concessão de privilégios
(economia da mercê) aos serviços prestados (ou seja, dar a cada um o que é seu). De modo
geral, constata-se que “A economia da mercê era relevante não só para os reinóis que
habitavam as diversas colônias que compunham o império português, mas também para os
nativos e até mesmo indígenas (...)”. (FERREIRA, 2012, p. 7).
Segundo Olival (2001, p. 25), no período moderno, a remuneração dos serviços
prestados à Coroa representou, ademais, as reverberação de ideias do Antigo Regime, pois
“(...) liberalidade, o gesto de dar era considerado, na cultura política do Antigo Regime, como
virtude própria dos reis, quer em Portugal, quer no resto da Europa Ocidental”10.
Assim, o estudo da nobreza concentra-se, ademais, na redefinição do próprio conceito
na América portuguesa e, portanto, seguido de um atrativo (além do ouro e a sociabilidade
Para tanto, o autor brasileiro, Fragoso (2007) utiliza-se o ‘conceito de economia do bem comum’ e, em paralelo,
o autor português, Hespanha (2009) aventa o termo ‘graça’, ou ‘economia da graça’, assim, “O autor trabalhou
[Fragoso] com o conceito do bem comum, para demonstrar que a velha prática de conceder mercês também foi
estendida aos domínios ultramarinos portugueses, nos quais o rei concedia cargos, honras e privilégios àqueles
que lhes prestassem serviço algum tipo de serviço, conferindo-lhe vantagens econômicas e prestígio social [...].
António Manuel Hespanha demonstrou-nos um conceito central [...]. Tal conceito era o de graça, característico
da tradição jurídica européia medieval. Graças está relacionado ao ato de dar (liberalidade régia) e de gratidão ao
rei, que tinha como dever com uma recompensa [...]” (FERREIRA, 2012, p. 7).
10
A chamada liberalidade régia formulada, então, desde Aristóteles, porém ressignificada constantemente foi
onipresente na cultura cristã e, especialmente, nos domínios ultramarinos.
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religiosa) de ascensão social – ou, mais especificamente e socialmente, da nobilitação pelos
serviços prestados. Por conseguinte, o que foi definido por Caio Padro Júnior como sentido
dacolonização no livro Formação do Brasil Contemporâneo (1977) implica dizer – mas numa
lógica diferenciada que preconiza não somente o caráter meramente econômico/comercial e
escravista – o projeto de colonização da América Portuguesa abriu, então, um campo
incomensurável de prestações de serviços que, ao serem executados, permitiu o
estabelecimento de nobres – acompanhando, por sua vez, de privilégios nobilitantes.
Ao se verificar essa dinâmica de nobilitação podemos inferir que a nobreza da terra
possuiu características bastante específicas. Em contraposição ao que predominava em
Portugal – a dita “nobreza de sangue” – nos domínios ultramarinos a nobreza da terrafoi,
ademais, se fixando paulatinamente em consonância com o desenvolvimento também gradual
da sociedade. Observa-se que a riqueza e, mais raramente, o poder dos indivíduos não
puderam conferir a tais indivíduos o tratamento de nobre. Segundo Silva (2005), é
interessante perceber que, se tratando da nobreza da terra é,
Um dos temas preferidos da historiografia do Brasil colonial é a relação
entre riqueza e poder, convencionando-se chamar ‘nobreza da terra’
aqueles que, por oposição ao grupo mercantil, assentavam nas
sesmarias recebidas, destinadas a engenhos ou fazendas de criatório, e
no número de escravos possuídos os esteios de seu prestígio social [...]
nobreza e fortuna nem sempre se conjugaram no Brasil colonial, muito
embora a riqueza de alguns indivíduos lhes tenham permitido o
‘tratamento’ nobre, ou seja, viverem à lei da nobreza. Mas, se eles
efetivamente foram nobres, de acordo com o código honorífico da
época, é porque conseguiram formalizar as honras por meios vários:
foros de fidalgo da Casa Real, hábitos das ordens militares, instituições
de morgados (mas não de capelas, insuficientes para tal fim),
ocupações dos cargos camarários ou dos postos da oficialidade das
ordenanças. O tratamento nobre só por si não chegava para fazer um
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nobre; era preciso algo mais, um enquadramento nas graças honoríficas
existentes (SILVA, 2005, p. 131-132).
Além disso, a autora pontua que
(...) nobreza e riqueza não eram sinônimos na sociedade colonial. Podia
haver indivíduos de condição nobre sem grandes meios de fortuna e
conservando apenas aqueles mínimos sinais exteriores de nobreza
(cavalo, armas, criados) para não serem socialmente desclassificados, e
indivíduos de fortunas avantajadas sem cargos, postos ou honras que os
elevassem acima dos plebeus (SILVA, 2005, p. 256).
Desse modo, o fato de relacionar nobreza da terra com poder e riqueza, levou, segundo
a respectiva autora, identificar a nobreza da terra, unicamente, com senhores de engenho e
dono de escravos e terras. Entretanto, a nobreza da terra pode, de fato, apresentar certas
características exteriores (como o próprio poder e dinheiro), mas, a um só momento, possuiu
outras evidências profícuas (quer simbólica e/ou o poder de atuação nos principais órgãos da
administração ultramarina, por exemplo, na câmara).
Conclusão
Ao realizar um pormenorizado estudo sobre a nobreza no Brasil Colonial, Silva (2005)
concluiu que estudar a nobreza, independente de qual período e lugar, é uma tarefa difícil de
pensar e, acima de tudo, de escrevê-la. Para além de uma análise quantitativa, baseada em
dados altamente estatísticos e genealógicos de famílias, a preocupação é analisar – e,
sobremaneira, problematizar – a redefinição do estatuto de nobre na América portuguesa.
Desse modo, pode-se constatar que, em cada capitania da América portuguesa – que, à
primeira vista, parece ser um grupo social fechado e, portanto, destinado somente aos grandes
e detentores de prestígio social – se desvanece e assume outras evidências. Ao estudá-la,
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notamos, de maneira mais elementar, que nem sempre riqueza e poder estiveram entrelaçadas
ao estatuto de nobre.
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A HERANÇA PORTUGUESA NA REPRESENTAÇÃO DE FÉ CRISTÃ DO CENTRO
OESTE BRASILEIRO: O DIVINO ESPÍRITO SANTO EM PIRENÓPOLIS – GO11
Alexandre Francisco de Oliveira
UEG — Campus Pirenópolis
[email protected]
Isso que é salvação da alma
Muita religião seu moço!
Eu cá não perco ocasião da religião [...].
Tudo me quieta, me suspende.
Qualquer sombrinha me refresca
Mas é só muito provisório.
Eu queria rezar o tempo todo.
(Grande Sertão Veredas,
Guimarães Rosa)
Os primeiros registros do culto ao Espírito Santo dão datados do século XII em
Portugal quando a Rainha D. Isabel cria a Igreja do Espírito Santo em Alenquer. De início era
uma festa de pequenas proporções, quando em gestos de caridade a população distribuía
esmolas aos pobres, somente mais tarde no século XVII que a festa ganha maior notoriedade
(CARVALHO, 2008).
Apesar das inúmeras e conhecidas contradições sobre a criação da festa do Divino, a
mesma se espalhou pelo Brasil e está presente em quase todas as regiões, principalmente em
cidades do interior como é o caso de Pirenópolis – GO onde a celebração é tida como a Festa
11
Fomento: PrP/UEG por meio do Projeto de Pesquisa: Pesquisa Girando Folia: apontamentos turísticos e
gastronômicos em um das devoções ao Divino Espírito Santo – Pirenópolis/Goiás, do qual é bolsista PVIC/UEG.
Integrante do Grupo de Pesquisa Saberes e Sabores Goianos. Orientador: João Guilherme Curado.
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do Divino com maior significância para o Brasil, sendo por isso registrada em 2010 como
Patrimônio Cultural do Brasil, pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan).
O Divino Espírito Santo em Pirenópolis
Pirenópolis fundada em 1727, ainda nos dias atuais mantém viva parte significativa
das tradições ali implantadas há quase três séculos pelos colonizadores portugueses. Dentre
estas manifestações destacamos as Folias presentes na cidade por quase dois séculos e
realizadas a cada ano em homenagem ao Divino Espírito Santo por ocasião de Pentecostes,
quando ocorre “a descida do céu do Espírito Santo, em forma de línguas de fogo, sob os
apóstolos de Jesus, transmitindo-lhes sabedoria e força, de modo que eles, homens simples,
passaram a pregar o Evangelho em várias línguas” (Atos dos Apóstolos, capítulo 2, 1-13).
Enquanto no Velho Testamento, Pentecostes era considerada uma festa judaica referente à
colheita do trigo (Chawuot), celebrando sua maturação e também a colheita deste cereal sete
domingos ou cinquenta dias após a Páscoa, com oferendas e sacrifícios, compondo uma
grande festa, conforme observou Veiga (2002).
A festa teve o seu primeiro registro em 1819, sendo promovida pelo Coronel Joaquim
da Costa Teixeira, consagrado como Imperador do Divino.
Ao Imperador cabe a responsabilidade de promover e cuidar para que tudo se realize
com ordem, incentivando, angariando fundos e mobilizando a população nos afazeres da
festa. O prestígio social e político do Imperador é tão grande que, naqueles tempos, possuía
inquestionável autoridade, a ponto de libertar da cadeia presos políticos, o que realmente era
feito (VEIGA, 2002).
Poucos anos após, em maio de 1826, o Festeiro, como também é chamado o
Imperador do Divino Espírito Santo em Pirenópolis, Padre Manuel Amâncio da Luz,
introduziu as Cavalhadas e mandou confeccionar uma coroa de pura prata, a Coroa do Divino,
oferecendo-a à Igreja Matriz. Distribuiu, de casa em casa, pãezinhos e alfenins, docinhos
feitos de açúcar puro chamados de Verônicas, à população, o que foi de bom grado, tanto que
virou tradição e até hoje se distribui, além destes, salgadinhos e refrigerantes.
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A cada ano, para cada festa, um novo Imperador é eleito, por sorteio (BRANDÃO,
1978). Segundo a tradição qualquer cidadão, sendo de qualquer idade ou classe social pode se
candidatar ao encargo de Imperador (SILVA, 2001). Mas hoje, devido aos interesses de
autopromoção política e ao fato de boa parte da população não ser mais católica, o sorteio é
restringido aos integrantes da Irmandade do Santíssimo Sacramento. O sorteio é realizado na
presença de todos no Domingo de Pentecostes, o Domingo do Divino.
O Imperador do Divino retrata, com toda sua simbologia, o Rei, a Rainha e a Corte
portuguesa, destacados por portarem a Coroa, o Cetro e pelas meninas virgens vestidas de
branco que os antecedem na Procissão do Divino, onde com toda pompa, caminham pelas
ruas da cidade, circundados por quatro varas sustentadas por quatro virgens, seguidos pela
Banda de Música à frente dos partícipes.
Folias: Um universo popular de saberes e fazeres
As Folias foram trazidas ao Brasil pelos padres jesuítas e serviram como um
instrumento na catequização dos índios e, posteriormente, dos negros escravos. Existentes até
hoje as folias celebram diversos santos em todas as regiões do país. Na cidade de Pirenópolis
as Folias que celebram o Divino Espírito Santo foram criadas a quase dois séculos e visavam
a integração da área urbana com a rural por meio da passagem das bandeiras do Divino.
Assim os devotos se reuniam e se locomoviam a cavalo até as localidades em que ocorriam
as paradas da Folia, conhecidas como “pousos de folia” e ali pernoitavam, recebiam
alimentação e entoavam cantos e dançavam até o horário da partida.
As Folias em louvor ao Divino Espírito Santo antecedem as tradicionais Cavalhadas
(encenação de batalha entre Mouros e Cristãos) que acontecem 45 dias após a Páscoa. As
Folias do Divino em Pirenópolis, atualmente, são compostas por três grupos distintos: os que
participam da Folia da Zona Rural (Folia Tradicional); a Folia da Renovação Cristã
(denominada como Folia do padre e que também percorre a Zona Rural) e Folia da Rua, que
gira pelos bairros da cidade.
O que difere as Folias: Tradicional e Renovação Cristã (SIQUEIRA, 2013), que giram
pela área rural é que na primeira permiti-se a venda de bebidas alcoólicas e possui tendas de
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som; enquanto na segunda é celebrada uma missa a cada pouso e o público presente é mais
religioso. Já a Folia da Rua é bastante semelhante com a Folia Tradicional, só que o giro dos
foliões acontece pelos bairros da cidade e a pé.
Tradicionalmente acontecem nove pousos durante a Folia, sendo que o giro é feito em
360º; reza a tradição que se a sequência de pousos não for feita obedecendo à circularidade
alguns dos integrantes vem a falecer durante ou logo após o giro.
Na zona rural as pessoas participam dos deslocamentos da Folia em sua maioria
montadas a cavalos e acampam nas fazendas girando em todos os pousos. Outras utilizam
veículos e participam por um determinado horário e depois retornam à cidade, estes são
considerados como “cata pousos”; na Folia da Rua o giro é feito a pé.
Os foliões portam bandeiras do Divino Espírito Santo que são altamente veneradas
pelos fiéis.
Os cantos rituais acontecem de acordo com cada momento: ao chegar cantam pedindo
permissão para adentrar a propriedade onde está preparado um arco que simboliza a
delimitação do espaço sagrado e profano (ao passar pelo arco os foliões deixam a terra e
vislumbram o céu); mais tarde os cantos são utilizados para oferecem o jantar e logo em
seguida à refeição em conjunto, os foliões agradecem a mesa cantando. A música embala
ainda quando os foliões dançam catira, fazem alvorada com tambores na madrugada antes de
tomar café, quando ofertam o almoço e fazem o agradecimento da mesa, e agradecem a
família que os acolheu e lhes ofereceu pouso e alimentação. Estes últimos momentos
consistem no enceramento daquele pouso, e acontece antes de prosseguir para o próximo
destino.
As casas que abrigam os pousos de Folia costumam ser decoradas com bandeirolas e
cartazes. Há a necessidade de se providenciar altares que são enfeitados para receberem as
Bandeiras que ali pernoitarão.
Próximo às cozinhas são montadas tendas de palha ou de lona onde são colocadas as
várias refeições servidas aos foliões durante o pouso. As tendas montadas ao lado de fora
fazem alusão a arquitetura das casas-grandes onde habitavam os portugueses no Brasil
Colônia que possuíam uma cozinha suja na parte externa onde ficavam os fogões, despensas
etc., e onde se preparavam comidas mais pesadas e que gerassem sujeira, sendo que as
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cozinheiras eram as índias e escravas, deixando a cozinha interna para os doces e comidas
mais delicadas que produzissem menos bagunça e que eram feitos pelas mãos das
portuguesas. No contexto gastronômico entre as senhoras português, índias e escravas criouse a grande e rica miscigenação alimentar brasileira, com contribuições riquíssimas advindas
desse trio.
Para as cantorias são utilizados: violões, sanfonas, pandeiros, chocalhos, instrumentos
comumente utilizados também nas folias de Reis de Portugal e em diversas outras folias
Brasil afora.
As famílias vizinhas ajudam com doações de alimentos para as refeições, e na
preparação de quitandas e de doces que serão servidas.
Autoridades e policiais marcam presença na tentativa de garantir a segurança dos
foliões e dos cata pousos (pessoas que não costumam perder as festividades da Folia) que
chegam a ser milhares dependo do local em que é realizado o pouso.
Dádivas: O elo entre Deus e o Homem e o banquete para celebrar o Espírito Santo
Em pesquisas anteriores, abordamos as relações alimentos com a Festa do Divino,
principalmente com as comidas de pousos (FERREIRA; OLIVEIRA, 2013). Assim como a
fartura que se põe a mesa durante as Folias (CURADO; FERREIRA; OLIVEIRA, 2014), que
são elementos que por meio das inúmeras refeições servidas durante os pousos, possibilitam a
manutenção de elos entre o terreno e o celeste.
As celebrações presentes na Folia permitem, de certa maneira, renovar os laços dos
foliões com seus ancestrais que realizavam no passado esses mesmos rituais. As Folias do
Divino Espírito Santo em Pirenópolis possui a capacidade de agregar crianças, jovens, adultos
e idosos, atualmente mulheres também vêm participando da maioria das etapas ritualísticas.
As cozinheiras em quase todos os pousos são devotas e doam trabalho por devoção ao
Divino. As comunidades próximas se unem para ajudar o dono da casa na realização por
ocasião da promoção do pouso de folia.
Concordamos que as Folias do Divino que acontecem em Pirenópolis podem ser
consideradas como festas reveladoras da forma singular e eclética adquirida pelo catolicismo
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no Brasil, um catolicismo pragmático, tolerante, pouco dogmático de grande proximidade
entre o devoto e a santidade o que lhes autoriza uma relação íntima e pessoal (VEIGA, 2002).
Na Festa do Divino se realizam grandes distribuições e compartilhamento de
alimentos para celebrar a fartura e as bênçãos, como retrata Veiga (2008) ao explicar que
quando as folias percorrem grandes distâncias a cavalo em um circuito
de fazendas pela zona rural de Pirenópolis (folia da roça) ou seguem a
pé pelas casas da periferia da cidade (folia da cidade). Os donos da
casa, na posição de anfitriões e muitas vezes cumprindo promessa
recebem tanto os devotos foliões, que giram com a bandeira e dormem
de modo improvisado, quanto os cata-pousos, que formam o grande
público que vai às fazendas para festar, voltando à cidade a cada noite.
Fé e diversão se conjugam no mesmo ritual, em que a fartura
alimentar é notavelmente um dos principais atributos (p. 04).
Os cardápios variam de acordo com a condição de cada anfitrião e com a quantidade
de alimentos conseguidos, porém, o caldo de mandioca com carne está sempre presente,
tornando-se prato quase que obrigatório.
A comida preparada e servida durante um pouso de Folia do Divino Espírito Santo tem
várias funções simbólicas, desde alimentar a quem tem fome de alimentos como também pode
ser compreendida como uma comunhão entre o homem e Deus, por meio da reciprocidade da
dádiva.
Considerações Finais
A tradição ao Divino traduz-se na fé de um povo, que recebeu a festa como herança de
seus colonizadores e a adaptou de acordo com suas possibilidades e necessidades, cuidando
de cada detalhe de tal forma que quase 200 anos após sua criação continua a cativar crianças,
jovens, adultos e idosos, assim como pessoas de todos os lugares, causando lágrimas e
emoções ao som do Hino do Divino.
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Vinde, Ó Espírito Divino
Consolador, descei lá do Céu
A dar-nos riquezas de Vosso amor.
(Música de Antônio da Costa Nascimento)
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OS VÍNCULOS DOS ESCRAVOS COM A TERRA E SENTIMENTOS DE
PERTENCIMENTO AO LUGAR (ENGENHO DE SANTANA DOS ILHÉUS,
SÉCULOS XVII E XVIII)12
André Mariano Neri13
Introdução
Localizava-se em Ilhéus, (território da antiga Capitania de São Jorge dos Ilhéus),
região do sul do atual território do Estado da Bahia, um dos engenhos de açúcar mais antigos
do Brasil Colonial, o Engenho de Santana que fora criado no século XVI pelo então
governador geral Mem de Sá. Após o seu falecimento, em 1572, o empreendimento foi
herdado pela sua filha Felipa de Sá que posteriormente se casou com Dom Fernando de
Noronha (Conde de Linhares). Em 1618, Felipa morreu e sem herdeiros deixou suas
propriedades entre elas o Engenho de Santana para o Colégio de Santo Antão de Lisboa14.
Devemos atentar para o fato do Engenho de Santana figurar nos séculos XVII e XVIII, como
o único de uma vila deslocada do eixo açucareiro que era o Recôncavo Baiano. Precisamos
ainda destacar que a área do Recôncavo constituiu um berço propício à economia açucareira
por vários motivos dentre eles: terras férteis entrecortadas de rios e abrigo para navios que
faziam o transporte oceânico. A rede hidrográfica proporcionava transporte barato e fácil para
a cana das lavouras para o engenho, e o açúcar dos engenhos para o porto de Salvador. Além
12Este trabalho é fruto do projeto de Iniciação Científica intitulado: “Administração jesuítica, relações
escravistas e territorialidades no Engenho de Santana dos Ilhéus (séculos XVII e XVIII)”, desenvolvido no
Centro de Documentação e História Regional (CEDOC) da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC),
Ilhéus, Bahia, sob a coordenação do Professor Doutor Marcelo Henrique Dias (Departamento de Filosofia e
Ciências Humanas – DFCH) financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).
13Graduando do 8º semestre em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). E-mail:
[email protected].
14Instituição de Ensino fundada em Portugal em 1553. Foi o segundo colégio fundado sob a direção dos
Jesuítas, o primeiro é o de Messina (Sicília), em 1548, e após o Colégio de Santo Antão de Lisboa, seguiram-se o
Real Colégio das Artes em Coimbra, sob a administração dos jesuítas a partir de 1555, e uma universidade em
Évora
em
1559.Disponível
em:
<http://www.snpcultura.org/jesuitas_e_investigacao_cientifica_em_portugal_factos_e_enganos.html>
Acesso
em: 28 jun. 2014.
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da abundância de vias fluviais, o Recôncavo beneficiava-se de bons solos, clima propício e
boa taxa pluviométrica. (FERLINI, 1988, p. 159, 160).
Enquanto o Engenho de Santana era atípico nesses quesitos. Encontrava-se longe das
rodas fluviais e isso acabava aumentando o custo da produção devido à dificuldade de
transportar o açúcar produzido até a Bahia (Salvador) para que de lá fosse enviado para a
Europa e, ao mesmo tempo, trazer o necessário para o funcionamento do engenho, por
exemplo, maquinário, novos escravos, ainda com tantas adversidades conseguiu se consolidar
como um grande centro de produção açucareira.
Um dos objetivos desta pesquisa foi refletir sobre quais são as especificidades da
chamada brecha camponesa ou economia autônoma dos escravos no Engenho de Santana, no
período que esteve na administração dos padres da Companhia de Jesus, considerando o que
as fontes documentais revelam. Sendo que tal prática consistia na oferta ao escravo de um
pedaço de terra e de uma folga semanal para cultivá-lo para sua subsistência, incluindo o
direito de vender o excedente ao mercado.
Tal investigação serviu também para dialogar com a historiografia que estuda a região
onde estava localizado o referido engenho. As conclusões que ora se apresentam foram
construídas a partir do confronto cotidiano entre as fontes transcritas e o referencial teóricometodológico que norteou a pesquisa. A partir dessa pesquisa, pode-se concluir que, dentre os
mecanismos de barganhas presente no Santana, o mais importante e amplamente praticado
consistia na oferta ao escravo de um pedaço de terra e de uma folga semanal para cultivá-lo
para a sua subsistência, incluindo o direito de vender o excedente nos mercados locais,
gerando renda para os produtores. Além de identificar as práticas dos cativos em relação às
experiências afetivas, independentes da legitimação ou não do casamento, o que contribuiu
para o fortalecimento dos vínculos com a terra.
É preciso salientar, desde já, que há uma escassez de estudos sobre a escravidão negra
na capitania de Ilhéus no período colonial15. Mas, esse caso de negligência por parte da
15Sobre a escravidão em Ilhéus, os trabalhos mais conhecidos entre outros são os de Stuart Schwartz sobre o
Engenho de Santana (SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos da sociedade colonial 1550
– 1835; Td. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.). João José Reis sobre o Quilombo do
Oitizeiro. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (org.). Liberdade por um fio: história dos
quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
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bibliografia dedicada à escravidão não é específico dessa região. Daí a importância e
necessidade de novas pesquisas.
Segundo Silvia Hunold Lara, a partir da década de 1980, a produção historiográfica
brasileira dedicada à escravidão dos africanos e seus descendentes passaram por
transformações que redimensionaram a abordagem do tema. Os valores e as ações dos
escravos foram incorporados como elementos importantes para a compreensão da própria
escravidão e de suas transformações (LARA, 2005, p. 25). Todavia, conforme ressalta Lara, a
historiografia brasileira mais recente sobre o período colonial tem se voltado para o estudo
das camadas dominantes. Cada vez mais conhecemos os modos de governar, os homens bons,
o mundo dos letrados e as formas de ler e sentir, os poderes locais, a nobreza e as elites
coloniais, mas continuamos a saber pouco sobre a história social dos séculos XVII e XVIII.
Assim, propomos discutir as práticas sociais e culturais de um determinado grupo subalterno,
até pouco tempo ignorado pela historiografia.
Entendemos que há a necessidade de enfatizar as múltiplas formas pelas quais os
sujeitos
sociais
se
constituem,
relacionam-se,
dominam,
resistem,
reagem,
constroem/destroem uma ordem social vigente. Assim, devemos chamar a atenção para o
corpo documental que utilizamos nesta pesquisa pois, trata-se de um conjunto de cartas, dos
administradores jesuíticos do Engenho de Santana, que escreviam para os seus Superiores em
Portugal relatando as dificuldades e o andamento das atividades que estavam sendo realizadas
neste lado do Atlântico.
Outro tipo de fonte que estamos utilizando são os documentos já publicados que são
riquíssimos de informações e que dialogam com o nosso objeto de estudo. Trata-se de
trabalhos que há tempos vem sendo utilizados por pesquisadores das mais diversas áreas das
ciências humanas. Aqui, iremos elencar apenas uma delas: a obra Economia Cristã dos
Senhores no Governo dos Escravos (1700),do padre jesuíta Jorge Benci, que escreveu com o
objetivo de estabelecer certas normas de conduta para os senhores no tratamento dos escravos.
Fugindo ao simples arrolamento de regras ideais a serem cumpridas segundo a boa vontade
dos senhores, Benci não só discute os fundamentos teológicos e filosóficos de suas
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proposições, como não oculta as dificuldades em se conseguir um relacionamento harmônico
entre senhores e escravos. Longe de ser uma condenação do escravismo, o livro de Benci é,
antes, a tentativa – hoje sabemos que frustrada – de regular a relação senhor/ escravo
(FIGUEIRA; MENDES, 1977). Desse modo, Economia cristã aponta para os deveres
recíprocos entre senhores e escravos, pois “assim como o servo está obrigado ao senhor, assim
o senhor está obrigado ao servo”.
Revisando o Engenho de Santana
O elemento decisivo na manufatura do açúcar de toda sociedade colonial foram os
escravos. Segundo João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (1996,), “mesmo sobre a
ameaça do chicote, o escravo negociava espaços de autonomia com os senhores”. Tal reflexão
também é defendida pelo Stuart B. Schwartz: “é quase certo que a existência do direito dos
escravos à propriedade e certo grau de autonomia resultassem de uma série constante e
mutável de acordos e negociações...” (SCHWARTZ, 2001, p.105). As novas abordagens de
estudos apontam que os cativos não se submeteram passivamente aos desmandos senhoriais, a
chamada resistência física (fugas, quilombos, revoltas, rebeliões) além da resistência do dia-adia (roubos, desobediência, sabotagens, assassinatos, suicídios, diminuição do ritmo de
trabalho, entre outros) demonstra muito bem a participação ativa destes atores sociais durante
todo o período escravista.
Considerando a flexibilidade e a criatividade das pessoas que resistiram à escravidão e
de demonstrar como diversos aspectos de sua vida e de sua cultura foram reações criativas à
situação em que viviam, os historiadores das escravaturas americanas vem escrevendo uma
nova etnografia das culturas escravas. Os estudos das religiões, artes, famílias e comunidades
de escravos, escritos com empatia e convicção, ampliaram e enriqueceram nosso
conhecimento acerca da vida no cativeiro. Todavia, como alerta Schwartz, mesmo
considerando a flexibilidade do sistema, não se pode negligenciar a condição básica dos
cativos, os escravos eram uma força de trabalho, “[...] e os trabalhos forçados prestados a
outros orientavam praticamente todos os aspectos da sua situação. Discutir a vida dos
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escravos sem reconhecer essa realidade é um exercício de fantasia etnográfica”
(SCWHARTZ, 2001, p. 89).
Ao discutir o que venha a ser a “brecha camponesa” ou “economia autônoma dos
escravos”, o historiador Ciro Flamarion Cardoso salienta que:
Para o escravo a margem de autonomia representada pela
possibilidade de dispor de uma autonomia própria era muito
importante econômica e psicologicamente. Na consciência social dos
senhores de escravos, porém, atribuição de uma parcela de terra e do
tempo para cultivá-la era percebida como uma concessão revogável
destinada a ligar o escravo à fazenda e evitar a fuga (CARDOSO,
1987, p.59, 60).
Para Eduardo Silva, a autonomia escrava era uma forma de manutenção da ordem,
como se comprova no fragmento:
Um outro mecanismo de controle e manutenção da ordem escravista
foi a criação de uma margem de economia própria para o escravo
dentro do sistema escravagista. A chamada “brecha camponesa”, ao
ceder um pedaço de terra em usufruto e a folga semanal para trabalhála, o senhor aumentava a quantidade de gênero disponível para
alimentar a escravaria numerosa, ao mesmo tempo em que fornecia
uma válvula de escape para as pressões resultantes da escravidão
(SILVA, 1989, p.194).
Compreendemos que, no meio rural, a produção própria dos escravos não estava
concentrada apenas com o trabalho agrícola. A pesca, a caça, a fiação, a tecelagem, a cestaria,
a produção de cerâmica também eram boas opções de renda. Ainda não conseguimos
informações se tais práticas, além da produção de alimentos na terra e a pesca, eram
atividades realizadas pelos cativos no Santana nas “horas livres”.
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Além disso, a adoção de hortas aos escravos pelos senhores acabavam criando certo
sentimento de pertencimento por parte dos cativos aquele território, pois “[...] isso os liga à
terra pelo amor à propriedade. O escravo que é proprietário não foge nem provoca desordem”
(SCHWARTZ, 2001, p.100). Pelo que tudo indica, tal sentimento era comum entre os
escravos do Engenho de Santana. Paulo de Assunção, em sua obra Negócios jesuíticos: a
administração dos bens divinos, apresenta alguns fragmentos das cartas jesuíticas do Engenho
de Santana, nos quais é possível perceber a profunda identidade que os escravos tinham com a
terra (ASSUNÇÃO, 2003).
Vale chamar atenção para o fato que a maioria dos escravos que constituíam a mão-deobra do Engenho Santana era de negros nascidos da terra (crioulos), o que possibilitava
vínculos afetivos entre os cativos, uma vez que desde crianças estes homens e mulheres
mantinham relações sejam pela consanguinidade ou não.
A separação de um ente querido poderia ocasionar conflitos de toda ordem. Por isso,
para entender a dinâmica das relações escravistas no Santana, faz-se necessário compreender
tal processo de criolização. Diferentemente de outros engenhos coloniais, a exemplo do
Engenho de Sergipe do Conde,16 que estava localizado no Recôncavo Baiano, zona
açucareira, as relações entre senhores e escravos tendiam a serem opostas ao Santana. O
efetivo repressivo na Vila de Ilhéus era baixo e, consequentemente, alguns escravos faziam a
segurança do engenho, principalmente contra os constantes ataques das populações indígenas
e até mesmo da própria escravaria. Por isso, precisamos atentar para o fato de que alguns
cativos pegavam em armas de fogo, o que demonstra o grau de autonomia que tais negros
tinham. Conforme demonstra uma carta datada de 25 de abril de 1738, do padre Antônio
Fernandes, administrador do engenho Santana e endereçada ao seu Superior, o padre Gaspar
Estevens, na qual pede, entre outras coisas, armas e munições para espantar os gentios:
16“Este engenho situava-se a umas doze léguas da Bahia (Salvador), perto da Vila de São Francisco do Conde, à
beira do rio Sergipe, que lhe deu o nome. Fundado pelo governador Mém de Sá, entre 1560 e 1569, foi herdado,
no ano de 1572, por sua filha D. Filipa de Sá, casada com o Conde de Linhares. Foi em 1573 que começaram a
dar ao engenho o nome de Sergipe do Conde, que veio substituir o nome primitivo de engenho de Sergipe,
provavelmente porque, tendo-se incendiado o engenho de Mem de Sá, o Conde de Linhares mandou construir
um novo engenho. Quando D.Filipa veio a falecer, em 1618, o engenho de Sergipe do Conde foi parar nas mãos
dos jesuítas do Colégio de Santo Antão de Lisboa, por disposição testamentária”.In: ANTONIL, André João.
Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas; introdução e notas por Andrée Mansuy Diniz Silva.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007 (Documenta Uspiana II), p. 38.
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Aqui deu o gentio nas terras do nosso Engo e nos frechou huo escravo,
e por milagre de Deos e S. Anna não matou agente toda e a min com
ellas q. todos estávamos juntos pujando huo pao, foi necessario
mandar hua esquadra de gente atras delles, e agora me valleo mto a
pólvora, e balas q. Vossa Reverendíssima me mandou e lhe agradeço
mto mto; se Vossa Reverendíssima me pudesse mandar 4, ou 5
espingardas, ainda q. não sejão escolhidas são mto. necessarias, pa os
asaltos destes barbaros, e elles tem mto medo de espingardas, nisto fará
Vossa Reverendíssima o q. julgar ser convenientes17.
Na citação acima há a referência que quando os gentis atacaram as terras do engenho
“uma esquadra de gente” foi à procura dos índios, supomos que se trata dos próprios escravos
fazendo a proteção do empreendimento jesuítico. Assim, compreendemos que as atuações dos
cativos nestas incursões só ocorriam pela ausência de um sistema repressivo capaz de dar
conta de tais ações.
Além disso, encontramos outras formas de autonomia que os escravos tinham no
interior do Santana como, por exemplo, tinham acesso às chaves da casa de purgar e de onde
fica armazenado todo o açúcar produzido. Todavia, um dos religiosos que passou pelo
engenho criticou bastante essa liberdade que os padres anteriores davam aos negros:
Por hultimo peço a Vossa Reverendíssima ordene ao Pe Supor não se
fie dos Negros, e não lhes dé tantas comfianças e autoridade, e as has
chaves das cazas, do pezo, e de purgar, adonde se guarda todo o
asçucar, mel e agoardente as quais os outros Pes Supres sô as fiavão de
si e de seus compros q. as não fie dos Negros q. com isto lhe da
autoridade e comfianças pa furtarem se quizerem.18
17Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (IANTT), Cartório Jesuítico, maço 69, doc. nº 177.
18Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (IANTT), Cartório Jesuítico, maço 69, doc. nº 175.
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Em 12 de junho de 1750, o padre Manoel Carrilho, do Engenho de Sergipe do Conde,
escreve ao superior Francisco Guerra, relatando a situação que se encontrava o Engenho de
Santana. Em sua análise, os escravos estão muito mal criados e desaforados a ponto de
tentarem tirar a vida do feitor com uma espingarda. Além disso, deram duas facadas em um
dos religiosos que ali estava. E tudo isso nasce da maneira branda com que o Padre Cortes
lida com os cativos, a ponto de ceder facas, facões e espingardas. Sugere ainda que mandasse
para o Engenho do Conde os escravos mais arrojados e valentões que lá os amansaria. Em um
caso que se sucedeu antes da tentativa de assassinato, tanto do feitor quanto do religioso, o
padre Cortes amarrou os escravos para enviá-los ao Sergipe do Conde, mas por petições dos
próprios escravos acabou desistindo. Segundo Manoel Carrilho, o Padre Antônio Francisco
que passou pelo engenho de Santana mandou19 um desses escravos valentões, e que ele o
tornou tão manso que não só ele, mas todos os negros dos Ilhéus pela notícia que este levou se
benzem e fogem deste engenho como o diabo foge da cruz. O padre Cortes querendo
intimidar, amedrontar os escravos mais revoltosos diz que vai mandá-los para o Conde.20
No terceiro discurso da obra Economia cristã dos senhores no governo dos escravos,
Benci aponta as normas corretas para a aplicação dos castigos. Os escravos são “rebeldes e
viciosos”, e para mantê-los “domados e disciplinados” os castigos e a disciplina são
essenciais. Escreveu Benci:
A obrigação dos senhores é dar ao escravo o castigo, para que se não
acostume a errar, vendo que seus erros passam sem castigo. Porém
porque no castigo dos servos sucede haver muitas faltas, é necessário
que saibam os senhores como e quando se hão-de castigar, para que
não pequem os mesmo senhores ou por defeito ou por excesso; pois
qualquer destes extremos pode ser pecaminoso. [...] Assim como o
ginete necessita da espora o jumento do freio, para serem governados;
19Não especifica a data.
20Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (IANTT), Cartório Jesuítico, maço 69, doc. nº 162.
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assim os imprudentes e maus necessitam da vara e do castigo, para
que sejam morigerados como devem, e não faltem à sua obrigação
(BENCI, 1977, p. 125, 126).
Todavia, precisamos salientar que as relações entre senhores e escravos, que ocorriam
no interior dos engenhos de Ilhéus não eram as mesmas de outras regiões do Brasil e até
mesmo de outras áreas da Bahia, pois é preciso levar em consideração as especificidades
locais. As atitudes dos administradores do Santana refletem muito bem o protagonismo que os
escravos mantinham naquele contexto do qual estavam inseridos. Tratar os escravos de
maneira mais humanizada pode não significar a bondade em si do Padre Cortes, mas
consequência das necessidades momentâneas e, principalmente, das pressões que enfrentava
por parte da escravaria. Entendemos que a ameaça de transferência dos escravos para outro
lugar acabava abalando o psicológico do cativo, uma vez que isto representava deixar para
trás suas esposas, filhos, amigos, irmãos, enfim, toda uma vida e, por isso, o administrador
utilizava tais meios de tentar acalmar os ânimos dos mais resistentes.
Dentre os castigos mais temidos pela escravaria estava o “desterro”, pois significava a
perda dos laços familiares. Como muito bem salientou Sidney Chalhoub, “as feridas dos
açoites provavelmente cicatrizavam com o tempo; as separações afetivas, ou a constante
ameaça de separação, eram as chagas eternamente abertas no cativeiro” (CHALHOUB, 1990,
p. 244).
A constituição e os laços familiares são fundamentais na análise das relações entre
senhores e escravos, principalmente por estarmos trabalhando com um engenho administrado
por religiosos. O padre Jorge Benci, ao comentar a respeito do matrimônio entre os cativos,
no segundo sermão intitulado: Em que se trata da segunda obrigação dos senhores para com
os servos, afirma que:
E não devendo os senhores impedir o matrimônio aos servos, também
lhes não devem impedir o uso dele depois de casados apartando o
marido da mulher e deixando a um em casa, e mandando vender ou
viver o outro em partes tão remotas, que não possam fazer vida
conjugal. [...] porque apartando os servos casados um do outro, vindes
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a privá-los do bem do matrimônio, no que lhes causais dano mui
grave, que a caridade proíbe se faça ao próximo sem urgentíssima
causa. [...] E no caso em que determinem que há causa bastante, sendo
o marido o que merece este degredo, deveis perguntar à mulher se o
quer seguir. E querendo ela acompanhar o marido, vá ela também com
ele, e corra a mesma fortuna, que ele correr; e se o não seguir, por
razão grave incómodo que nisto haja de padecer, então vá embora a
vender só o marido. E sendo a mulher a delinquente, se há-de proceder
com o marido do mesmo modo, que acabamos de dizer da mulher
(BENCI, 1977, p. 103-105).
Autores como Stuart B. Schwartz (1988; 2001) e Paulo de Assunção (2003), afirmam
que alguns administradores do Engenho de Santana, a exemplo do Padre Manoel de
Figueiredo, que administrou o engenho na primeira metade do século XVIII, de 1704 a 1731,
não colocou em prática o estímulo ao casamento entre os cativos; praticamente não eram
autorizados. Isso contribuía para uma taxa de natalidade diminuta e, consequentemente, a
escassez de mão-de-obra. Entretanto, outros religiosos que administraram o Santana
defendiam melhores condições físicas para os escravos e a formação familiar através do
matrimônio, assim evitaria os escravos viver em pecado, principalmente por se tratar de uma
propriedade religiosa.
Todavia, estas informações foram obtidas de uma carta enviada pelo sucessor de
Manoel de Figueiredo aos seus superiores. Considero importante ressaltar, que mais do que
simples relatórios dando informações financeiras do referido engenho, as correspondências
trocadas entre os religiosos que estavam em Ilhéus e seus superiores em Portugal, estão nas
entrelinhas marcadas de confissão, confidência e até de intrigas. Por isso, compreendemos que
tal fonte é passível de novas interpretações. Talvez o sucessor quisesse desmoralizar o
trabalho. Além disso, a ligação do escravo a terra, pelo amor à “propriedade” e à família,
configurava um meio eficaz de conter a indisciplina e elevar a moral do cativo (Cf.
SCHWARTZ, 1988, p. 329; SCHWARTZ, 2001, p. 100). Os escravos procuravam criar
formas sociais e culturais que lhes proporcionasse apoio e consolo, naquele contexto tão
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adverso que viviam. Corroborando com essa perspectiva, nos afirma Robert Slenes que “a
família escrava provavelmente ajudou muitos cativos a conservar sua identidade e a lidar
eficazmente com as pressões psicológicas da escravidão” (SLENES, 1976, p. 180).
Há um caso interessante que ocorreu no engenho de Santana no ano de 1713, que nos
permite afirmar que a constituição de núcleos familiares se fazia presente naquela localidade.
Há informações de Piratas Franceses atacando à costa da Bahia e, consequentemente,
trazendo grandes prejuízos para a região. Em um desses ataques acabaram capturando uma
Lanchinha que levava abordo sete negros do engenho de Santana, sendo que três deles eram
casados e tinham filhos. Motivo este que levou o padre Manoel de Figueiredo, administrador
do engenho, a escrever relatando o acontecido e pedindo ajuda ao Padre Procurador Bento de
Oliveira na tentativa de libertação destes escravos, principalmente por serem casados e
teremos filhos.
Os Piratas Francezes, tem feito grandes extorsões, nesta Costa, e dado
grandes perdas; e nós entramos tambem nellas, porque nos apanharao
huã Lanchinha, que tinha sahido a pescar, e nos levarão_7_ negros,
que nella hião: hum, porem, se lhe botou ao mar de noite, e nadando
legoas, chegou a terra; os outros levarão comsigo; e como isto
succedeo em janeiro passado, tempo, em que estavaõ tratadas as
tregoas, ando tirando huma justificaçaõ, para mandar a Vossa
Reverendíssima, para ver se pode fazer, com que se restituão, ainda
que naõ sei se se consegurâ; por que elles observaõ pouco este tratado,
por que depois delle apregoado, e mostrandolhe o mesmo tratado,
nem por isso deixão de fazer varias prezas: mas V.R. faça todo o
possivel, neste particular; não somente pello, que tocca â conveniencia
deste Engenho; mas tambem à charidade; por que tres delles saõ
cazados, e deixaraõcâ molheres, e filhos.
Vale ressaltar ainda que a perda de seis cativos de uma só vez era prejudicial para o
andamento dos trabalhos no engenho. Como já foi dito anteriormente a localização do
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engenho não permitia que o plantel de escravos fosse renovado constantemente. Outro ponto a
ser destacado é o fato de estes escravos terem sido capturados em momento de trabalho.
Referências Bibliográficas
ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios Jesuíticos: a administração dos bens divinos. São Paulo:
Edusp, 2003.
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na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
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nordeste colonial. São Paulo: Brasiliense, 1988.
LARA, Silvia Hunold. Conectando historiografias: a escravidão africana e o Antigo Regime
na América portuguesa. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral
(Org.). Modos de governar: ideias e práticas políticas no império português- séculos XVI –
XIX. São Paulo: Alameda, 2005.
MACHADO, Maria Helena P. Toledo. Em torno da autonomia escrava: uma nova direção
para a história social da escravidão. Revista Brasileira de História. V.8 n.16, p. 143 -160,
março/agosto, 1988.
REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: resistência negra no Brasil
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REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (org.). Liberdade por um fio: história dos
quilombos no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenho e escravos na sociedade colonial,
1550 – 1835. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Cia das Letras, 1988.
SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Trad. Jussara Simões. Bauru: Edusc,
2001.
SLENES, Robert. Na senzala, uma flor:as esperanças e recordações na formação da família
escrava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
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Fontes Impressas
BENCI, Jorge. Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos (livro brasileiro
de 1700) (Estudo preliminar) Pedro de Alcântara Figueira; Claudinei M.M. Mendes. São
Paulo: Grijalbo, 1977.
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O LIVRO DOS MORTOS: UMA ANÁLISE SOBRE
A PRESENÇA DE OSÍRIS NO CAPÍTULO CLIV
Bruna de Oliveira Santos21
Introdução
Este artigo possui como principal objetivo analisar Osíris no contexto do capítulo
CLIV do Livro dos Mortos. Este capítulo contém as súplicas do falecido para que seu corpo
permanecesse preservado, desta forma, acreditava-se que era a esse deus que o morto recorria
e se identificava, devido a toda mitologia de caráter ressurreto que envolvia Osíris. Assim, a
prática da mumificação se fazia importante para que o corpo permanecesse livre da
putrefação. Outros ritos fúnebres se faziam presentes na cultura egípcia e o Livro dos Mortos
era utilizado para que o morto conseguisse enfrentar possíveis obstáculos no Mundo Inferior e
desta forma pudesse viver eternamente.
Para fazer essas observações acerca do deus no Livro dos Mortos, utilizamos duas
traduções diferentes desta obra, ambas para o português. A primeira é a publicação de E. A.
Wallis Budge, escrita originalmente no inglês e traduzida para o nosso idioma por Octavio
Mendes Cajado. A segunda tradução do Livro dos Mortos aqui utilizada é a de Maria Helena
Trindade Lopes, que utilizou de certa parte do trabalho de Budge para produzi-la.
Origem do Livro dos Mortos
O Livro dos Mortos trata-se de um conjunto de fórmulas mágicas que tinham como
objetivo livrar o falecido das ameaças que este poderia enfrentar após a morte. Os textos são
variados, contendo orações, hinos, prescrições, etc. Quando feito em papiros, era colocado
junto com o falecido no sarcófago, no intuito de, se por acaso o morto se esquecesse de
alguma fórmula, o mesmo poderia consultar a sua cópia da obra. A cópia mais antiga do Livro
21
Graduanda do curso de Licenciatura em História da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail:
[email protected].
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dos Mortos feita em papiro que se conhece foi a produzida para Nu, “filho do ‘intendente da
casa do selo, Amen-hetep, e da dona da casa, Senseneb’”.22 Esse documento foi produzido
provavelmente no início da XVIII dinastia.
O termo Livro dos Mortos sugere uma denominação já moderna. Segundo Maria
Helena Trindade Lopes (1991), foi o egiptólogo alemão Richard Lepsius quem deu este nome
a esses conjuntos de textos funerários. De acordo com Budge (1993), o título utilizado
atualmente para designar essas obras é insatisfatório, não traduzindo o antigo título egípcio,
que significaria “Capítulos do Sair à Luz” (BUDGE, 1993: 13).
A origem desses escritos é incerta, provavelmente surgiram ainda no Período Prédinástico, sendo transmitidos de forma oral. A partir das V e VI dinastias passaram a ser
escritas nas paredes das câmaras mortuárias das pirâmides. Devido a isso, esses escritos são
chamados de Textos das Pirâmides. A religião dos faraós do Antigo Império e de sua corte era
solar, portanto, percebemos a importância do deus Rá no culto funerário, pois o falecido
ascendia aos céus para juntar-se a esse deus. Vale ressaltar que no Antigo Império apenas a
família real e a nobreza desfrutavam desse rito fúnebre. Após o Primeiro Período
Intermediário e mais especificamente no Médio Império esses rituais fúnebres passaram a se
popularizar, deixando de ser prerrogativa apenas da família real. As camadas mais populares
passaram a aderir a tais ritos, portanto, a crença na imortalidade não mais era exclusivamente
para os ricos. Tal crença acompanhava a expansão da popularidade de Osíris. Esse deus
deixou de ser importante apenas nos rituais de coroação dos reis e passou a adquirir cada vez
mais relevância nos ritos funerários, pois Osíris oferecia vida eterna também às pessoas
comuns.
Durante o Médio Império os textos funerários que antes eram escritos nas paredes das
câmaras mortuárias das pirâmides, passaram a ser escritos nos ataúdes, sendo denominados
atualmente de Textos dos Ataúdes ou Textos dos Sarcófagos. Mas as compilações que
atualmente são chamadas de Livro dos Mortos foram aquelas escritas em papiros a partir da
XVIII dinastia, ou seja, já no Novo Império. Segundo Budge, a economia se fez importante
para que tais inscrições funerárias passassem a ser escritas em papiros:
22
Budge, E. A. W. O Livro Egípcio dos Mortos. Trad. Octavio Mendes Cajado. 9. ed. São Paulo: Editora
Pensamento, 1993, p. 21.
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Pirâmides, sarcófagos e esquifes providos de inscrições só deviam ser
construídos, por força, para personagens reais e para os grandes e os
ricos, mas um rolo de papiro, em comparação com aqueles, era barato,
mormente se se empregasse na sua transcrição um escriba comum, ou
se um homem fizesse sua própria cópia do Livro dos Mortos.
(BUDGE, 1993: 24-25)
Ainda de acordo com Budge (1993), seguindo os fatos citados acima sobre as
transformações sofridas por esses escritos, as diversas recensões do Livro dos Mortos se
deram com o passar dos séculos e com transições de poder entre as dinastias, podendo ser
resumidas da seguinte forma:
1 - Recensão Heliopolitana: era a usada na V e VI dinastias, se encontra escrita em hieróglifos
nas paredes e câmaras das Pirâmides de Sacara e a que era escrita em hieróglifos cursivos em
ataúdes da XI e XII dinastias;
2 - Recensão Tebana23: era a escrita em papiros e pintadas em cofres, em hieróglifos, desde a
XVIII até a XXII dinastias e a que era escrita em caracteres hieráticos, em papiros, na XXI e
XXII dinastias;
3 - Recensão Saíta: tratou-se da escrita em papiros, ataúdes, etc., em caracteres hieroglíficos,
hieráticos e demóticos, durante a XXVI dinastia e as seguintes, muito usada no Período
Ptolemaico, essa recensão pode ser considerada a última forma do Livro dos Mortos.
Os capítulos do Livro dos Mortos não possuem uma ordem fixa nas Recensões
Heliopolitana e Tebana, até mesmo porque os capítulos foram surgindo e sendo agregados
com o passar dos séculos. Apenas na Recensão Saíta os capítulos possuem uma ordem
relativa (BUDGE, 1993: 28). O Capítulo CLIV é proveniente do Papiro de Nu, sendo,
portanto, da XVIII dinastia e da Recensão Tebana da obra.
De acordo com as obras consultadas, foi possível percebermos que dois deuses se
fazem de extrema importância no Livro dos Mortos: Osíris e Rá. Essas divindades eram
23
Essa recensão é assim denominada devido ao fato de que a maioria dos papiros desta época foram encontrados
nas necrópoles de Tebas.
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relacionadas com a eternidade e com a imortalidade e, assim, o falecido tentava se identificar
com ambas. Rá era a divindade solar, o morto aspirava subir aos céus para juntar-se a ele.
Porém, como já citamos, a popularidade de Osíris expandiu-se a partir do Médio Império e
durante o Novo Império. Além disso, Osíris era a divindade relacionada à mumificação e à
ressurreição, devido ao fato da lenda de sua morte.
Osíris, deus da ressurreição
Quando falamos em deuses egípcios, Osíris e sua esposa Ísis24 talvez sejam as duas
divindades das quais as pessoas mais se lembram ao ouvirem sobre o assunto. Eram deuses
populares no Antigo Egito e posteriormente foram conhecidos também em outras civilizações,
como Grécia e Roma (especialmente Ísis).
É importante ressaltar aqui sobre a sua trajetória, os mitos que envolvem esse deus. De
acordo com Silverman25, antes de Osíris ser associado às divindades funerárias ele estava
relacionado com a terra e a vegetação. Anúbis era a divindade relacionada ao mundo inferior,
mas gradativamente Osíris ocupou a posição de maior destaque. Os mitos que envolvem este
deus nos fazem perceber sua relação com a morte e com a ressurreição.
Apesar de existirem variadas versões em torno dos mitos de Osíris, sua narrativa
básica se constrói em torno do assassinato do deus por seu irmão invejoso Seth26. Isis
encontra o corpo do marido em Biblos e o leva de volta à sua terra. Porém, Seth o descobre e
o esquarteja, espalhando os pedaços por todo o Egito. Ísis, representada sempre como a leal
esposa, juntamente com Néftis27, novamente vai em busca do marido, recupera as partes de
seu corpo (com exceção do falo) e o mumifica. Ajudada por outros deuses e utilizando-se da
magia, ela reconstruiu seu membro perdido trazendo Osíris à vida por tempo suficiente para
que gerassem um filho: Hórus. Este, ao crescer, luta contra Seth pelo trono do Egito e vence.
Osíris não recuperou o seu trono terrestre, porém passou a reinar no Mundo Inferior. “Esse
24
Uma das deusas mais importantes do panteão egípcio, irmã e esposa de Osíris. Personifica a magia, a fidelidade
conjugal e a figura da “Grande Mãe”.
25
SILVERMAN, D. P. O Divino e as divindades no Antigo Egito. In: SHAFER, B. E. As religiões no Egito
Antigo: deuses, mitos e rituais domésticos. Trad. Luis S. Krausz. São Paulo: Nova Alexandria, 2002, p. 60.
26
Deus irmão de Osíris, é representado como invejoso e assassino do mesmo.
27
Irmã de Ísis e Osíris, também era a deusa irmã/esposa de Seth.
51
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Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
mito evidentemente estava relacionado à passagem do poder real do Egito: o faraó moribundo
era identificado com Osíris e o novo regente era identificado com Hórus” (SILVERMAN,
2002: 61).
Por ser uma divindade de caráter funerário, Osíris é um deus de forte presença nos
capítulos do Livro dos Mortos. Nestes textos o falecido era sempre identificado com o deus,
sendo chamado pelo nome dessa divindade e em seguida pelo seu: “Osíris Ani”, “Osíris Nu”.
Nesse contexto, o capítulo CLIV do Livro dos Mortos refere-se a Osíris como deus
que não viu a corrupção, ou seja, seu corpo não se deteriorou, mas sim continuou preservado.
Um dos maiores temores para o falecido era que seu corpo apodrecesse, pois desta forma não
poderia gozar da vida eterna:
E o rei, como todos os mais seguidores de Osíris, acreditava que
gozaria a vida e a felicidade eternas num corpo perfeitamente
constituído porque Osíris vencera a morte, ressurgira dos mortos, e
vivia num corpo perfeito em todos os seus membros; além disso, por
gerações sem conta, Osíris foi o tipo e o emblema da ressurreição e,
fiadas no seu poder de conferir imortalidade ao homem, incontáveis
gerações viveram e morreram. (BUDGE, 1993: 32).
A mumificação se fazia de fundamental importância na preservação do corpo, por isso, era
um dos ritos fúnebres mais relevante. Além disso, Osíris era considerado a primeira múmia.
Segundo Ciro Flamarion Cardoso:
A mumificação dos cadáveres com o fito de impedir sua putrefação e
consequente desaparecimento decorreu da crença em ser preciso
manter o corpo para poder garantir a vida eterna; como as estátuas
divinas dos templos, a múmia e as efígies do morto se transformavam,
de meros objetos inanimados que eram, em receptáculos para o ba28 e
28
Espécie de elemento que permitia a mobilidade do morto e, consequentemente, a passagem de um mundo a
outro.
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o Império português no Atlântico Sul
o ka29 mediante o ritual da ‘abertura da boca’, efetuado no momento
de depositar a múmia na tumba e operado também em estátuas e
outras imagens do falecido (CARDOSO, 1999: 104-105).
Apesar da crença na vida eterna, o egípcio antigo provavelmente encarava a morte
como algo terrível, evitando até mencioná-la, segundo Cardoso (1999). Porém, um dos
maiores medos dos egípcios, ainda de acordo com este autor, era “o de uma morte – definitiva
– dentro da morte” (CARDOSO, 1999: 110). A morte eterna era temida, desta forma, o Livro
dos Mortos se fazia importante, pois era uma espécie de “guia”. Através das inúmeras
fórmulas, o falecido poderia utilizar-se delas para que pudesse se beneficiar com a eternidade.
Nas vinhetas das cópias melhor produzidas, são mostradas cenas do Tribunal de Osíris,
composto por ele como principal juiz e outros 42 juízes que o ajudavam no momento do
julgamento do morto. Essa passagem do Livro dos Mortos era de extrema importância, pois
era o momento da decisão do destino do falecido, a obra, portanto, continha fórmulas para
ajudá-lo neste instante.
O capítulo CLIV intitula-se: “De como não deixar que pereça o corpo” e inicia com o
falecido homenageando Osíris. O morto pede para ser embalsamado, no intuito de que seu
corpo não apodreça. A forma como tais petições se repetem nos leva a confirmar o quão
importante se fazia que o cadáver permanecesse imperecível, assim como o de Osíris. Esse
deus era representado no Livro dos Mortos algumas vezes enfaixado como uma múmia e
utilizando emblemas reais, outras vezes vestido de forma comum, sem estar enfaixado.30
Considerações provisórias
A forma como Osíris é representado no Livro dos Mortos nos confirma sua relação
com a ressurreição no contexto de seus mitos, como primeira múmia e, principalmente, como
aquele deus que sofreu a morte, porém conseguiu a vida eterna. Para o antigo egípcio era um
deus indispensável ao tratar-se do perecimento do corpo, pois os acontecimentos que
envolvem essa divindade são de caráter humano, aproximando o deus de seus súditos no que
se refere ao inevitável: a morte. O indivíduo desejava que o seu destino após o falecimento se
29
Elemento relacionado com a vitalidade e saúde moral de um indivíduo.
Papiro de Ani e Papiro de Hunefer (Museu Britânico).
30
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assemelhasse com o do deus, pois este conseguiu se livrar daquilo que era mais temido pelos
egípcios, ou seja, a morte definitiva dentro da morte.
Deste modo, a partir das considerações apresentadas, entendemos a necessidade de
uma continuidade mais minuciosa e de alternativas acerca do tema estudado. Outros recortes
são necessários para uma melhor reflexão do tema proposto em torno das crenças, da
importância de Osíris e da relevância do Livro dos Mortos para os egípcios.
Referências Bibliográficas
BUDGE, E. A. W. O Livro Egípcio dos Mortos. Trad. Octavio Mendes Cajado. 9. ed. São
Paulo: Editora Pensamento, 1993.
CARDOSO, C. F. Deuses, Múmias e Ziggurats: uma comparação das religiões antigas do
Egito e da Mesopotâmia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
CASTEL, E. Gran Diccionario de Mitología Egipcia. Madrid: Aldebarán, 2001.
DAVID, R. Religião e Magia no Antigo Egito. Trad. Angela Machado. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2011.
LOPES, M. H. T. O Livro dos Mortos do Antigo Egipto. Lisboa: Assírio & Alvim, 1991.
SILVERMAN, D. P. O Divino e as divindades no Antigo Egito. In: SHAFER, B. E. As
religiões no Egito Antigo: deuses, mitos e rituais domésticos. Trad. Luis S. Krausz. São
Paulo: Nova Alexandria, 2002.
TRAUNECKER, C. Os Deuses do Egito. Trad. Emanuel Araújo. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1995.
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Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
OS SENHORES, OS ESCRAVOS E A GUERRA
Christiane Figueiredo Pagano de Mello
UFOP31
Introdução: O contexto histórico
Na segunda metade do século XVIII eram imperativas as necessidades de uma intensa
reorganização militar, tanto no Reino de Portugal, como, também, no Estado do Brasil, sua
principal terra colonial, onde se fazia indispensável aumentar a capacidade defensiva. Tais
necessidades decorriam das crescentes tensões vividas na Europa, resultantes da celebração,
em agosto de 1761, do Pacto de Família, em que os vários Bourbons então reinantes se
comprometiam a defender mutuamente seus Estados.
Na ocasião, embora D. José fosse casado com uma princesa Bourbon, não podiam os
pactuantes esperar que Portugal aderisse ao Pacto, aliado como era da Inglaterra, então
adversária da França e da Espanha na chamada Guerra dos Sete Anos, luta armada que foi
travada de 1756 até 1763.
Assim, a Coroa portuguesa, foi forçada a abandonar sua posição de neutralidade e a
participar da fase final da Guerra dos Sete Anos. Após o estabelecimento dos Estados
Ibéricos em campos opostos nesse conflito europeu, a contenda entre Portugal e Espanha
logo se prolongaria avançando para as indefinidas regiões fronteiriças sulinas. Vale notar
que, como observa o historiador Fernando Novais,
“ao lado das zonas de tensão entre as potencias dominantes em luta
pela hegemonia, França e Inglaterra, entre os países coloniais ibéricos
se vão formando ao mesmo tempo outras zonas de tensão (sobretudo a
Professora efetiva da Universidade Federal de Ouro Preto –UFOP. Doutora em História pela Universidade
Federal Fluminense – UFF.
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região platina). Os dois tipos de conflitos correm paralelos, e se interrelacionam continuamente (...)”32.
No caso português, especificamente, o conflito com a Espanha pelos territórios às
margens do rio Uruguai havia demonstrado claramente a precária capacidade de resistência de
seu exército, sobretudo quando da invasão e conquista pelo governador de Buenos Aires, D.
Pedro de Cevallos, da Colônia do Sacramento, em dezembro de 1762, bem como da vila do
Rio Grande e da margem norte do canal que conectava a Lagoa dos Patos ao mar.
Não obstante assinado o Tratado de Paz que havia de pôr termo à Guerra dos Sete
Anos, restituindo a Portugal tudo o que fora ocupado pelos espanhóis, D. Pedro de Cevallos
dispôs-se a devolver, dez meses após assinado o Tratado, apenas a Praça da Colônia, retendo
o restante do território – as ilhas de São Gabriel, Martim Garcia e das Duas Irmãs e o Rio
Grande de São Pedro com o seu território – e não permitindo à Colônia do Sacramento
qualquer contato com o território contíguo. Tensionavam-se, portanto, as questões da
delimitação das fronteiras das possessões portuguesas ao sul da América; a perspectiva de
guerra era flagrante, e notória a necessidade de reavaliar o sistema defensivo até então
utilizado
O Recrutamento Militar
Em decorrência do agravamento das tensões hispano-portuguesas nas regiões
limítrofes sulinas a Coroa viu-se obrigada a exigir que se alistassem, “sem exceção (...),
nobres, brancos, mestiços, pretos, ingenuos, e libertos”33, enfim, todos os homens válidos
para o cumprimento do serviço militar, formando assim o maior contingente possível de
Corpos de Auxiliares e de Ordenanças.
32
Novais, Fernando Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), SP, Hucitec, 1983,
p.51.
33
“Edital para se alistarem todos os moradores das terras da jurisdição desta Capitania, sem excepção de
Nobres, Plebeus, Mistiços, Pretos, Ingenuos, e Libertos e formar dos mesmos Terços de Auxiliares, e
Ordenanças, assim de Cavallaria, como Infantaria’. ANRJ, RJ, Cod. 73, vol.1, fl. 143.
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Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
Nesse sentido, detenhamo-nos na Capitania de Minas Gerais. Para cumprir as
determinações régias, o Governador de Minas Gerais, Luiz Diogo Lobo da Silva, envia, em
25 de fevereiro de 1766, uma carta circular aos Capitães-Mores da Capitania, contendo várias
exigências julgadas essenciais para que as Tropas estivessem prontas, na “contingencia de se
fazer perciza uma expedição p.a marchar q.do e p.a onde necessario fosse por bem do Real
Serviço de S.Mage”34.
Luiz Diogo ordenou aos Capitães-Mores uma missão extremamente delicada. Ele
determinou a retirada de um quinto dos escravos que houvesse nas jurisdições de cada
Capitão-Mor, “sem excepção dos occupados em lavouras, rossas, ou particulares serviços”.
No entanto, advertia que só deveriam ser escolhidos aqueles “de melhor saude e robustos”35,
e que os respectivos senhores teriam a obrigação de equipá-los com armas de fogo ou, pelo
menos, de um dardo “com ferro e ponta de dous cortes”36. Tentando evitar a possível fuga
desses escravos, o governador prometia recompensas aos que se distinguissem na defesa do
Estado: “não só se adientará nos empregos da Milicia, mas consiguirá em premio a
liberdade”37.
As ordens estavam de acordo com o plano militar traçado nas Instruções Régias, que
previa a utilização de negros e pardos, vistos como forças irregulares, mas estrategicamente
importantes, jamais devendo ser desprezadas na guerra contra os espanhóis. A Coroa
reconhecia a já presente tradição de emprego dos negros nas guerras, exemplificada pelo uso
dessas forças na reação às tentativas de ocupação holandesa no Nordeste: na Bahia, em 1624,
que teve fim no ano seguinte; em Pernambuco, em 1630; e nas batalhas dos Guararapes, em
1648 e 1649, com a capitulação holandesa em 165438.
“Cópia da Carta Circular aos Cap.ns Mores de Luiz Diogo da Silva” AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, doc.
36.(anexo)
35
Idem.
36
Idem.
37
Idem.
38
Para maiores detalhes sobre as invasões holandesas e as batalhas dos Guararapes, ver: Arno Wehling, “Padrões
Europeus e Conflitos Coloniais – A Questão da Guerra Brasílica” In, Actas do XXIV Congresso Internacional de
História Militar, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 1998; Evaldo Cabral de Melo, Olinda
Restaurada, SP., Edusp, 1975, do mesmo autor, Rubro Veio. O Imaginário da Restauração Pernambucana, RJ,
Nova Fronteira, 1986; José Miralles, História Militar do Brasil – Desde o ano de 1549 em que teve principio a
fundação da Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos até o de 1762, In Anais da Biblioteca Nacional,
RJ, Leuzinger, vol. XXII, 1900; Frei Manoel Calado, O Valeroso Lucideno, SP, EDUSP, 1945, vol. I; Pierre
34
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As exigências militares feitas pelo governador de Minas Gerais Luiz Diogo da Silva
para atender o recrutamento militar, expressas na carta régia geraram a reação dos poderes
locais – o Corpo das Ordenanças e a Câmara Municipal. As resistências se evidenciaram logo
após o envio da carta circular aos capitães-mores da capitania com as determinações do
governador sobre a expedição dos Corpos de Ordenanças e a arregimentação de negros
cativos.
As exigências de recrutamento militar para a expedição em defesa dos reais domínios
atingiam diretamente dois pilares fundamentais para o funcionamento dos patrimônios
pertencentes àqueles definidos no documento
39
como “Lavradores de Fabricas tanto de
Rossas como de mineração” – os senhores e seus escravos. A principal justificativa utilizada
pelo governador para convencer roceiros e mineiros da necessária colaboração na expedição
militar, nos termos então exigidos, era a defesa de seus próprios bens: “não haverá rosseiro
que refletindo ser indispensável o sobredito meio p.a continuarem na posse e logro das suas
Fazendas, escravatura, e mais haveres, que possuem”40. Mais adiante, ao advertir sobre os
eventuais perigos no caso de os espanhóis virem a dominar a América portuguesa, Luiz Diogo
utiliza metáforas tão expressivas quanto sugestivas, prevendo uma situação ainda pior para os
lesados: “passarão da liberdade que gozão a ignominioza escravidão, em q´ lhes será menos
custoza a perda da propria vida, familia e referidos fundos”41.
Os “Lavradores de Fabricas tanto de Rossas como de mineração” sabiam que,
colaborando ou resistindo às exigências militares, viriam a perder. Se, com a intenção de
manter seus patrimônios, dificultassem a tarefa do governador na defesa do Estado, poderiam
acabar “na irremediavel perdição de tudo”42. Se satisfizessem as providências por ele
determinadas para a organização militar da expedição, a fim “de rebater, utilizar, e destruir
qualq.er nação Inimiga q´ nos intente envadir”43, também assim sofreriam perdas em seus
Moreau e Roulox Baro, História das Últimas Lutas no Brasil entre holandeses e portugueses, SP, EDUSP, 1979;
Francisco Adolfo de Varnhagen, História das Lutas com os holandeses no Brasil, Salvador, Progresso, 1955;
Carlos Selvagem, Portugal Militar, Lisboa, Casa da Moeda, 1994; Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil,
Brasília, UNB, 1963.
39
“Cópia da Carta Circular aos Cap.ns Mores de Luiz Diogo da Silva” AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, doc. 36.
40
Idem.
41
Idem.
42
Idem.
43
Idem.
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patrimônios, que, na verdade, eram o tema principal das representações feitas pelos CapitãesMores ao governador Luiz Diogo da Silva. A única – e infeliz – certeza deles era a de que, de
qualquer forma, teriam algum tipo de prejuízo.
A Reação das Elites Locais
A exigência do quinto dos escravos para a dita expedição podia provocar perdas
importantes no patrimônio dos roceiros e mineiros. Havia a dificuldade, ou mesmo
impossibilidade, de conservar os escravos na marcha, sem que fugissem pelos matos ou
passassem aos arraiais inimigos, já "que a ambição da liberdade e pouca concideração os
rezolverá a excutarem o que por muitas vezes tem intentado”44. Ameaça ainda maior, mas
inevitável pelas circunstancias, vinha da necessidade de fornecer armas aos escravos, porque
só assim poderiam destruir os inimigos externos. Indignados diante de tal ordem, os senhores
de escravos, através do capitão-mor, que exercia o papel de seu porta-voz, notificam ao
governador a posição final que assumem: "não nomeão nem armão inimigos dentro de suas
cazas”45.
A desobediência às ordens militares fica ainda mais evidente quando o capitão-mor,
após receber as listas dos homensque deveriam formar os Terços, informa ao governador que
elas estavam “tão diminutas e de homens incapazes”46; e também quando os capitães, ao
requisitarem a lista do número de escravos, constatam que os “Snrs´ delles não querem dar o
Rol”47. Embora o governador houvesse determinado aos capitães-mores e seus capitães que
coibissem, e mesmo proibissem, toda e qualquer saída dos limites dos distritos sem a devida
apresentação do bilhete de licença, a fim de impedir as fugas ao recrutamento, pode-se
constatar, pela apreciação do capitão-mor, que as fugas continuavam a ocorrer com todo o
vigor, fosse pela ineficiência da medida propriamente dita, fosse pela passiva resistência dos
oficiais às ordem recebidas: “vão-se refugiando alguns brancos mossos e pardos e só deixão
de o fazer os q´ tem impedimento de familias ou fazenda e ainda muitos destes estão athé ver
44
Idem.
Idem.
46
Idem.
47
Idem.
45
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para onde se encaminhão estes preparos”. O capitão-mor chega a assumir sua incapacidade
para cumprir as medidas exigidas pelo Governador: “Em fim Ex.mo Snr´ como couza nova
neste paiz todos andão admirados e confuzos e não me sei rezolver para dar inteiro
cumprimento as Ordens”48.
Com base nos mesmos argumentos apresentados pelos capitães-mores, algumas das
Câmaras Municipais de Minas também se manifestaram, através de representações, contrárias
ao método utilizado pelo governador Luiz Diogo da Silva para o recrutamento das Tropas.
Afinal, os interesses sociais e econômicos daqueles Senhores Oficiais das Ordenanças
coincidiam com os das Câmaras, e todos tinham o mesmo temor: “que Deus não permita que
seja precizo a VaExa retrosseder a marxa; para vir restaurar os Povos do cativeiro dos
mesmos negros, q´ trarão consequencias mais lamentaveis”49.
A resistência às medidas determinadas pelo Governador iria assumir dimensões ainda
mais perigosas, considerando-se os efeitos que poderia produzir nos “animos dos Povos”: o
estímulo à repugnância das “Tropas a devida Obediencia”50. As vozes mais expressivas
dessa resistência eram as dos Oficiais de Ordenanças e das Câmaras, que se manifestavam em
representações dirigidas ao Governador de Minas Gerais. Vozes que se multiplicaram e
alastraram pela Capitania, alcançaram São Paulo, e pela repercussão que geraram, passaram a
ser qualificadas pelos governantes como “vozes horrorosas, escandalosas e sidiciozas”51.
Os Oficiais de Ordenanças e os das Câmaras foram acusados de não interpretar
corretamente o ponto de vista da “conservação dos Reais Dominios”52 e de não “animar os
povos para tão justo e necessario fim”. Para o governo, eles ficavam conjecturando “duvidas
impeditivas das prevenções que podem não admitir demora pelo irreparavel prejuizo que
dela pode seguir-se”53 em vez de “executarem os sobreditos com o zelo q´ se devia esperar
da honra com q´ sempre se destinguirão os povos de Minas como fieis vassalos do mesmo
48
Idem.
“Representação dos oficiais da Câmara de Vila Rica para o Rei, 27/10/1766”, AHU, MG, Avulsos, Cx. 88,
doc. 36 (anexo)
50
“Oficio de Morgado de Mateus para o Conde de Oeiras, SP, 21/6/1766”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 25, doc.
2409.
51
“Carta de Luiz Diogo da Silva para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Vila Rica, 4/9/1766” AHU, MG,
Avulsos, Cx. 88, doc. 36.
52
“Bando lançado pelo Governador de Minas Gerais, 26/4/1766”, AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, doc. 36 (anexo).
53
Idem.
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Senhor”54. Contudo, a mesma “conservação dos Reais Dominios” era uma ameaça ao
patrimônio das elites locais. Dessa forma, não é de se estranhar que o mesmo indivíduo que
tem sua posição social reforçada através de um posto militar que lhe confere honras e
privilégios, tente "impedir os meios dispostos para a Expedição”55 para escapar da ameaça da
perda de seu patrimônio56.
Resultado: a ‘moderação’ das exigências
Apesar das severas censuras ao comportamento dos Oficiais de Ordenanças e das
Câmaras, é perceptível uma significativa mudança no discurso do Governador, demonstrada
no anúncio público lançado em Minas Gerais por Luiz Diogo da Silva em 26 de abril de 1766.
Ao dispor suas ordens militares, com definidos limites de alcance, ele aponta para um efetivo
reconhecimento dos patrimônios em questão, mudando a atitude sustentada na carta circular
de 25 de fevereiro de 1766, enviada aos Capitães-Mores. Os resultados provocados pela
circular o impeliram a reconsiderar não só o tom de seu discurso, que ganhou em prudência e
cautela, como seu teor, ao estabelecer as suas exigências. Essas alterações, claramente sine
qua non, transformaram-se em seu “salvo-conduto” para angariar a necessária colaboração
militar de determinados setores da comunidade local.
Com relação à escolha do quinto dos escravos, o Governador afirmava no Bando:
“(…)ficando na inteligencia os Senhores dos ditos escravos que o 5º destes ha de ser da sua
eleição para que possão rezervar os que mais convenientes lhes foram para o trabalho das
suas lavouras, e lavras”57. Portanto, havia o reconhecimento de que o poder de escolha
pertencia aos Senhores, medida necessária para a preservação de seus patrimônios. Quanto à
liberdade que prometera àqueles escravos que se distinguissem em suas ações de combate,
agora ela só seria concedida “sem prejuizo de seus senhores que serão satisfeitos do seu justo
valor pela Real Fazenda da mesma sorte que para com os que morrerem na expedição”. Até
54
Idem.
Idem.
56
Costa, Fernando Dores, “Os Métodos efetivos de Recrutamento” In Nova História Militar de Portugal, Lisboa,
Círculo de Leitores, 2004, p.79.
57
Idem
55
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o casos de alguns senhores quererem “livrar o 5º dos seus escravos” seria possível, desde que
eles aceitassem “concorrer com quantia proporcionada”58.
Ao contrário do que fizera anteriormente, o governador mostra-se bastante prudente
em relação ao alistamento de mineiros e roceiros para a expedição militar. Pesando a
importância de suas presenças na administração de seus patrimônios, ele ponderou: “para que
assim experimentem menor incomodo, e não sintão as suas familias, e cazas a falta da sua
pessoal assistencia,aqueles Mineiros, e Rosseiros (...) q´ sem legitima cauza não podem ser
escuzos poderão dar per si pessoa capaz que supra a sua falta”.59 Não há outras exigências,
nem as ameaças proferidas na circular.
Em Representação de 27 de outubro de 1766 ao Rei D.José I, os oficiais da Câmara de
Vila Rica reconheceram a ‘moderação’ das exigências anteriormente apresentadas, em que o
“Governador e Capitão General, em tudo prudente soube dar-lhes”60.
Longe de uma passividade que as deixasse sempre de acordo com as ordens
superiores, as elites locais, alocadas nos Corpos de Ordenanças e nas Câmaras Municipais,
criaram uma resistência que demonstra o poder de que dispunham, a extensão de sua
influência, e a possibilidade de interferir no que julgassem necessário – fosse a favor ou
contra as exigências feitas a elas.
Referências Bibliograficas
COSTA, Fernando Dores, “Recrutamento” In Nova História Militar de Portugal, Lisboa,
Círculo de Leitores, 2004.
MIRALLES, José, História Militar do Brasil – Desde o ano de 1549 em que teve principio a
fundação da Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos até o de 1762. In Anais da
Biblioteca Nacional, RJ, Leuzinger, vol. XXII, 1900.
NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), SP,
Hucitec, 1983.
58
Idem
Idem.
60
“Representação dos oficiais da Câmara de Vila Rica para o Rei, 27/10/1766”, AHU, MG, Avulsos, Cx: 89,
doc: 32.
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Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
SELVAGEM, Carlos, Portugal Militar, Lisboa, Casa da Moeda, 1994
Fontes
“Cópia da Carta Circular aos Cap.ns Mores de Luiz Diogo da Silva” AHU, MG, Avulsos,
Cx. 88, doc. 36
“Representação dos oficiais da Câmara de Vila Rica para o Rei, 27/10/1766”, AHU, MG,
Avulsos, Cx. 88, doc. 36 (anexo)
“Oficio de Morgado de Mateus para o Conde de Oeiras, SP, 21/6/1766”, AHU, SP, Avulsos,
Cx. 25, doc. 2409.
“Carta de Luiz Diogo da Silva para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Vila Rica,
4/9/1766” AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, doc. 36.
“Bando lançado pelo Governador de Minas Gerais, 26/4/1766”, AHU, MG, Avulsos, Cx. 88,
doc. 36
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FORÇAS MILITARES E A HIERARQUIA SOCIAL
Christiane Figueiredo Pagano de Mello
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Introdução: o contexto histórico
A segunda metade do século XVIII é um período especialmente interessante para o
estudo das forças militares. Eram imperativas as necessidades de uma intensa reorganização
militar, tanto no Reino de Portugal, como, também, no Estado do Brasil, sua principal terra
colonial, onde se fazia indispensável aumentar a capacidade defensiva. Tais necessidades
decorriam das crescentes tensões vividas na Europa, resultantes da celebração, em agosto de
1761, do Pacto de Família, em que os vários Bourbons então reinantes se comprometiam a
defender mutuamente seus Estados.
Na ocasião, embora D. José fosse casado com uma princesa Bourbon, não podiam os
pactuantes esperar que Portugal aderisse ao Pacto, aliado como era da Inglaterra, então
adversária da França e da Espanha na chamada Guerra dos Sete Anos, luta armada que foi
travada de 1756 até 1763.
Assim, a Coroa portuguesa, foi forçada a abandonar sua posição de neutralidade e a
participar da fase final da Guerra dos Sete Anos. Após o estabelecimento dos Estados
Ibéricos em campos opostos nesse conflito europeu, a contenda entre Portugal e Espanha logo
se prolongaria avançando para as indefinidas regiões fronteiriças sulinas. Vale notar que,
como observa o historiador Fernando Novais,
“ao lado das zonas de tensão entre as potencias dominantes em luta pela hegemonia, França
e Inglaterra, entre os países coloniais ibéricos se vão formando ao mesmo tempo outras
Professora efetiva da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP. Doutora em História pela Universidade
Federal Fluminense – UFF.
61
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zonas de tensão (sobretudo a região platina). Os dois tipos de conflitos correm paralelos, e
se inter-relacionam continuamente (...)”62.
No caso português, especificamente, o conflito com a Espanha pelos territórios às
margens do rio Uruguai havia demonstrado claramente a precária capacidade de resistência de
seu exército, sobretudo quando da invasão e conquista pelo governador de Buenos Aires, D.
Pedro de Cevallos, da Colônia do Sacramento, em dezembro de 1762, bem como da vila do
Rio Grande e da margem norte do canal que conectava a Lagoa dos Patos ao mar.
Não obstante assinado em fevereiro de 1763 o Tratado de Paz que havia de pôr termo
à Guerra dos Sete Anos, restituindo a Portugal tudo o que fora ocupado pelos espanhóis, D.
Pedro de Cevallos dispôs-se a devolver, dez meses após assinado o Tratado, apenas a Praça da
Colônia, retendo o restante do território – as ilhas de São Gabriel, Martim Garcia e das Duas
Irmãs e o Rio Grande de São Pedro com o seu território – e não permitindo à Colônia do
Sacramento qualquer contato com o território contíguo. Tensionavam-se, portanto, as
questões da delimitação das fronteiras das possessões portuguesas ao sul da América; a
perspectiva de guerra era flagrante, e notória a necessidade de reavaliar o sistema defensivo
até então utilizado
As Tropas de Pardos Libertos
Neste ponto abordaremos as Tropas de Auxiliares de pardos libertos constituídas nas
Capitanias do Rio de Janeiro e São Paulo. Considerando tais Tropas como resultado das
especificidades vividas na realidade social da Colônia, propomo-nos observar alguns dos
procedimentos das autoridades coloniais com relação a essa qualidade de Tropas.
No que concerne aos oficiais maiores a compor o Terço de Auxiliares de homens
pardos libertos, são cabíveis duas colocações: a primeira é que, em nenhuma das cartas
patentes consultadas consta o posto de Mestre de Campo, mas, sim, apenas o de Sargento-Mor
como posto máximo, agregado ao termo de Comandante, isto é, Sargento-Mor Comandante.
A segunda: os Sargentos-Mores, bem como os Ajudantes, deveriam vir das tropas pagas,
62
Novais, Fernando Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), SP, Hucitec, 1983,
p.51.
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assim como nos demais Terços de Auxiliares, posto que os Auxiliares pardos libertos
deveriam estar tão bem regulados e disciplinados quanto aqueles, e igualmente aptos à defesa.
Assim, pode-se verificar tais preocupações por sua presença no enunciado de uma das cartas
patentes consultadas: “(...) que sendo S.Mag.e servido ordenar por Ordem de 22 de Março de
1766 formassem novos terços de Auxiliares e Ordenanças (...) e querendo em execução da
mesma Real Ordem regular os terço de Auxiliares de Infantaria dos Homens Pardos Libertos,
que se formou nesta cidade[Rio de Janeiro], para a defensa della, nomeando lhe os officiais
competentes (...)”63.
Temos, assim, no ano de 1775, o Terço de Auxiliares dos homens pardos libertos “de
que he Sargento Maior Comandante Joze de Almeida e Mello”64, o qual ocupara,
anteriormente, conforme se pode verificar através da carta patente daquele que o viria
substituir após sua transferência, o posto de Ajudante do segundo Regimento pago da praça
do Rio de Janeiro: “Hei por bem prover no posto de Ajudante do Segundo Regimento de
Infantaria desta praça de que he Coronel Gregório Moraes de Castro Pimentel, que vagou
por promoção de Joze de Almeida e Mello, que o era, para o posto de Sargendo Maior do
Terço de Auxiliares de Infantaria dos Homens Pardos Libertos desta cidade (...)”65.
Quanto ao posto de Ajudante, percebe-se a exigência do mesmo pré-requisito, isto é,
que procedessem das tropas pagas: “e atendendo a não se haver ainda nomeado officiaes
alguns das tropas [pagas] para Ajudante do terço de pardos, que na conformidade da mesma
real ordem se levantou nesta cidade, como se tem praticado com os mais terços de auxiliares
(...) e tendo consideração aos merecimentos e mais partes de Manoel Francisco de Oliveira
(...)”66.
Interessante é notar que, especificamente com relação aos pardos, limitava-se
oficialmente seu alcance hierárquico aos postos superiores da Tropa de Auxiliares, pois que
estes só alçavam até o posto de Sargento, oficial inferior localizado acima dos Cabos de
Esquadra e abaixo do Alferes. Justificava-se, assim, a solicitação feita pelo Marquês do
63
Idem.
“Carta patente, RJ, 11/5/1776”, AHU, RJ, Avulsos, Cx.108, doc.45.
65
“Carta patente, RJ, 17/8/1776”, AHU, RJ, Avulsos, Cx.109, doc.53.
66
“Carta patente, RJ, 22/7/1775”, AHU, RJ, Avulsos, Cx.109, doc.9.
64
66
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Lavradio a Martinho de Mello e Castro: “Os Pardos e Mullatos ficarião m.to satisfeitos de se
poderem adientar athé os postos de Alferes (...)”67.
Considerados hierarquicamente inferiores por sua condição racial, muito expressivo é
o fato de o acesso ao posto de Alferes dos Auxiliares ser vetado aos pardos libertos,
significando explicitamente a interdição social imposta a esse grupo.
Tal posto lhes
possibilitaria receber as régias mercês: seus inúmeros privilégios e honras. Por outro lado,
merece especial atenção a significativa estratégia empregada a fim de suprir a necessidade de
militarização daquele contingente: desde que conseguissem levantá-las, concedia-se-lhes o
direito do exercício dos postos de Capitães das Companhias de Auxiliares, muito embora não
lhes fosse permitido, a qualquer momento, obter a patente do respectivo posto.
Embora não nos tenha sido materializada enquanto documento, uma referência
passível de verificação, conforme abaixo sugerido, indicava haver um determinado modelo de
patente que se costumava passar na cidade do Rio de Janeiro especialmente para os Capitães
pardos, cuja menção encontra-se em um ofício de Morgado de Mateus ao Conde de Oeiras.
Nele, o Governador de São Paulo afirmava ter expedido uma patente, “que he a mesma que se
costuma passar no Rio de Janeiro aos capitães dos homens pardos forros q’ há naquela
cidade”68, a um pardo que desempenhava a função de Capitão. Acrescenta, ainda: “passei
somente hua patente, sem o declarar Capitão dos Auxiliares pardos (...)”. Tais excusas
comprovavam o descumprimento da promessa que este Governador fizera a um pardo, Capitão de fato, embora não de patente -, que, se este aumentasse o número de homens de sua
companhia, dar-lhe-ia “patente de Capitão Auxiliar com graduação de Ten.te de infantaria
paga”. Entretanto, parece não ter honrado sua palavra, “considerando q’ isto não poderia ser
do agrado de Sua Magestade e q’ o não devia fazer sem primeiro lhe dar conta”69.
Interessante notar a manipulação da expectativa da honra e dos privilégios como fator
de ativação daqueles elementos que, despossuídos de uma herança que lhes garantisse posição
“Carta do Marquês do Lavradio para Martinho de Mello e Castro, RJ, 23/4/1777”, BNL, Reservados, Códice
10631.
68
“Ofício n.o terceiro do Governador Morgado de Mateus ao Conde de Oeiras, SP, 10/9/1765”, AHU, SP,
Avulsos, Cx.23, doc.2255.
69
Idem.
67
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proeminente no seio da sociedade70, para que, voluntariamente, se integrassem no serviço
militar da Tropa de Auxiliares, bem como, além disso, se dispusessem a arregimentar os
homens necessários para comporem suas respectivas Companhias.
Assim, era de sua
esperança de ascensão social através dos postos militares, fomentada, inclusive, pelos
próprios Governadores, que, por sua vez, alimentavam-se de grande parte de efetivos pardos
libertos as Tropas de Auxiliares.
Dentre o grupo de homens denominados de pardos libertos, vale destacar que havia
variações no que concerne a suas atividades e riquezas, interessante ponto sobre o qual,
infelizmente, não nos debruçaremos. Pode-se verificar, entretanto, que o exercício do posto
de Capitão das Companhias de Auxiliares, sem patente, estava destinado àqueles de maior
fortuna, que eram, conseqüentemente, os que mais ambicionavam verem confirmados pela
graduação militar o status social que tanto almejavam atingir. A esse respeito, temos, como
exemplo, o depoimento de Morgado de Mateus: “como nesta terra há m.tos homens pardos, e
entre estes huns q’ são oficiaes de diferentes of.os e outros homens de cabedais e de prestimo,
achei que destes havia hua comp.a com seu Capi.am homem pardo, e rico (...)”71.
Nesses termos, outro fator interessante se coloca, qual seja o da necessidade de
apropriação de determinados sinais e imagens, símbolos classificadores, por excelência, de
um valor social, a conferir distinção, prestígio e poder.
Condicionados pelos códigos
hierárquicos tradicionais do Antigo Regime, os pardos libertos “aspiravam ao status, títulos e
privilégios de aristocracia”72, o que se pode facilmente verificar pela utilização dos uniformes
e das armas como forma de visibilizar suas pretensões sociais: “O sobredito capitão e
soldados se ficão fardando e armando com todo o empenho para passarem mostra na minha
Quanto aos pardos libertos, cabe destacar a análise feita por Stuart Schwartz, “(...) os mestiços livres eram
definidos tanto pela cor quanto por categoria funcional ou estado tradicional.As pessoas de cor geralmente
arcavam com duas marcas de desvantagem. Primeiro, sua cor indicava claramente ascendência africana e,
portanto, condição social inferior, presumivelmente a de escravo, em alguma época do passado. Segundo,
havia uma insinuação de ilegitimidade na existência de uma pessoa mestiça, pois supunha-se que o homem
branco normalmente não se casava com mulheres de condição racial inferior (...)” No que diz respeito à sua
condição jurídica de livres, afirma o autor “que as pessoas de cor livres podiam sofrer com incapacidades legais
e ultrajes, estar sujeitas a coerção legal e ser tratadas com desprezo, mas seu status era infinitamente melhor
que o dos cativos”. [Stuart Schwartz, Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial, 15501835, SP, Cia das Letras, 1985, p.213 e 214.]
71
Idem.
72
Schwartz, Stuart, Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835, SP, Cia das
Letras, 1985, p.210.
70
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presença com os seus uniformes e armas tudo feito a sua custa e querem que lhes mande hum
oficial para aprenderem o novo exercício”73.
Assim, interessante é observar, nos casos acima analisados, as peculiaridades
produzidas pela dinâmica da realidade social da Colônia, resultantes da presença de uma
população de origem mestiça, suficientemente significativa para se levantar um Terço de
Auxiliares, força importante para a defesa de sua cidade, no caso o Rio de Janeiro. A
conjunção do desejo mestiço de ascenção social, pautado nos moldes do Estado Absolutista,
com a necessidade imperativa de militarização da população masculina, impunha às
autoridades coloniais determinadas adaptações nas categorias tradicionais de preenchimento
dos postos militares à realidade da sociedade colonial, a despeito de sua abstenção em
reconhecê-los oficialmente através da respectiva patente.
Um fator altamente agravante nas relações entre as autoridades metropolitana e
colonial e o seu Terço de Pardos livres é que aquelas continuavam a ser profundamente
condicionadas pelos estereotipados valores produzidos pela hierarquia do Estado Absolutista
em relação aos indivíduos de origem africana, que a desqualificava por sua ascendência,
caracterizando seus componentes como insubordinados “dapior educação, de caráter
libertino”74, constituindo-se, assim, em perigos potenciais para a preservação da tranqüilidade
e da ordem social. Assim, a delegação de responsabilidades militares aos pardos libertos, bem
como sua constituição em Companhias nunca deixaram de gerar o temor nos governos
coloniais de que esses mesmos homens “pudessem constituir uma ameaça para a segurança
da Colônia e o domínio branco”75.
Ainda, segundo Russel-Wood, com relação a esses indivíduos livres de origem
africana, manifestavam-se as autoridades metropolitana e colonial com uma “atitude
ambivalente”, forjada a partir das “percepções e atitudes estereotipadas e negativas (...) em
relação aos negros e sobretudo em relação aos mulatos (...) de quem desconfiavam
intrinsecamente e sobre a qual não tinham pleno controle, mas de quem dependiam e a quem
“Ofício n.o terceiro do Governador Morgado de Mateus ao Conde de Oeiras, SP, 10/9/1765”, AHU, SP,
Avulsos, Cx.23, doc.2255.
74
“Relatório do Marquês do Lavradio” inHistória do Brasil, JoãoArmitage, R.J., Zélio Valverde, 1943, p.424.
75
Russell-Wood, “Autoridades Ambivalentes: O Estado do Brasil e a Contribuição Africana para ‘A Boa Ordem
na República’”, In: Brasil – Colonização e Escravidão, Organização Maria Beatriz Nizza da Silva, RJ, Nova
Fronteira, 2000, p. 117.
73
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deram um certo grau de legitimidade ao reconhecerem a sua relevância funcional para (...) a
defesa da Colônia contra os inimigos externos e a preservação da ‘boa ordem na
República’”76. Assim, do entrecruzamento dessas duas posições - precisão e temor - que,
muito embora, conflitantes, não eram mutuamente excludentes, é que nascia a “atitude
ambivalente” com que as autoridades metropolitanas e coloniais pautaram sua relação com os
indivíduos de origem africana, no caso, os pardos libertos.
A título de conclusão, deve-se ressaltar que, muito embora, a sociedade colonial
tivesse produzido, sob a égide absolutista de sua hierarquia, múltiplas subdivisões de honra e
apreço, de complexas compartimentações de cor e de diversas formas de mobilidade e
mudança, foi também, de acordo com Stuart Schwartz, “uma sociedade com forte tendência a
reduzir tais complexidades a dualismos de contraste – senhor/escravo, fidalgo/plebleu (...)”
ao buscar escamotear "as múltiplas hierarquias entre si, de modo que a graduação, a classe,
a cor e a condição social de cada indivíduo tendessem a convergir”77, reafirmando, direta ou
indiretamente, conforme acima demonstrado, os estereótipos e preconceitos que norteavam as
relações sociais.
Referências Bibliográficas
NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), SP,
Hucitec, 1983.
PRADO JR., Caio. A Evolução Política do Brasil e outros Estudos, S.P, Brasiliense, 1977.
RUSSELL-WOOD, A. J. R. “Autoridades Ambivalentes: O Estado do Brasil e a Contribuição
Africana para ‘A Boa Ordem na República’”, In: Brasil – Colonização e Escravidão,
Organização Maria Beatriz Nizza da Silva, RJ, Nova Fronteira, 2000.
SALES, Ernesto Augusto Pereira, “As Observações Militares do Conde Lippe” In O Conde
Lippe em Portugal, Vila Nova de Farnalicão, Lisboa, 1936
SOUZA, Laura de Mello, Desclassificados do Ouro, RJ, Graal, 1986.
76
. Idem, Op.cit, p.119.
Schwartz, Stuart, Segredos Internos...Op.cit. p.209.
77
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o Império português no Atlântico Sul
SCHWARTZ , Stuart, Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial, 15501835, SP, Cia das Letras, 1985
Fontes
LIPPE, Conde Reinante de Schaumbourg, “Regulamento para o exercício, e disciplina dos
Regimentos de Infantaria dos Exércitos de Sua Majestade Fidelíssima”, Régia Oficina,
Lisboa, 1794.
SILVA, José Justino de Andrade. “Carta Régia sobre a Criação dos Soldados Auxiliares,
Lisboa, 7/1/1645”. In “Coleção Cronológica da Legislação Portuguesa vol. de 1640 a 1647.
“Carta patente, RJ, 17/8/1776”, AHU, RJ, Avulsos, Cx.109, doc.53.
“Carta patente, RJ, 22/7/1775”, AHU, RJ, Avulsos, Cx.109, doc.9.
“Carta do Marquês do Lavradio para Martinho de Mello e Castro, RJ, 23/4/1777”, BNL,
Reservados, Códice 10631.
“Ofício n.o terceiro do Governador Morgado de Mateus ao Conde de Oeiras, SP, 10/9/1765”,
AHU, SP, Avulsos, Cx.23, doc.2255
“Relatório do Marquês do Lavradio” inHistória do Brasil, João Armitage, R.J, Zélio
Valverde, 1943, p.424.
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o Império português no Atlântico Sul
HISTÓRIA DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO
DOCENTE NA REDE MUNICIPAL DE GOIÂNIA
Cleiginaldo Pereira Santos78
[email protected]
Os trabalhadores na educação e suas greves
Os trabalhadores da educação no Brasil tem uma trajetória de luta em relação às questões
pertinentes a educação pública e a própria valorização da sua carreira. Um dos principais
instrumentos para essas reivindicações são as greves dessa categoria. De norte a sul do país,
em todos os estados os trabalhadores em educação recorrem à greve como forma de pressão
em relação ao Estado, no entanto, suas reivindicações na maioria das vezes não são atendidas
ou quando são, ficam para os próximos governos que descumprem os compromissos
firmados. Qual o motivo para que esse fato ocorra? Para respondermos essa questão
precisamos entender a conjuntura e o papel do Estado no capitalismo.
O Estado tem uma função associada a reprodução das relações sociais determinadas
pela classe dominante, esse é um órgão essencial na manutenção dessas relações. Embora os
teóricos do Estado creditem a ele a responsabilidade de administrar para o bem coletivo ou ser
um instrumento para diminuir as desigualdades sociais, na realidade o Estado é um dos
elementos que provoca a desordem e mantém a desigualdade como fator essencial na lógica
do capitalismo. Na análise de Kropotkim (2000), Bakunin (2006) o Estado é uma
representação do autoritarismo, um órgão criado para impedir a liberdade, e, somente com a
sua aniquilação, juntamente com a ordem econômica capitalista é que será possível
concebermos a liberdade na sua plenitude.
78
Docente da Rede Municipal de Educação de Goiânia (SME)
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[...] não hesito em dizer que o Estado é o mal, mas um mal
historicamente necessário, tão necessário no passado quanto o será sua
extinção completa, cedo ou tarde; tão necessário quanto foram a
bestialidade primitiva e as divagações teológicas dos homens. O
Estado absolutamente não é a sociedade, é apenas uma forma histórica
tão brutal quanto abstrata. Nasceu historicamente, em todos os países,
do casamento da violência, da rapina e do saque, isto é da guerra e da
conquista, com os deuses criados sucessivamente pela fantasia
teológica das nações. Foi desde sua origem e permanece ainda hoje, a
sanção divina da força bruta e da iniquidade triunfante ( BAKUNIN
2006, p. 42-43).
O Estado, torna-se assim o “mediador dos conflitos” entre a classe trabalhadora e a
burguesia.
Esta concepção de Marx e Engels acerca do Estado é claramente explicitada em “O
manifesto do Partido Comunista”, no qual os citados autores afirmam que “o Estado moderno
não passa de um comitê que administra os negócios da classe burguesa como um todo”.
(MARX e ENGELS, 1998, p. 10).
Para Mendonça (2011), a questão dos sindicatos e o seu papel segundo
Pannekoek, mostra claramente que a perda de combatividade dos sindicatos é algo previsto
nas obras de Marx e mesmo Lênin, embora esse segundo tenha no sindicato uma visão ligada
ao partido revolucionário.
Consequentemente, o que Marx e Lênin precisaram sobre o Estado
deve valer também para as organizações sindicais, isto é, que apesar
da democracia formal, sua organização impossibilita fazer delas um
instrumento de revolução. A força contrarrevolucionaria dos
sindicatos não pode ser debilitada e destruída por uma mudança de
pessoas, pela substituição de dirigentes sindicais ou “revolucionários”
em lugar dos chefes reacionários. É justamente a forma desta
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organização que torna as massas pouco menos que impotentes e lhes
impede de fazer dos sindicatos órgãos de sua vontade. A revolução
somente pode vencer destruindo esta organização, transformando, por
assim dizer, a forma da organização para fazer dela algo radicalmente
novo: o sistema dos soviets. Sua instauração está em condições de
extirpar e eliminar não apenas a burocracia estatal, mas também a do
sindicato (PANNEKOEK 2005 apud MENDONÇA 2011, p. 133).
Por essa postura, a mudança de um governo pelo outro pode “significar melhorias” para o
conjunto dessa categoria, no entanto essa afirmação torna-se uma ilusão, tornando-se um
elemento essencial na perpetuação das relações entre a burocracia sindical partidária e os
burocratas do estado, que entram em acordo entre si para favorecer seus próprios interesses
deixando as reivindicações da categoria como fator de barganha. Por exemplo, no final de
uma greve, é a diretoria do sindicato que acaba com a própria greve, indiferente das decisões
da categoria em uma assembléia, esse fato é comprovado nas greves em todo o país, bastando
apenas acessar o youtube e assistir os desfechos das greves em todo Brasili. Um exemplo
recente ocorreu durante a greve da educação municipal em Goiânia no ano de 2010, onde o
Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Goiás (SINTEGO) acabou com a greve antes
mesmo da votação pela assembléia da categoria.
Segundo Pannekoek (2007), o sindicalismo dentro do capitalismo é formado por um
círculo vicioso, no qual a burocracia sindical é responsável em controlar a classe trabalhadora
para que essa não avance nos processos de luta, e as greves não se tornem selvagens, ou seja,
sem o controle do sindicato em busca da revolução.
[...] Os sindicatos são hoje organizações gigantes, cujo lugar é
reconhecido pela sociedade. A sua posição está regulamentada pela
lei: acordos que façam têm força legal para toda a indústria. Os seus
chefes aspiram fazer parte do poder que determina as condições de
trabalho. Para o capital, doravante todo-poderoso, é mais vantajoso
disfarçar a sua hegemonia sob formas democráticas e Constitucionais,
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que mostra-la sob forma direta e brutal de ditadura. [...] Assim, as
condições que vigoram hoje fizeram que, mais que nunca, os
sindicatos se transformassem em órgãos de dominação do capitalismo
monopolista sobre a classe operária (PANNEKOEK, 2007, p. 72).
Essa perspectiva vai ao encontro ao que Marx e Engels (1986) no seu texto sobre o
sindicalismo já percebia em relação aos sindicatos europeus que simplesmente lutavam por
remunerações salariais que não rompiam com a questão da abolição da exploração da mais
valia, e a cada novo reajuste salarial, novas formas de intensificação da mais valia ocorriam
nesse processo.
[…] Agora os sindicatos são instituições reconhecidas e sua ação é
admitida como fator de regulamentação dos salários e da jornada de
trabalho, como atesta a legislação fabril. [...] Além disso, as flutuações
econômicas, pelo menos uma vez a cada dez anos, anulam tudo que
havia conquistado com muita luta
esta deve recomeçar desde o
principio. È um ciclo vicioso. A classe operária continua sendo o que
era e o que nossos predecessores cartistas não temiam chamar de uma
classe de escravos assalariados. Esta deve ser sempre a aspiração
mais alta dos operários britânicos? Ou devem se esforçar ,pelo menos
por romper esse círculo infernal e fixar como objetivo de movimento
a luta pela abolição do sistema assalariado? (MARX e ENGELS 1986
pag.40).
As perspectivas relatadas pelos referidos autores, não são exclusivas dos
sindicatos da classe operária, mas sim de todos os trabalhadores, no setor da educação, o
patrão e os sindicatos no formato de acordos que sempre frustam a base da categoria.
Segundo Engels (2010), as leis que reconhecem os sindicatos e o direito de greve,
acabaram por criar uma limitação na luta dos operários, pois os sindicatos para serem
reconhecidos como instituições representantes dos trabalhadores, aceitaram a imposição e
regulação dos movimentos, já que na época da lei eram obrigados a comunicar o patrão da
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decisão da greve e essa só poderia ocorrer depois de 92 horas, esse fato mostra claramente que
caberia o papel de controle dos dirigentes sindicais nesse processo de negociação direta como
patrão.
Por exemplo, a lei da greve no Brasil prevê que os sindicatos devem informar com 48
horas de antecedência ao patrão, sobre a deflagração da greve, em que pese que essa lei seja
para iniciativa privada, serve de modelo para o funcionalismo público, no entanto esse
procedimento não significa garantia nenhuma da legalidade da greve por parte da justiça do
Estado.
Para Pannekoek (2011) o sindicalismo tornou-se um dos principais inimigos da classe
trabalhadora e do seu processo de emancipação, esse cita os exemplos dos sindicatos na
Alemanha que durante as revoltas de 1919, aliaram-se ao status quo para reprimir os
trabalhadores, além da Hungria que durante esse mesmo ano, teve um processo revolucionário
desencadeado pelos trabalhadores, contrariando as determinações dos sindicatos.
As lutas sindicais em Goiás envolvendo o maior sindicato do estado, no caso o
Sintego, refletem essa prática, um exemplo foi durante a greve de 2010 dos trabalhadores da
rede municipal de Goiânia, que sofreram várias sabotagens por parte da direção sindical que
não queria uma greve contra o governo da prefeitura de Goiânia, coligação partidária
PMDB/PT, já que essa aliança era defendida durante a campanha para o governo do Estado
contra o PSDB, perante a tal situação a categoria enfrentou a direção sindical.
[…] A ação direta é a ação dos próprios trabalhadores sem a mediação
da burocracia sindical. Uma greve diz-se “selvagem” (ilegal ou não
oficial) por oposição às greves desencadeadas pelos sindicalistas
respeitando os regulamentos e as leis. Os trabalhadores sabem que a
greve legal carece de efeito; os sindicalistas são forçados a
desencadeá-la contra a sua vontade e sem que a tenham previsto,
talvez pensando intimamente que uma derrota seria uma lição salutar
para os presunçosos operários e sempre tentam pôr-lhes fim o mais
rapidamente possível . É por isso que a exasperação explode no meio
dos grupos maiores ou menores, de operários e toma a forma de greve
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selvagem, desde que a opressão se torne muito forte ou negociações se
arrastem sem resultados (PANNEKOEK, 2011, p. 119).
Na greve de 2010, da rede municipal de ensino, foi marcada pela rejeição da base
da categoria em relação ao sindicato, as desconfianças em relação a prática desenvolvida pelo
sindicato cresciam dentro da categoria e culminaram com a rebelião frente a direção sindical,
inclusive realizando a primeira assembleia sem a direção sindical, a perspectiva da ação direta
e de enfrentamento em relação as propostas da direção marcaram essa greve, mostrando
claramente que é possível a auto-organização e greve sem sindicato.
No entanto as posturas de vários professores (as) que assumiram a luta dentro dos
comandos de greve divididos por regionais, fazendo ações decididas pela base, sem consultar
a cúpula sindical, foram elementos que permitiram que a greve fosse conduzida pela categoria
e não pelo sindicato, ao ponto do comando de greve, se tornar um dos interlocutores da greve,
passando por cima das determinações do sindicato. No entanto, esse sindicato acabou
encerrando com a greve, em uma assembleia que a categoria não votou, e o comando de
greve permaneceu mais uma semana encerrando a greve em uma assembleia, auto organizada
sem sindicato uma forma de organização na qual a categoria assume a tarefa de criar e
executar ações para pressionar o governante, independente dos dirigentes sindicais, foi um
fator de surpresa para os burocrata acostumados em fazer greve de gaveta, ou seja, nos
escritórios dos governantes.
Para o SINTEGO, como qualquer outro sindicato, o medo da perda do patrimônio ou o
tempo que dura uma greve, pode significar diminuição dos seus recursos, que segundo a
lógica do sindicalismo no capitalismo, esse deve gerir os recursos para ampliar seu próprio
patrimônio e capital.
[…] Quando os dirigentes sindicais negociam com os patrões, já não
estão em condições de arrancar grande coisa deles. Não ignorando o
crescimento dos capitalistas e pouco interessados em combate-los – já
que lutas deste tipo trazem o risco de arruinar financeiramente as
organizações e comprometer sua própria existência - estão obrigados
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a aceitar as propostas patronais. A sua principal atividade consiste em
acalmar o descontentamento dos operários e apresentar as ofertas dos
empregadores sob os mais aspectos mais favoráveis. [...] E se os
trabalhadores recusam estas ofertas e declaram greve, os chefes devem
ou se opor a eles, ou então tolerar a luta na aparência, com intenção
de fazê-la acabar o mais rápido possível (PANNEKOEK, 2011, p.72).
Porém, a maior sabotagem sindical, foi não negociar com o governo, sob quais
condições os trabalhadores voltariam ao trabalho após a greve, nessa perspectiva os
professores tiveram seus salários cortados, (corte de ponto) .
o sindicato assim mostrava a sua ‘força “, perante a categoria, mostrando que o
corte de ponto, ocorreu pela insistência da categoria em continuar com a greve, frente as
advertências da direção sindical, o sentimento de indignação como esse fato cresceu nos
professores da rede estadual, no entanto não foi suficiente para um rompimento tão intenso
como ocorreu na rede municipal de Goiânia.
A atitude do Sintego em 2008, não foi um fato isolado, em todas as greves que
ocorreram desde 1979, essa tem sido uma forma utilizada para demonstrar a “força e o
controle” que a direção exerce em relação a categoria, as posturas combativas adotadas pelo
sindicato variam conforme os interesses partidários que dominam essa estrutura. Por exemplo
em 2008 o desgaste em relação ao governo Alcides Rodrigues, favorecia a conjuntura das
alianças entre o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e o Partido dos
Trabalhadores (PT).
Essa relação entre partido e sindicato, é fundamental para entendermos as constantes
greves que ocorrem nesse setor, as motivações partidárias são os elementos que levam os
burocratas sindicais a deflagrarem as greves.
É perceptível no meio sindical a presença de basicamente três
concepções que dimensionam a relação entre partido e sindicato. A
primeira situa o papel do sindicato como limitado à defesa dos
interesses imediatos dos trabalhadores em face do capitalismo e,
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necessariamente, desvinculado das organizações políticas. Na
segunda, o sindicato é a expressão das diretrizes postas pelas normas
partidárias e, assim, é o partido que exerce ações no interior do
sindicato. Na última, é a central sindical que articula nas esfera
política e ideológica as reivindicações, substituindo, pois, o partido.
Essas concepções, o mais precisamente as duas últimas, estiveram
implicitamente presentes quando da filiação da entidade representativa
dos professores à CUT, bem como na institucionalização do Sintego.
Apesar disso não foram suficientemente discutidas em muitos
segmentos da categoria,e, por conseguinte, o então CPG, correu o
risco de assumir muito mais o papel de vanguarda do que de
representante, já que, para representar a categoria ele deveria ser um
espaço de informação e amadurecimento para o encaminhamento das
decisões (CANEZIN, 2009, p. 266).
A análise feita pela referida autora acima representa uma postura em relação a creditar
num papel ainda relevante ao sindicato, desde que esse aja de uma forma a “promover” o
debate interno com a categoria, as concepções apresentadas não se diferenciam uma das
outras como a autora coloca, mas sim exemplificam as faces que o sindicalismo pode utilizar
para iludir com discursos pragmáticos os interesses da burocracia sindical/partidária.
Esse fato fica exemplificado pela greve de 2010, que tinha como uma de suas
bandeiras a questão do piso salarial nacional, além do enquadramento dos auxiliares
educacionais , na prefeitura de Goiânia, onde o sindicato atuou de uma forma a não deflagrar
a greve, procurando intimidar qualquer manifestação nesse sentido, esse fato ocorreu por
causa da ligação dos burocratas sindicais com o Partido dos Trabalhadores, que nesse
momento assumia através do vice- prefeito Paulo Garcia (PT) a administração da prefeitura de
Goiania.
A presença do PT, na direção do Sintego remonta desde a sua fundação, tendo a
corrente denominada Articulação Sindical, a mesma presente na direção da Central Única dos
trabalhadores, como sendo dentro do partido a corrente dominante, nessa perspectiva as
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estratégias de luta adotadas pelo sindicato, são sempre pautadas em não desgastar a imagem
do partido, principalmente quando este, ocupa os governos.
Para Ataides (2005) as relações entre o PT/SINTEGO, são visíveis na representação dos
seus presidentes que fazem ou fizeram parte do partido .
Lutar sem sindicato é possível, a auto organização é uma realidade.
Os exemplos da greve de 2010, na prefeitura de Goiânia e o que aconteceu com os
professores da greve do estado em 2008, mostram que em um processo de luta as chamadas
garantias evocadas pela organização sindical, não passam de ilusões, já que na luta concreta o
enfrentamento e as conquistas são frutos da capacidade de resistência, da categoria através de
ações diretas.
As greves em educação mostram o descaso que o Estado tem em relação à educação
para a classe trabalhadora, os trabalhadores da educação, os alunos e suas famílias são as
grandes vitimas desse processo. Embora o enfoque dessas greves sejam os salários e as
péssimas condições de trabalho, os movimentos conduzidos pelos sindicatos levam sempre a
categoria a depositar ilusões em relação a mudanças de governo dentro do estado, criando
uma mistificação que existirão governantes melhores que os outros, sem perceber que os
ganhos em um determinado mandato podem ser retirados em outros, conforme a conjuntura
econômica e a capacidade de reação da categoria. 79
Referências Bibliográficas
Esse fato pode ser percebido na análise de Ataides 2002, que enfoca a “mudança” na administração do governo
de Goiás em 1998, com a eleição do governador Marconi Perillo do Partido da Social Democracia Brasileira
(PSDB), que permitiu a efetivação de concursos para professores bem como o plano de cargos e salários, já que
durante a administração do PMDB, esse fato não ocorria. O referido autor afirma a alternância do poder na época
como um fator positivo, sem perceber que sua análise é superficial, por não notar que as “conquistas” formavam
um jogo político para a reeleição do mesmo, pois em 2010 o mesmo Marconi Perillo acaba com o plano de
cargos e salários dos professores
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Entre Europa África e América:
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A INSTITUIÇÃO DAS AULAS RÉGIAS E A FORMAÇÃO DO ESPAÇO
POLÍTICO NO SUL DE MINAS GERAIS
Edna Mara Ferreira da Silva
Universidade do Estado de Minas Gerais
UEMG – Campanha
O estabelecimento de limites tanto internos quanto externos e a expansão territorial em
fins do século XVIII e inicio do século XIX na América portuguesa seguiu ritmos diferentes,
e Minas Gerais como região estratégica do império se inseria nesses movimentos territoriais.
O processo de demarcação das fronteiras meridionais entre as
Américas portuguesa e espanhola teve em Minas um corolário
regional, expresso em uma clara política de expansão territorial e de
consolidação dos limites da capitania, que foi conduzida por seus
governantes na segunda metade do século XVIII. Tal política se
apoiou fortemente na criação de vilas, de freguesias e de sedes de
julgados nas zonas periféricas de Minas Gerais. (FONSECA,
2010:197)
A ocupação territorial e administrativa do sul da capitania de Minas Gerais, assim
como em outras regiões da mesma, nas quais o ouro não foi encontrado, ou rapidamente se
escasseou, se deu de forma mais lenta do que a percebida nas áreas de mineração. A fronteira
sul da capitania era aberta ao trânsito dos paulistas e era habitualmente chamada de “sertões”
da comarca do Rio das Mortes.
Situando-se à margem do mundo conhecido e regulado, o sertão, como sugere Adriana
Romeiro, é um espaço mais simbólico do que geográfico. A rigor, as fronteiras vão se
definindo a partir da imposição, pela permanência e posse de terras num movimento das
populações que investem sobre o território de forma abrupta ou mais lentamente. “Daí a
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mobilidade de uma fronteira, que oscilava à medida que as terras incógnitas e desconhecidas
iam sendo devassadas pelo elemento humano”. (ROMEIRO, 2003: 271)
O Sertão do Rio Verde, como era denominado o território antes de se tornar parte
constituinte da Comarca do Rio das Mortes, começou a ser percorrido em 1692. (CASADEI,
1989) quando os bandeirantes paulistas deixaram suas terras em busca das riquezas do
interior, atravessam a serra da Mantiqueira pela garganta do Embaú e atingiram as cabeceiras
do Rio Verde.
Esse sertão do Rio Verde era área de fronteira e de disputa entre as autoridades de São
Paulo e Minas Gerais. No governo de D. Brás Baltazar da Silveira foram criadas três
comarcas para a região das Minas e ficou decretado como limites para a do Rio das Mortes a
Serra da Mantiqueira, ao sul, e o sertão desconhecido, a oeste. Como consequência, o termo
da vila de São João del Rei foi ampliado, estendendo-se até a Mantiqueira, fazendo com que
sua Câmara se tornasse responsável pela administração de toda a região sul do território.
A elevação à vila do antigo arraial de Campanha do Rio Verde deve ser entendida
como parte de um movimento mais amplo que se inseria no contexto das transformações
ocorridas em Minas Gerais na segunda metade do século XVIII, tanto em termos econômicos
quanto políticos. Como já se apontou anteriormente, frente às descobertas auríferas e a
ocupação do território, o estabelecimento de vilas em Minas Gerais configurou-se como um
elemento poderoso de reafirmação da soberania portuguesa, da mesma forma que pode ser
percebido também como recurso de organização administrativa.
Nesse cenário que se descortina na virada do século XVIII para o XIX, o arraial de
Campanha de Santo Antônio da Piedade do Rio Verde, elevado a condição de vila em 1798,
com a denominação de vila da Campanha da Princesa, assumiria progressivamente um lugar
de destaque, tornando-se, juntamente com as vilas de São João del Rei e Barbacena, um dos
mais expressivos núcleos urbanos da região da Comarca do Rio das Mortes, com vigorosa
participação na política imperial.
Segundo Andrea Slemian, Minas Gerais já passava por várias transformações quando
da chegada da corte ao Brasil em 1808. A Comarca do Rio das Mortes foi a que mais cresceu
em fins do século XVIII, reflexo do deslocamento demográfico das antigas áreas de
mineração para o sul. (SLEMIAN, 2008)
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No contexto da propagação das reformas e princípios ideológicos
formulados por D. Rodrigo de Sousa Coutinho – e a despeito da
grande distância entre a “mudança socioeconômica e a elaboração da
política” reformista -, as elites mineiras, chamadas a participarem
ativamente da reorientação da política imperial, deram transparência a
estas demandas locais, cuja contemplação fundava, em último caso, as
condições da obediência e unidade. (SILVA, A., 2005:107)
Muito diferente dos contornos estabelecidos pelos sediciosos de 1789, o que se vê
nesse momento, da chegada da Corte são as manifestações de obediência e fidelidade,
expressa nas correspondências de várias câmaras mineiras, inclusive a de Campanha, o que
demonstra a adaptabilidade da vila, criada no contexto de virada do século XVIII para o
século XIX, às novas circunstancias políticas.
Buscamos justamente relacionar a conjuntura do inicio do século XIX com o papel das
aulas régias, dentro dos incipientes mecanismos de administração no termo de Campanha, de
se adaptarem as condições surgidas das mudanças históricas.
O estabelecimento das aulas régias cumpria as determinações legais para as reformas
educacionais empreendidas no reinado de Dom Jose I, num contexto maior de reformas
administrativas e políticas.
A educação, ao que parece, foi ministrada nos primeiros tempos do povoamento das
Minas através do ensino doméstico ou de alguns poucos professores e escolas particulares.
Nesta capitania, a mais urbanizada, outras formas de educação
floresceram, independentemente de qualquer modalidade de sistema
escolar: educação moral e religiosa no seio das irmandades leigas;
educação profissional para o aprendizado dos ofícios mecânicos e das
artes, realizado nos ateliês, nas oficinas e nas residências dos mestres
e mestras; educação para a formação de bons súditos e bons cristãos,
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nos espaços de sociabilidade próprios dos núcleos urbanos mineiros,
envolvendo ora o Estado, ora a Igreja, como as festas, apresentações
teatrais, etc. (FONSECA, 2008:3)
Não obstante as outras formas de educação, o ensino jesuítico marcante em outros
espaços coloniais, mesmo com seu alcance social restrito, foi tardiamente introduzido nas
Minas, uma vez que era obstaculizado pela a proibição de se estabelecerem ordens religiosas
nesta capitania.
Dessa forma somente em meados do século XVIII, através de uma permissão
temporária para três jesuítas ministrarem aulas no recém-criado seminário menor de Nossa
Senhora da Boa Morte em Mariana (1748) primeira instituição escolar semi-pública de Minas,
(VILLALTA, 1998) é que temos um embrionário experimento de educação jesuítica na
capitania.
Essa experiência educacional jesuítica durou pouco mais de uma década: o Alvara
Régio de 28 de junho de 1759 ao mesmo tempo em que estingue os estabelecimentos
jesuíticos de instrução, por conta da expulsão da ordem de Portugal e de seus domínios
ultramarinos, cria as escolas regias através do sistema de aulas régias.
A partir de 1759 com a expulsão dos jesuítas, o Estado assumiu a responsabilidade
diretamente pelo ensino escolar. Para financiar esse sistema de educação pública baseado em
aulas avulsas de nível primário, as chamadas primeiras letras, ao nível secundário, distribuídas
por vilas, arraiais, freguesias e cidades, dadas isoladamente por professores pagos pela Coroa,
foi instituído em 1772 um imposto o subsidio literário.
Para a cobrança do imposto nas terras do Brasil ficou sendo
responsável as Juntas da Real Fazenda instaladas em algumas
capitanias. [...]Após realizar a coleta do imposto, pagamento dos
mestres e professores, os responsáveis teriam que enviar o saldo
existente para Portugal . O sistema de coleta do imposto era realizado
semestralmente e os valores eram anotados num caderno no qual
constava o nome do produtor, o local em que morava, a quantidade do
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produto manifestado e quando não produziam, os contribuintes
também deveriam justificar o fato. (SILVA, D., 2005:3)
Segundo Diana Silva tanto em Portugal quanto no Brasil foram observados desvios e
fraudes em todo processo da coleta do imposto ao pagamento dos mestres. Dessa forma, no
inicio odo século XIX, no Brasil as comarcas passaram a administrar a arrecadação do
subsidio literário e pagamento dos funcionários ligados as sistema de ensino régio. (SILVA,
D., 2005)
Em relação ao pagamento dos subsidio e a ausência de mestres e professores, podemos
inferir ainda sobre outras questões que sobressaem no documento do acervo digital da
Secretaria de Governo da Capitania (Seção Colonial) do Arquivo Público Mineiro intitulado:
Informação de serviço que fazem os oficiais da Câmara da Vila de São João del-Rei ao
governador, referente à cobrança do subsídio literário para a conservação dos mestres de
primeiras letras, e gramática latina em todas as comarcas, e sugerindo a provisão do
reverendo Manuel da Paixão e Paiva, para a cadeira de gramática latina, pois aqueles que
pagam o subsídio literário reclamam da falta de professor.80
Nele, em 1804, os oficiais da Câmara de São João del Rei, cabeça da comarca do Rio
das Mortes informavam ao governador que observando a ordem da Junta da Real Fazenda
continuavam a cobrança do subsídio literário e que diligenciavam ao mesmo tempo “o
arrematante do respectivo subsidio as avenças com os senhores de engenho, respeito aos
barris de agua ardente que fabricam, assim esta Comarca como aqueles temos encontrado
uma incontrastável repugnância nos ditos lavradores”81, que contribuindo com o subsidio
para instrução de seus filhos se acham obrigados a pagar mestres que os instruam.
Em consequência de que argumentam que devem ser aliviados de um
encargo a mais cujos fins não correspondem a natureza de sua
imposição; razão por que recorremos a Vossa Excelência afim de
80
Utilizamos para citação de documentos históricos a Norma Geral Internacional de Descrição Arquivística,
disponível em <http://www.ica.org/biblio/isad_g_2TXT-POR_2.pdf>.
81
Arquivo Público Mineiro. Acervo da Secretaria de Governo da Capitania. Avulsos, SG - Cx. 62, doc. nº 59,
27/06/1804.
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providenciar este importante negocio, ou, dando meios, que facilitem
a cobrança daquele subsidio apesar da escusa oposta; ou provendo de
Mestre de Gramatica Latina à cadeira desta Vila, Cabeça de Comarca
a qual achando-se vaga por ausência do reverendo Marçal da Cunha
Mattos, tem continuado no ensino de alguns estudantes mais abastados
o reverendo Manoel da Paixão e Paiva, o qual só por obséquio aos
mesmos e a seus pais[...]82
Transparece a necessidade de controle por parte da Comarca como salientado por
Diana Silva, mas, além disso, percebemos ainda a necessidade de adequação da sociedade em
acomodação no inicio do século XJX com a nova proposta de ensino e velhas formas de se
pensar a educação, marcadamente pelo obséquio que fazia o padre Manoel Paiva em ensinar
alguns estudantes mais ricos. Assinam os muito submissos oficiais da câmara de São Joao Del
Rei.
Entre as novas leis e a realidade do ensino, porém, houve grande
distancia. Havia poucas aulas régias e as disciplinas, via de regra, não
eram oferecidas em todas as vilas e cidades, com o que os interessados
em instruir-se tinham que se deslocar por vários locais. Além disso,
faltavam professores, manuais e livros sugeridos pelos novos métodos,
enquanto os recursos orçamentários foram insuficientes para custear a
educação pública, [...]. Com tudo isto, a educação, tornada publica
pela lei, continuou em grande parte privatizada. (VILLALTA, 1998:
189)
Procuramos enfocar de modo mais detalhado a questão das aulas régias na Comarca
do Rio das Mortes onde se erigiu a vila de Campanha da Princesa, mas é possível perceber
82
Arquivo Público Mineiro. Acervo da Secretaria de Governo da Capitania. Avulsos, SG - Cx. 62, doc. nº 59,
1804.
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através de petições83 e documentos semelhantes ao citado acima que outras localidades da
capitania tiveram problemas semelhantes quanto a instituição das aulas régias.
Nossa analise parte da leitura de dois tipos documentais, pertencentes ao acervo.
Primeiro, as petições dos professores leigos e ordenados solicitando ao governo da capitania,
através do Senado da Câmara Municipal, que assumissem o cargo de professor de primeiras
letras ou de gramática latina. Segundo, os atestados emitidos pelos professores nomeados aos
cadetes e/ou candidatos a patentes militares nas tropas de ordenança (de linha e de pé).
Os pedidos de provisão para o cargo de professor de primeiras letras e/ou gramática
latina, ao longo do período 1794 a 1821, somam 25 documentos. Já os pedidos de renovação
de provisão, que se concentram entre os anos de 1814 a 1821 somam 17 documentos. Foram
arrolados os pedidos de provisão feitos pelos próprios professores que pretendiam exercer o
cargo, excluiu-se dessa listagem os pedidos feitos pelas câmaras ou indicações de outra
espécie.
Dentre as comarcas, a de Vila Rica tem o maior número de localidades citadas, 10
entre Vila Rica, a cidade de Mariana, freguesias e arraiais, seguida da comarca do Rio das
Velhas com 6 localidades citadas nos pedidos de provisão. para o cargo de professor. A
comarca do Serro Frio soma 6 pedidos mas 4 são para a mesma localidade a vila de Bom
Sucesso de Minas Novas (179484, 1802, 1817e 1818), e por fim os pedidos para a Comarca do
Rio das Mortes citam 3 vilas: São João Del Rei, São José Del Rei e Campanha da Princesa.
Para Campanha da Princesa o pedido de provisão para o cargo de professor para
cadeira de Gramática Latina foi feito pelo padre Francisco José de Sampaio em 1801:
Diz o padre Francisco José de Sampaio que se acha exercendo a
cadeira de Gramática Latina na Vila da Campanha da Princesa por
simples licença do exmo. reverendo prelado e como para poder
continuar a receber o competente ordenado necessita de provisão de
83
Encontramos uma petição elaborada pelos oficiais da Câmara de Barbacena em 1815 de igual teor. Arquivo
Público Mineiro. Acervo da Secretaria de Governo da Capitania. Avulsos, SG - Cx. 93, doc. nº 32, 1815.
84
Arquivo Público Mineiro. Acervo da Secretaria de Governo da Capitania. Avulsos, SG - Cx. 26, doc. nº 11,
1794.
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Vossa Excelência em conformidade das ordens de sua Alteza Real
apresentado a aprovação junto ao exmo. prelado85
Padre Francisco Sampaio apresenta a licença concedida pelo prelado juntamente ao
pedido de provisão. Essa licença datada de 1800 corresponde a informação apresentada por
Ana Cristina Lage sobre os primórdios da educação em Campanha.
Segundo a autora, a partir de relatos de memorialistas a primeira cadeira de ler,
escrever e gramatica latina teria sido criada em 1800 na Vila de Campanha e os primeiros
professores seriam os padres Manuel Coimbra e Francisco José Sampaio. (LAGE, 2007)
Nos documentos avulsos do acervo da Secretaria de Governo da Capitania do Arquivo
Público Mineiro encontramos ainda um pedido de renovação da provisão do cargo de
professor do padre Francisco Sampaio de 1816 e um novo pedido de provisão do mesmo
padre para o ano de 1817. Não encontramos petição de provisão ou renovação de provisão do
padre Manuel Coimbra nos acervos do APM – Arquivo Público Mineiro.
Consultando o Catálogo de Documentos Manuscritos Avulsos referentes à Capitania
de Minas Gerais existentes no (AHU) Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, temos duas
menções ao padre Manuel Coimbra, ambas juntamente com o Padre Francisco José Sampaio
em referencia a solicitação do pagamento de seus ordenados como professores.
O primeiro documento citado no catalogo do AHU é um requerimento datado de
fevereiro de 1802 dos padres Francisco José Pereira de São Paio e Manuel Joaquim Pereira
Coimbra, moradores na Vila da Campanha da Princesa da Comarca de São João Del Rei,
sendo o 1º nomeado para o ensino da gramática latina e o 2º para ensinar a ler, a escrever e
a contar. Solicitam aviso para o pagamento do seu ordenado desde o início do dito
exercício.86
E o segundo documento de 1804 é uma carta de Dom Frei Cipriano, bispo de Mariana
dirigida ao príncipe regente D. João, informando com o seu parecer sobre o requerimento dos
85
Arquivo Público Mineiro. Acervo da Secretaria de Governo da Capitania. Avulsos, SG - Cx. 53, doc. nº 05,
1804
86
Arquivo Histórico Ultramarino. Catálogo de documentos manuscritos avulsos referentes à capitania de Minas
Gerais. Nº de inventário no catálogo: 11759 AHU-Minas Gerais, cx. 161, doc. 29
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padres Francisco e Manuel, no qual solicitavam o pagamento dos seus ordenados enquanto
professores na vila de Campanha da Princesa.87
Até o momento não encontramos outra referência sobre o padre Manuel Coimbra.
Já sobre o professor de gramática latina da vila de Campanha, temos além dos pedidos
de renovação de provisão outro apontamento feito em ata pelos oficiais da Câmara daquela
vila em 1812, transcrito por Julio Bueno em seu Almanach do município da Campanha de
1900:
Nesta foram apresentadas umas atestações do reverendo Padre Mestre
Francisco José de Sampaio requerendo, que a Câmara lhe fizesse
passar outros a respeito do exercício que tem de Mestre Régio de
Gramática Latina; mas os oficiais da Câmara ponderando que tendo o
dito Professor exercitado a Cadeira de onze para doze anos, e não
tendo em todo esse tempo produzido um só estudante que saiba
Gramática, e por esta razão já desenganados os pais de famílias desta
Villa têm mandado os seus filhos para outras partes, e presentemente
para o Arraial da Aiuruoca aprenderem a Gramática Latina com um
Mestre particular que lá ensina de nome Esaú dos Santos e pode
acontecer, que chegando esta notícia ao Real Trono, seja Sua Alteza
Real servido mandar responder a esta Câmara, a razão de passar
atestados ao dito Reverendo Padre Mestre Sampaio, depois de ter
mostrado a experiência de tantos anos, que ele tem por natureza uma
negação total para instruir a mocidade nos Preceitos da Gramática
Latina. Acordaram em não assinar mais atestações; e quando o dito
Padre Mestre se queixe, servirá este acórdão para com ele se
responder, ou a Sua Alteza Real por qualquer dos Tribunais, ou ao
87
Arquivo Histórico Ultramarino. Catálogo de documentos manuscritos avulsos referentes à capitania de Minas
Gerais. Nº de inventário no catálogo: 12497 AHU-Minas Gerais, cx. 173, doc. 63
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Excelentíssimo General desta Capitania. (Atas da Câmara de
Campanha,1812) (LAGE, 2007:54/55)
Os pedidos de renovação de provisão e de nova provisão são posteriores a essa
anotação dos oficiais da Câmara, o que nos leva a supor que frente a recusa dos senhores
vereadores em lhe permitir continuar a atividade de professor de gramatica, teve que recorrem
a instancias superiores.
Não há anotação no pedido de renovação de provisão que confirme o deferimento do
mesmo. No entanto no pedido de nova provisão em 1817 existe um deferimento favorável a
solicitação do padre em ministrar as aulas de gramatica latina.
Por fim notamos ainda na documentação pesquisada a menção ao padre Francisco em
outro documento: um atestado passado ao Cadete João Evangelista de Alvarenga, dizendo que
este fora examinado pelo mestre em gramatica latina e se achava bem.
Atestados e requerimentos aos mestres no sentido de confirmar a frequências dos
cadetes nas aulas tanto de gramática como de primeiras letras e por vezes até de aritmética,
parece ter se tornado mais comum a partir da década de 1810. Verificamos num levantamento
preliminar cerca de 30 documentos similares no período de 1814 a 1819.
Muitas vezes os atestados inferem sobre o acompanhamento dos mestres a irmãos ou
primos candidatos a carreira nas topas de linha ou de pé por anos. Os intervalos entre os
atestados de frequência podiam ser bimensais ou semestrais, dando conta de um real
acompanhando do aluno/cadete pelo professor.
Esse escopo documental composto por documentos avulsos em sua maioria, sugere
uma interpretação até então pouco avaliada sobre o papel dos professores de aulas régias
nesse contexto de mudanças e acomodações pelos quais a sociedade colonial e mineira
passava em fins do século XVIII e inicio do século XIX.
Referências Bibliográficas
CASADEI, Thalita de Oliveira; CASADEI, Antônio. Aspectos Históricos da Cidade da
Campanha. Petrópolis: Editora Gráfica Jornal da Cidade, 1989
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Transformações na Modernidade. /organização de Douglas Cole Libby. – Belo Horizonte:
Centro de Estudos Mineiros, 2010, 217p.
FONSECA, Thaís Nivia de Lima. Sociabilidades e estratégias educativas numa sociedade
mestiça (Minas Gerais, Brasil, século XVIII). In: Congresso Internacional Espaço Atlântico
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LAGE, Ana Cristina Pereira. A instalação do Colégio Nossa Senhora de Sion em Campanha:
uma necessidade política, econômica e social da região sul – mineira no início do século XX.
2007. Dissertação. Programa de Pós – graduação em Educação da Universidade Estadual de
Campinas, UNICAMP, Campinas, 2007, 289p.
ROMEIRO, Adriana. Dicionário Histórico das Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica,
2003, 320p.
SILVA, Ana Rosa Cloclet. Identidades em construção: O processo de politização das
identidades coletivas em Minas Gerais, de 1792 a 1831. Almanack Brasiliense, 2005, nº 1.
SILVA, Diana de Cássia. Subsídio Literário: um imposto para educar no “período das Luzes”
In: XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, Londrina. Anais do XXIII Simpósio
Nacional de História: ANPUH, 2005. Disponível em : http://anpuh.org/anais/wpcontent/uploads/mp/pdf/ANPUH.S23.0268.pdf
SLEMIAN, Andrea. A corte e o mundo: uma história do ano em que a família real
portuguesa chegou ao Brasil. São Paulo: Alameda, 2008, 180p..
VILLALTA, Luís Carlos. Educação pública e educação privada na América Portuguesa. In:
Termo de Mariana: história e documentação. Mariana: Imprensa Universitária da UFOP,
1998, 221p.
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A FOLIA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO DE PIRENÓPOLIS
NO POVOADO DE CAXAMBU88
Erica Danielle de Mesquita
UEG- Câmpus Pirenópolis
[email protected]
A Festa do Divino Espírito Santo que acontece em Pirenópolis data de ano de 1819,
conforme aponta o primeiro registro encontrado por Jarbas Jayme, em sua obra Esboço
Histórico de Pirenópolis (1971) e é uma festa de grandes proporções e que foi aglutinando
outras manifestações, dentre elas a Folia do Divino Espírito Santo.
As folias do Divino são manifestações que iniciam as celebrações rituais que
acontecem na Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis, durante os meses de maio e
junho. Têm o caráter de convocatória para a grande festa na cidade, conforme expos Veiga
(2005). O termo “as Folias” é aqui utilizado para explicar que se trata de uma mesma
manifestação, mas que recentemente apresenta-se dividida em três: a Folia da Roça, que gira
pela área rural e também é conhecida como a Folia Tradicional; A Folia da Rua que gira, a pé,
por alguns bairros da cidade. Além destas duas Folias citadas ainda há a Folia do padre que
foi criada recentemente pela Igreja no intuito de preservar os aspectos mais religiosos da festa,
inclusive com realização de missa durante os pousos.
Para melhor compreensão sobre as Folias, enquanto manifestações da cultura popular,
recorremos ao fato de que
as festas expressam a cultura, são acontecimentos relevantes, dotados
de significados que definem comportamentos e constituem a história
local. Buscar compreender uma comunidade pelas suas manifestações
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Fomento: Prp/UEG por meio do Projeto de Pesquisa: Pesquisa Girando Folia: apontamentos turísticos e
gastronômicos em um das devoções ao Divino Espírito Santo – Pirenópolis/Goiás do qual é bolsista PBIC/UEG.
Integrante do Grupo de Pesquisa Saberes e Sabores Goianos. Orientador: João Guilherme Curado.
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culturais é uma tarefa complicada e contraditória, pois elas são
“mutáveis” e refletem os anseios mediatos dos moradores. Os festejos
que ocorrem em Pirenópolis são expressão do catolicismo popular,
tendo em sua estrutura fundamental uma coletividade multicultural
pautada na cooperação e na solidariedade. Partindo de inquirições em
relação à caminhada religiosa, presente nessas festividades, verifica-se
as significações de comportamentos e práticas ligadas à memória –
uma das principais indicadoras das permanências e das alterações
ocorridas no dinamismo histórico e nos percursos geográficos dessas
festas (CURADO; LÔBO, 2011, p. 82).
Partindo das considerações mencionadas acima destacamos a importância da
compreensão da dimensão cultural e religiosa que a Folia do Divino Espírito Santo tem para
seus participantes, sendo atualmente um desafio manter a tradição dos rituais e costumes
realizados durante a Folia, para que os mesmo não se percam com o passar do tempo pela
falta de interesse das novas gerações.
Temos por intenção compreender um pouco mais sobre esta devoção da qual a
comunidade da qual fazemos parte repete a cada ano, com devoção ao Divino Espírito Santo.
Outro fator preponderante é buscar divulgar a Folia, que pode ser um importante atrativo do
segmento do Turismo Cultural, como expõe Meneses (2004).
A Folia da Roça, ou Folia Tradicional, realiza seu giro pela zona rural do município, e
é a principal fonte de pesquisa não somente pelo fato de atrair um número maior de
participantes ou visitantes, mas pelo fato de envolver uma maior quantidade de pessoas, tanto
na sua organização quanto de Foliões (nome dado aos cavaleiros que fazem o giro da Folia). É
também, dentre as três folioas citadas, a mais antiga.
Outro aspecto relevante da Folia é o fato dos pousos acontecerem na zona rural em
fazendas de pequenos agricultores, que antigamente reservavam este período do ano para abrir
sua propriedade para receber o Divino Espírito Santo com a intenção de que o Divino
abençoasse sua moradia, sua família e ainda representava o momento de agradecer a colheita.
Para retribuir as graças alcançadas o proprietário oferecia um jantar tendo como base
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ingredientes produzidos outrora em sua própria fazenda (arroz, feijão, mandioca e carne de
vaca). Em algumas propriedades são oferecidas sobremesas como doce de leite, de mamão, de
banana dentre outros. O café da manhã é composto por biscoitos a base de polvilho de
mandioca, alimento base de todo pequeno produtor rural,ou por pão com cardem dependendo
do Pouso.
A comida de Folia é uma atração dos pousos. Apesar de seu preparo ser em grandes
quantidades e dos vasilhames utilizados serem grandes, existe todo um ritual em seu preparo,
sendo que cada tempero é colocado na quantidade certa para não comprometer o gosto da
comida. Este é um dos modos de expressão da hospitalidade dramatizado nas Folias do
Divino, que conforme Veiga (2008), consiste no o ato de comer junto, de oferecer e
compartilhar o alimento. Quando uma família da roça (família que vive na zona rural) recebe
alguém em sua casa é servido tudo que a família produz, é a maneira de receber bem um
visitante. Foi esse costume que a Folia englobou em seus rituais.
Durante todo o giro da Folia acontecem vários rituais, o primeiro deles é na chegada
onde os foliões fazem o um “S” que simboliza o Santíssimo, que é feito pelos foliões
montados em seus cavalos na entrada da fazenda que se realizará o pouso. Esse movimento
inicia quando os cavaleiros se dividem em duas grandes filas que se cruzam e formam um
círculo girando em direção contrária. Em cada uma destas filas uma Bandeira segue na frente.
No momento em que as bandeiras se aproximam, os cavaleiros tiram os chapéus, em sinal de
respeito ao Divino. No final as duas bandeiras se encontram e juntas seguem em direção aos
proprietários da fazenda. Todo esse movimento é feito ao som da caixa (instrumento feito de
couro de boi, e bastante semelhante ao surdo).
Quando a bandeira vai se aproximando da casa os dois embaixadores (nome dado aos
cantores principais da Folia) iniciam a primeira de várias outras cantorias da Folia. O verso
inicia assim:
O Divino vai chegando
com seu lindo resplendor!
Vai dizendo viva, viva,
viva o nobre morador.
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Em seguida as bandeiras são passadas para as mãos dos moradores e cabe a eles
protege - lá e guarda- lá no altar e em todos os outros rituais que acontecem durante o pouso.
Estes outros rituais são o agradecimento da mesa, feito após o jantar e depois do almoço;
pedido de esmola ou ajuda dos visitantes, este momento todos podem segurar uma das
bandeiras, desde que faça alguma doação para a Folia, esta ajuda é utilizada para despesas e
se sobrar é repassado ao Imperador da Festa Do Divino Espírito Santo.
Durante as alvoradas, que acontecem de madrugada, às 5 horas da manhã, as bandeiras
são retiradas do altar e levadas aos acampamentos dos músicos e em seguida retornam ao
altar, onde permanecem até o agradecimento do almoço e a saída.
Durante os dias da Folia do Divino a cidade e região respiram a festa. Fato que pode
ser comprovado na chegada da Folia na cidade, quando as pessoas se aglomeram durante todo
o percurso dos cavaleiros que vão entregar as bandeiras ao Imperador da Festa do Divino
Espírito Santo. É o final de uma jornada para os foliões exaustos, que por mais de oito dias
montados no lombo de um cavalo, percorrendo mais de 100 km por todo o município da de
Pirenópolis. Mas apesar da exaustão provavelmente a maior parte dos foliões já está
planejando participar do giro do próximo ano.
Folia do Divino em Caxambu
Carregada de toda história de religiosidade e de devoção foi que essa Folia chegou ao
Povoado de Caxambu, localizado a aproximadamente 25 km da cidade de Pirenópolis.
Com uma população de pouco mais de trezentas pessoas que vivem basicamente da
agricultura, o povoado situado às margens do Rio Caxambu, que empresta nome à localidade,
recebe a cada ano cerca de 5 mil pessoas nos pousos que promove a pelos menos três anos,
sendo que para isso há uma significativa transformação na comunidade. Destacamos o fato de
que os foliões tomam conta dos arredores da praça central onde está situada a capela local. A
praça passa a ser ocupada pelas barracas, carros de apoio e muitos cavalos, além das barracas
que comercializam bebidas e comidas durante a cada pouso de Folia.
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O Povoado que foi fundado por volta do ano de 1930, surgiu como patrimônio, pois
fazendeiros da redondeza fizeram doação de terra para construir uma capela e
consequentemente em volta da mesma foi formando moradias. O Povoado tem uma Festa
Tradicional de Carro de Boi em Louvor ao Divino Pai Eterno, o padroeiro local, e por décadas
tinha sua própria folia em louvor a este mesmo Santo. No entanto, quando a Folia do Divino
Espírito Santo de Pirenópolis chegou ao povoado de caxambu foi a oportunidade que antigos
foliões pudessem novamente celebrar uma Folia,já que a do Divino Pai Eterno tinha se
encerrado.
A Folia no Povoado de Caxambu acontece a três anos (desde 2012), mas o povoado é
bastante conhecido pela Festa de Carro de Boi que acontece no primeiro e no segundo final de
semana do mês de julho, durante a festa em louvor ao Divino Pai Eterno, que está presente no
calendário do povoado a décadas e envolve toda comunidade local e da zona rural
circunvizinha. Além da festa ao Divino Pai Eterno existiu por de 30 anos uma folia que
antecedia a mesma, e que percorria as fazendas próximas a Caxambu, quando os agricultores
abriam suas casas para receberem os foliões e a bandeira para agradecer as bênçãos
alcançadas junto ao Divino Pai Eterno. Essa Folia era em menor escala, mas os rituais e
canções praticamente eram os mesmos da Folia do Divino Espírito Santo de Pirenópolis que
agora passa também pelo povoado nas proximidades de Pentecostes.
Com o término da Folia do Divino Pai Eterno alguns moradores ficaram de certa
maneira órfãos de folias, pois são devotos do Divino e com o seu fim a bandeira não mais
chegaria a suas residências, deixando assim um vazio, pois muitos moradores antigos são
extremamente devotos e a folia não significa somente um momento para festejar, mas sim
para expressar toda fé e devoção.
Para muitos antigos foliões de Caxambu a chegada da Folia do Divino Espírito Santo
de Pirenópolis ao povoado renovou e fez renascer este momento de celebração, mesmo com o
fato de a Folia acontecer dentro do Povoado e muitos destes agricultores e moradores da zona
rural terem que se deslocarem para o povoado para participar da Folia.
Nos principais rituais da Folia: chegada, agradecimento da mesa, pedido de esmola,
catira é possível perceber a participação das pessoas que participavam da extinta Folia do
Divino Pai Eterno de Caxambu.
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Outro aspecto importante do pouso de Folia do Divino Espírito Santo em Caxambu é o
fato de acontecer dentro do povoado, sendo assim possível visualizar as mudanças e novos
comportamentos sociais que a festa vem incorporando à comunidade com o passar do tempo.
Exemplo destas mudanças são as barracas que comercializam bebidas e comidas e que
chegam ao local do Pouso primeiro que os foliões e ocupam quase todo espaço próximo à
casa que receberá as bandeiras. Outra ilustração advém do fato de que a presença marcante
dos carros que atrapalham a chegada e dificultam a execução do “S” da chegada ritual.
Também chama a atenção o fato de que as cozinheiras são contratadas para fazer as refeições
uma vez que a dona casa do pouso não consegue mobilizar a população do povoado e
vizinhos para auxiliar na preparação da comida dos foliões. O cardápio servido é praticamente
o mesmo dos demais pousos.
Os demais participantes que não foliões que realizam o giro (conhecidos também com
folião de atalho ou cata pouso) aumentam a cada ano no Pouso de Caxambu, fato que pode ser
explicado pela facilidade de acesso, uma vez que a pavimentação colaborou para os
deslocamentos que antes se davam por caminhos de chão que eram empoeirados como na
maioria dos demais pousos.
O aceso a Caxambu é feito pela GO 338 que está toda asfaltada e em perfeitas
condições, após passar por uma recente reforma.
Os “foliões de atalho” ou “cata-pousos” chegam aos pousos, e em especial ao de
Caxambu, a partir da 23 horas, momento que terminam os rituais religiosos e começa a festa
dançante, a qual o repertório é selecionado apenas por músicas sertanejas e forró. Esta dança
termina às quatro horas da madrugada, pois uma hora depois tem início a alvorada quando as
Bandeiras são retiradas do altar e levadas até a cozinha e ao acampamento dos regentes e
alferes, lembrando que o percurso das bandeiras segue uma linha paralela, pois as bandeiras
não podem retornar ao altar pelo mesmo caminho.
Após a alvorada espera-se o dia raiar para servir um café com leite e pão com
manteiga. Em seguida a próxima e última refeição é o almoço que acontece por volta das
13h30min.
Depois do almoço e do agradecimento a Folia se despede do povoado cantando que:
“O Divino vai se embora, mas não é para ninguém chorar”, este trecho faz parte do canto da
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saída da Folia, que é entoado de uma forma triste e bem melancólica, sendo que é possível ver
algumas lágrimas marejando nos olhos de alguns moradores mais antigos, que provavelmente
trazem à mente toda nostalgia da antiga folia destinada ao outro Divino, o Pai Eterno.
Considerações Finais
A Folia do Divino Espírito Santo é um campo extenso para pesquisa, são várias as
manifestações que ocorrem dentro dela, como: os acampamentos, os cantos, as comidas, os
participantes, os foliões e os símbolos.
Detivemos-nos, neste artigo, a pensar sobre a representatividade da Folia do Divino
Espírito Santo no povoado de Caxambu, uma prática recente, data de três anos, mas que
possui um significado bastante importante para a comunidade, principalmente para os mais
velhos que vivenciaram outra folia que desapareceu, a do Divino Pai Eterno.
Para os mais jovens os significados não pautam muito na devoção, mas na grande festa
que acontece após cessarem os rituais da Folia e iniciar as atividades do rancho que é
montado nas vizinhanças da casa em que as bandeiras dormem. O fluxo de pessoas da área
rural e também de cidades circunvizinhas para Caxambu é grande.
Enfim, a Folia do Divino Espírito Santo em Caxambu representa a manutenção de
devoções ou apropriações de antigas praticas festivas que passam por ressignificações a cada
novo giro.
Referências Bibliográficas
CURADO, João Guilherme da Trindade; LÔBO, Tereza Caroline. Festas do Catolicismo
Popular: expressões identitárias em Pirenópolis-Goiás. In: Ciberteologia (São Paulo. Edição
em Português), v. 35, 2011. p. 82-92.
JAYME, Jarbas. Esboço Histórico de Pirenópolis. Goiânia: UFG, 1971. 624p.
MENESES, José Newton Coelho. História & Turismo cultural. Belo Horizonte: Autêntica,
2004. 128p.
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VEIGA, Felipe Berocam. A folia continua: vida, morte e revelação na Festa do Divino de
Pirenópolis, Goiás. In: CARVALHO, Luciana (Org.). Divino Toque do Maranhão. Rio de
Janeiro: IPHAN/CNFCP, 2005. pp. 83-94.
________. Os gostos do Divino: análise do código alimentar da festa do Espírito Santo em
Pirenópolis, Goiás. In: Candelária: Revista do Instituto de Humanidades, Rio de Janeiro: IHUCAM, ano V, Jan-Jun, 2008, pp. 135-150.
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TRAJETÓRIAS NEGRAS NO BRASIL E SUAS
DINÂMICAS NA FORMAÇÃO DE QUILOMBOS
Fernando Bueno Oliveira89
A força escrava como forma de manutenção da riqueza
O objetivo desse artigo é o de expressar o decisivo papel dos negros escravizados
para a economia brasileira, considerando, para isso, alguns exemplos que ilustram
perfeitamente a dependência dos senhores em relação aos seus escravos, importantíssimos,
aliás, na produção e na manutenção de suas riquezas. O medo de perdê-los gerava
constantemente diferentes formas de opressão e castigo, o que, consequentemente, também
gerava, dentre os escravos, diversas formas de resistência à ordem escravista. Goiás não
esteve de fora desse cenário, fato que lhe proporcionou o abrigo de um avantajado número de
quilombolas.
Em leitura a diferentes obras que se referem às características econômicas e sociais
do Brasil ao longo do século XIX, apreendemos informações importantes na compreensão da
relação entre senhores e africanos escravizados. Em todas elas, observa-se que o negro
escravo era sempre avaliado como mera peça para a execução de tarefas. Entretanto, uma
“peça” que, na visão de Moura (1981; 1987), era a grande agente responsável pela dinâmica
econômica brasileira nos períodos colonial e imperial, o que nos permite concluir que sem ele,
o africano escravizado, não haveria a mínima possibilidade de sustentar a implantação dos
moldes capitalistas em terras brasileiras.
Não poderíamos deixar de considerar a obra do sociólogo Octavio Ianni (1978) que,
embora seja antecessora à obra de Moura (1987), pode ser perfeitamente aqui encaixada, por
Universidade Estadual de Goiás – Brasil (UNUCSEH/UEG). Mestrando do Programa de Pesquisa e PósGraduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanidades: Territórios e Expressões Culturais no Cerrado –
TECCER. E-mail: [email protected]; orientando (no período de 2014 a 2016) da prof. Dr. Maria
Idelma Vieira D´Abadia, professora do TECCER. E-mail: [email protected].
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apresentar importantes reflexões acerca da relação entre a escravidão e o capitalismo, temática
a ser abordada nesse pequeno capítulo.
No Brasil, inicialmente, as famílias advindas da metrópole Portugal contavam com o
apoio do Reino e, desde já, com a chance de aquisição de escravizados advindos do continente
africano, o que lhes possibilitariam a criação e a manutenção de lavouras de cana-de-açúcar e
engenhos. Já ao longo do século XVIII, as famílias provenientes de outros países europeus,
encontravam por aqui a possibilidade de enriquecimento a partir da utilização da força escrava
nas áreas de mineração e, posteriormente, na produção cafeeira.
Ianni (1978) considerando diferentes teóricos, tais como Caio Prado Júnior, Florestan
Fernandes, Roger Bastide, Gilberto Freyre, admite que “em síntese, foi o capital comercial
que gerou as formações sociais construídas nas colônias do Novo Mundo, provocando dessa
maneira uma intensa acumulação de capital nos países metropolitanos” (p. 3). Na mesma
obra, o autor tece diferentes reflexões, inclusive, acerca do racismo na sociedade escravista,
quando o negro escravizado era considerado pelas classes mais abastadas como um ser
desprovido de cultura. Critica Gilberto Freyre (1952) e Fogel & Engerman (1974) que,
segundo Ianni, para eles, a escravidão aparece como sistemas fechados, encerrados em si, sem
movimentos estruturais (pp. 84-85). Fogel e Engerman chegam a defender a ideia que o
escravismo americano possibilitou um melhor nível de vida aos escravizados (p. 85).
Percebe-se a desumanização do escravizado brasileiro ao se ler, por exemplo, certas
literaturas da época escravista e as próprias anotações de diários íntimos de senhores(as) de
escravos. A efeito de demonstração ao leitor, elencamos três registros de escritos que
consideram o escravo como mera “peça” ou “máquina” de trabalho, sem nenhuma marca de
impressão sentimental.
Em referência à alta sociedade cafeeira do vale do Paraíba, selecionamos o livro
escrito pelo Barão do Paty do Alferes e o diário íntimo da viscondessa de Arcozelo; em marco
regional selecionamos anúncios do jornal “Matutina Meiapontense”. Numa perspectiva de
análise que se baseia na forma em que os escravos eram tratados e do papel que
desempenhavam na economia brasileira, tais trabalhos serão apresentados e discutidos a
seguir.
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Iniciamos essa discussão tendo como base a obra de Ana Maria Mauad e Marianna
Muaze (2004) na qual evidenciam as memórias da viscondessa do Arcozelo, por intermédio
de seu diário íntimo. Ao tratarem sobre tal diário, as mesmas autoras abordam,
resumidamente, a trajetória do barão do Paty do Alferes, pai da viscondessa.
Como coronel da Guarda Nacional, o barão atuou no levante de escravos liderado
por Manoel Congo na Fazenda Esperança, também chamada de fazenda Freguesia, em 1838.
Tal escravo liderou um movimento de rebelião dentre os escravos da referida fazenda, sendo
capturado e enforcado na cidade de Vassouras em seis de setembro de 1839. O mesmo barão,
além de ter dado fim a esse movimento atuou, ainda, no cerco do quilombo de Entre-Rios.
Antes de prosseguirmos, é importante constar que os escritos que compõem esse
diário, objeto de trabalho de Maud e Muaze (2004), caracterizam o estilo de vida dos
fazendeiros da região do vale do Paraíba durante a segunda metade do século XIX. A época
em que tal diário foi confeccionado era marcada, ainda, pela “consolidação de uma
aristocracia cafeicultora, dignitária do Império, cujo poder provinha da posse de terras e
escravos” (MAUD & MUAZE, 2004, p. 199). Evidenciam, dessa forma, que os escravos
dinamizavam a economia cafeeira e representavam, então, a riqueza de barões do café.
Conforme a obra citada, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, o barão do Paty do
Alferes, herdou, como único filho do casal Francisco Peixoto de Lacerda e Ana Matilde
Werneck, uma imensa riqueza, dentre fazendas e propriedades urbanas.
Interessante observar que o mesmo barão, preocupado em repassar ao seu filho os
seus conhecimentos que resultaram em tamanha prosperidade, chega a escrever um livro, do
qual faremos algumas citações. O livro Memória sobre a fundação e custeio de uma fazenda
na província do Rio de Janeiro, primeira edição de 1847, “foi muito bem recebido pelos
cafeicultores, atentos aos conselhos de um proprietário tão bem-sucedido, além de ser
considerado por Taunay um precioso informativo sobre as fazendas da região” (MAUD &
MUAZE, 2004, p. 201).
Nesse livro, dentre informações relacionadas à lida diária numa fazenda, o mesmo
barão repassa instruções sobre a escravatura, assunto que dedica um capítulo inteiro intitulado
com o mesmo nome, orientando ao leitor sobre as melhores maneiras de se aproveitar do
trabalho escravo.
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Já nas primeiras páginas de seu livro, o barão admite que os escravos representam a
máxima parte da fortuna de um fazendeiro, devendo o mesmo refletir que “na conservação
desses e na sua saúde e bem-estar, é que consiste a prosperidade da sua indústria” (p. 16).
Admitindo que a vitalidade dos escravos representa a produção da riqueza, critica a forma que
alguns fazendeiros os tratavam quando diz que “alguns agricultores não atendendo a seus
interesses conservam seus escravos em cloacas úmidas e mal ventiladas, onde adquirem
moléstias ou incômodos insidiosos que posteriormente os levam ao túmulo” (p. 16).
Chama-nos a atenção que o barão instrui a se usar ao máximo da força de seus
escravos, inclusive em trabalhos noturnos, colocando que o administrador da fazenda
“ordenará então o serão da noite, ou no paiol ou no engenho de mandioca” (p. 35). Em alerta a
eventuais prejuízos quanto à aquisição de escravos, o barão coloca que alguns escravos
poderiam estar acometidos de enfermidades, portanto, orienta aos fazendeiros a não
adquirirem escravos fiados “porque se vos morrem, estão a pagos, e a perda é menos sensível”
(p. 39).
Outra preocupação do barão dizia respeito à revolta de escravos. Para que isso não
ocorresse aconselhava que
O escravo deve ter domingo e dia santo, ouvir missa, se a houver na
fazenda, saber a doutrina cristã, confessar-se anualmente: é isto um
freio que os sujeita muito, principalmente se o confessor sabe cumprir
o seu dever, e os exorta para terem moralidade, bons costumes, amor
ao trabalho e obediência cega a seus senhores e a quem os governa (p.
39).
Em repúdio às revoltas da escravaria, o mesmo livro instrui a importância dos
senhores na manutenção de uma postura “equilibrada” diante de seus escravos. Sendo assim,
o barão diz que “o extremo aperreamento desseca-lhes o coração, endurece-os e inclina-os
para o mal. O senhor deve ser severo, justiceiro e humano” (p. 41). E continua: “Nem se diga
que o escravo é sempre inimigo do senhor; isto só sucede com os dois extremos, ou
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demasiada severidade, ou frouxidão excessiva, porque esta os torna irascíveis ao mais
pequeno excesso deste senhor frouxo, e aquela leva-os à desesperação” (pág. 42).
Com vistas a manter os escravos “sadios” o barão receita que o
O escravo trabalhador de roça deve comer três vezes ao dia; almoçar
as oito, jantar a uma hora, e cear das oito até nove. Sua comida deve
ser simples e sadia. Em serra acima, em geral, não se lhe dá carne;
comem os escravos feijão temperado com sal e gordura, e angu de
milho, o que é alimento muito substancial (p. 43).
Das citações acima, pode-se inferir que não ocorrem, em momento algum,
sentimentos de humanidade, mas o interesse em garantir que a força escrava se mantivesse
como mantenedora da prosperidade de seus senhores. Era ela, a força escrava, a grande
responsável pela dinâmica econômica dos períodos Colonial e Imperial.
O segundo exemplo do que nos propomos a tratar diz respeito às anotações da
viscondessa do Arcozelo, ou Maria Isabel de Lacerda Werneck, às quais foram, em partes,
copiladas e analisadas na obra de Mauad e Muaze (2004). Segundo elas, o hábito de anotar o
cotidiano da família foi herdado da sua própria mãe, uma baronesa. Num fragmento do
referido diário as autoras ilustram a fortuna da família da viscondessa, grande parte herdada
de seu pai, o barão do Paty do Alferes:
No Rio de Janeiro – 10 casas na rua da Relação; 2 casas na rua dos
Inválidos e a mobília existente no prédio no 5 da rua Almirante
Tamandaré. Em Portugal – na cidade do Porto, Freguesia do Arcozelo
– várias propriedades. No município de Vassouras as fazendas
Arcozelo, Monte Alegre e Piedade, com casa residência com capela e
mais dependências, 4 casas em mal estado; um moinho em mal estado;
uma casa onde se aça o engenho; um rancho para a tropa; uma casaenfermaria para velhos (PAULA E PONDE ([19-], p. 137) apud
MAUAD & MUAZE, 2004, p. 204).
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Constata-se, assim, que a força escrava gerava lucros certos e o aumento do volume
de posses às famílias dos barões do café. Sabe-se, entretanto, que a segunda metade do século
XIX foi marcada pelo processo de libertação dos escravos, tendo seu ponto culminante em
1888, quando é assinada a Lei Áurea. As revoltas de escravos continuam a ocorrer e uma das
estratégias das famílias detentoras da força escrava era a da “aproximação”, acompanhada de
certa generosidade. Dessa forma, uma das preocupações da viscondessa era a de prestar uma
atenção maior em relação aos seus escravos. As mesmas autoras expõem que “todos os itens
ligados a gerencia da casa eram anotados detalhadamente [...] O pagamento de mercadorias
aos escravos [...] Os escravos libertos e os batizados”. E continuam: “numa terceira camada
estão os trabalhadores que sustentam a reprodução da riqueza: nesse caso, a proximidade é a
garantia do controle” (MAUAD & MUAZE, 2004, p. 205).
Em seu diário, os escravos são constantemente citados, fato que simboliza a
preocupação da viscondessa em relação àqueles que se configuravam a força responsável na
manutenção da sua fortuna. Além disso, em consonância com as anotações constantes no
diário, permite-se inferir que para aquela família, não diferente do que ocorreu com a de
outros barões do vale do Paraíba no referido período, o trabalho escravo ingressava numa
situação de franco declínio. Conforme as mesmas autoras,
Os escravos são presença constante e podem ser denominados pretos,
mas também pardos e creoullos, para diferenciá-los dos libertos, da
gente da roça e dos feitores. Evidencia-se, no relato, a decadência
gradual do trabalho estritamente escravo, que é substituído pelo
trabalho remunerado, dentro e fora de casa (IDEM, IBIDEM, p. 206).
Outra passagem demonstra com nitidez refinada o prenúncio do fim da escravidão,
quando, em ilustração a um fato relacionado ao nascimento da primeira neta da viscondessa e
a necessidade de uma ama-de-leite, as autoras expõem que:
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A ama cuidadosamente escolhida foi Agostinha, que partiu
acompanhada do empregado Joaquim para o Rio de Janeiro em 23 de
dezembro, após ter recebido uma gorjeta de 42$000 pelos serviços a
serem prestados. Passados cinco dias, no entanto, Maria Isabel registra
que a ama-de-leite escolhida foi comprada e liberta, obrigando-a a
continuar a procurar outra para substituí-la. (IDEM, IBIDEM, p. 212).
O terceiro exemplo que ilustra a vital importância dos africanos escravizados na
dinâmica econômica brasileira está relacionado, principalmente, às formas de tratamento à
que eram submetidos, o que expressa o medo dos seus “donos” em perder a sua única fonte de
renda. Para que o leitor adquira ou reforce tal visão, consideraremos os ocorridos na província
de Goiás por intermédio ao que está registrado nas folhas do Matutina Meiapontense,
“primeiro jornal goiano e que circulou na cidade de Pirenópolis, de 1830 a 1834”
(ALENCASTRE, 1979, p. 9).
A professora Maria de Fátima Oliveira (2013) revisita certos aspectos da história de
Goiás por intermédio das edições do Matutina Meiapontense “detectando a incidência dos
diversos assuntos tratados no mesmo período e a visão de mundo nele veiculada” (p. 01).
Dentre os quinze assuntos principais do referido jornal, está o que faz referência à fuga de
escravos que ocorria na região de Pirenópolis.
Com a intenção de situar o leitor à época das edições do Matutina Meiapontense,
Oliveira (2013) descrevemos, em consonância com a referida autora, os aspectos históricos
conjunturais da Província de Goiás: “posição geográfica interiorana, ausência de infraestrutura, escassez de meios de comunicação, economia de subsistência, esgotamento das
minas auríferas, constantes confrontos com os povos indígenas etc.” (p. 5).
De acordo com a mesma autora, no que diz respeito às fugas de escravos, o Matutina
Meiapontense é prioritariamente voltado para anúncios de fugas e as respectivas recompensas
para quem encontrar um escravo fugido, como mostra o seguinte exemplo:
...fugiu um escravo de nome José, crioulo estatura ordinária, cheio de
corpo, cara redonda, pinta de branco na barba, como na cabeça, com o
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nariz, e beiços feridos de bobas; orelhas grossas da mesma moléstia,
com um grande calo de ferida na perna direita, de idade de 40 para 50
anos mais ou menos. O Anunciante promete dar 12$000 rs a quem o
pegar, e trouxer, e se for fora da Província dará 30$000 (A Matutina
Meiapontense, 1832, n.º 326 apud OLIVEIRA, 2013, p. 8).
Sobre esse tipo de anúncio a mesma autora diz que “dois aspectos chamaram a
atenção nas notícias sobre esse tema: significativo número de anúncios sobre as fugas, com
grande variação no valor das recompensas e a omissão sobre a vida, cotidiano, alimentação e
tratamento geral dados aos cativos” (p. 9). Esse anúncio se configura como prova suficiente
de que em Goiás a força escrava indubitavelmente mantinha o nível de vida da alta sociedade
rural e urbana.
Em consideração aos três exemplos sugeridos para o presente artigo, pode-se inferir
que a força escrava representava o principal meio de obtenção e manutenção das riquezas de
fazendeiros e barões ao longo do século XIX, configurando-se como a energia necessária na
dinâmica econômica das províncias, conforme propõe Clóvis Moura (1987). Perdê-la
significava o prenúncio do prejuízo financeiro, do declínio econômico e do risco de um
desequilíbrio em pleno tapete da alta sociedade. Tais fatos, conforme elencado, são
observáveis com bastante limpidez no livro escrito pelo barão do Paty do Alferes, no diário
íntimo da viscondessa do Arcozelo e no jornal goiano Matutina Meiapontense.
Entretanto, conforme já exposto anteriormente, nem todos os escravos se sujeitavam
por muito tempo como mercadorias ou meros animais. Grande parte deles se rebelava na
primeira oportunidade que surgisse, o que resultava na fuga e na consequente formação de
quilombos.
Diferentes formas de resistência e as formações de quilombos
Sobre os quilombos brasileiros, não poderíamos deixar de ponderar os trabalhos da
historiadora Beatriz Nascimento, uma das pesquisadoras negras que mais se dedicou ao
estudo de quilombos brasileiros. “Por quase vinte anos, entre 1976 e 1994, ela esteve às voltas
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com essa temática” (RATTS, 2007, p. 53). Para a mesma autora o quilombo assumia um
significado amplo de resistência negra em diversos espaços (não somente físicos) (IDEM,
IBIDEM, p. 54). Para a definição de quilombo, Beatriz Nascimento contempla “as formas de
resistência que o negro manteve ou incorporou na lua árdua pela manutenção da sua
identidade pessoal e histórica” (NASCIMENTO, 1985, p. 41).
A formação histórica dos quilombos no território brasileiro perpassa, antes mais
nada, pelos sentimentos, dentre os africanos escravizados, de sujeição dolorosa nos navios
negreiros, de afastamento mandatório de seus lugares de origem, de tratamento enquanto
mercadorias, de servidão forçosa e de alteração forçosa de parte de seus hábitos, originários
de suas terras natais. Em contrapartida, permeando-os, as diferentes formas de resistência aos
poucos foram se aflorando, resultando, dentre outros eventos, na formação de quilombos,
tradicionalmente entendidos como lugares de escravizados em fuga.
Clóvis Moura (1987), fazendo referência a Édison Carneiro (1947), esse um dos
primeiros autores que analisam criticamente a realidade do quilombo de Palmares, mostra as
diferentes formas de luta dos escravizados brasileiros:
a) revolta organizada, pela tomada do poder político, que encontrou
sua expressão mais visível nos levantes dos negros malês
(muçulmanos) na Bahia, entre 1807 e 1835; b) a insurreição armada,
especialmente no caso de Manuel Balaio (1839) no Maranhão; c) a
fuga para o mato, de que resultaram os quilombos, tão bem
exemplificados por Palmares. De fato, essas três formas fundamentais
de luta caracterizam, de modo geral, os movimentos rebeldes dos
escravos, a quilombagem no Brasil. Devemos nos lembrar, porém,
para que a visão não fique incompleta, de outras formas de luta usadas
pelos escravos: a) as guerrilhas; b) a participação do escravo em
movimentos que, embora não sendo seus, adquirirão novo conteúdo
com sua participação. Finalmente, devemos acrescentar o banditismo
quilombola. (MOURA, 1987, p.14).
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Na mesma obra, o autor descreve diferentes situações resultantes da insatisfação dos
negros escravizados: casos de negros bandoleiros (grupos de negros escravizados fugidos que
ainda não tinham um lugar fixo de morada) que atacavam nas estradas e nas fazendas;
quilombolas que fugiam das bandeiras e se escondiam nas matas; quilombolas que se
juntavam aos índios para praticarem desordens, sendo que nesse caso, uma delas, era a
destruição repetidas vezes de um instrumento de morte, a forca; negros que atacavam aos
próprios senhores; negros que se rebelavam nas fazendas, como foi o caso da revolta de
Manuel Congo; negros que praticavam o banditismo individual ou em pequenos grupos.
Geralmente, os negros fugiam para as matas e depois de praticarem desordens se
aquilombavam (MOURA, 1987, pp.16-17). Muitos saíam dos quilombos para atacar fazendas
e povoados mais próximos.
O mesmo autor aplica o termo “quilombagem” para se referir aos movimentos
rebeldes de escravos brasileiros, fatos ocorridos não somente em São Paulo, mas, também, nas
outras capitanias.
Luís Palacín e Maria Augusta de Sant´Anna Moraes (1994) autores de História de
Goiás nos ajudam a entender a trajetória histórica de Goiás que, juntamente com algumas
produções pontuais, tais como a de Martiniano José da Silva em Sombra de quilombos (1974)
e a de Karasch com o título Osquilombos do ouro na capitania de Goiás (1996), contribuem
valorosamente no estudo do processo de escravismo e a constituição de quilombos em Goiás.
Com a decadência da mineração, a atividade agropecuária possibilitou, provavelmente,
a continuidade e/ou formação de agrupamentos negros rurais em todo o Estado de Goiás. Em
caráter de mera exemplificação de trabalhos acadêmicos concernentes a territórios negros
rurais, citamos alguns autores representativos: Cedro em Mineiros (BAIOCCHI, 1983);
(SILVA, 2003); Kalunga em Cavalcante, Monte Alegre de Goiás e Teresina de Goiás;
Moinho em Alto Paraíso (BAIOCCHI, 1991; 1999); (PAULA, 2005); (MARINHO, 2008),
Almeida e Porto Leocárdio (SILVA, 2010), dentre outros trabalhos, cada qual com a sua
trajetória de campo e acadêmica.
Referências Bibliográficas
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INDÍGENAS, PAULISTAS E O TEMPO DO TRABALHO COLONIAL: UMA
PERSPECTIVA DE INTERPRETAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO
(SÃO PAULO, SÉCULO XVII)
Gustavo Velloso
Mestrando em História Social pela FFLCH-USP
Bolsista pela FAPESP
As durações e os ritmos de trabalho a que foram submetidas as populações nativas
durante o processo de conquista e ocupação do território americano conformam uma
dimensão histórica da América Colonial pouco explorada pela historiografia. Com base em
uma pesquisa sobre o “tempo do trabalho” realizado no planalto paulista durante o século
XVII, esta comunicação pretende ensaiar uma metodologia de análise das estruturas
temporais que o trabalho indígena ali experimentou na referida época, a partir de quando se
verifica uma ruptura fundamental nas formas de concepção e vivência do tempo do trabalho
produtivo experimentado até então pelas sociedades ameríndias locais. Partamos do caso
específico de uma propriedade “típica” do tipo de agricultura desenvolvida naquele tempo e
espaço (uma agricultura comercial de baixa densidade), para em seguida esboçarmos alguma
conclusão.
No dia 23 de julho de 1652, por ocasião da morte do proprietário de terras e
escravos Antônio de Souza Couto, estiveram em sua fazenda, situada no termo da vila de
Santana de Parnaíba (pertencente à Capitania de São Vicente, como as vilas planaltinas de
São Paulo de Piratininga e Mogi das Cruzes), o juiz ordinário João Bicudo de Brito, seu
escrivão Custódio Nunes Pinto, o procurador Paulo Proença de Abreu e os avaliadores
Manuel Paes Ferreira e Pero de Souza Pereira, com o fito de elaborar o inventário dos bens
deixados pelo defunto e a repartição dos mesmos entre os seus herdeiros, exigindo da viúva
Izabel de Oliveira, conforme prática corrente, a jura de que declararia honestamente todos os
bens remanescentes do marido.
Ainda que o espólio de Antônio de Souza Couto claramente não apresentasse as
características de uma grande propriedade (fosse pelo número de escravos que possuía, fosse
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pelas dimensões de suas terras, ou mesmo pela quantidade de animais e ferramentas
registrados), a listagem carrega um nível de detalhamento relativamente grande e, em
comparação com outros documentos paulistas da mesma época, uma diversidade de
informações privilegiada. Por outro lado, os bens encontrados no seu sítio exemplificam o
tipo de propriedade média (menos quantitativa do que qualitativamente) típico do conjunto de
instalações rurais do planalto paulista ao longo do século XVII, e o esforço pela reconstituição
de sua unidade produtiva pode servir como ponto de partida para compreendermos a dinâmica
temporal implícita nas atividades em que as populações indígenas locais, falantes de variantes
do tupi,do guarani e do jê, por exemplo, foram inseridas.
Ao que tudo indica, Couto era, ao mesmo tempo, comerciante e produtor de trigo.
Havia entre seus bens uma variada gama de tecidos e, no testamento narrado ao escrivão em 9
de maio do ano de sua morte, esse morador declarou que algumas pessoas lhe deviam
dinheiro, uma das quais “de fazenda que lhe vendi de pano”; e outra, “de fazenda que lhe
vendi estando na vila de São Paulo com loja”90.
Seu sítio possuía 200 braças de testada (ou seja, de frente) e meia légua de sertão
(ou seja, de profundidade, o que equivalia a cerca de 1.500 braças91). A localização exata
infelizmente não foi mencionada nem no testamento e nem no inventário daquele morador,
mas como estava situado em área pertencente a um termo de jurisdição da vila de Santana do
Parnaíba, e dado o tamanho reduzido de sua frente em comparação com a profundidade,
suspeita-se que se encontrasse logo nos limites da referida vila, prolongando-se por mato a
dentro. Nele, foram encontradas 19 enxadas, 9 machados, 14 foices “de roçar”, 20 foices “de
segar trigo”, uma casa de taipa e um “moinho com a casa coberta de telha com dois siconis
[possivelmente “ciclones”, as rodas do moinho] e duas picadeiras”, além de instrumentos de
carpintaria, ferraria, vestimentas, objetos de uso doméstico etc.92
90
91
92
Inventário e testamento de Antônio de Souza Couto (1652). Publicado pelo Arquivo do Estado de São Paulo
em: Inventários e Testamentos (doravante: IT), v. 44, p.236.
O valor de uma braça corresponde a algo em torno de 2,20 metros, e o de uma légua, 3.000 braças, ou seja,
de 5.000 a 6.000 metros. Cf. COSTA, Iraci Del Nero da. Pesos e Medidas no Período Colonial Brasileiro:
denominação e relações. Disponível em: http://historia_demografica.tripod.com; e SILVA, Andrée Mansuy
Diniz. “Pesos-Medidas-Moedas”. In: ANDREONI, João Antônio. Cultura e opulência do Brasil por suas
Drogas e Minas (1711). São Paulo: Edusp, 2007. (Documenta Uspiana).
Inventário e testamento de Antônio de Souza Couto (1652), Op. cit., p. 243-247.
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A mão de obra registrada e repartida entre os herdeiros incluía 33 indivíduos
pertencentes à “gente forra” (nome então dado aos trabalhadores indígenas), dos quais 8 eram
mulheres empregadas no serviço doméstico e 5 homens fugidos. Somava-se uma tapanhuna
(designativo em língua geral para “homem de cor negra”, referindo-se aos escravos de origem
africana) da Guiné93. A ocupação dos outros vinte índios, tal como a da negra africana,
provavelmente estava relacionada ao cultivo do trigo, pois esta foi arrolada imediatamente
junto com uma casa “cheia de trigo em palha”, onde havia cerca de 200 alqueires (por volta
de 2.600 litros) de trigo94. E, por outro lado, as quantidades de machados, enxadas e foices
encontrados condizem aproximadamente com a quantidade de escravos listados, indicando
que poderiam ser utilizados nas atividades de abertura dos campos, plantio e colheita do
cereal, respectivamente.
É difícil imaginar o tamanho da terra cultivada tendo como informação apenas o
volume de trigo em palha colhido naquele ano, até mesmo se considerarmos a estimativa do
padre visitador jesuíta Jácome Monteiro, em 1611, de que cada alqueire de terra plantado
rendia em São Paulo cerca de cem alqueires de grãos 95, pois não sabemos qual era proporção
exata entre os volumes de palha e de grãos de uma plantação de trigo no período. Mas se
quisermos arriscar uma estimativa grosseira, projetando para o passado algumas medidas
atuais (essencialmente, a altura de uma planta de trigo em torno de 90 cm e o espaçamento
entre as plantas correspondendo a algo entre 15 e 20 cm), teríamos uma parte ínfima de terras
plantadas (menos de 30 braças em quadra) da fazenda. De tudo isso resulta o esboço de
reprodução gráfica dessa propriedade na ilustração abaixo, que não possui o valor de uma
planta, já que o formato do terreno e o arranjo real de suas partes nos é desconhecida, e sequer
93
94
95
Idem, ibidem, p. 249.
Idem, ibidem, p. 246.
MONTEIRO, Jácome. “Relação da Província do Brasil” (1610). Publicado em: LEITE, Serafim. História da
Companhia de Jesus no Brasil, tomo VIII. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1949, p. 396. John
Manuel Monteiro julgou ser exagerada tal estimativa, justificando que “unidades de pequena produção
podiam ter até quinze alqueires de área cultivada, ao passo que uma fazenda grande raramente produzia mais
de mil alqueires anuais”. MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra. Índios e bandeirantes nas origens de
São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 117. O mesmo autor lamentou a fragilidade dos dados
sobre o tamanho das parcelas cultivadas em São Paulo, o que inviabiliza praticar para esse caso a
metodologia de análise da produtividade na triticultura pensada por: OVERTON, M. “Estimating crop yields
from probate inventories”. Journal of Economic History, 39, n.2, 1979.
115
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sabemos se existiam nessa propriedade outras parcelas de plantio que não foram lançadas por
não possuírem valor comercial.
Apesar da subutilização do recurso territorial nessa propriedade, característica
compartilhada pelo conjunto da sociedade colonial paulista do período, nota-se a reunião,
numa única unidade produtiva, de espaços específicos correspondentes a etapas diferentes do
processo de produção agrícola, a saber: plantação (semeadura, cultivo e colheita),
armazenamento da colheita e processamento (debulha e moagem) do produto. Essa
configuração espacial constitui uma ruptura fundamental nos padrões de assentamento
indígena que os europeus encontraram no sul da América durante a conquista, fundados na
concentração espacial e contingente dos espaços produtivos, o que é representativo, por sua
vez, de uma segunda transformação, qual seja, a dos ritmos de trabalho experimentados pelas
populações nativas agora submetidas ao cativeiro96.
Os inventários de bens também permitem apontar para alguns padrões temporais
sobre as épocas de plantação e colheita dos gêneros cultivados. No caso do trigo,
fundamentalmente uma cultura de inverno ou primavera, a julgar pela datação dos
levantamentos, podemos encontrar o produto colhido (ou já debulhado em grãos, ou ainda em
palha) especialmente durante a primeira metade do ano, ao passo que, conforme se
aproximam os meses finais, o produto colhido vai desaparecendo, restando menções aos
campos já semeados e às searas em planta. Assim, enquanto a plantação ocorria
96
Infelizmente, não haverá espaço neste texto para uma exploração satisfatória do tipo de regime temporal
experimentado pelas populações indígenas da parte setentrional da América do Sul no momento da chegada
dos europeus. O desenvolvimento analítico do assunto resultou num capítulo específico da dissertação do
autor, prevista para ser defendida em agosto de 2016.
116
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provavelmente entre fevereiro e abril, a colheita devia acontecer em algum momento entre
setembro e janeiro97, algo próximo do padrão seguido pelos plantadores atuais.
Sem dúvida, de todas as “etapas” do processo triticultor, duas delas se destacam,
respectivamente, pela quantidade de força de trabalho que é capaz de mobilizar e pelo regime
temporal implícito no seu desempenho: a colheita e o processamento (especificamente o
processo de moagem). Muito já se discutiu sobre o peso da mobilização de mão de obra
escrava para a colheita em grandes plantações açucareiras em relação ao tamanho dos plantéis
escravistas de diversas partes da América98: durante o curto período em que a cana
encontrava-se madura, antes da secagem do seu caldo interior, a colheita devia ser operada de
acordo com uma disciplina temporal estrita, empregando nela o máximo de trabalhadores
disponíveis na propriedade. No caso do trigo, apesar de as propriedades fisiológicas da planta
possibilitarem uma preservação mais duradoura, o mesmo raciocínio mostra-se válido,
especialmente se considerarmos que a produção de trigo no planalto paulista concentrou
enorme contingente de força de trabalho indígena, sobretudo durante as décadas de 1640 e
1650. Uma hipótese plausível é a de que isso se explique por uma tendência regional ao
reaproveitamento das terras plantadas enquanto elas não se esgotassem, para o que as
colheitas se deveriam realizar logo com o objetivo de possibilitar as sementeiras do outro ano.
Para citar alguns exemplos: em 1642, o inventário de Dona Maria registrava cerca
de 11 alqueires de trigo (provavelmente em palha), 35 de trigo malhado e 2 cestas (certamente
em grãos), juntamente a 154 almas do gentio forro e 3 tapanhunos99. Diogo Coutinho de
Mello, que em 1654 era proprietário de 400 alqueires de trigo e 46 de sementeira, possuía
97
98
99
O presente estudo lida com um conjunto de 568 inventários e testamentos de proprietários rurais paulistas do
século XVII (além de outras fontes documentais auxiliares de natureza variada), dos quais 83 apresentam
alguma quantidade de trigo no espólio. Nem todos, porém, especificam em qual etapa do processo produtivo
o gênero se encontrava (se semeados, em seara, “em palha”, “em grão” ou malhados). Apenas 36 o fazem, e
com base neles foram tiradas as conclusões acima.
Alguns exemplos: WILLIAMS, Eric. Capitalismo e Escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012,
pp.33;212; SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, pp. 104;128-9; MINTZ, Sidney. Sweetness and power. The place of sugar in
Modern History. New York: Penguin, 1986, xviii; MORENO FRAGINALS, Manuel. O Engenho. Complexo
sócio econômico açucareiro cubano, v.1. São Paulo: Hucitec, 1987, p.239-249. TOMICH, Dale W. Pelo
Prisma da Escravidão. Trabalho, Capital e Economia Mundial. São Paulo: Edusp, 2011, p. 171-177.
Inventário de Dona Maria (1642). AESP, IT, v.28, p. 196-208.
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também 102 escravos indígenas e um negro de Guiné100. No mesmo ano, Hilário Alves tinha
registrado em seu espólio 200 alqueires e 108 peças forras101. E, dois anos depois, Luzia
Leme tinha 1100 alqueires de trigo e nada menos que 223 trabalhadores indígenas102.
Observa-se, a partir desses casos, a dificuldade em se apontar uma relação direta entre o
tamanho da colheita e o dos plantéis, isso porque provavelmente muitos inventários não
exprimiam a dimensão real das colheitas em seus respectivos anos, já que partes delas
poderiam, no momento do levantamento, já ter sido consumidas, vendidas, dadas como
pagamento, dotes ou reservadas para o suprimento das custas do processo de inventário.
Todavia, na semelhança entre os casos de Diogo Coutinho de Mello e Luzia Leme, onde
aparecem as maiores quantidades de trigo colhido, vemos uma média aproximada de cinco
alqueires por escravo. Comparando com outros casos, todavia, a variação poderia ser enorme,
a julgar, por exemplo, pelo fato de que Maria da Silva, em 1655, tinha posse de 600 alqueires
de trigo em grão e “apenas” 44 escravos103 (média de 13 alqueires por escravo).
De tudo isso resulta que a concentração de trabalhadores escravos para a
realização de uma atividade com duração de poucos meses (como a colheita do trigo) implica
a adoção de um ritmo de trabalho prescrito, minimamente programado e, do ponto de vista
particular de cada indivíduo inserido na produção, do exercício repetitivo de aplicação da
chamada “foice de segar trigo” sobre os ramos já desenvolvidos. Muito recorrente nos
inventários post-mortem do século XVII estudados (inclusive naqueles em que não há
qualquer menção à colheita ou à plantação do trigo), tal instrumento e o seu uso foram
descritos pelo naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire nos arredores do Chuí em 1820: “A
colheita do trigo é feita por meio de foicinhas do feitio de uma semi-elipse alongada o
oblíqua. O ceifador usa uma luva de palha na mão esquerda e com essa mão segura um
punhado de colmos”104.
100
101
102
103
104
Inventário e testamento de Diogo Coutinho de Mello (1654), Idem, v.15, p.370-2.
Inventário de Hilária Alves (1654). Idem, v.47, p.87-90.
Inventário e testamento de Luzia Leme (1656), Idem, v.15, p.425-7.
Inventário e testamento de Maria da Silva (1655), Idem, v. 47, p. 199-200.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul (1820-1). São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte:
Itatiaia, 1974, p.96. A referência foi localizada a partir do catálogo Equipamentos, Usos e Costumes da Casa
Brasileira, v.5 (Equipamentos). Volume organizado por José Wilton N. Guerra e Renata da Silva Simões.
São Paulo: Museu da Casa Brasileira/EDUSP, 2001, p.140.
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Um outro objeto presente no espólio de Antônio de Souza Couto, que até o
momento não foi discutido, aprofunda ainda mais essa relação entre a força de trabalho
humana utilizada e as exigências temporais das atividades que ela realizava: o moinho de
trigo. Encontrados em pelo menos 21 inventários105 e bem distribuído entre grandes, médios e
até pequenos proprietários, os moinhos foram, não obstante, mais frequentes durante as
décadas de 1640 e 1650, época de maior prosperidade da triticultura no planalto106. A maior
parte das referências não oferece maior detalhamento de suas características, mas algumas
ocorrências demonstram que, como os engenhos de açúcar encontrados em várias localidades
da colônia (inclusive em São Paulo) poderiam ser tanto de duas quanto de três rodas. Se nos
pautássemos apenas pelas informações presentes nos inventários de Antônio Furtado de
Vasconcelos107 e Cornélio de Arzão108, o primeiro feito por ocasião de morte e o segundo por
exigência da Inquisição, concluiríamos que os moinhos de trigo deveriam se mover
fundamentalmente pela força de água corrente.
A ilustração de uma casa de moinho, reproduzida abaixo, feita por Belmonte na
primeira metade do século XX com base na mesma documentação que fundamentalmente
utilizamos (os inventários e testamentos), apresenta um moinho coberto por uma construção
de palha, em uma beira de rio109:
105
106
107
108
109
São eles: Felippa Vicente (IT, v.3, 1615), Antônio Furtado de Vasconcelos (IT, v.7, 1628), Cornélio de Arzão
(IT, v.12, 1628), Francisco Bueno (IT, v.14, 1638), Clemente Álvares (IT, v.14, 1641), Isabel Fernandes (IT,
v.28, 1641), Manuel João Branco (IT, v.13, 1643), Izabel de Proença (IT, v.37, 1648), Raphael de Oliveira
(IT, v.3, 1648)Francisco Bicudo Furtado (IT, v.41, 1651), Antônio de Souza Couto (IT, v.44, 1652), Ana da
Costa (IT, v.40, 1653), Maria Leme de Alvarenga (IT, v.47, 1654), João Godoi Moreira (IT, v.43, 1665),
Maria de Oliveira (IT, v.17, 1665), Maria da Cunha (IT, v.26, 1667), Domingos Jorge Velho (IT, v.18, 1671),
Francisco Pedroso Xavier (IT, v.20, 1680), Marcelino de Camargo (IT, v.21, 1684), Fernando de Camargo
(IT, v.22, 1690) e Jeronimo Bueno (IT, v.23, 1693). Não estão incluídos nessa lista as propriedades que
possuíam moendas de cana de açúcar e que provavelmente utilizavam esta mesma máquina para a moagem
do trigo que também aparecia entre seus bens.
MONTEIRO, John Manuel. Op. cit., p. 117.
Inventário de Antônio Furtado de Vasconcelos (1628). Idem, v.7, p.18. Suspeita-se que o moinho
recentemente localizado por arqueólogos no Sítio do Morro, em área pertencente ao município de Santana de
Parnaíba, seja o de Antônio Furtado de Vasconcelos, adquirido em 1658 por Paulo Proença de Abreu das
mãos de seu cunhado Baltazar Fernandes, que era irmão da ex-mulher de Vasconcelos, Benta Dias, a qual
depois da morte deste teria se casado com Abreu. As pesquisas arqueológicas ainda não foram iniciadas, mas
devem ocorrer por ação conjunta do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e da
prefeitura de Santana do Parnaíba. Cf. VEIGA, Edison. “Pesquisadores encontram ruína de moinho colonial”.
O Estado de São Paulo, edição de 14 de junho de 2014.
Inventário de Cornélio de Arzão (1628). Idem, v.12, p.90.
BELMONTE. No tempo dos bandeirantes. Edição fac-similada. São Paulo: Governo do Estado, 1980, p. 31.
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No desenho, Belmonte se preocupou em destacar a participação da força de
trabalho indígena (ainda que os índios apareçam como portadores de uma fisionomia bastante
ocidentalizada) nas várias etapas do processamento do produto agrícola: a alimentação do
moinho, que a despeito de movimentar-se por água corrente exigia a participação humana
para posicionar a planta entre os dois ou três eixos compressores; o armazenamento do
produto em caixotes; e o escoamento destes ao comércio extra local por meio de canoas. Tudo
realizado sob a supervisão de um agente estranho, talvez o senhor da propriedade, ou quem
sabe um supervisor ou feitor empregado pelo senhor como intermediário entre ele e os seus
cativos.
As características por vezes mencionadas para os moinhos na documentação
disponível permitem supor que o moinho de trigo prevalecente nas fazendas de trigo de São
Paulo não diferia em essência do engenho de açúcar (a máquina, não o tipo de propriedade)
presente em diferentes capitanias da América Portuguesa no século em questão e no
anterior110. Veja-se, por exemplo, a ilustração de uma moenda baiana de dois eixos,
reproduzida por Antônio Barros de Castro “segundo maquete do Museu do Açúcar, Recife-
110
Ver, por exemplo, os tipos, vantagens e desvantagens encontrados na investigação de CASTRO, Antônio
Barros de. “1610: mudanças técnicas e conflitos sociais”. Pesquisa de Planejamento Econômico, 10 (3). Rio
de Janeiro, 1980. Neste texto, o autor apresentou uma interpretação instigante dos conflitos sociais
relacionados à mudança nos engenhos açucareiros no início do século XVII.
120
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PE”, e “fiel à sucinta descrição de Jácome Monteiro”111, que diz: “uma roda como de azenha,
que dentro se vem terminar em dous rodetes, cada um da grossura de uma pipa, guarnecidos
em roda de verdugos de ferro”112:
Se aceitarmos a conclusão de Castro, segundo a qual o termo “trapiche” se referia
ao moinho de duas rodas movido por força animal (ver a ilustração seguinte113), concluímos
que também esta versão do equipamento foi utilizada por triticultores em São Paulo114.
O mesmo podemos dizer da moenda caracterizada pelo uso das entrosas e por
possuir três (e não dois) eixos, dispostos não horizontal, mas verticalmente (ver abaixo). A
111
112
113
114
CASTRO, Op. cit., p. 684; 686.
MONTEIRO, Jácome, Op.cit., p.404.
Também retirada de CASTRO, Op. cit., p. 688.
Conforme atestam as referências documentais à “casa de trapiche” de Raphael de Oliveira (IT, v.3, 1648,
p.330) e ao “trapiche” de Maria de Oliveira (IT, v.17, 1665, p.14). Não se conta aqui, todavia, os casos em
que o termo se encontra em espólios de produtores de açúcar, mas não de trigo.
121
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cronologia sugerida por Castro para o nordeste açucareiro (de que este terceiro tipo
prevaleceria a partir da segunda década do XVII, devido a circunstâncias históricas
específicas115), no entanto, não serve para a cultura do trigo paulista, pois aqui os dois
primeiros tipos foram predominantes ao longo de todo o século XVII, havendo um único caso
em que uma “moenda de três paus” foi lançada em inventário junto a uma quantidade de trigo
colhido116.
Caminhando já para as considerações finais, podemos levantar algumas hipóteses.
Fosse qual fosse o modelo de moinho utilizado, o esforço físico da força de trabalho nele
empregado também seguia um tempo que era determinado não diretamente pelas técnicas e
tecnologias referidas, mas sobretudo pela lógica social que a elas conferia lugar e importância
no interior da sociedade colonial paulista. As técnicas e as tecnologias das quais se fez
menção até aqui tornavam-se, então, instrumentos de uma relação histórica total, e não o
contrário. Ora, em todas as etapas do processo produtivo do trigo que temos visto em São
Paulo do século XVII, mas fundamentalmente na colheita e na moagem, o sentido do trabalho
desempenhado pelas populações indígenas submetidas à escravidão encontrava-se,
obviamente, não em suas próprias necessidades individuais e coletivas, mas nos ditames de
senhores de terras e escravos devidamente conectados a circuitos comerciais mais ou menos
distantes (em Santos, Rio de Janeiro, Paraná, Bahia etc.).
115
116
Consultar CASTRO, Op. cit., p. 690-3.
Inventário de Clemente Álvares (1641). AESP, Inventários e Testamentos, v.14, p. 103.
122
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O conjunto das características encontradas (concentração demográfica da mão de
obra cativa, divisão social e espacial do trabalho no interior das unidades produtivas, e
exercício constante de um ritmo de trabalho do qual estavam alienados os produtores
agrícolas diretos, os escravos) foi fruto de um complexo processo de dominação que envolveu
ao mesmo tempo violência, cooptação e por vezes adesão velada, mas que talvez tenha em
essência efetivado uma condição fundamental para a implantação do regime colonial e, numa
perspectiva estrutural, a expansão da economia moderna como um todo: a desestabilização
dos contextos tradicionais e dos modos de organização da vida das populações nativas não
europeias117. Os grupos indígenas com os quais os paulistas estabeleceram contato, no caso,
caracterizavam-se, falando resumidamente, pela contingência e pela ocupação territorial
itinerante, conforme as necessidades materiais e simbólicas do próprio grupo, inexistindo
neles a centralidade social depois instituída da acumulação.
Ao contrário das variações na demanda extra local, das flutuações de preço e da
quantidade de terras e cativos disponíveis, o costume dos nativos só interferia nos ritmos de
trabalho do planalto (durante o século XVII, já consolidada a conquista territorial) à medida
em que os próprios escravos realizavam formas diferentes de resistência (como fugas,
assassinatos e até mesmo a atitude que os colonizadores caracterizaram como “preguiça”).
Porém, ao fim e ao cabo, a despeito de tais resistências, a ruptura com os padrões temporais
do trabalho a que as populações indígenas estiveram anteriormente habituadas se cumpriu.
Com isso, tendo partido do exame de uma propriedade historicamente típica e
depois apontado alguns elementos compartilhados pelo conjunto de sítios produtores de trigo
paulista no século XVII, acreditamos caminhar na fundamentação de uma metodologia de
pesquisa sobre o tempo do trabalho nas sociedades coloniais da época moderna,
reconhecendo, ao mesmo tempo, que uma visão conjunta do tema exige um esforço
investigativo muito maior, o que infelizmente ultrapassa os limites dessa comunicação.
Referências bibliográficas e documentais
117
Ver: BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no Novo Mundo: Do Barroco ao Moderno. Rio de
Janeiro: Record, 2003, p. 17.
123
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CONTRIBUIÇÕES DO PERÍDO AURÍFERO PARA A FORMAÇÃO TERRITORIAL
DO BRASIL E DE GOIÁS: O SURGIMENTO DOS PRIMEIROS NÚCLEOS
URBANOS GOIANOS
Hamilton Matos Cardoso Júnior118
[email protected]
Introdução
Há uma concordância entre autores, sejam da Geografia ou da História - tais como
Furtado (2005), Prado Júnior (2008), Abreu (1997) e Castro (2006), - que a expansão
territorial em direção ao interior do Brasil teve inicio com a descoberta de metais preciosos e
sua consequente extração.
É importante ressaltar, como nos mostram Gomes, Neto e Barbosa (2004), que o
território goiano-tocantinense atual foi constituído sobre antigos territórios de povos e tribos
indígenas. Essa institucionalização territorial de Goiás se dá no período colonial, como
citamos, pela implantação da atividade aurífera.
Inicialmente, a interiorização da ocupação colonial no Brasil se deu com a
descoberta de ouro no território do atual estado de Minas Gerais. Posteriormente essa
interiorização avança com a descoberta de importantes jazidas na região de Cuiabá. Estando
Goiás situado entre esses dois territórios, a descoberta desses recursos minerais em sua porção
territorial foi apenas questão de tempo, fato que se deu ainda no século XVIII.
Neste contexto, a exploração aurífera exerceu forte influência na criação de
povoados, vilas, arraiais e cidades em Minas Gerais, no Mato Grosso e em Goiás, sendo ainda
fator importante na formação territorial desses estados. Este artigo mostrará como a extração
mineral (colonial) contribuiu para que o território brasileiro e goiano se expandisse rumo ao
Graduando do curso de Licenciatura em Geografia, Universidade Estadual de Goiás – Câmpus de Ciências
Sócio-Econômicas e Humanas de Anápolis (GO).
Orientadora: Dra. Flávia Maria de Assis Paula. Profa. do Curso de Licenciatura em Geografia, Universidade
Estadual de Goiás – Câmpus de Ciências Sócio-Econômicas e Humanas de Anápolis (GO).
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interior, dando origem a novos núcleos urbanos, sendo principal fator no povoamento de
Goiás nesse período.
A extração mineral e os processos de interiorização e povoamento do território
brasileiro
Os primeiros dias de Pedro Álvares Cabral no novo mundo, apesar das tentativas
de encontrar ouro e outros minérios e pedras preciosas, não foram suficientes para descobrir
ou ter indícios visíveis que lá havia qualquer metal precioso. No entanto, Pero Vaz de
Caminha, no início de sua carta ao rei D. João VI, alimenta uma pequena esperança de haver
ouro ou prata. Caminha assim escreveu:
O capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos
pés uma alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro,
mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar e Simão de Miranda, e
Nicolau Coelho. E Aires Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele
íamos, sentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam-se as tochas. E
eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao
Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e
começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o
colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também
olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e
novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata!
(CAMINHA, 1500, p.3)
Dessa forma, inicialmente, devido a não descoberta de materiais preciosos diferentemente da Espanha que teve uma precoce descoberta desses metais nas suas porções
da América -, a Coroa Portuguesa pouco se interessou pela nova terra, concentrando suas
viagens e esforços no Oriente. Becker e Egler (2003) salientam que durante as três primeiras
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décadas do século XVI os portugueses passaram a explorar apenas o Pau Brasil, árvore que
veio dar nome à futura nação.
A cobiça de outros países, como Inglaterra, França e Holanda, sobre a América
Portuguesa foi se acirrando. Devido à necessidade de tomar a posse da terra e desviar os
interesses de nações rivais, a Coroa Portuguesa vê-se na necessidade de ocupar o território,
mesmo que ainda não tenha descoberto os tão sonhados recursos minerais.
Acerca dessa decisão, Furtado (2005) destaca que ela foi:
[...] consequência da pressão política exercida sobre Portugal e
Espanha pelas demais nações europeias [...] prevalecia o princípio de
que portugueses não tinham direito senão àquelas terras que
houvessem efetivamente ocupado. Dessa forma, quando, por motivos
religiosos, mas com apoio governamental, os franceses organizam sua
primeira expedição para criar uma colônia de povoamento nas novas
terras [...] é para a costa setentrional do Brasil que voltam suas vistas.
Os portugueses acompanhavam de perto esses movimentos e até
suborno atuaram na corte francesa para desviar as atenções do Brasil.
Contudo tornava-se cada dia mais claro que se perderiam as terras
americanas a menos que fosse realizado um esforço de monta para
ocupa-las permanentemente. (FURTADO, 2005, p.12)
O sonho de encontrar reservas de metais preciosos no interior do Brasil ainda era
vivo e pulsante. Dessa forma, a Coroa Portuguesa inicia a colonização das novas terras com o
intuído de ocupá-las. O Brasil foi dividido em grandes faixas de terras denominadas de
capitanias hereditárias119.
Foi nessas faixas de terra que vigorou o primeiro ciclo econômico, para alguns
autores como o segundo devido à extração do Pau Brasil, com sua base ligada à cana de
119
No entanto, a expedição de Martin Afonso de Sousa (1530-1533) tinha como objetivo patrulhar a costa do
Brasil para estabelecer uma colônia através da concessão não-hereditária tendo em vista a necessidade da coroa
na efetiva ocupação da colônia. Possivelmente, Martim Afonso ainda encontrava-se no Brasil quando a Coroa
Portuguesa, por representação do rei Dom João III, decidiu instituir as capitanias hereditárias. (FAUSTO, 1994)
128
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açúcar. É na exploração da cana de açúcar, mesmo que essa atividade não gerasse tanto lucro
quanto o Oriente (FURTADO, 2005), que a coroa portuguesa vê como forma de iniciar uma
atividade econômica na colônia e por via de fato ocupar, tomar posse e defender o seu vasto
território120, só restava saber como despertar interesse em seus súditos. Oferecer-lhe
privilégios soberanos dos quais o rei abriria mão foi a forma encontrada (FAUSTO, 1996). O
litoral nordestino constituiu-se como o principal centro econômico da colônia. Com terras
férteis e localizado mais próximo da Europa, a atividade da cana de açúcar desenvolveu-se
facilmente nessa região (FURTADO, 2005).
Todavia, a colonização ganhou um caráter litorâneo, onde os engenhos de cana de
açúcar, as plantações, as cidades e vilas se concentravam próximo ao mar. Como aponta Frei
Vicente do Salvador (1627), “da largura que a terra do Brasil tem para o sertão [...] até agora
não houve quem a andasse, por negligência dos portugueses que, sendo grandes
conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas concentram-se de as andar arranhando
ao longo do mar como caranguejos” (VICENTE DO SALVADOR, 1627, p. 5).
Contrastando com o nordeste, São Vicente, atual São Paulo, possuía atividades
mais diversificadas, contudo, constituía-se em uma região periférica na colônia. Fausto (1996)
faz uma associação do desenvolvimento das atividades econômicas de São Vicente a
existência de um grande número de índios nessa região. Os portugueses que se instalaram ao
sul aprenderam com os índios121 sendo capazes de usar até o arco e a flecha.
Além disso, os colonos de São Vicente, por meio das expedições bandeirantes,
viabilizaram a pesquisa mineral, fator importante futuramente na descoberta das minas gerais,
à medida que se embrenhavam na mata virgem do interior da colônia à captura dos nativos
que serviriam de mão de obra escrava.
120
Segundo Furtado (2005, p. 13-14), os recursos que Portugal detinha para colocar na terra improdutiva eram
limitados e não seriam suficientes para manter a proteção das novas terras por muito tempo. Como não havia
descoberto ouro, caberia a Portugal, diferentemente da Espanha que havia encontrado grandes minas de metais
preciosos, encontrar uma forma de utilização econômica das novas terras. Somente assim a Coroa Portuguesa
poderia cobrir os gastos com a proteção militar do Brasil.
121
Todavia, a captura desse nativo foi de total importância à medida que eram vendidos nos mercados de São
Vicente e Rio de Janeiro, sendo utilizados na produção do açúcar, especialmente com a escassez de mão de abra
escrava africana dada pela invasão holandesa. (FAUSTO, 1996).
129
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o Império português no Atlântico Sul
Foi sob as bandeiras paulistas122 que os paulistas da região de São Vicente
adentraram o vasto sertão da colônia. Essas bandeiras partiram especialmente durante o século
XVII, porém, ocorriam desde o século XVI, e duravam meses e até mesmo anos. Seu
principal objetivo era a captura de índios que seriam vendidos no mercado comercial de
escravos. Sobre elas Fausto (1994) ressalta:
As bandeiras tomaram as direções de Minas Gerais, Goiás, Mato
Grosso e as regiões onde se localizavam as aldeias de índios guaranis
organizadas pelos jesuítas espanhóis. Algumas bandeiras realizaram
imensas viagens, em que a atração por uma grande aventura se
mesclava com objetivos econômicos. Já veterano, Raposo Tavares
percorreu, entre 1648 e 1652, um roteiro de 12 mil quilômetros [...]
(FAUSTO, 1994, p. 59)
Assim, surgem as primeiras descobertas significativas de ouro no interior do
Brasil. A data oficial dos descobrimentos é intensamente discutida entre historiadores, porém,
há um consenso que essas descobertas se situaram nas últimas décadas do século XVII123.
Porém, seu grande apogeu de produção se deu durante o século XVIII. Sobre esse fato, Fausto
(1994) afirma que:
Em 1695, no Rio das Velhas, próximo às atuais sabará e Caeté,
ocorreram as primeiras descobertas significativas de ouro. A tradição
associa a essas primeiras descobertas o nome de Borba Gato, genro de
Fernão Dias. Durante os quarenta anos seguintes foi encontrado ouro
em Minas Gerais, na Bahia, Goiás e Mato Grosso. Ao lado do ouro,
surgiram os diamantes, cuja importância econômica foi menor,
122
As bandeiras eram empresas privadas constituídas com base num sistema de ações, onde cada bandeirante
tinha direito ao recebimento dos lucros de acordo com seu investimento. (PALACIN, 1994)
123
“A data e o lugar exatos da primeira descoberta realmente rica, provavelmente jamais serão conhecidos. As
narrativas tradicionais variam, e a correspondência oficial dos governadores do Rio de Janeiro e da Bahia só
reflete os achados dos dez primeiros anos, ainda assim tardia e impropriamente” (BOXER, 1963, p. 49).
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descobertos no Serro Frio, norte de Minas, por volta de 1730.
(FAUSTO, 1994, p. 60)
Com essas descobertas se inicia a “corrida ao ouro” colonial e a segunda expansão
territorial do Brasil, dessa vez em direção ao interior da colônia. Essa corrida trouxe efeitos
tanto para a colônia quanto na metrópole. Uma grande e intensa imigração iniciou-se de
Portugal para o Brasil, da mesma forma, dentro da própria colônia a migração também foi
considerável. Colonos e seus escravos saiam do nordeste124 para a região das minas.
Assim, como na região das Minas Gerais, o território goiano já possuía excursões
de bandeiras desde o século XVI. Como aponta Palacin (1994), a primeira bandeira a
adentrar as terras goianas data de 1590, que durou três anos e foi comandada por Domingos
Luís Grau e Antônio Macedo. Posteriormente, diversas outras expedições adentraram o
território vindas, principalmente, de São Paulo e algumas de Belém. Segundo o referido
autor:
No fim do século XVIII, o território de Goiás era suficientemente
conhecido, tanto em São Paulo como em Belém. Os caminhos de
penetração se achavam descritos nos roteiros que corriam de mão em
mão, e os rumores sobre suas riquezas auríferas não faziam senão
avolumar-se, apesar de limitado êxito das Bandeiras neste aspecto.
(PALACIN, 1994, p. 19)
Anteriormente a descoberta de ouro em Goiás, e posteriormente a descoberta em
Minas Gerais, “em 1719, nas remotíssimas paragens de Mato Grosso, jazidas tão ricas que
124
Essa migração dentro da colônia do Nordeste para o sertão (Minas Gerais) leva a supor que a produção de
açúcar nordestino estaria fortemente comprometida. Porém, Furtado (1994) nos mostra que a economia
açucareira já vinha sofrendo baixas por conta da intensa concorrência no mercado de produtos tropicais advindos
das colônias inglesas e francesas. “Em Portugal compreendeu-se claramente que a única saída estava na
descoberta de metais preciosos” (FURTADO, 2005, p. 80).
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[...] o ouro se retirava da terra como a nata do leite” (PALACIN, 1994) foram descobertas em
Cuiabá.
A descoberta do ouro em Goiás e a formação do território goiano e seus primeiros
núcleos urbanos
Em 21 de outubro de 1725, depois de três anos e três meses de viagem, a Bandeira
denominada de Anhanguera, retorna a São Paulo com a notícia do descobrimento das tão
procuradas minas em Goiás. Nasce o novo eldorado da colônia e novamente o processo de
migração origina-se, só que dessa vez para o centro do território brasileiro. Com a descoberta
das minas em Goiás completa-se a interiorização da colônia e as terras da América Portuguesa
ampliaram-se ainda mais.
Estevam (2004) enumera três motivos para a descoberta de ouro em Goiás:
Primeiro, a busca de um caminho por terra “para substituir a longa e
difícil via fluvial para Cuiabá”, o que era de interesse “vital” para as
autoridades lusitanas; segundo, o “momento psicológico” era
adequado para a preparação de uma bandeira exploratória em vistas
das descobertas em Mato Grosso e dos rumores da existência de ouro
no coração da colônia, e, por último, o momento político também era
bastante favorável devido ao desdobramento do território das Minas
Gerais. Nesse sentido, “a criação de um novo eixo mineiro seria a
melhor resposta”, vindo ao encontro dos interesses da coroa e dos
mineradores afastados das Minas Gerais. (ESTEVAM, 2004, p. 21;
grifos do autor)
Com nos mostra Castro (2006), historicamente a exploração mineral foi principal
atrativo para o povoamento do estado de Goiás e fator determinante para a formação
territorial do estado. A descoberta de metais preciosos, principalmente o ouro, no interior da
colônia foi fator decisivo para a ampliação do território brasileiro.
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o Império português no Atlântico Sul
Podemos apontar que à medida que as reservas de metais preciosos eram
descobertas, como já explicitado acima, uma intensa corrente migratória marchava para a
região. Além da interiorização das terras brasileiras, a extração mineral era o fator exclusivo
no povoamento dos sertões, fazendo com que a colonização deixasse de ser apenas litorânea,
apesar de ainda haver, nesse período (e nos dias atuais), grandes vazios populacionais no
interior do Brasil.
Os primeiros anos que se seguem após 1725 são intensos, do ponto de vista da
migração, e caóticos do ponto de vista da organização da sociedade goiana 125. Como nos
mostra Palacin (1994), ao retornar de São Paulo, Bartolomeu Bueno funda o primeiro arraial
que recebe o nome de Sant´Ana, posteriormente Vila Boa, hoje Cidade de Goiás. Esse recémfundado núcleo tornar-se-ia de suma importância na história goiana sendo a sede do governo
em Goiás até a década de 1930 com a transferência da capital para Goiânia.
O autor ainda destaca que nas primeiras décadas de ocupação de Goiás, os arraiais
seguiam sendo criado pela força da mineração, que se concentrava no centro do estado, no
eixo Serra Dourada – Serra dos Pireneus. No entanto, posteriormente as extrações de minerais
expandem-se principalmente rumo ao norte goiano e, nos dias atuais, sul do Tocantins.
Ainda na primeira década de povoamento do território, novas jazidas foram
descobertas no centro do Estado, o que incita a criação, em 1727, do arraial de Meia Ponte,
hoje Município de Pirinópolis, junto ao rio das Almas. Como nos aponta Palacin (1994),
segue-se um intenso movimento de pessoas para Meia Ponte, o que já era de se esperar, pois
os achados em Goiás sempre vinham com promessas de muita riqueza. Devido sua melhor
localização, Meia Ponte logo faz frente à Sant´Ana. Sobre esse fato Palacin salienta:
Quando em 1737 o Conde Sarzedas vem a Goiás para erigir a primeira
vila, são muitos os que pensam que deve ser Meia Ponte e não
Sant´Ana a sede do novo município. Preterida nesta ocasião, em 1754
o governo português quer informar-se de Dom Marcos de Noronha se
125
Nos primeiros anos de povoamento de Goiás diversas pessoas foram atraídas pela vontade de enriquecer
rápido, assim como teria ocorrido nas Minas Gerais. Bandidos, assassinos, pequenos e poderosos mineiros que
fugiam das Minas Gerais de seus credores e do fisco da coroa, fugitivos da justiça e contrabandistas caracterizam
os primeiros habitantes de Goiás (PALACIN, 1994; ESTEVAM, 2004).
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não seria oportuno transferir a casa de fundição de Vila Boa para Meia
Ponte, por ser esta povoação mais acessível aos mineiros [...] não
deveria somente a casa de fundição, mas todo o governo, pois Meia
Ponte oferecia melhores comunicações e muito melhor clima; a única
dificuldade para a mudança é que precisariam construir de novo todos
os edifícios públicos. Para um governo tão ponderado em gastos como
o de Lisboa, parece que esta razão foi decisiva e não se tocou mais no
assunto. (PALACIN, 1994, p. 26)
Na terceira década do século XVIII, outras descobertas de minas 126 são realizadas,
porém ao norte do território goiano. Fundam-se os núcleos de extração mineral: Maranhão,
em (1730); Água Quente, (1732); Traíras (1735); São José, (1735) e Cachoeira (1736), que
constituem a maior densidade mineira do norte. Posteriormente, perdida em meio a mata
virgem, descobre-se as minas de Crixás, “outras minas de tão grande rendimento que
mereciam igualmente uma taxação especial, oitava e meia mais alta no imposto de taxação”
(PALACIN, 1994, p. 26).
No entanto, a busca por novas descobertas não cessava. Expedições continuaram
adentrando ainda mais ao norte de Goiás. Tarefas aventureiras e perigosas renderam mais
algumas descobertas de minas. Durante os últimos anos da terceira década do século XVIII os
achados ainda são significantes, principalmente nas montanhas da região norte. Palacin (1994)
trata de realizar essa cronologia de descobertas, descobrem-se as minas de: São Luís – mais
tarde Natividade, TO – (1734); São Félix (1736), Pontal e Porto Real (1738), Arraias e
Cavalcante (1740) e Pilar (1741). Descobertas que vão ocupando o “solitário” sertão do norte
de Goiás.
Conforme Palacin (1994, p.27) “a partir deste momento começaram a faltar os
‘descobertos’, o mais essencial dos elementos no metabolismo deste tipo de mineração.
Continuam as buscas ativamente, e já com uma ponta de desespero, mas o resultado é
pequeno, e cada vez menor”. Na segunda metade da década de 1740 realizam-se os últimos
“[...] tão ricas que, ao criar-se o importo de capitação, foi-lhes determinada uma tacha muito mais alta por
escravo” (PALACIN, 1994, p.26).
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descobrimentos de minas importantes, que são: Carmo (1746), Santa Luzia (1746) e Cocal
(1749). A partir dai extinguem-se por completo.
Pelo exposto podemos perceber a importância da mineração para o povoamento e
formação do território goiano. Através da atividade aurífera que as terras centrais da colônia
são ocupadas, povoadas, mesmo que de forma desordenada. Os núcleos iam se formando ao
sabor dos achados de ouro e outros metais preciosos. Ao mesmo passo que se desintegravam à
medida que esses depósitos iam se exaurindo.
É importante ressaltar que atualmente o território goiano não possui as mesmas
bases que tinha no momento de sua institucionalização como Capitania de Goiás em 1748,
através do desmembramento da Capitania de São Paulo. A configuração territorial de Goiás127
como conhecemos nos dias atuais é resultado de transformações/alterações no decorrer de
mais de 200 anos.
Através do exposto nesta discussão podemos apontar que, primeiramente, o
território iniciou-se no centro sul do hoje Estado de Goiás, entre Vila Boa (Goiás) e Meia
Ponte (Pirenópolis). Posteriormente, o território goiano se expande para o norte até a
confluência do rio Araguaia com o Tocantins à medida que novos depósitos de metais
preciosos iam sendo descobertos. Já no fim dos achados, na virada para a segunda metade do
século XVIII, o território goiano se estende para leste com a fundação do núcleo de Santa
Luzia (Luziânia). Constituindo, dessa forma, atividade aurífera o fator preponderante para a
formação territorial de Goiás.
Como nos mostra Gomes, Neto e Barbosa (2004), são três fatores que contribuem
para o povoamento do território goiano. O primeiro foi a corrida do ouro no período colonial,
que iniciou uma intensa migração em direção ao interior da colônia; o segundo foi a atividade
agropastoril, iniciada paralela à atividade aurífera e intensificada com a queda da produção do
ouro; e o terceiro foram as estradas, antigas e atuais que serviam de via de comunicação com
os centros litorâneos.
As perdas territoriais da antiga Capitania de Goiás – para Mato Grosso e Mato Grosso do Sul estão sendo
computados mais de 160 mil quilômetros quadrados, para Minas Gerais, foi o atual triângulo Mineiro e mais
outros “ajustes” menores – totalizam cerca de 250 mil quilômetros quadrados, sem contar com a criação do
Estado do Tocantins (GOMES; NETO; BARBOSA, 2004, p.52).
127
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O povoamento das terras goianas possui forte base no período aurífero à medida
que atraía grande contingente populacional para a região, movido pelo sonho de
enriquecimento rápido. Ao analisarmos a discussão de Estevam (2004), percebemos que
mesmo com a queda da atividade aurífera, essa ainda contribuiu para o povoamento de Goiás
à medida que os núcleos populacionais, que giravam entorno da extração do ouro, sofriam um
súbito esvaziamento e seus habitantes se direcionavam para as zonas rurais, povoando, dessa
forma, outras faixas territoriais.
Outro fator importante que podemos destacar é que a atividade aurífera, além de
proporcionar a interiorização da colônia, a constituição do território goiano e seu povoamento,
também iniciou a integração do sertão colonial com o litoral e contribuiu para a formação
socioespacial desses territórios.
Considerações finais
A atividade aurífera no período colonial foi fator preponderante na interiorização
da América Portuguesa. A característica colonizadora fixada nas faixas litorâneas brasileiras
foi se perdendo a medida que depósitos de minérios e pedras preciosas foram sendo
descobertas entre os séculos XVII e XVIII. Achados que proporcionaram o povoamento do
sertão da colônia, nos atuais estados de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, principalmente.
No entanto, não se pode afirmar que a colonização passou a ser interiorana, pois a
maioria da população ainda vivia nas faixas litorâneas, como afirma Prado Júnior (2008). Essa
ainda é uma característica da distribuição populacional do Brasil. Porém, pode-se afirmar que
a interiorização da colônia e a opulência de suas minas provocaram mudanças econômicas e
políticas na América Portuguesa. Fato evidenciado com a transferência da capital colonial
para Rio de Janeiro e do eixo econômico do nordeste para as regiões auríferas.
Em Goiás, a atividade aurífera foi a base da definição dos primeiros limites
territoriais do Estado, sendo estes alteradas nos anos posteriores. Além disso, foi fator
principal no povoamento do sertão goiano, seja com a formação dos núcleos urbanos, do
povoamento rural do território e na construção das bases da sociedade goiana. Tendo a mesma
importância em Minas Gerais e Mato Grosso.
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MEMÓRIAS DE UM TEMPO PERDIDO:
A ESTRADA DE FERRO GOIÁS E A CIDADE DE IPAMERI (1920-1930)
Hilma Aparecida Brandão
O trem foi representado, no Brasil, como nos demais países, como o grande condutor da
civilização e veículo de integração nacional. Por onde passava, o trem trazia consigo a ilusão de
que através dele seria possível a todas as classes sociais o acesso à instrução, a anulação de
preconceitos e a prosperidade. O trem símbolo do progresso e da civilização molda novos hábitos,
entre eles o de medir o tempo pelo relógio, colocado nas estações, que substitui o tempo natural,
medido pelo sol e pelo sino da igreja.
No caso de Ipameri, a chegada da estrada-de-ferro vai acarretar o surgimento da primeira
fábrica, da energia elétrica, da primeira agência bancária e outros “pioneirismos”, mas também faz
surgir formas novas de exclusão, como os bairros e vilas na cidade e os antigos casarões
abandonados, contradições presentes na modernidade.
O desenvolvimento do sistema capitalista traz consigo um movimento brusco de construir e
destruir. Segundo PAULA:
...quaisquer que sejam as prioridades da economia e/ou dos interesses
dos grupos hegemônicos, tudo se justifica, ideologicamente. Ao mesmo
tempo, ainda que as manifestações da mudança sejam perceptíveis, na
essência, o sistema é o mesmo. Tudo muda para que tudo permaneça
como está. (PAULA, 2000:51)
Neste sentido, considero pertinente refletir sobre o sentido de modernidade e progresso,
comumente empregado, particularmente a partir da implantação da ferrovia como uma maneira de
justificar as transformações necessárias ao sustentáculo do capitalismo.
Ao escrever Cidades Mortas em Lobato parece referir-se às lamentações das cidades que
atingidas pelo progresso em determinado momento de sua história (como Ipameri), já não vivem
mais seu tempo de glória. Para LOBATO: Nosso progresso é nômade e sujeito a paralisias súbitas.
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Radica-se mal. Conjugado a um grupo de fatores sempre os mesmos, reflui com eles duma região
para outra. Não emite peão. Progresso de cigano, vive acampado. migra, deixando atrás de si um
rastilho de taperas. (LOBATO,2004:21)
Assim, esse movimento do ter e do não ter atende a interesses do sistema capitalista, é
necessário para alimentá-lo. O progresso nesta perspectiva está em constante movimento, é cigano
e muda-se de um lugar para o outro quando menos se espera.
Em relação estreita com o capitalismo, expressões como modernidade, modernização,
progresso e, mais recentemente, globalização são comumente utilizadas, em sua maioria para
justificar os projetos de transformação desejados pelo setor hegemônico da sociedade. Estes termos
são empregados constantemente principalmentenos discursos políticos, servindo de slogan para
vários candidatos a cargos representativos. Construir uma cidade, um Estado e um país
progressistas, incentivando a grande produção e o desenvolvimento industrial é uma constante nos
discursos das classes hegemônicas.
A utilização constante desses termos requer do historiador a busca de suas origens. Segundo
LE GOFF o termo modernidade é lançado no século XIX por Baudelaire, difundido a essa época
pela arte e literatura e como uma forma de reação cultural às transformações em todos os aspectos
acaba se generalizando no século XX.
Dessa forma, a industrialização traz em seu bojo a modernidade que ao mesmo tempo busca
empreender grandes projetos de transformação na esfera da auto-reprodução do capital, mas traz
também um processo de exclusão, colocando à margem a maioria da sociedade, que não participa
dos benefícios desse projeto. O que é mais intenso em países como o Brasil.
O novo assume aqui o papel preponderante. Para LE GOFF, a modernidade ou modernismo
é a tomada de consciência das rupturas com o passado e simultaneamente a vontade coletiva de as
assumir. Assim, o novo está sempre substituindo o velho, que aparece sempre como uma ruína
necessária de destruição.
A construção de ferrovias, por onde elas passaram, trouxe consigo essa idéia do novo, em
substituição ao que se apresentara como antigo. De maneira lenta e permeada de contradições a
ferrovia ia convivendo e, muitas vezes substituindo as longas e penosas viagens feitas a cavalo, em
lombo de burro ou em carros de boi. As tropas e boiadas vão dando lugar ao cenário das estações e
linhas ferroviárias, a natureza vai sendo “invadida” pela máquina.
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Dilma Andrade de Paula escreve sobre a história ferroviária no Brasil destacando os
contrastes apresentados pelo Brasil moderno. Segundo a autora, isso de um lado estava ...que havia
de mais atual em termos de associação do capital financeiro, as sociedades por ações e, de outro
lado, como a outra face da moeda, o trabalho escravo e toda lógica de funcionamento de uma
sociedade escravista. (PAULA, 2000:39)
A expansão ferroviária se dá para garantir o melhor escoamento da produção cafeeira, mas
também como forma de integrar os sertões brasileiros ao centro político e econômico, o Sudeste do
país, e garantir a realização do projeto de nação, vislumbrado pelas elites brasileiras, já que
...tornar a nova nação parte da civilização, ao lado das demais nações ‘civilizadas’, foi uma
preocupação marcante do pensamento sobre o Brasil no século XIX. (NAXARA, 1999: 2)
Assim, ao desenvolver um plano ferroviário havia, além da preocupação econômica, a de
melhorar as comunicações inter-regionais, permitindo a integração nacional e a centralização
político-administrativa, o que era fundamental para a manutenção da unidade nacional ameaçada
pelos movimentos rebeldes separatistas.
A construção ferroviária no Brasil, explica-se, assim, pela necessidade de expansão do
capital estrangeiro britânico, como forma de acumulação interna e por interesses políticos
nacionais. A história desse meio de transporte no cenário nacional é permeada de tensões e
contradições, por se iniciar inserida em uma sociedade escravista, respondendo aos anseios de
melhoria nos transportes de gêneros das frações agrárias dominantes e, em algumas regiões, pelo
fato da linha ser iniciada num momento de decadência da região para a qual estava sendo destinada.
O trem, um dos grandes símbolos da “modernidade” atravessa os sertões, trazendo consigo
um projeto de civilização, integrando estados interioranos aos grandes centros comerciais,
particularmente os Estados de São Paulo e Minas Gerais e transformando os lugares por onde
passava. Ressalta-se que, em Goiás, a ferrovia chega no início do século XX e, em 1896, atinge
como ponto final a cidade de Araguari, localizada no Triângulo Mineiro.
A construção da linha tronco de Formiga a Catalão passou por vários momentos de crise
econômica e política, sendo este trecho concluído somente na década de 1940. Por estes motivos a
primeira linha a ser concluída foi a que partiu de Araguari, objetivando atingir a cidade de Goiás,
capital deste Estado, como um prolongamento da Mogiana. Sua construção iniciou-se em 23 de
dezembro de 1909 e em quatro anos já havia atingido a Região conhecida como Roncador
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(município de Ipameri), ficando paralisada nesta região até 15 de julho de 1922, data da conclusão
dos serviços de construção da ponte sobre o rio Corumbá. Este trecho ligando Araguari e Roncador
incluía o ramal Goiandira a Catalão, de 23 km.
É nesse contexto que o trem chega à cidade de Ipameri, na região conhecida como
“Roncador”, este trecho permanece como ponto final da linha até o ano de 1922. O trem chega a
Ipameri e, além disso, a cidade é por nove anos o ponto final da linha. Com a chegada do trem
inicia-se o processo de urbanização na região Sul do Estado de Goiás e algumas cidades vão se
tornando significativos centros comerciais, enquanto outros iam surgindo. São exemplos disso as
cidades de Catalão, Goiandira, Ipameri e outras pertencentes à região Sul.
Além de buscar integrar nacionalmente o Brasil, a ferrovia serve como espécie de “condutor
da civilização”, símbolo da modernidade, que chega e acaba por transformar a paisagem urbana das
cidades ou mesmo criar núcleos populacionais que mais tarde adquirem estatuto de cidade. Por
onde passa acaba surgindo as primeiras fábricas, casas comerciais, bancárias, novos modelos de
construções, e outros artefatos da modernidade.
A representação da cidade de Ipameri como pioneira nesse processo de transformação das
cidades goianas do interior é comum nas imagens tecidas sobre o período, seja nos registros
escritos, seja na fala dos moradores locais. Assim, o caminho percorrido pelas linhas ferroviárias
trazia em seu bojo a prática de um projeto econômico de integração das regiões interioranas do país
ao sistema capitalista, mas também a concretização de um projeto de civilidade para o país pensado
no século XIX.
O Brasil do século XIX aparece nos escritos sobre este período com características
predominantemente agrárias e exportadoras, os símbolos mais visíveis da civilização também
deveriam estar associados à produção agrária. Segundo NAXARA: As vias férreas, as novidades
em termos dos implementos técnicos agrícolas, a movimentação financeira, e mesmo a própria
dinamização do urbano, naquilo que ele tem de mais civilizado. (NAXARA, 1999:09)
Assim, embora a modernização, particularmente a técnica, tenha sido introduzida no campo,
ele vai permanecer, ao menos no imaginário, como lugar do atraso. Daí a necessidade do
desenvolvimento de um projeto que dê uma cara de urbana, particularmente para as cidades
interioranas, que tinham um aspecto predominantemente rural.
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No caso de Ipameri essa questão é ainda mais evidente: seria necessário com a chegada dos
trilhos “construir a cidade”, torná-la urbana transformando o aspecto rural, dado pelos modelos das
casas e estilo de vida das pessoas, em aspecto urbano. Havia, ao menos em nível de discurso a
necessidade dessa construção. No campo do imaginário cria-se um momento de ruptura entre
Ipameri (parte do sertão), o “antes da Ferrovia”, e Ipameri urbana, o “depois da ferrovia”.
A imagem dominante de Ipameri-sertão está presente também nos jornais, que enfatizam o
fato da cidade, apesar de suas características rurais, conviver com o desenvolvimento de símbolos
da modernidade. Nos dizeres dos jornais: Ipameri é uma cidade feliz. Na sua pacatez de pequeno
lugar sertanejo oferece-nos, entretanto, às vezes, espetáculos de invulgar imponência. Espetáculos
que, presenciando-os, não podemos deixar de sentir, tocados de um entusiasmo mal contido,
percorrer-nos o corpo atingindo até a alma, um arrepio mágico de satisfação e orgulho.128
A imprensa local investe-se nesse momento num discurso que busca a glorificação da
cidade. Estão presentes nestes discursos sentimentos como o orgulho, a magia, o entusiasmo mal
contido que toca o corpo e atinge a alma. Os sentimentos despertados reforçam a idéia de que o
impacto econômico e cultural causado com a chegada da Ferrovia fora intenso. As palavras não
conseguem dar a dimensão das transformações. Por onde o trem passa criam-se espetáculos, um
clima de magia permeia os discursos.
A ferrovia significou para o Estado de Goiás a possibilidade de deixar de ser visto como
sertão. E, embora as mudanças ocorressem lentamente, a ferrovia acaba sendo um dos fatores mais
expressivos para a “aceleração do processo de mudanças em todos os níveis da sociedade”.
(BORGES, 1990:88).
Todo o contexto vivido pelo Estado de Goiás no período que antecede a chegada da ferrovia
em Ipameri pode ser apreendido na leitura dos grandes escritores “regionalistas” goianos, que
escrevem sobre o período, como Hugo de Carvalho Ramos, de modo particular em Tropas e
Boiadas, Carmo Bernardes, Bernardo Elis, que caracterizam o Estado como sendo este Sertão.
Apontam para a existência de algumas cidades semelhantes às descritas por NAXARA, que passam
pelo processo de urbanização com a chegada da Estrada de Ferro Goiás.
128
Jornal O Ipameri, de 19 de maio de 1929. Este artigo foi escrito por ocasião da comemoração do aniversário
do 6º Batalhão de Caçadores, inaugurado em Ipameri, em 1922.
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Com a chegada dos trilhos à região Sul do Estado de Goiás esse projeto começa a ser
colocado em prática, iniciando-se um processo de urbanização. Apesar das transformações em
curso não houve mudança significativa no dia a dia das pessoas, que
continuam a ter sua vida em função do campo ou de um pequeno e simples comércio,
principalmente no que se refere aos antigos moradores da cidade. O que há de novo para
essas pessoas é o espaço da estação e o convívio com novos moradores. BORGES enfatiza que:
...algumas cidades se modernizaram e novos centros urbanos surgiram.
O movimento migratório iniciado no século passado se intensificou com
a melhoria dos meios de transporte. A terra, em algumas regiões do
Estado, se valorizou na medida em que a Estrada de Ferro incrementava
a produção de uma renda diferencial, desenvolvendo, inclusive, na
região da estrada de ferro, uma certa especulação fundiária.(BORGES,
1990:87)
Logo, as primeiras décadas do século XX são marcadas por transformações significativas
no Estado, o que não chega a alterar radicalmente e nem a quebrar o ritmo de sertão vivido naquele
momento, mas parece ter se constituído como um período de euforia e expectativa, de modo
particular nas cidades cortadas pelos trilhos, como é o caso de Ipameri.
Esse ritmo de sertão se assemelha com o descrito por Monteiro Lobato em Cidades Mortas.
Nas cidades do interior de Goiás, no início do século XX, as pessoas vivem “na mesmice do dia a
dia”, o curso do tempo corre interrompido pelo badalar do sino da igreja, pelo estalar das palmas do
“compadre” para uma visita, e sobretudo pelo apito do trem, que se constituía como a grande
novidade.
As notícias do mundo chegam pelo trem, através do telégrafo ou pelos jornais locais, aos
quais têm acesso uma pequena parte da sociedade que forma a aristocracia intelectual da cidade,
“os que sabem”. A cidade é abandonada por seus filhos atraídos por terras novas, em busca de
estudo, do diploma de “doutor” e os que ficam pertencem às gerações mais velhas, ou são
desprovidos economicamente e não têm disponibilidade de recursos para sair para outras
localidades para estudar.
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Neste sentido, mesmo com todo o dinamismo, representado pelas interpretações acerca
deste período, a cidade de Ipameri apesar de passar por um processo de transformação não tem o
ritmo de sertão quebrado. Lobato descreve os habitantes dessas cidades como
...“mesmeiros”, que todos os dias fazem as mesmas coisas, dormem o
mesmo sono, sonham os mesmos sonhos, comem as mesmas comidas,
comentam os mesmos assuntos, esperamo mesmo correio (...) lamuriam
do presente e pitam longos cigarrões de palha, matadores do tempo.
(LOBATO, 2004:26)
Está presente a idéia do novo, a chegada do trem, do movimento, mas é possível perceber
nas narrativas de quem vivem em Ipameri, no início do século XX, que o curso de vida da maioria
dos habitantes locais não fora de tudo substituído pelos hábitos modernos. As pessoas permanecem
com suas crenças, com suas manias. Entre a mesmice do dia a dia, estava presente a politicagem, as
moças esperando na janela, e também a tentativa de alcançar o progresso, oriundo da chegada da
ferrovia.
Ao falar de uma continuidade, da permanência do ritmo de sertão, não quero dizer que tudo
permaneceu como era, mas que não houve mudanças radicais nas mesmas proporções das
comentadas pelo senso comum, que fala de Ipameri como se este período (primeiras décadas do
século XX) fosse um exemplo e a materialização da modernidade e progresso no sertão goiano.
Num primeiro momento, nos jornais contemporâneos do início do século XX o termo “sala de
visitas” é utilizado, ainda que de forma inconsciente para apagar a imagem de sertão presente nas
narrativas dos viajantes europeus, que se valem da
imagem do homem sertanejo, o caipira, atrelada ao ócio, ao referirem-se ao homem goiano, em
seus relatos de viagem ao Estado de Goiás.
Num segundo momento, nos registros memorialísticos, o termo “sala de visitas” é utilizado
como um modelo para se projetar o futuro. Busca-se a criação de expectativas em relação ao futuro,
já que a cidade passa por um momento de “decadência” com a quase extinção do tráfego
ferroviário e a valorização das rodovias como meio mais rápido de transporte, além da construção
de Goiânia, capital de Goiás, e de Brasília, capital do Distrito Federal.
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Esse autores buscam construir para Ipameri uma imagem que lhe confira unidade e
identidade e que seja capaz de projetar para a cidade um futuro promissor. O tempo do antes da
ferrovia deveria ser esquecido, assim como período de “decadência”, para dar lugar a um tempo
novo, o do progresso e desenvolvimento. Pode-se dizer que é justamente da imagem do Jeca, que
além de tudo mora num lugar sertanejo que a elite local busca “esquecer”, ainda que isto não
apareça explicitamente formulada de forma consciente. Nos dizeres de SEIXAS:
As figuras do esquecimento e da denegação plasmam e efetivam
imagens racionais, sem dúvida, mas também passionais, que fazem
aparecer ‘dimensões universais e uma configuração única.’ Razão e
afetividade, voluntário e involuntário, intelecto e imaginação, cálculos e
automatismos constituem, portanto, combinações imprescindíveis que
não podem ser desconsideradas na compreensão do político e seu
exercício.(SEIXAS,2002:137)
Voltando à questão das transformações advindas da chegada da ferrovia é possível dizer que
a população do Estado aumenta consideravelmente. O censo de 1.900 aponta Goiás com 255.284
habitantes; e o de 1920, com 511.919. Mais do dobro em 20 anos, sendo a região mais povoada a
sudeste. Catalão, com 35 mil habitantes, se apresenta como o maior município de Goiás em número
populacional, em 1920. A pecuária continua a principal atividade econômica, conhecendo, porém,
novas formas, como a seleção de melhores raças, resultante da importação de reprodutores do
rebanho, aumento das exportações, para os grandes centros do país, principalmente São Paulo e Rio
de Janeiro com a implantação das charqueadas. Da mesma forma, a agricultura também passa por
um lento processo de organização em bases capitalistas, resultante principalmente da cultura do
arroz, desenvolvida mais eficientemente na região Sul do Estado. Em 1920, Goiás se destacou
como o quarto maior produtor nacional desse produto.
Nos municípios de Catalão e Ipameri, localizados nesta região e servidos pela Estrada de
Ferro Mogiana, concentrava-se a maior produção do Estado, com cerca de 20 mil toneladas,
correspondente a aproximadamente 50% da produção total do Estado. Acrescenta-se, ainda, a
produção do milho e da cana-de-açúcar, em proporções bem menores. Tal região destacou-se
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também quanto à valorização das terras, processo que se efetiva por sua localização próxima à
ferrovia, único meio de transporte considerado “moderno”. Por este motivo, na região Sul do
Estado a especulação fundiária foi mais ampla.
em Ipameri vendia-se um alqueire de mata em 1915, a 50$000. Com as
transformações da economia agrícola do município e o aumento da
imigração, a terra da mata própria para cultura era, em 1920, vendida até
300$000 o alqueire, valorizando-se, assim, 600 % em apenas cinco
anos.(BORGES, 1990:98).
As cidades goianas servidas pelas linhas, neste período, acabam se tornando significativos
centros comerciais do Estado. Em 1920 Ipameri contava com 330 estrangeiros, dedicando-se estes
às atividades dos setores secundário e terciário, as charqueadas, as fábricas de banhas e as grandes
máquinas de beneficiamento de arroz, comércio varejista e ambulante, além da mão de obra
qualificada para o trabalho na Companhia Construtora da Estrada de Ferro. Esses estrangeiros
vinham da Europa, de países como a Espanha, Síria, Líbano, Alemanha e outros.
Ao lado dessas transformações econômicas, outros aspectos da vida social, política e
cultural começam a serem alterados, passando essas cidades por um processo de urbanização. Em
Ipameri os primeiros indícios da urbanização chegam com a construção da primeira usina
hidroelétrica de Goiás, em maio de 1913, inaugurada antes mesmo da E.F. Goiás, que teve sua
inauguração no dia 10 de novembro de 1913. O primeiro cinema é instalado em 1915. No mesmo
ano inaugura-se a primeira charqueada.
Segue-se o curso das inaugurações: em 1914 o primeiro automóvel e, no mesmo ano o
‘serviço público de Telefones’. É fundado em 1917 o primeiro jornal O Pivor, em 1918 a loja
maçônica Paz e Amor. Forma-se em 1919 a primeira equipe de futebol e é fundada a “União
Esportiva Ipamerina”. Em 1920 inicia-se os serviços de abaulamento de ruas com sarjetas e meiofios.
Em 1921 é instalada a Primeira Agência do Banco do Brasil em Goiás. Entre outros são
considerados marcos importantes: a transferência do 6º Batalhão de Caçadores, em 1922; o jardim
e o coreto da Praça da Liberdade, em 1923; o Colégio Olavo Bilac, em 1927; a Casa de Saúde
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Santa Terezinha, em 1927; o Grêmio Espírita “Paz e Fraternidade”, em 1928; o primeiro grupo
escolar de Ipameri, em 1929. Essas primeiras escolas deram origem a outras como o Ginásio
Municipal (atual CEPEM) em 1933 e o Colégio e Escola Normal “Nossa Senhora Aparecida”, em
1936.
A década de 1930 assiste ainda à construção da Igreja Matriz do Divino Espírito Santo, em
1938. A exemplo dessas três décadas a cidade continua assistindo às inaugurações durante toda a
década de 1940 e de 1950, passando nas décadas seguintes a um processo inverso, o de fechamento
das casas comerciais e bancárias e a mudança de várias famílias para cidades próximas,
principalmente com a construção da estrada de rodagem “BR 050” que liga Belém-Pará a BrasíliaDF. Em termos econômicos, a cidade passa por um período que é percebido e por todos
representado como sendo de “decadência”.129
O trem que corta campos e cidades no mundo todo chega a Ipameri pela E.F. Goiás,
surpreende os habitantes que se vêem diante de novas possibilidades, transforma e passa “ao
imaginário como fantasmas”. Assim, o que num instante fora o “o espetáculo privilegiado da
civilização capitalista” não o é mais. O trem, símbolo do progresso, deixa para trás as ruínas de
uma cidade, que transformada se vê sem chão, a cidade virada pelo avesso, sentindo apenas a
vertigem do vazio, pois o trem e todas as significações que o compõe não fazem mais parte do
cenário real.
Segundo Hardman, a chegada do trem deixou marcas novas, criou novas sensibilidades, que
convivem com as antigas e partiu deixando as suas marcas, suscitando inquietações e lembranças,
constituindo-se como tema atual das rememorações. Entender o que significou o trem para o sertão
goiano implica embarcar numa longa viagem.
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129
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A REVOLUÇÃO FOI BRASILEIRA E O IMAGINÁRIO: GAUCHO130
Isabella Nogueira131
Ms.Simone Cristina Schmaltz132
A questão da construção histórica de uma identidade rio-grandense a partir da
Revolução Farroupilha e sua influência, debates históricos ocorrem até os dias de hoje,
sobressaindo à ideia da "vocação brasileira" constante no texto de Sandra Jatahy Pesavento
Fibra de gaúcho, tche! que será analisado aqui. Essa abordagem é nascente dos estudos da
Historia Cultural e tem como enfoque de analise as representações sociais, a força simbólica
das palavras e imagens, criando reinterpretações e dando outras construções ao efeito do real.
Falaremos do imaginário que constitui a identidade rio-grandense, isto é, a ideia do "gaúcho",
segundo a autora Pesavento. Até entendermos segundo tal abordagem porque a "Revolução
foi brasileira e o imaginário: gaúcho".
Sandra Jatahy Pesavento(1946-2009) foi uma importante estudiosa rio-grandense que
desenvolveu sua pesquisa sobre História Cultural. Entre seus estudos constam questões
envolvendo a Revolução Farroupilha (1835-1845), aonde ela produzindo inúmeros textos
sobre tal temática.
Em seu livro História e História Cultural (2003), a autora diz: "a História Cultural se
torna, assim, uma representação, que se incube de construir uma representação sobre o já
representado"(p.43) portanto o jeito da autora pensar na escrita da história se contrapõe a ideia
de relatar fatos com uma conotação de verdades absolutas e totalitárias, assim como era
proposto pelo cientificismo. Entre as mudanças epistemológicas a caminho, acompanha a
ideia de representação o imaginário.
130
Tema retirado da iniciação cientifica de graduação. De forma a incrementar a minha pesquisa. Trabalho ainda
em andamento. Projeto Trajetórias, Itinerários e Tramas: histórias de vida e narrativas políticas. Orientação:
Profª. Drª Maria Cristina Nunes Ferreira Neto, atualmente é professora adjunto da Pontifícia Universidade
Católica de Goiás (PUC GO), no Mestrado de História, nos cursos de graduação de História, Relações
Internacionais e Design.
131
Graduanda em História pela Universidade Católica de Goiás.
132
Co-orientadora.
150
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Para a autora imaginário será "um sistema de ideias e imagens de representação
coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo."
(PESAVENTO;43). É a construção de um mundo paralelo de sinais que se constrói sobre a
realidade para conferir um sentido, aonde essa construção é social e histórica.
A autora utiliza o pensamento de Bronislaw Baczko(apud, PESAVENTO, 2003; p.43)
e sobre o imaginário, aponta que:
Essa construção de sentido é ampla uma vez que se expressa por
palavras/discursos/sons, por imagens, coisas, materialidade e por
praticas, ritos, performances. O imaginário comporta crenças, mitos,
ideologias, conceitos, valores, é construtor de identidades e exclusões,
hierarquiza, divide, aponta semelhanças e diferenças no social. Ele é
um saber-fazer que organiza o mundo, produzindo a coesão ou o
conflito.
Outro autor utilizado por Pesavento é Cornelius Castoriadis, o qual confere ao
imaginário um sentido ontológico e acrescenta que para além de sua dimensão histórica este é
uma capacidade humana que forma "um espécie de magma de sentido ou energia
criadora"(PESAVENTO;44). Le Goff acrescenta que tudo aquilo que consideramos realidade
na verdade é o nosso próprio imaginário, porque este abrange todo o campo da experiência
humana.
Loiva Otero Félix(1998) aponta que não podemos considerar que o real e o imaginário
sejam contrapostos ou antagônicos, ao contrario, são unidos simbolicamente na medida em
que o real pressupõe o imaginário. O mesmo autor nos traz a fala de Pierre Ansart, a qual fala
possibilitará entender o porque falar de imaginário para a questão indentitária rio-grandense.
Toda sociedade cria um conjunto coordenado de representações, um
imaginário através do qual ela se reproduz e que designa em particular
o grupo a ele próprio, distribui identidades e papeis, expressa as
necessidades coletivas e os fins a alcançar. Tanto as sociedades
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modernas, como as sociedades sem escrita produzem estes
imaginários sociais, esses sistemas de representação, através dos quais
elas se autodesignam, fixam simbolicamente suas normas e valores.
(ANSART:1993, apud, FÈLIX, 1998).
O imaginário como vimos é um importante elemento para entendermos as relações que
tecem no social, este está inteiramente ligado ao real, mas este ultimo não dá a o imaginário
seu reflexo ou copia. Pois segundo Pesavento o imaginário remete tanto a coisas prosaicas ou
não do cotidiano da vida dos homens, mas também carrega utopias e elaborações mentais que
figuram ou pensam sobre as coisas que não existem. Portanto há um lado que remete a vida e
o outro ao sonho, os quais são construtores do real.
Nessa medida, na construção imaginaria do mundo, o imaginário é
capaz de substituir-se ao real concreto, como um seu outro lado, talvez
ainda mais real, pois é por ele e nele que as pessoas conduzem a sua
existência. (PESAVENTO: 48)
A Revolução Farroupilha foi um marco para a historia rio-grandense, foi a entrada do
Rio Grande do Sul nos livros didáticos, em discursos políticos nos centros de tradição.
Inicialmente chamada de província de São Pedro era um importante ponto estratégico para o
acesso ao Prata para o Império português. Fronteira com os castelhanos se tornou desde cedo
ponto de conflitos entre o Brasil e o mundo hispânico.
O Império português em 1680 fundou a Colônia de Sacramento em frente a Buenos
Aires. Ainda nessa época disputavam o gado deixado pelos jesuítas, o gado xucro ou
chimarrão, rebanho selvagem caçado no pampa. Para assegurarem seu poder a Coroa então
passou a conceder poderes amplos aos senhores de terra e gado, estimulando o crescimento de
grandes estâncias no decorrer do século XVIII. Estes estanceiros então defendiam as terras e
demarcavam a fronteira.
Com a independência houve uma modificação dos papeis, o sul segundo seus
habitantes era explorado pelo centro, tornando-a praticamente uma sua "colônia",
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denunciavam: a centralização político-administrativa, as altas taxas para a Coroa e a taxação
do charque gaúcho. Havia também uma desvalorização militar da província, porque foram
responsabilizados os homens da perda da Província Cisplatina em 1828.
Inconformados, os senhores locais junto a seus homens declararam guerra, e em 20 de
setembro de 1835, proclamam a Republica Rio-grandense, se dará inicio a mais longa
revolução regencial brasileira. Que queria reivindicar seus direitos.
O líder do movimento revolucionário farroupilha foi o famoso Bento Gonçalves da
Silva, um importante estanceiro do Rio Grande do Sul, o qual também tinha propriedades nas
terras do Uruguai, influente em ambos os território era de origens espanholas e se tornou
Presidente da Republica Rio-Grandense apenas foi proclamada na sua capital Piratini, mesmo
se na época foi capturado e preso pelos imperiais e se encontrava na Bahia, só em 1837
conseguira fugir a nado com a ajuda da maçonaria, retornando ao sul.
Pela sua criação de símbolos característicos, como por exemplo, a bandeira e o hino,
essas ações mais do que históricas se tornaram segundo Pesavento, "atemporais, eternas,
imutáveis,
porque
integrantes
de
uma
identidade
regional
altamente
agregadora"(PESAVENTO:2003;43). A ideia do justo e sua forte narrativa autônoma deram
ingredientes para a construção de um "mito das origens". Isso perpassou a história através da
memória, constituída pela oralidade e demarcada pela escrita. Estava além da ideia de uma
maneira de ser. Segundo a mesma autora "são episódios contados e recontados de pais para
filhos desde o final do conflito"(p.44).
Ficou no espírito rio-grandense desde então um "destino manifesto: o de lutar pelas
boas causas, sempre alerta, tal como já fora o bravo sentinela da fronteira"(PESAVENTO;45).
O que interessa são as causas justas e não para quem se deve lutar, talvez isso seja também a
herança de uma mistura de nacionalidades no meio farroupilha, haviam mesmo italianos,
franceses, uruguaios, norte-americanos, ingleses. Vale apena ressaltar que mesmo sendo
acolhedores e simpáticos, que entre os rio-grandenses, principalmente na elite, existia
preconceito com os estrangeiros como também um grande cuidado. Mas isso é para dizer que
sempre ao longo da historia, isto é, após a revolução, sempre se posicionaram pelas lutas
brasileiras.
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Segundo a autora a resposta à pergunta "qual a relação que se estabelecera desde a
Revolução Farroupilha entre o todo e a parte, a nação e a região?", está na relação da história
com o imaginário, não existe "ninguém tão brasileiro quanto o gaúcho", pois ele escolheu ser
brasileiro, na revolução poderia ter se aliado com as republicas do Prata, mas não o fez, e
podemos pensar que eles já haviam se apropriado da imagem do gaúcho portanto deixar o
Brasil definitivamente não iria ter sido muito difícil.
Para entendermos mais, o autor Lindolfo Collor(1977), defende a ideia de que o
objetivo da revolução nunca foi a favor realmente de uma republica e o autor Raymundo
Faoro(2001, apud, CARTA, 2013) destaca que a ideia de separatismo não passava de uma
tática, se queria na verdade uma autonomia local por parte do governo central, uma federação.
Ao longo do tempo se proclamou Republica e separação, mas segundo estes autores, esta
proclamação não passava de um modo de tentarem ter seus privilégios de volta.
Pode surgir em nossas concepções, o fato de que se torna um equilíbrio instável ser
gaúcho e brasileiro ao mesmo tempo. Vale destacar que a imagem de gaúcho apropriada pelos
senhores de terras era um pouco diferente do que era o verdadeiro gaúcho dos Pampas. Pois,
partimos do pressuposto do modo de vida, os senhores só no inicio da guerra começaram a
ser, por exemplo, nômades. Podemos pensar a aqueles homens "livres", estes estavam mais
próximos do que eram os gaúchos, quase sempre associados a aqueles argentinos e uruguaios.
O que estava em jogo segundo Pesavento era o "respeito e reconhecimento pelo "todo", dos
valores e direitos da "parte", num ajuste de identidades permanentes entre a região e a nação”
(p. 45-46). Mas porque gaúcho?
Os gaúchos foram, para termos ideia sempre e por todos considerados de modo
pejorativo, o autor Gianni Carta detalha dizendo, como se fossem "vira-latas". Espanhóis,
criollos e também pera a elite rio-grandense, esses homens eram fora da lei, aliás Carta
falando da obra de Domingo Faustino Sarmiento(1811-1888) destaca que, segundo esse autor
os gaúchos se destacavam em quatro categorias, entre as duas melhores havia o rastreador e o
cantor, e os piores eram os vaqueanos e principalmente os malo.
Gaúchos portanto eram aqueles que trabalhavam para proprietários rurais ou eram
"fora da lei", roubavam gados e recorriam a violência. Carta comparando-os aos caubóis
norte-americanos os descreve assim:
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Passavam os dias sobre a sela do cavalo, tinham poucas posses,
dormiam relento, em redes, em casebres de barro ou sapé ou em
taperas abandonadas. Os trajes mais típicos eram os ponchos de lã, os
chiripas - panos grossos enrolados na cintura como saia ou passados
no meio das pernas como um fraldão - e, mais tarde, as bombachas,
mais confortáveis para montar. Usavam botas ditas de garrão ou de
cano alto. Tinham seus facões, que serviam para a defesa, para carnear
animais e comer asados(em espanhol) ou churrascos (no Brasil).
Caubóis e gaúchos eram peritos no uso do laço, nos rodeios de
marcação, sendo que os últimos eram peritos também no uso das
boleadeiras, arma de caça e defesa herdada dos índios da
região.(CARTA:2013;75-76)
Havia, no entanto uma admiração por parte de muitos enquanto a sua coragem,
resistência, disposição e força. Sarmiento de forma leve e entrelinhas ressalta essa admiração
pelos gaúchos, mas considera-os o atraso do latino-americano.
O outro, segundo Pesavento era para o rio-grandense, de forma quase lógica, o do
outro lado da fronteira, os quais se tornaram gaúchos malos133 pelos azares da guerra, "mas
parceiros nas lides da paz e no cotidiano de um modo de ser"(p.46). Ela ainda acrescenta:
De alguma forma, estes "outros" acabam sendo os "mesmos", a
partilharem uma cultura fronteiriça, comungando valores e praticas de
um passado mítico: bravura, honra, justiça. Ou em bom castelhano:
sobranceria.
Vemos então porque se consolidou entre os rio-grandenses o apelido gaúcho, como os
chamamos até os dias de hoje. Há ainda entre eles um imaginário repassado ao longo da
133
Fora da lei, intruso, misantropo, aqueles a parte da sociedade.
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história, atingindo o coletivo ainda que de forma inconsciente, mas que este retrabalha sempre
o consciente tornando-os ciosos de suas tradições regionais. São brasileiros mas originais e
tradicionais de seu passado memorável.
Existe a criação de Centro de Tradições Gaúchas, os "CGTs 35", "suas atividades
cobrem o campo educativo, que tem recreação e integração social, desde as danças típicas
gaúchas, como balaio, chula, fandango, até palestras de cunho popular e erudito, passando por
provas campeiras de laço e boleadeiras, tudo acompanhado em intermináveis rodas de
chimarrão."(PESAVENTO; 46)
Essa tendência vai se contrapor a que na primeira metade do século XX se discutia,
através dos seis volumes feitos pelo historiados gaúcho Alfredo Varela, Historia da Grande
Revolução (1933),
que com sua linguagem poética e dando um sentido epopeico ao
acontecimento declara que a Revolução Farroupilha se integra ao ciclo platino, acentuando o
caráter separatista do movimento.
Já essa tese apresentada pela Pesavento, foi tomando formato com o historiador
também gaúcho J.P. Coelho de Souza, na sua obra O sentido e o espírito da Revolução
Farroupilha (1944), que dá ênfase ao caráter federalista da revolta e de integração ao Brasil.
Por isso Pesavento fala em "vocação brasileira" aonde ela destaca que essa concepção
se tornou realmente vitoriosa, e não por acaso, quando o gaúcho Getúlio Vargas, no inicio dos
anos 40 governava o Brasil. Bom se isso realmente interfere, já faz parte de outro trabalho.
Como considerações provisórias, vê-se então como a história é caracterizada de
representações, e como um só movimento adquire varias interpretações. Através da analise
feita deparamos então com a ideia de porque o rio-grandense nunca realmente se separou do
Brasil, até quando proclamou sua separação, porque sua economia ainda dependia da Coroa.
Mas não foi só isso, ele se sentia brasileiro, mas com sua diferença e autonomia ou liberdade.
Havia e há em sua essência algo de gaúcho, forma de se diferenciar do que eram os
portugueses que constituíram o Brasil e também pela sua proximidade geográfica e clima do
Prata e principalmente pelos seu caráter altamente justo, honroso e corajoso.
Referências Bibliográficas
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VIOLÊNCIA E RELIGIOSIDADE EM CATALÃO-GO
Jaciely Soares da Silva
A cidade de Catalão-GO no século passado foi testemunha de um crime que não
permaneceu apenas nos arquivos públicos da cidade, ganhou espaço e valor na memória e na
história da sociedade. Seu enredo se dá em meados do século XIX em um contexto de
violência, hegemonia de grupos sociais ricos e de concorrência política. Foram,
necessariamente, por esses três caminhos que a história, a memória e as representações em
torno da morte de Antero da Costa Carvalho perpassaram. Essa trajetória permitiu que sua
imagem de homem fosse, a partir da flagelação da qual fora vítima, elevada à categoria de
santo popular da cidade.
Antero começa a fazer parte da história, da memória e do imaginário religioso de
Catalão quando na década de 1930 foi porto violentamente por jagunços e alguns populares
da cidade. Pouco se sabe sobre sua a vida. Antero não era nascido em Catalão, residindo na
cidade apenas três anos antes do linchamento o qual foi submetido. De acordo com Jornais e
relatos orais, Antero exercia a profissão de farmacêutico prático na cidade, - ofício comum
para época, boa parte das pessoas que exerciam tal prática a teria adquirido por meio de
experiências cotidianas, sem, contudo, terem passado por uma instituição formal –, era
também jornalista e poeta. Era procedente da cidade de Jataí – GO, mudando-se ainda na
adolescência para Campo Grande – MT. À época de sua morte tinha a idade de 34 anos
(Diário de Catalão, 2009), informações essas reafirmada pela população contemporânea a sua
história.
Segundo o memorialista Cornélio Ramos (1997), Antero chegou em Catalão por
indicação de sua mulher de nome Amélia Nazar, de 41 anos de idade, natural da Síria, exmoradora de Catalão. Em princípio sua vinda se deu por ter adquirido em Campo Grande
problemas com alguns moradores e com a Justiça local. Ao chegar a Catalão se acomodou na
cidade sob a influência do grupo situacionista. Aos poucos foi conquistando espaço e
confiança dos moradores, logo a fama de bom farmacêutico cresceu, dando ao mesmo,
méritos e prestígio. “Seu nome começou a crescer passando naturalmente a empanar o brilho
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de outros, a constituir uma ameaça” (Diário Dito e Feito, 2002). Contudo, e de acordo com
Ramos (1997), a fama de homem bom e prestativo, em especial para as camadas
economicamente mais baixas da cidade, logo despertou inquietude por parte das famílias mais
tradicionais e alguns fazendeiros e políticos da local. Sendo ele, um grande adversários para
as futuras eleições municipais.
No ano de 1936 uma reviravolta ocorre na cidade, tendo como principais atores a
figura de Antero e de Albino Ferreira do Nascimento. Albino, fazendeiro conhecido na
cidade, de 78 anos de idade, casado pela segunda vez com uma jovem senhora foi assassinado
por emboscada próximo a sua fazenda denominada Pedra Preta, caminho que seguia para
chegar a sua casa na fazenda. O crime, que segundo relatos 134, ocorreu covardemente, abalou
toda a cidade, uma vez que, Albino era conhecido por todos, e por não ter, segundo a fala de
seu filho João Albino do nascimento, colhida durante o depoimento 135 contido no Processo
Criminal, “nenhum problema ou negócios mal resolvidos com ninguém”, sendo ele bem
quisto por toda a sociedade catalana.
Tal morte abalou de maneira significante toda a sociedade, onde populares,
amigos íntimos e os políticos se uniram na tentativa de encontrarem o mais breve possível o
assassino do fazendeiro. Todavia, Ramos assinala que as investigações em torno da morte de
Albino e posteriormente com o linchamento de Antero, denunciaram o quanto os instrumentos
policiais e judiciais eram frágeis em Catalão, com um emaranhado de pistas e suspeitos, os
quais se perdiam no ar.
Após alguns dias de investigação o primeiro suspeito apontado como autor do
crime foi o filho de Albino Felipe, fruto de seu primeiro casamento: João Albino. Como
justificativa para a indicação alegavam que o mesmo teria matado o pai por questões em
envolviam a divisão da herança. Este, foi preso pelas autoridades locais e, em busca de uma
confissão, foi torturado por três dias, contudo, nada puderam arrancar do suspeito. A segunda
indicação como mentor do crime recai, então, sobre Antero da Costa Carvalho, onde,
134
Tais informações foram colhidas durante o trabalho de campo desenvolvido durante os anos de 2010 a 2013,
para e escrita do trabalho de conclusão de curso, nível graduação, e escrita dissertativa para o mestrado.
135
Inquérito Policial. Delegacia de Polícia do Termo de Catalão. Estado de Goiás, (17 de junho de 1939).
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Havia uma coisa que favorecia [a] indicação do seu nome [Antero]: a
dívida que tinha para com o fazendeiro, a liberdade com que contava
para entrar e sair da estância, a amizade que devotava à família,
deliberadamente deturpada por pessoas maldosas, o fato de o invejado
poeta não possuir parente aqui; que se dispusesse a defendê-lo, ou
posteriormente pudesse reclamar justiça, seu relacionamento com
Chico Prateado, que era seu cobrador (1997, p. 106).
Ramos em seu livro memorialístico aponta mais duas possibilidades que
justificaria a ocorrência do crime cometido por Antero: a primeira é a de que Antero teria
contraído com Albino Felipe uma dívida de alta monta; a segunda, diz respeito a uma
possível traição da mulher de Albino Felipe com Antero. Este, por possuir um vínculo com o
fazendeiro possuía acesso à sua casa, onde teria conhecido sua esposa e por ela se apaixonado.
Ambos os relatos constituem um emaranhado de suposições, dúvidas e medos. Estes seriam
os principais motivos pelo qual, Antero fora acusado do crime e posteriormente morto.
Em busca de um culpado, a família de Albino manteve uma escolta formada por
jagunços e amigos a fim de prender o criminoso. Com o decorrer dos depoimentos, entre eles
dos filhos, esposa e amigos de Albino as acusações recaem sobre Antero, sendo este preso
com o jagunço Chico Prateado. Após alguns dias preso Antero não recebeu julgamento
formal, sua morte, foi decretada por jagunços e alguns populares orientados por fazendeiros
da região, os quais requeriam da justiça local que medidas fossem tomadas para que o sangue
do amigo fosse vingado. Já o jagunço que dividia cela com Antero, foi liberto e obrigado a
abandonar o município de Catalão. Tudo foi preparado para o extermínio de Antero. A cela
foi previamente aberta e Chico Prateado levado para fora do Estado (Diário de Catalão, 2009).
Antero foi mantido na cadeia local. Após certo período, os policiais não
conseguiram obter do suspeito a confissão, o que aparentemente irritou ainda mais parte dos
populares que almejava por justiça. A mando de seus chefes, jagunços tencionaram fazer
“justiça” com as próprias mãos e sem nenhuma resistência do suposto criminoso, ou mesmo
das autoridades locais, parte dos populares invadiram a cadeira e da cela Antero foi arrancado:
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Amarraram-lhe uma corda ao pescoço, ataram suas mãos e o levaram
pelas ruas aos empurrões e pontapés. Durante a caminhada, ele levou
inúmeras espetadas de faca pelo corpo. A intenção era fazê-lo sofrer
bastante, num sadismo abominável. (RAMOS, 1997, p. 107)
No dia 16 de agosto de 1936, Antero caiu morto após seu suplício. Percorreu parte
das ruas de Catalão, sem, que, alguma autoridade lhe socorresse. Sua morte foi comemorada
pelos jagunços com bebidas, acrobacias e gargalhadas. A festa varou a noite com tiros e
carreiras de cavalos pelas ruas da cidade.
É interessante ressaltarmos que o episódio da morte de Antero evidencia o
contexto na qual a cidade de Catalão estava imersa. A própria historiografia que toma o
passado de Catalão como seu tema atribui a mesma possuidora de uma passado marcado por
uma mancha de sangue, sendo considerada uma das cidades mais violentas da região, e
Antero se encontra como vítima desse período. Historiadores como Nasr Fayad Chaul assinala
que “crimes como o de Antero vinham contra o discurso de progresso e modernidade, que
implicavam civilidade e o fim da violência em todos os níveis, proferidos pelo movimento de
30” (1994, p.195).
Assim, Antero não se constitui como a única vítima desse período, outras pessoas
com diferentes motivos também morreram de forma trafica, contudo, o diferencial da morte
de Antero ocorre a partir dos caminhos que sua morte tomaram. De suposto criminoso e
forasteiro, Antero passa a ser concebido por parte da população local como santo no
imaginário religioso.
O episódio de sua morte nos remete, em princípio, a duas construções de critérios
de santificação no imaginário popular. O primeiro parte da própria Igreja Católica, em que
Santos e Santas a fim de manter seu propósito diante de Deus eram alvos das mais diversas
atrocidades e castigos; não se sujeitando ao que a sociedade os impunha. O segundo critério, a
imitação do Cristo sofredor, a figura máxima do Cristianismo. Segundo a analogia de Ramos
(1997) o caminho percorrido por Antero assemelha-se a via crúcis de Cristo, tecendo
narrativamente a comparação entre Antero e Cristo.
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Ramos ao fazer uso da narrativa e memória coletiva para a escrita de sua obra
tendo como tema o martírio de Antero segue por uma perspectiva de sofrimento, morte e
santificação, desenvolve uma escrita dando como mérito final a trágica morte de Antero e
elevação do mesmo, por parte da população, a condição de santo popular no imaginário
catalano.
A crença geral é de que o mártir santificou-se. São diárias as orações
em sua capelinha e no seu túmulo, presentemente bem cuidados por
populares que contam com os dedos da mão, um por um, os culpados
pelo massacre, todos eles castigados pela justiça divina (RAMOS,
1997, p. 109).
Tal como Ramos, a memorialista Maria das Dores Campos (1979) também ao
tratar sobre a história de Catalão, menciona Antero como mártir da cidade, enfatizando uma
história marcada pelo sobrenatural e pelo mistério, uma vez que atribui a Antero poderes
sobrenaturais. E tais mistérios são ainda mais acentuados quando, mesmo com toda a
crueldade a morte de Albino e de Antero nunca foram esclarecidas satisfatoriamente, bailando
sobre a cidade dúvidas, medos e silêncios em torno do caso. Questões essas que ainda na
atualidade provocam inquietações e tensões.
Diante disso, o caso da morte de Antero está nitidamente atravessada por questões
que giram em torno do uso e dos abusos da memória individual e coletiva como preservação e
manutenção da história sobre o caso e sobre a cidade de Catalão e, os caminhos que a história
tomou, chegando no presente com a construção de um santo local.
O caso de Antero segue a um emaranhado de mistério e mitos que ganhou ampla
dimensão no imaginário popular e, portanto, pode ser pensado a partir das considerações que
Burke (2010) assinala sobre cultura. Até hoje o crime é alvo de especulações e medos. Ainda
se questiona – aqueles que guardam na memória tal fato -, o que de tão importante Antero
insistentemente cogitou contar a João Albino, muitas especulações foram feitas a esse
respeito, todavia, nunca se chegou a uma conclusão.
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Entre as possíveis explicações, a que mais ganhou espaço e ‘voz’ na sociedade
catalana foi o fato de Antero atrair olhares de reprovação e ciúmes de determinadas lideranças
políticas da cidade, pois sua reputação de carismático e auxiliador do povo daria ao mesmo, a
chance, em curto prazo, de ser eleito como prefeito de Catalão. Aptidões estas, que logo
foram elevadas após sua morte. Assim, sua imagem de homem bom passou por um processo
de ressignificação, a ponto de o colocarem no panteão de intercessor entre o céu e a terro, ou
seja, entre o Divino e o homem.
Tais caminhos são trilhados dentro do universo da cultura popular, ganhando
espaço e valor na religiosidade local a qual se estabelece e se alimenta no imaginário popular.
Essa crenças religiosas dão vozes a narrativas embriagadas de vivências e experiências
particulares, ganhando força no cotidiano de dada sociedade.
Para Roger Chartier (1988), quando trilhamos o território da História Cultural
devemos perceber que o objeto de estudo é o homem e as imagens que esse constrói e
reconstrói ao longo de sua história e como as representa. Diante disso, o homem se constitui
parte importante de um conjunto de significados construídos e compartilhados, imerso a uma
teia, o que já seria a própria cultura. Seguindo este raciocínio, Geertz (1989) assinala que a
cultura deve ser vista como um objeto que pertencente ao público, ou seja que sai do
individual e ganha espaço no coletivo. Tal cultura constitui uma teia de significados, uma
“peça” que possui sentido e valor para aqueles que estão imersos nela. Cabe ao pesquisador,
com isso, mediante sua leitura, descrever de forma densa o que ele vê. E, mesmo que essas
significações sejam complexas, as mesmas estão interligadas uma a outra. Assim, a cultura
dever ser vista como um imenso mosaico, cada peça fundamental sendo complemento uma
para a outra.
Diante desses apontamentos podemos aqui assinalar que a santificação de Antero,
dentro do universo do religiosa e da cultura popular constitui uma peça fundamental para a
compreensão de dada sociedade, pensada não apenas em como ocorreu o crime, mas como a
população, dentro de suas estratégias constroem sentido as coisas e ao mundo. Entre esses
sentido podemos aqui mensurar os lugares que os devotos tomaram como sagrados e pontos
de encontro com o santo, que são, o túmulo e capela de Antero. Tais lugares carregam em si
não apenas a história de um crime, mas vestígios de uma história e de uma memória contada e
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recontada ao longo dos tempos, as quais passam cotidianamente por um processo de
modificações e (re) significações, carregadas de experiência e vivência de quem as conta.
Quando adentramos no universo da religiosidade popular devemos entender que
as crenças são herdeiras do cristianismo português, o qual insere-se no Brasil com um novo
corpo e uma nova dinâmica, passando por um processo de adaptação a realidade brasileira.
São devoções que percorrem a imaginação popular, com um caráter próprio e particular de
prática e significado do sagrado. Como característica, as religiões populares reconhecem e
atribuem a pessoas ‘comuns’, ou, aquelas que não se inserem no padrão canônico de
santificação, a imagem de santo.
Machado (2007) ao tratar sobre questões acerca da religiosidade popular propõe
que, a religiosidade no Brasil contemporâneo dever ser concebida a partir da dinâmica
existente entre o deslocamento de práticas culturais populares do mundo rural para o urbano,
fato este agravado no Brasil a partir da década de 1950, momento em que, em busca da
modernização houve um significativo êxodo rural para a zona urbana.
Neste cenário, crenças e tecnologias dialogam no enfrentamento entre
tradição e modernidade, instituindo novos investimentos estéticos,
rítmicos, perfomáticos, imagnéticos e poéticos. Novos personagens
também se encenam ao lado daqueles que trazem na lembrança suas
práticas culturais (p. 2).
Assim sendo, o catolicismo popular possui em seu formato permanências e
recriações das práticas de sociabilidade rurais no espaço urbano. Os santos populares compõe
o conjunto dessa relação, inseridos num âmbito local ou regional, respondem as necessidades
e vivências dos sujeitos que compartilham o mesmo local e cidades circunvizinhas, tal como a
santidade popular de Antero.
A devoção aos santos populares se difere da devoção institucionalizada, mesmo
que essa última seja tomada como exemplar pela primeira. Seu alicerce é mais amplo, pois
práticas, manifestações e objetos de devoção não seguem a uma única forma, essas se inserem
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na dinâmica da cultura popular como uma das possíveis maneiras de diferentes classes ou
segmentos sociais se representarem e deixarem suas experiências e vivências.
Ao analisar sobre a dimensão da cultura, Peter Burke na tentativa de definir o que
é cultura e o que é popular, apresenta-nos, numprimeiro momento, que cultura se constitui
como sendo “um sistema de significados, atitudes e valores partilhados” (2010, p.11); já a
cultura popular como uma cultura não oficial, pertencente a não elite, abordagem essa
também realizada por CHARTIER (2010). Por essas considerações, Irene Van den Berg Silva
aponta que,
O culto aos santos locais, portanto, pode ser lido, conceitualmente, a
partir da noção de popular por estar enraizado enquanto experiência
social situada numa classe (classes populares), por ter seu
funcionamento regulado a partir de dispositivos mentais ligados a essa
classe (mentalidade popular) e por operar sua dinâmica a partir de
movimentos que se confrontam a uma estrutura dominante, mesmo
que esse processo não seja racionalmente pensado de maneira
intencional (oposição cultural e política) (2010, p.39).
Retomando as análises de Burke acerca do assunto, o mesmo ainda nos diz que a
cultura popular se dá na medida em que os indivíduos inventam e produzem inovações ou
variações. É o indivíduo, e não outro, que “determina” o que será imitado e, assim, fazer parte
do coletivo, “É nesse sentido (à parte o estímulo que dão durante a apresentação) que o povo
participa na criação e transformação da cultura popular” (2010, p.161).
Neste viés, a religiosidade popular rompe com a fronteira estabelecida pela
religiosidade institucionalizada, estabelecendo uma manifestação de devoção múltipla e
diversificada, “Essas práticas populares trapaceiam com a realidade, produzem novos valores
e concepções, mantêm um diálogo contínuo entre as categorias do passado e do presente”
(MACHADO, 2007, p.3). É por esse fio condutor que é possível perceber as mudanças, em
conjunto com as novas formas de culto popular de manifestações múltiplas e diversificadas no
Túmulo de Antero.
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Como já pontuado anteriormente, Antero é reconhecido por parte dos moradores
de Catalão como intercessor entre o homem e o Divino, e/ou a vida terrena e o mundo
espiritual. A particularidade de ‘culto’ ao ‘santo’ Antero é declarada em seu Túmulo, local em
que devotos se encontram com o “santo’ para ali deixam suas expressões de fé e de
religiosidade.
O túmulo de Antero localizado no Cemitério Municipal de Catalão se distingue
dos demais, pois, cotidianamente e, intensificado durante o Dia dos Finados, existe uma
movimentação de devotos no local. Ali, pedidos de graças e agradecimentos são feitos,
orações são realizadas silenciosamente. É possível também ouvir a repercussão do episódio
contada e recontada através de uma divulgação oral e informal por sujeitos que frequentam o
local.
É interessante notarmos que a história da religiosidade no Brasil, carrega em si
uma herança do catolicismo português, com características de devoção e comemoração aos
santos. Todavia, podemos aqui dizer, que o catolicismo quando pensado na cultura popular,
passou por novas roupagens, adaptações e modos individuais de se cultuar, ela se apresenta
sob diferentes formas e expressões, como: as procissões, as romarias, as congadas, as folias,
as benzeções e diversas outras manifestações de cunho religioso (CORREA, 2004).
Assim, o campo religioso apresenta-se com uma multiplicidade de crenças e de
trajetória do sagrado. A santidade popular é um fenômeno representativo das crenças e
tradições religiosas. O culto aos santos populares é mantido por um corpo difuso de agentes
religiosos, esses ligados as expressões religiosas católicas, todavia, sem o reconhecimento de
tal entidade.
A devoção dos fiéis caminha lado a lado com os santos reconhecidos pelo corpo
clerical da Igreja Católica, embora com perfis diferenciados, mas com o mesmo poder de
“intervenção” e ligação entre o mundo terreno com o espiritual. Podemos aqui citar o estudo
realizado por Carlos Alberto Steil (1996), ao abordar o culto ao Bom Jesus da Lapa em
Salvador – BA, em que o culto de peregrinação mescla-se a intervenção o poder Clerical.
As expressões de fé encontradas na religiosidade popular como mecanismo de
contato e troca simbólica com o santo podem ser visualizadas na retribuição da graça aos
milagres alcançados. Não há especificamente um “tipo” de objeto ou uma forma engendrada
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de pagar a promessa feita, ela caminha ao lado da intimidade estabelecida entre o devoto com
o santo.
Para Machado (1998) a religiosidade popular é muito mais imaginativa,
imediatista e sensível que a oficial; configura-se pela representação e revelação mágicodevocional; opera através da comemoração, em troca da graça recebida. Caminhando por essa
mesma concepção, Pedro Ribeiro de Oliveira (1978) nos aponta que:
O santo está ao alcance imediato do fiel: na imagem, na estampa,
nos santuários, num cruzeiro à beira da estrada, numa gruta, ou nos
arredores do cemitério. O fiel não precisa recorrer a um mediador
especializado para contactar o santo; vai diretamente a ele,
conversa com ele, expõe seus problemas, agradece as “graças”, ou
simplesmente presta seu ato de culto (p. 72).
Contudo, é interessante ressaltar que esses depósitos como provas de graça
recebida estão intrinsecamente arraigados na crença religiosa em que o indivíduo mantém
com o santo. Mesmo, após a dádiva ser recebida, numa relação com o mágico e o
sobrenatural, há uma tentativa de se manter uma relação com o santo. Tal relação estabelecida
entre devotos e santos ocorre através de pedidos e agradecimentos. É uma crença que se
materializa mediante aos símbolos e expressões.
Assim, percebemos que a devoção em torno de Antero está imerso nesta prática
cultural, onde a memória e história assumem a forma de construção de um dado conhecimento
e narrativa histórica, valendo como esteio, para tal, o imaginário criado em torno da santidade
de Antero, isso a partir dos vários discursos e imagens expressas por seus devotos; os quais
exprimem a relação estabelecida com o santo.
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Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
________ Ainda se benze em Minas Gerais. Associação Nacional de História – ANPUH.
XXIV
Simpósio
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Entre Europa África e América:
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A COLÔNIA NAS PALAVRAS DO POETA “BOCA DO INFERNO”: A ANÁLISE
HISTÓRICO-SOCIAL NAS OBRAS DE GREGÓRIO DE MATOS
Jael Flávia de Paiva Araújo136
Introdução
A Literatura é a produção escrita em que o homem se dedica a representar as suas
emoções, seus desejos e a sua realidade diante de vários objetivos e para diversos tipos de
público. O escritor diante de sua criação é produto das suas ambições e lamentações sociais.
Portanto, as produções literárias, por serem criadas pelos homens em seu tempo e não ser
possível deixar de repassar os traços de sua existência repletos de imaginários e valores
culturais é uma importante fonte histórica137.
Gregório de Matos é considerado um dos primeiros escritores brasileiros, por isso
deve-se principalmente a ele as primeiras características literárias da cultura brasileira
denominada como Barroco ou seiscentismo que durou de 1601 a 1768. Segundo o historiador
Sílvio Romero, citado por Ângela MariaDias, Gregório de Matos “Foi filho do país, teve mais
talento poético do que Anchieta, foi mais do povo, foi mais desabusado, mais mundano,
produziu mais e num sentido mais nacional”138.
As influências que marcaram as obras de Gregório de Matos são as de origens
ibéricas, como os autores Gôngora e Quevedo. O que não é peculiar, já que durante no século
XVII a colônia portuguesa era dependente da Europa em vários seguimentos, principalmente
o intelectual. Como assinala Silvio Romero:
Como era natural, durante os três primeiros séculos, quando ainda não tínhamos nem
autonomia política, nem literária, o modelo que seguimos foi a metrópole, dupla
136
Discente do curso de licenciatura em História da Universidade Estadual de Goiás (UEG).
Sandra Jatahy Pesavento. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
138
Ângela Maria Dias. Gregório de Matos. 5 ed., Rio de Janeiro: Ed. Agir, 1997. p. 142. (Coleção Nossos
Clássicos)
137
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imitação, porque era daquilo que ela fazia e daquilo que ela imitava. Assim, as letras
portuguesas em geral nos três séculos, e as espanholas, peculiarmente durante o XVII,
e as italianas durante o XVIII, foram o nosso guia139
A organização deste artigo está estabelecida em três partes. Primeiramente, busca-se
refletir sobre o uso da literatura como fonte histórica, em seguida a importância de Gregório
de Matos é levantada em uma breve biografia. Como uma abordagem primordial, a análise do
contexto histórico é o terceiro tópico, em seguida, a análise da obra do escritor maldito que
será feita partindo de alguns poemas selecionados.
História e literatura: um diálogo metodológico
Sandra Jatahy Pesavento (2006) afirma que a literatura, sendo uma ficção, está
relacionada com o imaginário, fruto das inquietações do seu criador. Em suas palavras o
imaginário “é elemento organizador do mundo que dá coerência, legitimidade e
identidade”140. Portanto, segundo a visão dessa autora, a escrita literária é uma abstração do
real que influencia as ações, ou seja, é concretizada em uma realidade.
Neste artigo o imaginário é entendido como representações que se materializam,
dentre outras formas nas artes. A Literatura é uma arte manifesta através da língua, que por
sua vez, é histórica. Portanto nas palavras, ou seja, na linguagem, aparecem os valores e os
aspectos culturais dado pelo o autor sobre um determinado contexto social. Para entender as
representações na literatura, não podemos deixar de lado o tempo da narrativa, pois, todo o
imaginário é uma construção social, que assume sentidos diferentes ao longo dos anos (LE
GOFF apud PESAVENTO, 2006, p. 13).
O historiador partindo dos seus métodos não se afasta da História enquanto trabalha
com a Literatura. Neste caso, “é a História que formula as perguntas e coloca as questões,
enquanto que a Literatura opera como fonte” (PESAVENTO, 2003, p. 82). A Literatura que
139
Sílvio Romero. História da Literatura Brasileira; Tomo I. Rio de Janeiro: Imago, 2001. p. 115.
Sandra jatahyPesavento. História e Literatura: uma velha-nova História. In. Cléria Botelho da Costa e Maria
Clara TomazMachado. (orgs.) História e Literatura: identidades e fronteiras. Uberlândia-MG: EDUF, 2006. p.
12.
140
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fornece as pistas que o Historiador deve seguir, enquanto o Historiador se espelha em sua
contemporaneidade. A pesquisa Histórica quando se abre para a ficção literária, busca
alcançar as concepções e as mentalidades, e não a verdade utópica. A História pode utilizar a
literatura para encontrar as verossimilhanças necessárias que subsidiam o ofício do
historiador.
O “Boca do Inferno”: breve biografia de um poeta colonial do Brasil
Apelidado de “boca do inferno” e de “poeta maldito” Gregório de Matos nasceu na
Bahia em 1633 ou 1636, não havendo uma datação exata para o seu nascimento, e morreu em
1696 em Pernambuco, após voltar do exílio, a que foi submetido, na Angola. A sua obra é
diversa e dividida em trinta códices141 que alfinetam o clero, a administração colonial e a
coroa portuguesa. Através do tempo muito de sua obra se perdeu, enquanto as críticas política,
social e religiosa que nelas foram colocadas prevaleceram escandalizando deixando um
grande legado de informações a respeito do período colonial.
Para muitos críticos literários a influência de Gôngora em Gregório de Matos vai
além da admiração, pois, segundo eles, alguns de seus poemas chegam a ser verdadeiras
releituras das obras do primeiro. Ainda durante sua vida, Gregório de Matos recebeu várias
críticas por esta similaridade. Como exemplo disso, podemos observar o posicionamento do
vigário Lourenço Ribeiro às suas poesias:
O soneto, que mandaste
ao Arcebispo elegante
é do Gôngora ao Infante
Cardeal, e o furtaste:
logo mal te apelidaste
o Mestre da poesia
furtando mais em um dia,
141
Códices são volumes antigos de manuscritos (Cândido de Figueiredo. Novo dicionário da língua portuguesa.
Projeto Gutenberg EBOOK Dicionário da Língua Portuguesa, 1913. p. 466).
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que mil ladrões em um ano:
não te envergonhas, magano?142
A colônia portuguesa é prosa com padre Vieira e poética com Gregório de Matos143.
Gregório de Matos, entretanto, se diferencia de Vieira por não se envolver nas decisões da
Igreja, não apoiar os portugueses em seu modelo de colonização e não se interessar pelos
índios, e sim por enfatizar a mulher mestiça, com quem teve vários relacionamentos, tendo até
mesmo resultado em uma suposta filha.
A obra do “poeta maldito” segundo Candido e Castelo144 expressa o sentimento que a
vida é breve, e assim como o arcadismo adotou o ideal do carpe diem145, mesmo que
superficialmente, porém sem o apego pela vida bucólica e campestre. Depois de reconhecido
os pecados humanos, Gregório se redime na poesia sacra, mas não deixa de poetizar a figura
da mulher.
A crítica ácida de um grande escritor
O Período Barroco é caracterizado por momentos de grande importância para a
Igreja Católica no contexto europeu como o Concilio de Trento (1545 – 1563), a Contra
Reforma portuguesa (1540 – 1700), e pelo surgimento da Companhia de Jesus (15 de agosto
de 1534), trata-se da ordem dos jesuítas criada por Inácio de Loyola. Enquanto a fé devia ser
restaurada pela Igreja Católica, a literatura expressa às dúvidas de um homem que constrói
uma nova mentalidade, rompendo com as certezas passadas e se aventurando em um Novo
Mundo.
142
MATOS, Gregório de. Gregório de Matos: Seleção de textos, notas, estudos biográficos, histórico e crítico e
exercícios por Antônio Dimas. São Paulo: Abril Educação, 1981. (Literatura Comentada)
143
Inês Cardin Bressan. Afrânio Coutinho, crítico e historiador da literatura brasileira: uma leitura. Assis, 2007.
Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. p. 108.
144
Antônio Candido; J. Aderaldo Castello. Presença da Literatura Brasileira I: das origens ao Romantismo. 3ª
ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968.
145
É uma expressão latina que significa aproveite o dia ou aproveite o momento presente. A sua origem nos
remete as Odes do poeta Horácio (Tenzo Tosi. Dicionário de sentenças gregas e latinas. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 275 - 276).
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O Barroco brasileiro146 surge com uma leve concepção nativista e crítica. O nome da
escola literária foi adotado do estilo arquitetônico e das artes plásticas, que segundo Candido e
Castelo (1968) os europeus da época consideravam monstruoso e de mau gosto. Uma das
primeiras formas de expressão barrocas no Brasil deu-se pela Literatura, constituindo uma
escola literária barroca. É a oposição à extravagância do Classicismo, que se estabelecia em
um horizonte normativo guiado pela ciência humanística, racional em que tudo estabelecia na
busca do equilíbrio entre as proporções.
É importante ressaltar, a esse respeito, que a noção de escola literária é apenas uma
delimitação de tempo e que não é aceita por unanimidade entre os especialistas, como
assegura Hansen:
No caso da tradição colonial Gregório de Matos, seu uso unifica todos
os estilos de poemas particulares de vários gêneros como exemplos ou
ilustrações de características da essência classificatória, não
considerando que, no tempo assim etiquetado, coexistem múltiplas
temporalidades heterogêneas de modelos artísticos que são imitados
diferencialmente pelo suposto autor dos poemas segundo preceitos,
técnicas, formas, estilos e finalidades sem correspondência com as
categorias evolucionistas e psicologistas pressupostos na classificação.
(...) Além disso, o uso naturalizado da noção de “Barroco” para
classificar
essa
poesia
e
totalizar
seu
tempo
generaliza
transistoricamente as definições liberais, às vezes marxistas, das
noções de “autor”, “obra” e “público”147
146
O Barroco pode ser considerado muito mais que um estilo que surgiu na Europa Ocidental entre os séculos
XVI e XVII. Pois, a sua importância encontra-se além dos traços artísticos, estando também nos costumes e
valores da sociedade colonial. O Barroco é caracterizado principalmente pela ostentação e valorização do ócio, já
que neste período a Igreja e o Estado Absolutista utilizavam do luxo para manifestar o seu poder. Na Literatura,
há uma variação entre temas sacros e mundanos que são realçados por uma estética formalista. (Kalina Vanderlei
Silva; Maciel Henrique Silva. Dicionário de conceitos históricos. 2ª ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto,
2009. p. 31 - 34)
147
João Adolfo Hansen. Letras coloniais e historiografia literária. Matraga (Rio de Janeiro), v. 18, p. 13-44,
2006. p. 19.
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Gregório de Matos, assim como os demais poetas barrocos, procurava utilizar em
suas poesias palavras que não pertenciam a sua língua, como o latim, pois era uma forma de
declarar a própria intelectualidade. O poeta chegou ao ponto de inventar palavras para garantir
a rima na versificação. Porém, mais importante que a estética é o conteúdo de seus poemas,
principalmente as sátiras ao contexto histórico no qual viveu e que imortalizou o escritor.
O Brasil do século XVII foi marcado pela crise do açúcar, acarretado pela descoberta
de prata de Potosi em 1640. Segundo Lima148 a escassez de “dinheiro de contado” diminuiu o
preço do açúcar, fazendo-o ser um tipo de moeda, a “moeda de peso”. Este fato causou uma
série de atritos entre a Colônia e a Coroa portuguesa, os chamados “motins da moeda”. Diante
da fragilidade econômica do Brasil, o “poeta maldito” não se prostra como os administradores
provinciais, mas expõe em sua principal sátira denominada Epílogos a indignação despertada
pela lentidão nas decisões que tange as necessidades transoceânicas.
O açúcar já acabou?... Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.
Logo já convalesceu?... Morreu.
À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.
A Câmara não acode?... Não pode.
Pois não tem todo o poder?... Não quer.
É que o Governo a convence?... Não vence.
Quem haverá que tal pense,
Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
148
Fernando Carlos G. de Cerqueira Lima. Falta de Moeda, Fixação do Preço do Açúcar e Manipulações
Monetárias no Século XVII: Impactos Sobre Produtores e Comerciantes. Mneme – Revista de Humanidades.
UFRN. Caicó (RN), v. 9. n. 24, Set/out. 2008. ISSN: 1518-3394.
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Não pode, não quer, não vence.149
Encarando a subordinação dos brasileiros aos portugueses e aos impostos que lhe
eram cobrados apenas para manter a ostentação de uma nobreza falida, Gregório de Matos
ironiza a recepção entusiasta e a relação com as riquezas dos engenhos de açúcar, maior fonte
de lucro da Colônia na época.
Vá visitar os amigos
no engenho de cada qual,
e comendo-os por um pé,
nunca tire o pé de lá.
Que os Brasileiros são bestas,
e estarão a trabalhar
toda a vida por manter
maganos de Portugal.
(...)
No Brasil a fidalguia
no bom sangue nunca está,
nem no bom procedimento,
pois logo em que pode estar?
Consiste em muito dinheiro,
e consiste em o guardar,
cada um o guarde bem,
para ter que gastar mal.
Consiste em dá-lo a maganos,
que o saibam lisonjear,
dizendo, que é descendente
da casa do Vila Real.150
149
MATOS, 1981, p. 14.
MATOS, 1981, p.29.
150
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As maiores críticas do poeta são direcionadas ao clero. As simonias151 e as usuras
dos padres e freiras. Em 1960, o El Rei envia uma carta ao governador da capitania de
Pernambuco, Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho. Como um alerta para não
permitir o envolvimento das freiras com os civis ou clérigos do sexo oposto dando ordens
para a reforma das grades dos conventos (HASSAN, 2003, p. 75)152. Gregório de Matos
ilustra esta questão através de suas sátiras embora não englobe todos os integrantes do clero.
Ele busca criticar apenas os que se contradiziam em relação à moral vigente, na época, da
qual eles eram os difusores.
Manas, depois que sou freira
Apoleguei mil caralhos,
E acho ter os barbicalhos
Qualquer de sua maneira:
O do casado é lazeira,
Com que me canso, em encalmo,
O do Frade é como um salmo
O maior do breviário:
Mas o caralho ordinário
É do tamanho de um palmo.
Além dessa diferença,
Que de palmo a palmo achei,
Outra coisa, que encontrei,
Me tem absorta, e suspensa:
É que discorrendo a imensa
Grandeza naquele nabo,
Quando o fim vi do diabo,
151
O termo simonia é derivado do nome do discípulo de Cristo, Simão, o Zelote. Simonia é o ato de vender de
maneira ilícita ou criminosa benefícios ou objetos eclesiásticos (FIGUEIREDO, 2010, p. 1844).
152
João Adolfo Hansen. Pedra e cal: freiráticos na sátira luso-brasileira do século XVII. REVISTA USP –
CRÍTICA A IGREJA, São Paulo, n.57, p. 68-85, março/maio 2003. p. 75.
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Entre Europa África e América:
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Achei, que a qualquer jumento
Se lhe acaba o comprimento
Com dous redondos no cabo.153
As mulheres são sempre um dos alvos preferidos de Gregório de Matos, mas sua visão
não foge ao consenso da época. A esse respeito Mary Del Priore, citada por Francisco das
Chagas Silva Souza, os autores barrocos a elas se referiam como fossem a “porta do inferno e
entrada do Diabo”154. No período colonial as únicas funções que possuíam era a de dona de
casa, mãe dos filhos e objeto erotizante.
Conclusão
Segundo Candido e Castelo (1968), a historiografia brasileira informativa e
descritiva surgiu durante o século XVI com as crônicas de viagem dos navegantes Ibéricos,
logo podemos refletir sobre a importância da Literatura para a História do Brasil Colonial.
Ainda no século XVI, Camões influencia os autores portugueses e serve de base para a
criação do Barroco em Portugal.
O humano no Barroco não era perfeito segundo a influência helenística do
Classicismo, mas um ser repleto de dúvidas e instabilidades em relação a sua própria
existência. O homem é demonstrado sempre levantando as suas contradições, em luta
constante entre o novo e o antigo, entre o real e o místico. Gregório de Matos não se
comportou diferente, em um primeiro tempo em suas poesias barrocas há exaltação a sua fé,
em outro estão presentes verdadeiros arranhões à figura da Igreja na América Portuguesa,
expondo os seus crimes.
Seguindo os moldes Barroco, Gregório de Matos ultrapassou as suas origens
abastardas e se imortalizou na cultura e na História do povo brasileiro, sendo um dos poetas
153
Gregório de Matos. Obras I e II: Sonetos, Décimas, Mote, Glosas e Romances. In. MAGALHÃES, Isabel
Allegro de (org.). História e Antologia da Literatura Portuguesa: Século XVII. N.º 29. Editora: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2004. ISSN: 1645-5169. p. 60–61.
154
Mary Del Priore. Histórias Íntimas: Sexualidade e Erotismo na História do Brasil.: Planeta, 2011. p. 32.
179
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o Império português no Atlântico Sul
mais polêmicos que já existiu. Gregório de Matos se auto define, em uma de suas poesias, a
sátira de tercetos destinada Aos Vícios da seguinte forma: “Eu sou aquêle que os passados
anos/Cantei na minha lira maldizente/Torpezas do Brasil, vícios e enganos” (MATOS, 1981,
p. 83).
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o Império português no Atlântico Sul
PIRENÓPOLIS: ESPAÇO E PATRIMÔNIO – FESTA
DO DIVINO ESPÍRITO SANTO155
João Guilherme Curado156
UEG — Câmpus Pirenópolis
[email protected]
A casa permite ainda a leitura da confluência e do encontro,
pois nela se efetiva a convergência de mundos diversos
(OLIVEIRA, 2010, p. 15).
A ocupação oficial de Goiás, nas décadas iniciais do século XVIII, trouxe para as
margens dos rios e demais cursos d’água então existentes, pessoas oriunda de várias
localidades (PALACÍN; MORAES, 2008), em especial paulistas e portugueses.
Os que chegaram inicialmente à beira do rio que nasce nos Pireneus batizaram-no
como Rio das Almas (JAYME, 1971), que se tornou o epicentro de um dos mais importantes
núcleos populacionais de Goiás no período. Não só pela quantidade de ouro que encontraram,
mas pela localização geográfica estratégica, na confluência de importantes vias que seriam
abertas ao longo do tempo (MAGALHÃES; ELEUTÉRIO, 2008).
A localidade passou a ser conhecida como Minas de Nossa Senhora do Rosário de
Meia Ponte, o que indica pelas práticas bandeirantistas e portuguesas que a chegada aconteceu
nas proximidades da data comemorativa da santa, para qual foi erigida a Igreja Matriz, espaço
de festas e de fé.
Fomento: PrP/UEG por meio do Projeto de Pesquisa: “Pesquisa Girando Folia: apontamentos turísticos e
gastronômicos em um das devoções ao Divino Espírito Santo — Pirenópolis/Goiás” e Projeto de Pesquisa:
“Artes e Saberes nas Manifestações Populares” (Fapeg).
156
Professor da Rede Estadual da Educação e da Universidade Estadual de Goiás — Unidade Universitária de
Pirenópolis. Morador de Pirenópolis. [email protected]
155
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o Império português no Atlântico Sul
Inicialmente sobre as festas que aconteciam temos poucos registros referentes ao
século XVIII; no entanto, sabemos que a festa da padroeira em outubro era a mais concorrida,
seguida pelas festividades de São Benedito, originalmente em abril. As demais ficavam a
cargo dos sacramentos cristãos: batismo, casamento e extrema-unção.
Os registros paroquiais apontam para as primeiras famílias que habitaram a antiga
Meia Ponte, como pode ser vista no estudo genealógico de Jayme: “Famílias Pirenopolinas”
(1973), dispostos em cinco volumes e que indica as origens patriarcais, das quais
selecionamos algumas: Mendonça (Taubaté), Afonso, Amorim, Pereira Vale, Sá (Braga),
Costa e Abreu, Pina, (Lisboa), Curado (Coimbra), Costa Teixeira, Oliveira, Moreira Farinha
(Porto). Além de mais de vinte famílias de origem africana.
Com a ereção da Igreja Matriz em um ponto mais alto e pouco distante da área de
mineração inicial, passa-se a construção das casas. Primeiro nas proximidades do templo
religioso e depois no decorrer dos caminhos que levavam à Vila Boa de Goiás (atual Rua
Direita) e que acessava a Bahia (Rua do Bonfim). As vias eram largas, de traçado retilíneo e
com moradias que seguiam o estilo vigente, o colonial157, que mesclava técnicas portuguesas
de construção com materiais construtivos disponíveis, como: barro, madeira e rocha.
As casas residenciais eram grandes, simples, geralmente térreas, com quintais
enormes, o que configuravam grandes quadras. Com o declínio da produção aurífera por volta
de 1750, o espaço urbano para a ser desabitado em detrimento da ampliação de moradores na
área rural, uma vez que as grandes propriedades passam a agrupar a população para lidar com
as atividades ligadas à agropecuária, geralmente de subsistência.
Com a transferência para as fazendas a população perde um pouco do contato que
mantinham pelas ruas de Meia Ponte, assim como algumas devoções. São Sebastião, o
padroeiro dos fazendeiros, por afastar pragas e pestes passa a ser cultuado.
Ao passar por Meia Ponte em 1819, o viajante francês Auguste de Saint-Hilaire tece a
seguinte observação: “ainda hoje a maioria dos habitantes de Meia-Ponte se dedica à
agricultura e como só vão ao arraial aos domingos, as casas permanecem vazias durante toda
a semana” (1978, p. 37). A visita semanal ao arraial caracteriza-se como a manutenção da fé e
157
O período Colonial no Brasil é bastante extenso e por isso não há uma homogeneização do estilo, como é
discutido em “Arquitetura e arte no Brasil Colonial” (BURY, 2006).
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a busca por festa, uma vez que a missa dominical da nove era um grande acontecimento para
qual havia uma concorrência significativa. Pois representava momentos importantes da
sociabilidade meiapontense. A Igreja Matriz passou, assim, a ser e se firmar como importante
referencial para as festas locais (LÔBO; CURADO, 2008).
A Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis
Festa ibérica, transplantada da Europa para as Américas via Atlântico, apresenta-se
como uma cultura híbrida, segundo concepções de Cancliní (2006), pois vai aglutinando,
adaptando, modificando e até mesmo suprindo aspectos, inclusive ritualísticos da versão
europeia.
No Brasil a festa de Pentecostes coincidia com o fechamento do calendário agrícola,
logo após a colheita, e servia como um mecanismo de agradecimento pela produção, por isso
a distribuição farta de alimentos entre os partícipes — o que pode ainda ser observada dentro
da tríade: dar-receber-retribuir proposta por Mauss (2003).
A Festa do Divino é uma festa de características rurais, mesmo quando acontece na
área urbana, o que possibilita a compreensão das identidades rurais que permeiam a cultura
pirenopolina ainda nos dias atuais.
O primeiro registro encontrado sobre a realização da Festa do Divino Espírito Santo
em Pirenópolis data de 1819, mas como alerta Jayme (1971) pode ser que a Festa ocorresse
anteriormente. Mas partindo das observações apontadas pelo referido autor temos o panorama
das mudanças da Festa do Divino: em 1826 é inserida a Coroa do Divino e inseriu na festa a
distribuição de Verônicas; 1832 realização das primeiras Cavalhadas; 1836 promoção do
primeiro Batalhão de Carlos Magno; 1837 encenação do primeiro drama durante a Festa;
1923 apresentação de “As Pastorinhas” (auto natalino em pleno Pentecostes!).
Temos ainda outras festividades que se juntam à Festa do Divino como o Reinado de
Nossa Senhora do Rosário e o Juizado de São Benedito que segundo Lôbo (2006) teria
ocorrido pelo menos desde o final do século XIX. Talvez sendo estes uns dos poucos santos
que tenham mantido devotos fieis no traspassar da Colônia para o Império.
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A Festa do Divino representava momentos de integração e de sociabilidade entre os
meiapontenses e depois para os pirenopolinos. Circunscrevia-se por significativa ocupação,
mesmo que efêmera, tanto da área urbana quanto da área rural158.
Vale a pena ressaltar que mesmo sendo uma festa religiosa a Festa do Divino em
Pirenópolis pode ser caracterizada como sendo uma manifestação popular em sua grande
parte, pois mesmo tendo a Igreja como fundamental em alguns momentos ritualísticos, a Festa
ocorre sem a presença e até mesmo o consentimento institucional do catolicismo.
A devoção ao Divino Espírito Santo em Pirenópolis é algo latente e até mesmo
imanente para integrantes das famílias mais antigas, pois compõem parte significativa das
“memórias coletivas” (HALBWACHS, 2006). O que acaba criando necessidades de
participação e envolvimentos com os festejos e com isso contribuindo para a manutenção
festiva, por se tratar de um patrimônio para o povo pirenopolino.
Durante várias gerações a Festa esteve presente no calendário festivo local, sendo que
às vezes aconteciam as principais manifestações outrora não, atendendo as possibilidades de
cada grupo em momentos distintos. As Cavalhadas, por exemplo, não eram recorrentes.
Situação que se altera em meados da década de 1970, possivelmente em função da criação da
Goiastur, empresa goiana que visava o desenvolvimento turístico em algumas cidades
goianas, dentre elas Pirenópolis por ocasião da Festa do Divino.
Outra influência que merece destaque em relação à divulgação da Festa do Divino é a
proximidade com Brasília e o interesse dos moradores da Capital Federal em conhecer esta
manifestação cultural mantida em uma cidade bastante próxima, mesmo quando considerando
a falta de vias asfaltadas.
A Festa do Divino: Patrimônio
A continuidade da Festa do Divino Espírito Santo, em Pirenópolis, por quase dois
séculos, nos indica a importância e a representatividade de tal manifestação para a
comunidade local que se envolve nas inúmeras atividades da Festa, desde a preparação,
Consideramos aqui, área urbana como o espaço delimitado como perímetro urbano — a cidade e área rural o
espaço compreendido fora do perímetro urbano, mesmo esta delimitação sendo recente.
158
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passando pela Festa em si e em seguida com o seu desmonte, evolvendo-se assim com o que
Maia denominou como “ciclo festivo” (2002). O referido autor dimensiona não apenas a
extensão temporal que a Festa ocupa no calendário anual, mas ainda o espaço pelo qual se
desenrola.
Temporalmente a referência pauta-se em Pentecostes e vem se antecipando, como no
caso da inserção da Folia da Renovação Cristã aos festejos e também se estendendo para
depois de Corpus Christi com a realização da Cavalhadinha do Centro. Consequentemente o
espaço também se ampliou e houve ainda uma fortificação dos aspectos patrimoniais.
A busca para implementar novas manifestações na Festa do Divino pode ser observada
como uma tentativa de inserção, por parte de grupos ou mesmo de pessoas que não tendo o
destaque almejado passam a “criar” novas maneiras de atuação. Outra possibilidade é a
necessidade de participação e de envolvimento, pois a Festa do Divino Espírito Santo é
fundamental na vida de grande parte dos pirenopolinos, que esperam por ela durante todo o
intervalo de tempo em que ela não ocorre.
Quase todas as famílias mais tradicionais possuem significativo envolvimento com a
festa nas mais variadas atividades, e colaboram por devoção ao Divino e não em troca de
remunerações terrenas. A festa do Divino é um patrimônio para os pirenopolinos, muito antes
de ser reconhecida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como
uma Celebração Patrimônio Cultural do Brasil em 2010.
Durante as pesquisas para elaboração do Inventário Nacional de Referências Culturais
(INRC, 2000) foi possível perceber a dimensão da Festa do Divino a partir dos saberes e
fazeres envolvidos nas diversas etapas que compõem as manifestações voltadas para a
devoção ao Divino Espírito Santo.
É interessante observar que cada família ou grupos específicos participam de
momentos distintos da Festa. A grande maioria dos jovens participa dos Pousos de Folia;
algumas meninas das Pastorinhas enquanto os meninos saem de mascarados. Tem ainda as
alvoradas em que muitos tomam parte, assim como a produção de verônicas. Há maneiras não
coletivas de participação como a produção de máscaras, confecção de roupas diversas,
produção de flores em papel para ornamentar os cavalos, tanto dos cavaleiros quanto dos
mascarados.
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No entanto, faz-se necessário ressaltar que há uma produção cultural bastante intensa
no que se refere á Festa do Divino em Pirenópolis, sendo que a apropriação de alguns de sues
símbolos por setores público e institucional é evidente, como por exemplo, a figura dos
mascarados ou mesmo só da máscara de boi, feita em papel por artesãos pirenopolinos. Sobre
as máscaras é interessante notar que alguns modelos caíram em desuso como as de onça e de
macaco. Outras eram pouco usadas, sendo que uma delas virou símbolo da festa e de alguns
outros setores da cidade: a máscara de boi.
A comunidade pirenopolina vem aprimorando mecanismos de educação patrimonial
por meio de incentivos às crianças na participação de várias modalidades de manifestações
culturais. Atualmente tem destaque as Cavalhadinhas, que de brincadeiras de amigos de rua
ou de bairro se transformou em festas bastante concorridas, inclusive por adultos e que
contribuem não só para a inserção de crianças nas práticas festivas, mas com elas visam a
continuidade das festividades. Duas Cavalhadinhas merecem destaque por ser a reprodução
infantil de grande parte da Festa do Divino: a Cavalhadinha da Vila e a Cavalhadinha do
Centro.
A Festa do Divino: Espaço
Em uma breve discussão sobre os espaços da Festa do Divino Espírito Santo em
Pirenópolis levaremos em consideração algumas edificações como casas e igreja;
abordaremos também considerações sobre estradas e vias urbanas. Assim como as
liminaridades entre o público e o privado na ocupação espacial pelas manifestações festivas
em homenagem ao Divino.
A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário possui tombamento individual ocorrido
em julho de 1941 e posteriormente, em janeiro de 1990, foi novamente contemplada quando
do tombamento do conjunto arquitetônico, urbanístico, paisagístico e histórico do Centro
Histórico de Pirenópolis (www.iphan.gov.br). É um importante monumento e local de práticas
do catolicismo, dentre elas algumas manifestações que acontecem por ocasião da Festa do
Divino, como novena e missas.
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É durante as missas no Domingo de Pentecostes que pela manhã é sorteado o novo
imperador, que na missa noturna recebe oficialmente a Coroa do Divino, destarte é na Matriz
que ocorre o rito de passagem — recorrendo a Van Gennep (2011) — em que um cidadão
comuns passa a ser o Imperador do Divino, figura máxima dentro da hierarquia festiva do
Divino Espírito Santo.
Durante a Festa do Divino a Igreja Matriz possui importância significativa, mas não é
o espaço mais utilizado pelas festividades. Talvez o epicentro festivo seja a residência do
Imperador, o responsável pela condução da festa durante o ano de seu mandato, entre o
sorteio e a entrega da Coroa.
A Casa do Imperador, como passa a ser denominada, mesmo que efemeramente, a
casa em que a Coroa do Divino permanecerá durante um ano é o centro da Festa, sendo que é
de lá que saem e chegam as principais manifestações que compõem o mosaico de festividades
em homenagem ao Divino Espírito Santo.
Em um passado não muito distante a Igreja tentou estabelecer um espaço fixo, criando
a Casa do Imperador, que ficava na parte mais sul da cidade e onde alguns poucos
Imperadores realizaram suas festas, mas tal iniciativa alterou a dinâmica espacial da Festa do
Divino de Pirenópolis e desagradou a maioria das pessoas, uma vez que por ser uma festa
dinâmica e possuir características da religiosidade popular em que as trocas, por meio das
relações da dádiva apontada por Mauss (2003), se estabelecem no seio familiar: a casa.
Algumas casas durante a Festa do Divino são espaços utilizados para momentos
ritualísticos das festividades. Além da Casa do Imperador, destacamos as casas do rei e rainha
do Reinado de Nossa Senhora do Rosário e as casas do juiz e da juíza do Juizado de São
Benedito. Há as casas em que são promovidas as farofadas para os cavaleiros das Cavalhadas,
as casas dos Pousos de Folia, tanto na cidade quanto na área rural. Mencionando aqui, apenas
as principais casas envolvidas nas comemorações ao Divino.
De maneira ampla, não recorrendo a especificidades, concordamos que em
Pirenópolis, também durante a Festa do Divino, algumas casas, como as mencionadas acima
podem ser entendidas “como um universo de fronteira” (OLIVEIRA, 2001, p. 15) por
possibilitarem dinâmicas variadas e necessárias para a manutenção das tradições festivas.
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Este universo de fronteira aqui pode ser percebido pela transmutação da casa enquanto
residência familiar, fechada ao convívio doméstico e privado se abre para a Festa do Divino e
ao se transformar em espaço de festa torna-se, simultaneamente, em um espaço híbrido, de
passagem, que mesmo mantendo o que Van Gennep (2011) denomina como “fronteiras e
marcos”, não consegue estabelecer limites estanques. Assim, a casa passa a ser espaço
público, dos convívios com estranhos e até mesmo desconhecidos que se apropriam
temporariamente da materialidade da vida dos que ali residem, ao adentrarem o espaço
outrora privado.
A Festa do Divino em Pirenópolis possui ainda características de apropriação bastante
interessantes. A casa de privada para pública estende-se além da soleira da porta e ao ganhar a
rua, transforma a via pública e urbana em área privada e festiva, mesmo que por período
pouco duradouro e considerando que “não se pode misturar o espaço da rua com o da casa
sem criar alguma forma de grave confusão ou até mesmo conflito” (DA MATTA, 1997, p.
50).
As festas populares em si são espaços de conflitos, mas mesmo considerando as
confusões advindas das manifestações festivas, e que não são poucas, ainda mais atualmente
quando, no caso de Pirenópolis, a vocação turística traz para a cidade pessoas que não
conhecem ou compreendem as transmutações pelas quais passam o espaço — e até mesmo o
tempo —, durante as festas, em especial a do Divino, quando vias públicas são fechadas e
cavalos tomam as ruas, dificultando o trânsito de veículos que insistem em se locomover por
áreas destinadas à Festa.
Mas voltando às relações entre casa e rua, Brandão nos lembra que
ao contrário, pelo menos em muitos casos, um lugar e outro se
complementam e há entre eles, vivida em seus atores de ambos os
lados, uma interação permanente de começar num e acabar noutro e
fazer com que tudo o que se festeja oscile entre os dois domínios.
Alguns rituais do catolicismo popular fazem isso de uma maneira
muito evidente e pode-se até dizer que eles não são outra coisa senão
uma viagem entre casas por ruas e estradas (2001, p. 18).
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Ampliando a escala, passamos às casas das fazendas pirenopolinas compreendendo-as
também como “universo de fronteira” (OLIVEIRA, 2010), em que durante os Pousos de Folia
do Divino há uma significativa transformação desde a preparação ao desmonte da parada da
Folia na propriedade rural.
As casas de fazenda são preparadas para receberem as bandeiras da Folia do Divino,
para tanto na sala da frente são elaborados altares que recebem ainda imagens de santos da
devoção familiar. Nos fundos, a cozinha é ampliada para a preparação de alimentos que serão
ofertados e agradecidos em cerimônias ritualísticas junto a uma grande mesa que conta
sempre com algum alimento.
O cotidiano rural é alterado para “receber as bandeiras”. A produção é cessada
temporariamente, assim como as lidas com o campo e com os animais. Abates de gado e de
porcos são antecipadamente realizadas para a preparação da comida. O pasto da frente é limpo
para que os foliões promovam o rito da chegada, uma coreografia cavalgada junto ao por do
sol. Arcos são dispostos nas entradas da fazenda e da casa e são neles que os rituais de
transposição para o mundo festivo das Folias acontecem.
As Folias do Divino que circulam por Pirenópolis são três: A Tradicional, a da Rua e a
da Renovação Cristã, sendo que a primeira e a última saem da cidade, promovem o giro pela
área rural e retonam à cidade para entregar as bandeiras. Portanto a Festa promove a
integração entre o rural e o urbano, mediante o giro da Folia.
Mas a junção que predomina, ou pelo menos se faz mais evidente, acontece pelas
relações provenientes das confluências e liminaridades entre casa e rua durante a realização da
festa. Portanto, há concordância de que “o sistema ritual brasileiro é um modo complexo de
estabelecer e até mesmo de propor uma relação permanente e forte entre a casa e a rua, entre
‘este mundo’ e o ‘outro mundo’” (DAMATTA, 1997, p. 61).
Considerações Finais
Compreendemos o mundo festivo como uma continuidade do mundo em que vivemos.
Portanto, em especial quando abordamos as festas vislumbramos as não divisões bipolares ou
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estanques, e sim as integrações necessárias e indispensáveis para a realização da festa que
perpassam tempo e espaço. Havendo assim um complexo estreitamento temporal com o
passado, mediante ações do presente que ocorrem para proporcionar sentido às ações
ritualísticas e que por não serem muito evidentes passam despercebidas a pessoas que não
participam do grupo.
A Festa do Divino Espírito Santo é um patrimônio para a comunidade local há quase
dois séculos e sua permanência enquanto manifestação popular ocorre pelos significados que
perpassam o tempo e o espaço com as delimitações entre os limites público e privado159, pois
se constitui como uma das mais importantes devoções para os pirenopolinos.
Diante desta conjugação festiva, bastante característica também do povo pirenopolino,
concordamos e fechamos com Brandão, para quem “essa conjunção da casa e da rua através
da estrutura do ritual popular da visitação (trazer a rua para a casa e devolver a casa à rua) foi
ou é um dos núcleos de sentido de praticamente todos os rituais e celebrações populares no
Brasil” (BRANDÃO, 2001, p. 21— grifo no original).
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Centauro, 2006. 197p.
159
Parte desta dicotomia pode ser observada na descrição que diferencia as festas particulares das públicas que
aconteciam no Rio de Janeiro durante o Império. Ver Alencastro, 1997. pp. 51-53.
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o Império português no Atlântico Sul
APROXIMAÇÕES ENTRE LITERATURA E ENSINO DE HISTÓRIA: SOBRE
INTERPRETAÇÕES HISTÓRICAS A PARTIR DA OBRA “GERMINAL”160
João Pedro Pereira Rocha161
Introdução
Os anos 1980 e 1990 foram decisivos para o ensino de história quando, das novas
exigências que eram reclamadas a partir da mudança no campo historiográfico acadêmico,
com abordagens diferentes daquelas construídas por professores na Educação Básica. A
mudança de paradigma, proposta principalmente pela corrente historiográfica engajada na
história cultural, fez com que pesquisadores e estudiosos passassem a criticar, entre outras, o
modo como às linguagens eram inseridas nas aulas de história. No caso específico da
literatura, a dificuldade de uso em sala de aula, explica-se por uma visão que não via nos
textos literários, documentos passíveis de uso didático pelo professor de história. Assim o uso
da literatura para estudos históricos, em sala de aula, ocorreu de forma lenta e gradual, sendo
que na primeira década do século XXI discussões em torno desta problemática foram e
continuam sendo levantadas.
O presente trabalho é resultado de pesquisas e reflexões sobre linguagens no ensino de
história, desenvolvidas no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID),
do curso de História da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), Campus Barreiras.
O objetivo deste trabalho é verificar a contribuição da literatura para o ensino de história, isso
a partir de uma análise acerca da obra literária “Germinal”, do escritor francês Émile Zola.
160
O presente trabalho é fruto de estudo desenvolvido no grupo do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à
Docência (PIBID-História), da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), com coordenação e orientação
do professor MsC. Bruno Casseb Pessoti e apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES).
161
Graduando em História. Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB). Bolsista PIBID
[email protected]
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O desenvolvimento deste trabalho ocorreu a partir de uma metodologia que
inicialmente reuniu e analisou trabalhos de teóricos que se debruçam sobre os eixos história,
literatura e ensino de história. Esse tipo de abordagem se fez necessário, tendo em vista que
para pretensões deste trabalho, a interdisciplinaridade é imprescindível. Dessa forma a análise
da obra “Germinal” ocorreu de modo a verificar suas contribuições ao ensino de história, para
tal foram elencados alguns aspectos do livro que contribuem para discussões sobre as
transformações sociais do século XIX, sobretudo aquelas ligadas à exploração do trabalho.
Do trabalho, é possível afirmar que sua relevância encontra-se na aproximação entre
literatura e ensino de história a partir da análise de uma obra de ficção que tão, bem representa
o contexto de sua produção, uma obra que para os críticos desenha uma história como se
houvesse apenas o bem e o mal (BRAS, 2013).
Revisão teórica metodológica
O desenvolvimento do trabalho foi possível graças à reunião de materiais, pensados a
partir de duas ordens: que fundamentam as discussões acerca das possibilidades para uso da
literatura na história, e os que reforçam as discussões e reflexões feitas a partir da análise da
obra “Germinal”, com objetivo de identificar suas potencialidades para o ensino de história.
Assim foram reunidos artigos, livros e capítulos de livros que capacitaram às discussões e os
resultados a partir do objetivo deste trabalho.
As discussões sobre a relação história e literatura foram construídas a partir do
pensamento clássico de BAKHTIN (1997) que discute as narrativas literárias em dialogo com
as narrativas e interpretações históricas. Uma contribuição interessante aos estudos que se
ocupam de analisar obras literárias, tendo em vista que as particularidades dos textos literários
são criações não apenas estéticas, mas históricas (BAKHTIN, 1997). Assim a literatura está
para história e para o historiador, tendo em vista que as narrativas do passado são como
“escombros e entulhos” que levam o historiador a rejeitar o futuro para aproximar-se da
desordem posta ao passado (BENJAMIN 1985).
Para o campo do ensino de história em sua relação com a literatura como linguagem
passível de uso no processo de ensino aprendizagem é possível percebermos que nas duas
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últimas décadas do século XX autores como Circe Bittencourt (1997) e Selva Guimarães
(1995) apontaram o importante espaço que as obras literárias poderiam adquirir nas aulas de
história. Para Bittencourt (2011) a importância do uso de textos literário, de modo didático,
afirmava-se, na medida em que ao aluno eram oferecidos outros objetos que deveriam ser
analisados, concomitante a obra de ficção, ampliando a visão do alunado acerca das
referências usadas em interpretações do passado. Esse tipo de abordagem metodológica
complementa Selva Guimarães: “amplia o campo de estudo, torna o processo de transmissão e
produção de conhecimento mais interessante, dinâmico e prazeroso.” (GUIMARÃES, 1995,
p.53).
Sobre a análise da criação de Émile Zola, pontos mais centrais e julgados como
referenciais para o contexto histórico do século XIX, foram destacados para discussão. O
reforço teórico para este momento esteve pautado no pensamento de historiadores que
teorizam, sobretudo, as mudanças promovidas pela exploração do trabalho nos oitocentos.
Assim autores como Eric Hobsbawm (2013), discorrendo sobre o espirito revolucionário
francês no século XIX, Karl Marx e Friedrich Engels discutindo o engajamento dos
trabalhadores na luta contra a exploração do capital, auxiliaram as discussões e reflexões
complementares ao estudo de “Germinal”.
A verificação da contribuição presente na obra “Germinal”, enquanto material sujeito
ao uso didático para as aulas de história ocorreu a partir do pensamento de Jörn Rüssen (2013)
acerca da didática prática da história. Essa praticidade teria uma ligação direta com o papel
social de um conhecimento histórico, emancipador, crítico e apto a mudar a realidade dos
sujeitos. Assim, a didática da história, como afirma Rüssen, tem o papel de fomentar a
consciência histórica, algo que pode ser alcançada a partir do ensino e aprendizagem da
História, com aproximações entre passado e presente, sob as mais diversas formas.
Literatura no ensino de história
Uma análise sobre a natureza dos dois campos do conhecimento, literatura e história,
pode encontrar especificidades que geram atritos entre ambos. Assim projetos de fato e de
ficção aparecem como pontos fundamentais dessas áreas, conceitos epistemológicos que
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durante algum tempo impossibilitaram o dialogo e uma aproximação entre historiadores e
textos literários. O rompimento com a dicotomia, que fora estabelecida entre história e
literatura, dependeria do posicionamento que historiadores manteriam em relação às obras
literárias. Esse posicionamento, requerido ao historiador, é representado em A estética da
criação verbal, onde Bakhtin discorre sobre o oficio do literato:
“A escrita (a relação do autor com a língua e a utilização da
língua que ela implica) é o reflexo impresso no dado do material por
seu estilo artístico (sua relação com a vida e com o mundo da vida e,
condicionado por essa relação, sua elaboração do homem e do seu
mundo) o estilo artístico não trabalha com as palavras, mas com os
componentes do mundo, com os valores do mundo e da vida...”
(BAKHTIM, 1997, p. 208).
A partir da representação feita por Mikhail Bakhtin, sobre a construção do texto
literário e da influência que o mundo exerce sobre aquilo que é produzido no campo textual,
foi possível a historiografia aproximar-se das obras literárias como produções culturais,
passiveis de abordagens históricas. Essa quebra de paradigma encontrou reforço importante
com os estudos de Walter Benjamin (1985), que apontou uma necessária revisão acerca do
modo como historiadores investiam sobre a literatura, informando não mais ser possível ao
pesquisador do passado, conhecê-lo como ele de fato foi. Assim, por meio de mudanças
historiográficas foi possível a introjecção, mesmo que de forma gradual, de textos literários no
rol de documentos possíveis para construção do conhecimento histórico.
O período que compreende os anos 1990 do século XX e a primeira década do XXI,
no Brasil, assistiu uma crescente nos estudos que se ocupavam em discutir o uso das
linguagens no ensino de história, por professores da Educação Básica. Neste momento,
autores como Circe Bittencourt (1993), Selva Guimarães (1995), Marcos Silva (2009), Rafael
Ruiz (2012), entre outros, destacavam a importância de refletir o espaço das diversas
linguagens nas aulas de história. Assim as discussões em torno do uso das diversas produções
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artísticas, giravam em torno do uso consciente das ferramentas que circundam o universo
docente e no que tange o processo de ensino aprendizagem.
A construção de novos canais para debates e reflexões sobre linguagens no ensino de
história abriu caminho para edificação de ideias que pensavam a inserção de documentos
auxiliares à construção do conhecimento histórico e que por sua vez eram passiveis de uso em
sala de aula.
Por meio de tais debates as linguagens, transvestidas em documentos e
discutidos pela historiografia da segunda metade do século XX, puderam ser analisadas como
novos objetos ao ensino de história. Com isso o campo do ensino de história fora enriquecida
com novas possibilidades para o trabalho docente, que atentavam entre outras, para o
rompimento do uso limitado do livro didático para as aulas (GUIMARÃES, 1995). Esse novo
horizonte, que se colocava ao ensino de história, fomentava maiores aproximações com
documentos de diversas naturezas. Com isso, a literatura pôde ser vista sob uma ótica que
identificava nesta arte, um caminho importante para (re) construções históricas.
“Germinal”: possíveis contribuições ao ensino de história
Sendo a literatura importante aliado para construção do conhecimento histórico, as
obras literárias representam um conjunto de escritos que tomados como documentos e
testemunhos do passado, oferecem uma gama de possibilidades ao trabalho do historiador.
Dessa forma obras clássicas ou mesmo desconhecidas podem ser referências para pesquisas e
estudos preocupados com o modo pelo qual sociedades passadas arquitetaram suas histórias,
seja no plano social, político, cultural ou econômico. É nesse contexto que a obra “Germinal”
se destaca, ao reunir elementos que denunciam uma sociedade marcada por profundas
transformações, e que, portanto, auxiliam maiores interpretações sobre os processos
históricos.
Em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo o escritor Luiz Braz (2013) resumiu
a obra “Germinal”, de Émile Zola, como sendo uma incitação à revolta proletária. Escrito
inicialmente em notas de folhetim. De fato, publicado em 1885, Germinal é uma típica obra
literária engajada em seu tempo, colocando em evidência os conflitos sociais que colocavam o
século XIX em ebulição. Nela o autor fora objetivo em deixar transparecer o conflito entre
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duas classes emergentes, onde o elo dos embates girava em torno da exploração do homem
pelo homem, mas, agora, em um período que o capital põe em destaque as disparidades
sociais que envolviam o homem moderno.
A revolução intelectual, também é a das mentalidades, representada pela consciência
de pertencimento a uma determinada classe, a operária, que unida modificaria não apenas o
quadro francês, mas o mundial. Se, como bem afirma Eric Hobsbawm (2013), na conturbada
Europa dos séculos XVIII e XIX a França fora expoente da “Era das Revoluções”, ao
encabeçar uma revolução social de massa, podemos encontrar traços de tal mobilização social
na obra de Émile Zola. Assim é possível identificar, por exemplo, no personagem de Étienne
Lantier uma militância que não estava apenas reduzida ao ficcional, a uma simples beleza
estética e literária, mas à construção de um representante dos exércitos revolucionário de que
fala Hobsbawm (2013). Étienne é, dessa forma, a materialização do espirito revolucionário
que alimentava a internacional socialista, consciente de sua missão: unir os trabalhadores do
mundo, em luta contra a exploração do capital e em busca do bem estar social para todos.
Para o universo da história discutida em sala de aula é possível identificarmos em
Germinal algumas contribuições pertencentes à exploração do trabalho e do trabalhador no
período que compreende a modernidade. Sobre esse aspecto a obra traz uma importante
descrição do universo que circundava a vida dos trabalhadores das minas na França do século
XIX, ampliando o horizonte dos aspectos históricos constituídos a partir das representações
sociais. Dessa forma, em sala de aula, o professor de história pode vir a relacionar modelos
sociais de nossos dias, aqueles ligados a questões trabalhistas, com a mensagem contida em
“Germinal”, sobre a exploração do trabalho. Com isso o ensino de história estará alicerçando
o saber histórico construído em sala de aula, a partir de representações sociais, que no plano
coletivo ou individual fomentam no contexto de aprendizagem, possibilitando ao aluno a
identificação com determinado grupo social, podendo, como afirma Bittencourt (2011),
refletir de forma autônoma a realidade ao qual é inserido.
Circe Bittencourt (2011), em seu discurso sobre o uso da literatura por professores de
história apontou que a contribuição dos literatos para compreensão histórica do passado
ocorre por sua escrita obedecer à determinada cultura, em um dado espaço tempo. Germinal é
a representação de um tempo onde, outro componente ideológico, o socialismo, se
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contrapunha à solidificação avassaladora do capitalismo. Essa verificação é exposta no
pensamento e na militância de Étienne:
Étienne, no entanto, estava muito animado. Uma predisposição para a
revolta o impelia à luta do trabalho contra o capital, numa primeira
ilusão, que era produto da ignorância. Tratava-se da Associação
Internacional dos Trabalhadores, da famosa Internacional que acabava
de ser criada em Londres. Não havia nisso um esforço maravilhoso,
uma campanha onde a justiça ia enfim triunfar? O fim das fronteiras,
os trabalhadores do mundo inteiro levantando-se, unindo-se para
assegurar ao operário o pão que ganha. E que organização simples e
grandiosa! E que organização simples e grandiosa! Embaixo a seção
que representa a comuna, em seguida a federação que agrupa as
seções de uma mesma província, depois a nação e por fim, no topo, a
humanidade encarnada num conselho geral onde cada nação está
representada por um secretário correspondente. Antes de seis meses a
terra seria conquistada e ditar-se-iam as leis aos patrões se eles se
fizessem de espertos. (ZOLA, 2008, p. 111-112)
A consciência sobre a importância na união, na luta de classe, tão viva nas ideologias
socialistas, também é algo presente em muitas passagens de Germinal, algo que justifica a
crítica feita por Bras (2013) ao tom inquietante usado por Émile Zola. A luta pela união entre
os povos é algo que o autor deixa concreto na personalidade de Étienne, fruto direto da
consciência acerca das relações de poder que estavam se estabelecendo e, gradualmente
deixando o modo de produção feudal cada vez mais na Idade Média. Essa percepção de
espaço-tempo e mudanças é algo que torno é Étienne sujeito crítico de seu tempo, algo que
pode ser explorado pelo professor de história, que no ato de ensinar pode construir caminhos
que levam o alunado a perceber a influência do tempo no trabalho do artista.
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A tentativa de aproximar passado e presente, por meio de uma didática da história
prática à vida e ao cotidiano do alunado, é algo que encontra em Germinal, terreno fértil. Se
essa aproximação acontece em um programa que situa a história ensinada e aprendida como
objeto destinado a uma aplicabilidade, uma orientação para vida (RÜSEN, 2011), o professor
de história pode, nesse sentido, explorar não apenas as ações do personagem Étienne, mas,
também, os cenários descritos pelo autor, por exemplo. A exploração dos trabalhadores é uma
verdadeira denúncia:
— Há muito tempo que você trabalha na mina? Boa-Morte abriu
muito os braços:
— Ah! Sim... Há muito tempo. Não tinha ainda oito anos quando
desci, imagine justamente na Voreux, e agora tenho cinqüenta e oito.
Veja bem, fiz de tudo lá dentro: primeiro como aprendiz; depois,
quando tive forças para puxar, fui operador de vagonetes e, mais tarde,
durante dezoito anos, britador. Em seguida, por causa destas malditas
pernas, puseram-me para desaterrar, aterrar, consertar... Isso até o
momento em que tiveram de me tirar lá de baixo porque o médico
disse que um dia eu não voltaria mais. E faz cinco anos que sou
carroceiro... Que tal? Não é bonito? Cinqüenta anos de mina, sendo
que quarenta e cinco no fundo! (ZOLA, 2008 , p. 07)
É sobre um contexto de brutalidade desumana, que o personagem de Étienne surge,
germina fiel a causa revolucionária, de união do proletariado em prol da luta contra a
burguesia exploradora, como citado por Marx e Engels em “Manifesto Comunista”:
— O sistema assalariado é uma nova forma de escravidão —
continuou ele [Étienne] com a voz ainda mais vibrante. — A mina
deve ser do mineiro, como o mar é do pescador, como a terra é do
camponês. Compreendam isso de uma vez por todas: a mina é de
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vocês, de todos vocês, que há um século a vêm pagando com tanto
sangue e tanta miséria! (ZOLA, 2008, p. 224)
Trechos como estes trazem a tona o forte engajamento social empreendido em
Germinal. A leitura de tais escritos nas aulas de história também pode ser pensada para além
do gosto pela leitura, devendo o professor de história estar atento à relação dialógica que
emana a partir da leitura. Bittencourt (2011) afirma que na relação dialógica há um contato
entre autor e leitor, relação que possibilita “... sempre um contato entre lugares e épocas
diferentes.” (BITTENCOURT, 2011, p. 341). No contexto de dialogismo o ensino de história
tem na obra Germinal, importante aliado para interpretações históricas, ao fomentar, durante o
processo de ensino aprendizagem, o contato com um passado predisposto ao enriquecimento
da consciência histórica, já presente no alunado (CERRI, 2011, p.128). Tal enriquecimento
pode ser alcançado a partir de posicionamento crítico frente aos textos, com análise que
aproxima passado e presente, sem, contudo, perder de vista a visão histórica do processo que
constituiu a sociedade atual.
A mensagem contida no desfecho da obra, quando Étienne não consegue alcançar seu
principal objetivo, de levar a comunidade mineira a proclamar uma tomada de poder, é mais
uma possibilidade para o ensino de história devendo o professor neste caso explorar a
infelicidade do personagem, as causas. A inexperiência de Étienne aliado à ignorância ou
mesmo a miséria dos mineiros, foram elementos fundamentais para o fracasso da greve e dos
objetivos revolucionários. Momento em que professores e estudantes podem refletir sobre as
causas de tal desfecho, bem como as permanências que resistirá ao tempo e se materializa, nos
dias de hoje, no campo social, na vida de trabalhadores reprimidos por uma opressão
histórica.
Considerações Finais
A análise sobre a obra de Germinal permitiu identificar no romance uma importante
contribuição para projetos que se interessam por uma abordagem interdisciplinar entre
literatura e história, objetivando uma ampliação dos horizontes postos a interpretação
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histórica. Assim, por meio de um projeto interdisciplinar, que aproxima literatura e história é
possível romper com o tradicionalismo na disciplina história, uma vez que a narrativa literária
dá conta de descrever os seres humanos com seus sentimentos, sentimentos e conflitos. A
riqueza de detalhes, aliado a objetividade usada por Émile Zola é uma representação histórica,
da agitação fervente do século XIX, acessível a professores e estudantes que são livres para
construções críticas sobre a obra o autor e o contexto.
O desafio ou barreira imposto ao trabalho do professor de história que utiliza a escrita,
presente na obra Germinal, para discutir questões históricas, podem ser vistos em dois planos:
o da formação profissional e o da orientação ideológica. O primeiro diz respeito a um ponto
importante, do qual depende a construção do saber histórico em sala de aula. Isto porque a
formação do professor de história não se restringe a está área do conhecimento, mas a
diversas outras, Filosofia, Antropologia, Sociologia (SCHMIDT, 2012), algo que permite o
diálogo e a interdisciplinaridade em sala de aula. O segundo ponto justifica-se na forte carga
ideológica de cunho esquerdo-revolucionário, presente no livro de Émile Zola, o que pode ser
decisivo para o uso, ou não, da obra por professores com orientação divergente.
Por fim, é explicito o fato de que uma aproximação, com o devido cuidado, da
literatura pela história é um ganho para o conhecimento histórico construído em sala de aula,
na Educação Básica. Neste caso o diálogo é uma experiência enriquecedora ao trabalho
docente, ficando disponível ao professor de história o contato com detalhes e descrições que
podem suplantar o material didático. Ao discente é oferecida uma oportunidade de vislumbrar
sociedades passadas, sob a ótica literária, expondo a vida, o cotidiano e os sentimentos de
pessoas que ajudaram, em seu tempo, na construção da história, tal qual fazemos em nossos
dias.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DO CONSELHO TUTELAR DE IPORÁ-GO (1996-2014)
Joelma Gonçalves Marçal162
Introdução
A partir de 12 de outubro de 1990, com a entrada em vigor do Estatuto da Criança
e do Adolescente, todos os municípios brasileiros passaram a ser responsáveis pela
implantação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente163, Conselho
Tutelar164 e demais programas previstos na lei para assegurar o direito de todas as crianças e
adolescentes.
O poder legislativo estabeleceu, conforme a nova redação dada pela Lei Federal nº
8.242/91, de 12/10/91, ao art. 132 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que: “Em cada
Município haverá, no mínimo, um Conselho Tutelar composto de cinco membros, escolhidos
pela comunidade local para mandato de três anos, permitida uma recondução” (CONANDA,
2001, p. 12)
De acordo com Sousa (2010, p. 17), o Conselho Tutelar é um órgão inovador na
sociedade brasileira, com a missão de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do
adolescente e o potencial de contribuir para mudanças profundas no atendimento à infância e
adolescência. Para utilização plena do potencial transformador do Conselho Tutelar, é
imprescindível que o conselheiro, o candidato a conselheiro e todos os cidadãos conheçam
bem sua organização e reflitam sobre ela.
162
Graduanda em História - UEG-Iporá. E-mail: [email protected]
Conforme determinado no Estatuto da Criança e do Adolescente (artigos 131 a 140), “considera-se criança,
para os efeitos desta lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito
anos de idade” (art. 2º).
164
Dentre as inovações estabelecidas pela Lei nº 8.069/90 para a sistemática de atendimento à criança e ao
adolescente, está sem dúvida a previsão de criação dos Conselhos Tutelares, que por definição legal é “órgão
permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da
criança e do adolescente...” (Art.131).
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Do ponto de vista acadêmico, a existência dos Conselhos Tutelares tem suscitado
inúmeras discussões e questões. Os estudos até então empreendidos apontam uma tendência
em torno da qual parece haver consenso: os Conselhos Tutelares têm se constituído em meio a
uma situação de precariedade de recursos humanos, materiais e simbólicos e não
necessariamente como órgãos de defesa de direitos. Em função disso, a sua identidade transita
entre a defesa de direitos e a incapacidade de cumpri-la, expressando, à primeira vista, uma
dualidade entre a definição legal - o “dever ser”, que remete a um tipo ideal, e aquilo “o que
tem sido” possível ser, tendo em vista que estão se constituindo no interior do sistema de
garantia de direitos e na diversidade de cada município
Deste interstício entre o “dever ser” e o “que é” emergem posições pró
e contra os Conselhos Tutelares. Ora são referidos como defensores
dos direitos de crianças e adolescentes, ora são citados como órgãos
de atendimento caso a caso – guiados pela racionalidade técnicoburocrática
e
pelo
disciplinamento,
resultante
da
sua
institucionalização pouco vinculada aos princípios e diretrizes do
Estatuto (SILVA, 2011, p. 23).
Dentre os principais argumentos em defesa dos Conselhos Tutelares, destacam-se
pelo menos três aspectos. Primeiro, o conselho tutelar é importante, pois trabalha em favor da
família e da sociedade em geral, ou seja, ele tem como objetivo prestar serviços a comunidade
com atribuições definidas pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente); Segundo, a
imagem inicialmente vinculada ao Conselho é boa. Em geral, os conselheiros são vistos como
um grupo de cidadãos moradores do município, conhecedor da realidade das crianças e dos
adolescentes, depositário da confiança da comunidade que o elegeu e com o compromisso de
defender os direitos fundamentais citados no Estatuto, com autonomia em relação a todas as
outras instituições, apenas obedecendo aos preceitos legais; Terceiro, os Conselhos Tutelares,
através de seus agentes, denunciam publicamente a violação de direitos.
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Entretanto, existem vários argumentos contra os Conselhos Tutelares. Por vezes,
eles são vistos como instrumento de controle das famílias. Uma das principais críticas
dirigidas ao Conselho Tutelar refere-se a sua atuação restrita à regulação das condutas
individuais, ou seja, atua como um órgão burocrático do Estado efetuando o controle sobre a
população atendida, sobretudo, as famílias pobres, fato que o situa na perspectiva da
continuidade do Código de Menores (SILVA, 2011, p. 23).
Frizzo e Sarriera (2006, p. 208), por sua vez, afirmam que as críticas são dirigidas
“via de regra, aos conselheiros, cuja qualificação é posta em dúvida frente à magnitude da
importância que adquire o Conselho na sua tarefa de zelar pelos direitos da criança e do
adolescente”. Além disso, não haveria condições adequadas de funcionamento e acolhimento
em certos casos. Foram tecidas críticas ao acolhimento, cujo atendimento pode estar aquém
das demandas, como por exemplo, em relação ao abrigo de menores infratores.
Outro ponto bastante criticado diz respeito a burocratização e a sua composição.
De acordo com Gohn (2011, p. 231), “os municípios sem tradição organizativa-associativa, os
conselhos passaram a ser apenas uma realidade jurídico-formal, e muitas vezes um
instrumento a mais nas mãos dos prefeitos e das elites, falando em nome da comunidade,
como seus representantes oficiais, não atendendo minimamente aos seus objetivos”.
Acrescente-se ainda a ausência de mecanismos para apurar excessos e desvios dos
conselheiros. O cometimento de ações incompatíveis à conduta do conselheiro e que são
objeto dos comitês de ética, corregedorias ou outros mecanismos criados para apurar essas
denúncias e propor penalidades, em regra, deliberadas nas plenárias dos Conselhos
Municipais de Direitos também são desconhecidos (SILVA, 2011, p. 243).
Material e Métodos
Admitindo-se que o Conselho Tutelar resulta das discrepâncias entre a dimensão
jurídica ou “o dever ser” e as ações empreendidas pelo órgão com base nas condições
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existentes nos municípios ou “o que tem sido”, o importante para a realização desta pesquisa é
discutir os elementos que caracterizam o bom funcionamento de um conselho tutelar.
Baseado nas considerações teóricas de Lafer (2010) buscar-se-á três categorias de
respostas para descrever um conselho tutelar que funciona bem: as condições de trabalho
existentes, os resultados obtidos e o processo de trabalho.
Com relação às condições de trabalho, entendidas de modo amplo, pode-se dizer
que, dada a complexidade dos problemas sociais existentes nos municípios, destaca-se a
necessidade de haver um número de conselhos tutelares compatível com as dimensões e as
características da população de cada município. O ajuste da capacidade à demanda torna
factível a realização da tarefa que lhe é conferida em lei. Além disto, para funcionar bem, é
preciso que o conselho tutelar tenha uma infraestrutura básica adequada, com viatura
disponível, telefone, materiais, sala apropriada e apoio administrativo. O conselheiro precisa
receber uma remuneração justa pelo seu trabalho, com direitos mínimos garantidos e ter
acesso à formação continuada.
Em relação aos resultados, um conselho tutelar que funciona bem é aquele que
tem presteza no atendimento e consegue ter suas requisições atendidas e as medidas que
prescreve efetivamente aplicadas, resultando em rápido ressarcimento do direito violado. A
atuação do conselho tutelar não deve restringir-se ao atendimento e encaminhamento das
demandas que chegam ao balcão, pois ele deve procurar também cobrar o Executivo local
pela instalação ou melhoria de programas e políticas públicas e provocar o Judiciário quando
for pertinente. Uma atuação preventiva e não apenas reativa, que leva em consideração o
diagnóstico da situação do município e a as carências percebidas a partir dos atendimentos
feitos, é outro indicador importante. As referidas carências, ao serem bem compiladas, servem
de base para a interferência do conselho tutelar no orçamento da área, tarefa que ele não deve
deixar de lado. Para dar conta de maneira apropriada das tarefas que lhe cabem, um conselho
tutelar que funciona bem deve ter conhecimento dos fluxos da rede de atenção à criança e ao
adolescente e essa rede deve, preferencialmente, funcionar de maneira articulada e sistêmica.
É preciso também que ele tenha legitimidade junto aos atores do Sistema de Garantia de
Direitos e seja reconhecido pelas entidades, pelos prestadores dos serviços e pela comunidade
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– reconhecimento que é ao mesmo tempo causa e consequência da obtenção dos resultados
desejados.
Em relação ao processo, é importante a tomada de decisões de forma colegiada e a
atuação conjunta dos conselheiros. O bom atendimento tem começo, meio e fim. Ou seja, o
conselho tutelar deve escutar o fato de forma imparcial, com foco no ECA, na negociação e
no diálogo com os demais atores do Sistema de Garantia de Direitos, sem abusar da sua
autoridade. É preciso que faça um número de atendimentos mensal significativo e esteja
disponível para atender a população mesmo à noite e em feriados.
Quanto a metodologia empregada, trata-se de uma pesquisa teórico-empírica, ou
seja, além da abordagem teórica conceitual, realizou-se uma pesquisa empírica (trabalho de
campo) baseada na análise interpretativa de dados primários obtidas no estudo de campo por
meio de entrevistas semiestruturadas conforme Triviños (1987). Para este autor, a entrevista
semiestruturada tem como característica questionamentos básicos e “[...] favorece não só a
descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua
totalidade” (TRIVIÑOS, 1987, p. 152).
Trata-se então de uma pesquisa quantitativa e, sobretudo, qualitativa, tal como
afirma Chizzotti (1998, p. 79), pois essa forma de abordagem “parte do fundamento de que há
uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência viva entre o
sujeito e o objeto, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade”.
Entre as principais fontes de consulta destacam-se as obras bibliográficas, artigos,
periódicos e toda a legislação pertinente ao tema. Para compor a história do Conselho Tutelar
de Iporá foram consultados os livros de ata e os relatórios de suas atividades.
Resultados alcançados
A criação do Conselho Tutelar é feita a partir da proposta de lei enviada à Câmara
de Vereadores pelo Executivo Municipal. Esta proposta deve prever também a
regulamentação, no município, da criação e funcionamento e escolha dos membros do
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Conselho Tutelar. Se o Poder Executivo deixar de tomar essa iniciativa, a sociedade pode
representar ao Ministério Público para adoção das medidas administrativas ou judiciais
cabíveis.
No caso de Iporá-GO, o Conselho Tutelar de Iporá foi criado em 1996. De lá pra
cá se passaram dezoito anos marcados por dezessete gestões. Ou seja, cada presidente do
Conselho Tutelar de Ipora-GO teria exercido o cargo por um período de aproximadamente um
ano. (Cf. Tabela 01).
PRESIDENTE
PERÍODO
Walter José de Queiroz
1996-1997
Afonso Apolinário Coelho
1998/1999
Valdivino José Ferreira
2000/2001
Walter José de Queiroz
2002-2003
Divino José L. de Oliveira
2006/2007
Carlos Eduardo Mendes Alencar
2007/2008
Marta Marçal Rocha
2008
Adélia C. Alves
2008/2009
Adélia C. Alves
2009/2010
Carlos Eduardo Mendes Alencar
2010/2011
Fabiana Cristina da Silva
2011
Elza de Souza Soares
2011
Valdomiro Alves de Paula
2012
Enicleudes de Sousa Moreira
2012
Rogério Cândido Souza
2012
Marta Marçal Rocha
2013
Fabiana Cristina da Silva
2013/2014
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Tabela 01: Presidentes do Conselho Tutelar de Iporá-Go (1996-2014). Fonte: Elaborado pela pesquisadora,
2014.
De acordo com a conselheira Marta Marçal Rocha e a secretária Aparecida Pontes
Botelho o bom funcionamento do Conselho Tutelar de Iporá deixa a desejar. Como exemplos
destaca-se a falta de equipamentos como copiadora, fax e, até mesmo, telefone fixo. Existe
apenas um telefone celular pré-pago que é utilizado no dia-a-dia com crédito de apenas
cinquenta reais mensais doado pela Prefeitura Municipal.
Não se sabe ao certo quantas ocorrências foram registradas ao longo de toda a
história do Conselho Tutelar de Iporá-Go. A partir de 2010, Aparecida Pontes Botelho foi
disponibilizada pelo Conselho Municipal Antidrogas para atualizar e sistematizar os dados.
Até o momento, foram registradas 1282 ocorrências em 2012, 1038 ocorrências em 2013 e
540 ocorrências até o dia 28 de julho de 2014. De acordo com esses dados, acredita-se que a
media de ocorrências anuais deste Conselho é de aproximadamente 1200.
As principais ocorrências são as praticadas no próprio âmbito familiar e a maioria
destas é praticada por pais, padrastos, tios, ou seja, por meio desta pesquisa foi possível
verificar que o local de maior incidência onde a criança e o adolescente sofrem abusos é o
próprio leito familiar e que estes abusos são praticados por membros da família, por aqueles
que deveriam educar e proteger.
A equipe do Conselho Tutelar segue uma carga horária rígida de
aproximadamente 4 horas diárias e um plantão por semana que se inicia às 17 horas e termina
às 7 horas do dia seguinte. A Lei N°. 12. 696, de 25 de julho de 2012, que altera os artigos
132, 134, 135 e 139 da Lei N°. 8.069 de 13 de Julho de 1990 (Estatuto da Criança e do
Adolescente) dispôs que:
Art. 134. Lei municipal ou distrital disporá sobre o local, dia, e horário
de funcionamento do Conselho Tutelar, inclusive, quanto à
remuneração dos respectivos membros aos quais é assegurado o
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direito a: I – Cobertura previdenciária; II – Gozo de férias anuais
remuneradas, acrescidas de 1/3 (um terço) do valor da remuneração
mensal; III – Licença maternidade; IV – Licença paternidade; V –
Gratificação natalina.
Parágrafo Único. Constará da lei orçamentária municipal e da do
Distrito Federal previsão dos recursos necessários ao funcionamento
do Conselho Tutelar e à remuneração e formação continuada dos
conselheiros tutelares.
Em 6 de setembro de 2010 o veículo do Conselho Tutelar de Iporá foi depredado.
De acordo com Pedro Cláudio Rosa, “se já não estava em boas condições de uso, agora
piorou. O Veículo do Conselho Tutelar estava estacionado enfrente a residência de Ariela
Verena na noite de 04 para 05 de setembro, quando quebraram os vidros laterais e trazeiro. A
Polícia foi acionada mais ninguém foi responsabilizado pelo dano. Ficou o prejuízo para o
município” (ROSA, 2010).
Para piorar ainda mais a situação, em 2011 o Conselho Tutelar de Iporá funcionou
com apenas uma conselheira e registrava em média 200 a 300 ocorrências por mês, conforme
se verificou por meio da reportagem do Jornal Oeste Goiano (11/03/2011) a seguir:
O Conselho Tutelar de Iporá pode se esvaziar por completo. É que a
única Conselheira Tutelar que ainda resta, Fabiana Cristina da Silva,
já pensa pedir demissão. Ela ficou sozinha para carga de trabalho
impossível de ser feita. Antes do Carnaval, todos os demais
conselheiros pediram demissão. Para aquele evento houve uma
contratação especial de 4 auxiliares. Agora, ela, a Conselheira Fabiana
Cristina, está sozinha na tarefa. E em uma cidade onde se registra
mensalmente de 200 a 300 ocorrências e atendimentos por mês, a
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tarefa é impossível para uma pessoa só. A demanda de plantão acaba
envolvendo a Conselheira por todo tempo, dia e noite.
O Ministério Público exigiu da Prefeitura a contratação de pessoas
para suprir a falta já que não existem suplentes para serem chamados.
Mas o prefeito, ao fazer uma consulta ao Tribunal de Contas dos
Municípios (TCM), foi advertido de que não pode fazer esta
contratação especial de conselheiros, pois este é um cargo de quem
precisa ser eleito pelo povo. Com esse impasse e com a disposição da
única Conselheira em renunciar, a situação pode ficar grave em Iporá
para o atendimento de assuntos ligados à crianças e adolescentes
(JORNAL OESTE GOIANO, 2011).
Mas, apesar das grandes dificuldades passadas e presentes, há indícios de ações
afirmativas. Em 2012, as conselheiras fizeram curso.
O Conselho Tutelar de Iporá, representado pelas conselheiras Fabiana
Cristina da Silva, Leonilda Maria Lassi de Azara e Marta Marçal
Rocha, participou do Curso Básico Introdutório para Conselheiros dos
Direitos e Conselheiros Tutelares do Estado de Goiás. O curso foi
promovido pela PUC GOIÁS/ Escola de Formação de Operadores do
Sistema de Garantia de Direitos. Foram realizados em Goiânia dois
módulos e em Iporá um módulo. A Prefeitura de Iporá deu respaldo
para que as conselheiras pudessem estar fazendo essa capacitação.
Segundo elas, a experiência adquirida nesses cursos é de suma
importância, pois são vários conselheiros de várias cidades reunidos e
demonstrando a realidade de cada município onde fazem o trabalho de
fazer cumprir o Estatuto da Criança e do Adolescente. (MARQUES,
2014)
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Além disso, em 2014 a Prefeitura de Iporá entregou Veículo Zero Km ao
Conselho Tutelar de Iporá.
Na tarde da última sexta-feira dia 04 de julho, foi entregue o veículo 0
km ao Conselho Tutelar de Iporá, uma emenda parlamentar do
Deputado Federal João Campos que beneficiou o município de Iporá,
fazem parte dessa emenda ainda um kit contendo uma geladeira e
cinco
Computadores
com
impressoras
que
serão
entregues
posteriormente. Estiveram presentes no Evento vários autoridades
dentre elas o Prefeito Danilo Gleic, Deputado João Campos e seu
Filho Thiago Campos, Vereadores da base Wênio Pirulito, Duílio
Siqueira, Cleudes Alves, Chico Paulo e Suélio Gomes, Coronel
Almeida da Polícia Militar, Capitão Rafael do Corpo de Bombeiros,
Pastor Ataul, Layanne e Adélia Representantes da Secretaria de
Assistência Social, parte do Secretariado da Prefeitura Municipal,
Assessores e Servidores Públicos, as cinco Integrantes do Conselho
Tutelar e a comunidade em geral. O veículo Chevrolet SPIN de sete
lugares, agora servirá para os trabalhos do Conselho Tutelar de Iporá.
O Prefeito Danilo Gleic agradeceu o empenho do Deputado João
Campos e afirmou que essa é mais uma conquista dessa parceria e que
vem em hora oportuna, Danilo agradeceu mais uma vez o empenho
dos Vereadores da base que dão sustentação a gestão e a presença de
todos, sempre afirmando que a gestão está trabalhando sempre para o
bem comum (PREFEITURA DE IPORÁ, 2014).
Considerações Finais
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A existência do Conselho Tutelar em Iporá-GO, composto por membros da
comunidade local, é uma reafirmação dos princípios democráticos que orientaram a
elaboração da Constituição Federal de 1988 e do ECA. No entanto, com a crescente
urbanização do município e o aumento da população, é um desafio permanente manter a
afiliação comunitária e o engajamento cívico em torno da defesa de direitos. Com o
arrefecimento da atuação dos movimentos sociais e do próprio movimento da área da
infância, que deu origem ao ECA, também esse desafio tornou-se ainda maior. Conclui-se,
então, que, apesar das conquistas obtidas pelos Conselhos Tutelares nos últimos anos de
implementação do ECA, restam ainda importantes passos a vencer para torná-los órgãos
fortes, espaços de representação e defesa de direitos da sociedade civil junto aos agentes
públicos.
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no art. 132.
BRASIL. Lei N°. 12. 696, de 25 de julho de 2012, que altera os artigos 132, 134, 135 e 139
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LAFER, Inês Mindlin. Conselhos Tutelares: variáveis-chave e bom funcionamento. A
interferência do perfil dos conselheiros, do desenho institucional e da articulação da política
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Empresas de São Paulo como requisito para a obtenção do título de Mestre em Administração
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MARQUES, Adriana Oliveira. Conselheiras Tutelares de Iporá. Escola de Formação de
Operadores do Sistema de Garantia de Direitos. Implementação do Núcleo de Formação
Continuada de Conselheiros dos Direitos e Conselheiros Tutelares do Estado de Goiás. PUCGoiás, 2012. Disponível em: http://escoladeconselho.pucgoias.edu.br/index.php/noticias/127conselheiras-tutelares-de-ipora. Acesso em 24 de julho de 2014.
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PREFEITURA DE IPORÁ. Prefeitura fez entrega de Veículo Zero Km ao Conselho Tutelar
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QUEIROZ, Walter. Conselho Tutelar de Iporá fiscaliza bares. Notícia publica em 8 de
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Acesso em 24 de julho de 2014.
ROSA, Pedro Cláudio. Veículo do Conselho Tutelar de Iporá foi depredado. Notícia
publicada no blog do Pedro Cláudio em 6 de setembro de 2010. Disponível em:
http://radialistapedro.blogspot.com.br/2010/09/blog-post.html. Acesso em 24 de julho de
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SILVA, Maria Salete da. Na fronteira da defesa de direitos: a capacidade de vocalização dos
conselhos tutelares de Santa Catarina. Tese (Doutorado em Sociologia). Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2011. 294 f.
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SOUSA, Everaldo Sebastião (Coord.). Guia Prático do Conselheiro Tutelar. Goiânia : 2ª
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TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em
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“MUKUIU PARA QUEM É DE MUKUIU. KOLOFÉ PARA QUEM É DE KOLOFÉ.
MOTUMBÁ PARA QUEM É DE MOTUMBÁ”165: UM POUCO DO CANDOMBLÉ
ANGOLA
Joilson de Souza Toledo
Mestrando em Ciências da Religião / PUC – Goiás
e.mail: [email protected]
Introdução
Este artigo nasce a partir do que foi estudado na disciplina Fenômeno Religioso.
Nela o fenômeno religioso é apreendido por quem participa desta religião: sua noção de
sagrado, mitos, símbolos, rito e a maneira de se organizar desta religião.
Para dialogar sobre o Candomblé é preferível iniciar falando sobre “Candomblés”166,
especialmente pela diversidade de nações. A própria maneira de saudar já expressa isso, como
ilustra o título escolhido para esta parte do artigo. Desta forma cabe uma diferenciação do
que, numa visão geral, conhecemos sobre as religiões de matriz africana.
Primeiramente convém dizer que o Candomblé é uma religião brasileira. Uma reexpressão de uma religião africana e, por isso, falamos de Matriz africana, mas nunca uma
mera cópia. O candomblé um elemento importante quando falamos de africanidades. Por isso,
quem vai para a África hoje reconhece semelhanças e diferenças.
Num geral, o Candomblé de Ketu é mais conhecido, mas não é o único no Brasil.
Temos, ainda, as nações Angola e Jejê. Também no campo acadêmico Angola é uma nação
pouco pesquisada (PREVITALLI, 2011, p.1; ADOLFO, s/d, p. 1). O Candomblé de Angola
tem sua origem nos negros bantos, “chegados ao Brasil. Procediam, principalmente, de
Angola, do Congo, de Benguela, de Cabinda, de Mossamedes, na Africa Ocidental, e de
165
Saudação comum entre alguns praticantes de religiões de matriz africana. Expressa o desejo de benção diante
da diversidade entre elas. Mukui é uma expressão bantu. A resposta seria MukuiNZamby (Deus te abençoe).
Kolofé é palavra mais comum na nação Jejê, também usada no candomblé de Ketu e na Umbanda. Motumbá é
uma expressão iorubá.
166
Candomblés da Bahia de Edison Carneiro, Candomblés de São Paulo de Reginaldo Prandi.
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Moçambique e do Quelimane, na Contra Costa” (CARNEIRO, 1981, p. 126), enquanto Ketu
se baseia na experiência religiosa de vários que vieram da região onde hoje é a Nigéria, os
Iorubás; mas temos no Brasil, também, a nação Jejê que vem da região de Dahomé. Na
verdade a própria expressão Jejê quer dizer forasteiro e vem da maneira como os Iorubás
chamam os povos que estavam mais ao leste. Os bantos são o primeiro grupo a chegar ao
Brasil em 1580. Foram escravizados e destinados ao trabalho em áreas rurais, por isso tiveram
mais contato com os indígenas. Os Jejê são o segundo e, por último, chegaram os Iorubás.
Aproximando-nos da origem e da experiência
É um fato que as religiões de matriz bantu, principalmente a Umbanda e o
Candomblé Congo/Angola, têm assimilado de forma acentuada os elementos de matriz
iorubana (ADOLFO, s/d, p. 1).
O Candomblé é uma religião baseada na ancestralidade, por isso podemos dizer que
o carismático é um ancestral. Talvez fosse mais apropriado dizer que são descendentes de
africanos que fazem sua experiência do sagrado em solo brasileiro buscando, a partir do que
estava à disposição aqui, reconstruir uma experiência que deita raízes na vivência do sagrado
feita pelos bantus, ainda na África. Esta vivência é marcada pela importância da tribo, dos
mais velhos e da relação com a natureza.
Este ancestral fez – estes ancestrais fizeram – a experiência de entender o universo
como um cosmos. A reconstrução da religião, no Brasil, é uma tentativa de reconstruir uma
cosmogonia. Nesta tradição religiosa imagina-se que, para que todo o universo exista, é
necessário um sustentáculo, uma energia, algo que dá possibilidade à existência. A isso se deu
o nome de Axé ou ngunsu167. Tudo, para existir, tem que ter axé: as pedras, o vento, a planta,
os animais e também os seres humanos. Ele é a energia vital pela qual tudo, que existe, veio à
existência. É a potência sem a qual nada pode existir.
167
Como o candomblé de Angola assimilou muito elementos da nação Ketu e a própria casa investigada mostra
estes traços sincréticos. Em vários pontos da pesquisa traremos a perspectiva da pesquisa, contudo tomaremos
por base o que foi colhido na própria casa visitada.
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Para nos comunicar o axé, Mzambi (para os bantus) ou Olorum (para os Iorubás),
nos deu os orixás ou Inquesis (para os bantus). Eles são ancestrais das pessoas que foram
encarregados de guiá-los: ser “Ori-xá”, donos da cabeça. Ancestros que regem a vida de seus
filhos com a incumbência de comunicar o axé. São princípios da natureza divinizados que
expressam as potências vitais: o vento, o trovão, as folhas, a terra, os metais, a água salgada, a
água doce. Mas expressam, também, dimensões da humanidade: a ternura, a maternidade, a
sabedoria, a bravura, a irreverência, as técnicas, a perícia. O transe, as oferendas, a iniciação
tudo ganha seu sentido como lugar/momento de comunicar o axé.
O Sagrado e os Mitos
O Candomblé tem uma atmosfera que transpira o sagrado. Estamos diante de
energias vitais, ancestrais e cosmológicas. Ao ter contato com um terreiro de Candomblé se
vivencia o que, como afirma Otto (1985) “a religião não se esgota nos enunciados racionais”
(1985, p. 36). Nele fica claro o sentimento de dependência absoluta e de mysterium
tremendum (OTTO, 1985, p. 44). Um sentimento que mistura medo, fascínio e reverência
(OTTO, 1985, p. 47).
Diante do Orixá o Yaô168 ou Abiã169se reconhece criatura, pó, diante da divina
majestade. O que causa um “sentimento subjetivo de ‘dependência absoluta’ pressupõe uma
sensação de superioridade (e inacessibilidade) absoluta do numinoso” (OTTO, 1985, p. 43),
que desembocará numa ‘humildade religiosa” (OTTO, 1985, p 52). Afinal, é esta entidade que
guia minha vida, rege minha cabeça. Devo amá-la, reverenciá-la, cuidar dela.
O candomblecista, enquanto pessoa religiosa, marca o lugar como sagrado; para ele,
o espaço não é todo igual. Tem intensidades diferentes. Um terreiro é um lugar denso de
significado. Assim, a emersão do sagrado faz desencadear um território qualitativamente
diferente. Constitui sinais que “introduzem um elemento absoluto e põem fim à relatividade e
à confusão” (ELIADE, 1992, p. 26). Desta forma, o Candomblé também reconhece “lugares”
de comunicação do axé. Dentro do Candomblé é notório o desejo do homem religioso de
168
Iniciado no candomblé. Numa tradução mais literal no Iorubá Yaô quer dizer esposa.
Alguém que frequenta o candomblé, mas ainda não é iniciado.
169
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viver no centro do mundo (ELIADE, 1992, p. 22). O que é um terreiro, uma roça, se não um
espaço consagrado (ELIADE, 1992, p. 27)? O sagrado se manifesta nos elementos da
natureza. Uma expressão comum nas religiões de matriz africana manifesta bem esta
experiência: “Sem folha não há orixá”.
Este sagrado se comunica de geração para geração nas narrativas mitológicas. No
mito, o povo do Candomblé, como toda comunidade crente, expressa seu ethos. Os etnólogos
defendem que o mito é uma história verdadeira, “tradição sagrada, revelação primordial,
modelo exemplar” (ELIADE, 1972, p. 8). Os mitos primitivos nos fornecem dados da
realidade primeva daquela cultura. Eles se constituem em documentos vivos. Ainda mais,
numa religião marcada pela oralidade, como o Candomblé.
Os mitos são narrativas que nos reportam à África nos tempos primordiais, que
contam o princípio do mundo. A origem dos ancestrais, pela experiência do sincretismo,
também falam de entidades que têm sua origem no Brasil, tais com pretos velhos, caboclos,
marinheiros, pombo giras.
Narram “como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a
existir” (ELIADE, 1992, p. 11). Como, a partir de Olorum e dos Orixás, tudo que existe veio à
existência. Como no nosso caso, em especifico, os orixás.
Os mitos nos falam das origens,
“de todo os acontecimentos primordiais em consequência dos quais o
homem se converteu no que é hoje (...) assim como o homem
moderno se considera constituído pela História, o homem das
sociedades arcaicas se proclama o resultado de um certo numero de
eventos míticos” (ELIADE, 1972, p. 16).
“Aprende-se não somente como as coisas vieram à existência, mas também onde
encontrá-las e como fazer com que reapareçam quando desaparecerem” (ELIADE, 1972, p.
8). Assim, eles vão dar sentido aos símbolos, gestos, costumes. Também ajudam um “filho de
santo” a entender sua personalidade, as outras pessoas, a vida. Estes mitos nos explicam quem
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são os orixás, quem somos nós, o porquê de elementos e vestimentas, o processo de feitura.
Como é comum em muitas religiões, existem mitos que falam sobre símbolo, festas, e danças.
Símbolos e Ritos
Os símbolos são um importante meio de comunicação (ROCHER, 1971, p. 161).
Sendo eles uma coisa que evoca outra, é algo que nos remete a uma realidade maior do que
eles são. Já que qualquer religião é lugar de uma experiência do sagrado compartilhada, os
símbolos e ritos são um elemento imprescindível para que isso se dê, quaisquer que sejam
eles. Em se tratando mais especificamente da experiência de sagrado que constituiu as
religiões de matriz africana, a religião não se pode configurar sem símbolos.
A coletividade para se concretizar necessita de símbolos que ajudem a constituir o
grupo a olhos vistos. Eles provocam e alimentam o sentimento de pertença. Podem ser
elementos, atividades, datas, canções; ajudam a construir coesão e familiaridade. Eles
“servem para concretizar, tornar visuais e tangíveis realidades
abstratas, mentais ou morais, da sociedade. Contribuem desse modo
para lembrar e manter os sentimentos de pertença, para suscitar ou
assegurar a participação adequada dos membros, segundo a posição e
o papel que cada um ocupa, para manter a ‘ordem social natural’ e a
solidariedade que ele implica” (ROCHER, 1971, p. 168).
A riqueza simbólica tem muitas facetas (expressões): fios de conta, os elementos dos
assentamentos, as ferramentas dos orixás, as folhas, as cores, as imagens, os elementos de
vestuário, as comidas. São traços simbólicos que constituem o Candomblé de Angola.
Devido ao forte sincretismo que marca a nação angola ao falar de seus símbolos,
inevitavelmente abordaremos alguns símbolos seja da umbanda ou do catolicismo, bem como
elementos da Nação Ketu. Por isso, imagens de santos católicos, ferramentas dos orixás,
folhas, cores, velas, roupas de orixás, assentamentos vão trazer algum elementos típicos de
Angola, mas também do catolicismo popular e de outras nações.
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O rito é um elemento presente nas várias culturas. Como diz Cazeneuve, “uma
sociedade desprovida de qualquer ritual seria uma anomalia” (s/d, p. 9). Um elemento
fundamental no rito é certa constância, certa repetição. Por isso, nele encontramos traços da
sociedade, por vezes num estado mais próximo do original. “O rito é um ato cuja eficácia
(real e pretendida) não se esgota na ligação empírica das causas e efeitos” (CAZENEUVE,
s/d, p. 13). Ele nos liga com o mundo que vai além do empírico. No Candomblé esta
constância se nomeia preceito. Como em outras religiões, no Candomblé o rito é a atualização
de um mito. Nele se vivencia no hoje da história a reverência necessária a exu (padê de exu),
as peripécias nas quais se envolveu Oxalá (Águas de Oxalá), as batalhas de Ogum, Oxum se
banhando no rio.
Os ritos expressam, de forma plástica, o mito. O Xirê é um dos mais significativos do
Candomblé onde a dança de cada orixá conta como numa peça de teatro ou uma ópera, seus
mitos. Ele torna presente o que expressa. De alguma forma os ritos nos trazem até a
eternidade. Assim, tem uma função sintética.
“O rito tem como objetivo essencial levar os seres e as coisas a comunicarem entre si,
segundo regras codificadas” (RIVIÈRE, 1996, p. 83). Todo rito supõem codificações. Neles
há sempre uma mensagem para ser comunicada. Por este motivo tem uma função denotativa,
expressiva, conativa, fática e metalinguística.
O rito constrói conexão. Garante continuidade. Reflete e legitima as relações
constituídas. Quando falamos em ritos profanos, falamos das relações sociais. De um
mecanismo que renova as mesmas. Por exemplo, o rito de saldar o zelador da casa, os mais
velhos de santo e os lugares do axé mostram uma organização social.
“O componente semântico do rito (quais símbolos são acionados?)
remete a um componente gnosiológico (a quais crenças ele se refere?)
e axiológico (quais valores são revelados aí?) sendo que os valores só
adquirem tal estatuto pelo fato de se basearem na crença” (RIVIÈRE,
1996, p. 93).
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Contudo, nele (no rito) reside certa ambiguidade. No aspecto social é
simultaneamente lugar de reunião, delegação e reciprocidade imediata. No campo formal
manifesta tensões: rigidez x liberdade e real x ficção. Assim está repleto de paradoxos.
Tem, da mesma forma, um aspecto lúdico. “Senão com a diversão, pelo menos com
o desempenho de papéis diversificados (...) implica instruções, regras definidas e específicas
como de respeitá-las. A incerteza é limitada pela carga do controle e da regularidade”
(RIVIÈRE, 1996, p. 103). Ao olhar um toque de Candomblé vemos como a seriedade da
reverência e a alegria da festa se misturam. A própria expressão Xirê, que quer dizer festa, nos
sinaliza isso. Os ancestrais e seus filhos fazem festa juntos. As danças animam e alegram.
“Para que os símbolos sejam significativos, os sujeitos a quem eles se dirigem têm que
conhecer e aprender esse código” (ROCHER, 1971, p. 157). Esta aprendizagem, no
Candomblé, se dá no processo de iniciação onde o abyã vai aprender os mitos de seu orixá e
os preceitos básicos do Candomblé.
“Na realidade, todas as hierarquias sociais são acompanhadas de um simbolismo muito
rico, como se fosse particularmente importante alardear as distinções de posição e de poder.”
(ROCHER, 1971, p. 172). Desta forma vemos isso no Candomblé angola seja no vestuário,
seja no portar o adja170, na cadeira de Besen171.
Institucionalização da experiência religiosa
O processo de institucionalização do Candomblé brasileiro se dá, como afirma
O’Dea (1969, p. 56), numa crise de continuidade. Um processo de rotinização do carisma
onde os negros bantus se esforçaram em criar maneiras de ainda experienciar sua vivência do
sagrado já em terras brasileiras, mesmo que sob novas condições.
Falar da institucionalização da religião é um desafio já que boa parte dos autores da
referência bibliográfica da nossa disciplina tomam por base o cristianismo (O’DEA, 1969;
WEBER, 1991; BOURDIEU, 1998). Enfrentando este desafio é possível dizer também, sobre
o Candomblé Angola, que existem três elementos importantes no processo de
170
Uma espécie de sineta tocada pelas pessoas de autoridade da casa durante a cerimonia de culto.
Cadeira tem o nome do Orixá que rege a casa. “De Besen por que a casa que pesquisamos é de Oxumarê.
171
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institucionalização: culto, convicções e organização (O’DEA, 1969, p. 59-75). Lembrando
que um grupo faz o culto e o culto configura o grupo, pois o culto é um ato social (O’DEA,
1969, p. 61). A padronização do culto, a seleção das convicções fundamentais e a maneira de
se organizar que configuram o que num geral podemos chamar de Candomblé Angola.
A maneira como o Candomblé se organiza com a possibilidade de, ao se fazer sete
anos iniciado, se abrir uma nova casa cria a possibilidade de crescimento e
institucionalização. Tornou viável a continuidade institucional, pois como afirmam as ciências
sociais a constituição de um grupo clerical é também um fator decisivo. Algumas pesquisas
também buscam delinear a partir de que casas de candomblé e pessoas a nação angola se
expandiu pelo Brasil (ADOLFO, s/d, p. 2-4; CARNEIRO, 1981, p. 133.).
O Candomblé se organiza a partir de casas, ilês autônomos. Estes são dirigidos por
um babalorixá, que é alguém que já tem mais de sete anos de iniciado. As casas se
reconhecem entre si, mas não há uma estrutura central. Quando se organiza uma federação,
esta é uma estrutura de entre-ajuda, mas não de coordenação. Dentro da casa há uma
hierarquia constituída não somente pelas funções, mas também pelo tempo de iniciado. Esta
hierarquia se deixa ver nitidamente no xirê (roda onde dançam os iniciados). Ela é organizada
a partir do tempo de santo. Também quando inicia o toque para um orixá, todos os filhos deste
orixá saúdam as pessoas que coordenam a casa.
Outro fato que expressa as relações institucionalizadas é o lugar que cada um ocupa
na hora de se alimentar no terreiro. A Equede172, o Babalorixá e o Ogam comem na mesma
mesa reservada às autoridades e com colher diferente dos Yaôs e Abiam que comem
separados em com a mão.
Entre os agentes religiosos temos o babalorixá ou a ialorixá, a iaquequerê173, a
equede, e os ogans174, que são os principais. A localização na casa e a maneira de tratamento
tem seu significado. No Candomblé a cadeira do líder é reverenciada, mostrando a
importância da sua posição. À luz do pensamento de Bourdieu, podemos classificar o
babalorixá e a ialorixá de sacerdotes. Sendo que, em algumas situações, também é possível
172
A mulher que não incorpora e serve os orixás.
Quando o zelador da casa não esta presente é ela que zela pelos filhos de santo.
174
Existem vários tipos de Ogan. Os de corte, colabora no sacrifício dos animais, Ogan de canto, toca e puxa o
canto e Ogan virante este incorpora de um em um ano.
173
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entrever a postura de mago em certas lideranças do Candomblé. A figura do profeta não é tão
comum.
Um pouco do Ilê Axé Oxumarê
Após nos aproximarmos do fenômeno religioso no Candomblé dialogando com
alguns autores abordados vamos buscar retratar o observado numa visita feita a um terreiro de
Candomblé Angola durante a pesquisa de campo.A casa estudada se situa no setor Madre
Germana 1, no município de Aparecida de Goiânia/GO. Este setor é relativamente novo, a
habitação iniciou em 2001. Boa parte da população é de origem baiana e maranhense. O
terreiro nasceu em 2002. O Zelador da casa tem 25 anos e foi iniciado com quatorze anos
quando deu sua primeira obrigação
Trazemos aqui a participação no Catimbó de Preto Velho. Aqui para dar destaque a
maneira como a experiência religiosa se expressa plasticamente descrevemos primeiro o
espaço físico e depois os dois momentos de culto.
Descrição do espaço físico da casa
Ao chegar vi um alguidar e uma quartinha em cima da entrada. Ao lado direito de
quem entra, no portão, tinha uma “casinha” que parecia ser de Exu. Fui recebido pela mãe do
Zelador da casa. Ao chegar ao terreiro que fica nos fundos da casa desta senhora, encontrei
quatro pessoas, participantes da casa, que esperavam para a sessão. Estavam à frente de uma
cozinha e conversavam informalmente. No lado direito da entrada, perto da porta da cozinha,
pude ver uma imagem de Nossa Senhora e outra imagem que eu não consegui reconhecer.
Quando foi retirar o pano de cima uma das filhas de santo, que é de Yemanja, disse: “vou
descobrir minha mãe”.
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Olhei melhor o espaço e reparei um assentamento175 de Exu ao ar livre e ao mesmo
tempo vi a casa deste orixá quase em frente ao lugar onde eu estava sentado. Quando o
Babalorixá chegou, me apresentou a casa. Na entrada do terreiro como na de várias casas de
santo se encontram folhas de Palha da Costa.
As casas de santo eram como que cômodos e o terreiro um salão. Um espaço
relativamente pequeno. Entrando no terreiro, do lado esquerdo ficava uma entrada para a casa
de Exu. Observei as ferramentas, uma imagem e uma cartola vermelha e preta. Ao lado, a
casa de Ogum com vários elementos em metal, uma espada. A cor que predominava no
espaço era o azul turquesa. Acima dela, uma imagem de São Jorge. Ao lado, a casa de Omulu.
Lá dentro tinha um cruzeiro e uma imagem coberta que era de um preto velho. Em cima, uma
imagem de São Sebastião. Ao lado, a casa dos caboclos. Em cima, uma imagem coberta, que
era de São Francisco. Esta era ladeada por uma imagem de um caboclo de um lado e de outro
lado uma imagem de um caboclo e um marinheiro. Ao lado, a casa de ifá, lugar das consultas
e do jogo de búzios. Já na frente, a casa de oxalá onde não consegui ver nada. Ao lado, a casa
do Ogum da Mãe do Pai de Santo. Entre a Casa de Oxalá e a casa do Ogum da “Pastora” estão
dois atabaques. Acima deles, três quadros (Oxum, Logun Edé e Yemanja) e, acima dos
quadros, uma imagem de Nossa Senhora. Uma camarinha com os axés dos filhos176 da casa e
outro quarto onde as pessoas são iniciadas. Entre estes dois quartos existe as cadeira de quem
zela pela casa. Eram três cadeiras. Na parede, quadros representando vários orixás: Oxum,
Ogum, Xangô e Oxumaré. Também ao lado se encontrava uma montagem, na parede, uma
série de fotos do zelador da casa dançando incorporado com o Oxumarê.
Ao centro existia uma coluna. Na parte superior da mesma tinha uma espécie de
prateleira com uma tigela, com o “tempo” e embaixo o fundamento da casa. Abaixo, adjás,
vaso com plantas, um pilão e outros elementos. Todas as imagens de santos católicos estavam
cobertas com pano, com exceção de São José. Numa mesa, na lateral, com um pano amarelo.
Descrição da festa
175
Assentamento de Orixá é o nome que se dá a representação material e pessoal de um orixá composta por
apetrechos ou fetiches de um determinado orixá. No caso especifico narrado era um tridente de ferro.
176
Assentamento dos orixás aos quais os filhos da casa foram iniciados.
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A vestimenta das mulheres iniciadas era de estilo bahiana. Os homens se vestiam de
branco, mas alguns usavam bermudas. Várias velas foram ascendidas no espaço junto às
imagens de santo, no meio da casa e na entrada das casas de Obaluaye, Ogun e Caboclos. O
ritual começou com um dos filhos de santo, que parecia ser importante na hierarquia da casa,
vinha com um pequeno turíbulo incensando cada um dos presentes e cada um dos lugares.
Enquanto isso se cantava ao som dos atabaques. Em seguida, cantou-se para Exu em iorubá.
Depois se ofereceu o padê de Exu: Uma farofa com azeite de dendê num alguidar de barro 177.
Posteriormente, começou a se cantar em iorubá, quando todos, a começar pelos mais
velhos no santo, iam saudando o axé da casa “batendo cabeça”178 para: a cadeira de besen, o
Zelador da casa, os Ogans e atabaques, a porta da entrada e o meio do salão (fundamento da
casa). Depois cada filho de santo ia, cumprimentando o babalorixá e a todos que eram mais
velhos, no santo na casa. Os cantos ainda eram em iorubá.
A ordem da roda é por tempo de iniciação. Os que pareciam ser os três primeiros na
hierarquia da casa vinham tocando um adjá. Logo após, começou a se cantar para preto
velho, em português. O Pai de Santo ia puxando a maior parte dos pontos cantados.
Começava com a saudação: “adorei as almas”.
Na medida em que os pretos velhos iam incorporando em seus “cavalos” recebiam
uma bengala (que era um galho seco de árvore), uma vela que era acesa e um copo com água
que ficavam aos seus pés ou próxima, um cigarro de palha; alguns preferiram e receberam um
cachimbo. Eles também recebiam uma cuia ou copo com café. Alguns tocos de madeira foram
colocados no salão para que eles se sentassem. Um preto velho disse que não precisava deste
luxo. A luz da casa foi apagada e os pretos velhos começaram a dar consultas e passes para os
presentes que quisessem.
Cinco pessoas incorporaram “Pretos Velhos”. Assim que entravam em transe, eles
passavam a caminhar mais devagar, encurvadas como se tivessem muita idade; a voz também
177
Dependendo da intenção e da tradição o padê de exu pode usar elementos diferentes: tais como no lugar do
azeite de dendê se usar água ou mel. Há tradições que também oferecem um fígado cru apimentado.
178
Saudação típica das religiões de matriz africana onde a pessoa se prostra diante de alguém ou algum lugar.
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mudava. Alguns ficavam pronunciando orações quase que o tempo todo, tais como: “salve
mzambi, salve nossa senhora do desterro”.
Durante a noite algumas pessoas que incorporavam orixás foram levadas para a
camarinha e lá “viraram” no erê. Ao todo, foram três. Estes brincavam pela casa como se
fossem crianças. Dois deles chamavam algumas pessoas para falar com os Pretos Velhos. Nas
consultas, os Pretos Velhos rezavam sobre as pessoas falando, dando passes com as mãos e
soprando a fumaça do cigarro de palha ou do cachimbo. Ensinavam orações, davam
conselhos, propunham “amuletos” para “segurança”.
Considerações Finais
Aproximar-se das religiões de matriz africana é deparar-se com uma experiência
tangível do sagrado. Para quem crê, ela se deixa sentir no toque dos atabaques, nos cheiros,
nas formas, na vitalidade dos gestos e das cores. Em tudo isso há uma profissão de fé.
Neste artigo buscamos, num dialogo entre a bibliografia estudada na disciplina
Fenômeno Religioso e outras fontes sobre o Candomblé, achegar-nos à experiência de uma
comunidade de terreiro. Partindo do lugar do cientista da religião, olhar esta experiência para
reconhecer como ela é vivida pelo povo do santo, de modo geral, e como é configurada para
pessoas que vivem na periferia da região metropolitana de Goiânia.
O candomblé Angola nos trás a especificidade de ser uma religião marcada pela
ancestralidade onde a preservação dos elementos vindos de África e o diálogo como as
expressões religiosas que os povos bantus encontraram no Brasil (religiões indígenas e
catolicismo) testemunham o vigor da experiência do sagrado.
Referências Bibliográficas
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Candomblé
bantu
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pós-
modernidade.<http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf/st4/Adolfo,%20Sergio%20Paulo.pdf>
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OS ÍNDIOS E A JUSTIÇA: O CASO
JUDICIAL DA ALDEIA DE MANGARATIBA (1785-1798)
José Cordeiro Menezes Netto179
Introdução
Entre os anos de 1785 e 1798, nos Paços do Concelho da cidade do Rio de Janeiro,
aconteceram diversas audiências públicas, que visavam resolver uma contenda judicial
envolvendo os índios da Aldeia de Mangaratiba e Pedro Alexandre Galvão. A “suplicação” de
ambas as partes envolvia a reivindicação de terras e o direito de possuí-las. Com base nas
documentações paleografadas, tantos os “nacionais” de Mangaratiba quanto Pedro Alexandre
tentam provar judicialmente o direito de posse da terra pleiteada.
Sem dúvidas, inúmeras questões importantes podem ser suscitadas através da pesquisa
que está em andamento. Entendemos que por se tratar de um documento judicial datado
durante o reinado da Dona Maria I (1777-1816), pode-se pensar através da fonte, como
funcionavam os mecanismos de Justiça, como eram as linguagens e pensamentos jurídicos
dos doutos da época, como esses mesmos magistrados interpretavam a figura indígena e,
principalmente, como os índios, enquanto agentes históricos, puderam usufruir do “costume
da justiça” e obter suas reivindicações frente às espoliações do uso de suas terras, feita por
moradores. Num plano mais geral, referente aos aldeamentos do Rio de Janeiro do final do
século XVIII, também podemos pensar em outras grandes questões como: (i) a generalidade
das contendas judiciais envolvendo índios e moradores acerca da questão de terras (MARIA
CELESTINO); (ii) como a máquina da Justiça pôde absorver e responder aos índios,
concedente as suas petições; (iii) uma hipótese de se pensar de qual forma a Coroa,
representada pelas mais diversas instâncias judiciais, pôs em prática uma orientação geral para
as políticas indigenistas; (iv) confrontação entre uma política imperial aos índios do período
das Reformas Pombalinas e do reinado mariano.
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Bolsista PIBIC, Discente do Curso de História, ICHS/UFRRJ.
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Metodologia
Por se tratar de uma fonte judicial, devemos observar com muito cuidado os
pressupostos escritos na documentação. Nos processos já apontados por Keila Grinberg que o
historiador precisa ter em sua heurística, quando relacionado aos documentos judiciais,
devemos nos ater ao contexto pelo qual o material é produzido. Portanto, para entender as
linguagens, as colocações e o proceder, temos que nos remeter a própria epistemologia
jurídica da época. Conceber que tudo que é produzido numa época, sem dúvida é fruto da
mesma época que lhe produziu. Sendo assim, não podemos nos indagar a essas fontes da
mesma forma que encaramos documentos judiciais de hoje em dia, pois senão nos
acometeríamos um anacronismo.
Para isso, pretendo estudar como funcionava a Justiça e os seus pressupostos. Levando
em conta a produção vasta sobre essa temática, destaco como fundamental em meu trabalho, a
contribuição de Antônio Manuel Hespanha. No seu livro Imbecillitas, o autor esboça como
funcionava os mecanismos da Justiça para atender populações consideradas merecedoras de
uma legislação à parte, como no caso analisado, os indígenas. Esse historiador nos mostra que
numa sociedade de Antigo Regime boa parte das categorias sociais eram englobada às leis, e
que para cada grupo social havia uma legislação específica. Não foge ao caso indígena, onde
estes tinham direitos específicos, assim como deveres.
Sendo assim, a pesquisa já vem sendo desenvolvida, através da leitura e paleografia
situada no Arquivo Nacional. Através da produção que está em andamento, juntamente com
os autores citados, pretendo aprofundar e problematizar a fonte. Essa documentação tem por
volta de 400 páginas, onde há uma rica descrição do pensamento jurídico da época, assim
como auxilia-nos a ver como funcionava a dinâmica jurídica da América Portuguesa, tendo
em vista que o caso é discutido e escrito na capital do Estado do Brasil e que mais tarde viria
a se tornar capital do Império.
Revisão historiográfica
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Pude constatar, já com a pesquisa em andamento, que poucos historiadores trataram sobre
a fonte com a qual pesquiso. Porém, mesmo com poucas “referências bibliográficas”,
questões importantes da historiografia podem ser trazidas para o debate que, aqui, pretendo
suscitar. Sobretudo, a produção historiográfica mais recente, que tem enfatizado o papel do
índio na sociedade colonial. Observando mais de perto a fonte e o caso, vemos que houve um
“silêncio” que durou por mais de um século por parte dos pesquisadores acerca dessa
documentação judicial.
O primeiro historiador a tratar diretamente com a mesma fonte a qual trabalho foi Joaquim
Noberto, que publicou pela Revista do IHGB em 1854 o seu escrito Memória histórica e
documentada das Aldeias de Índios da Província do Rio de Janeiro. Apesar desse autor não
ser uma bibliografia pertinente para meu tema e meus objetivos, acho interessante situarmos
algumas peculiaridades do escrito que nos faz pensar o papel do índio no decorrer de nossa
historiografia.
Ao longo da obra, Noberto evidencia o aspecto degradante e decadente da cultura
indígena, num processo já destacado por Manuel Salgado Guimarães. Nessa perspectiva, os
índios eram vistos como seres que caminhavam ao fim de sua cultura. Portanto, nesse
contexto, a documentação a qual paleografo, serviu de “matéria-prima” para o discurso
desmoralizante sobre os indígenas, sobretudo, por parte dos intelectuais do IHGB, tendo em
vista que vemos ao longo da fonte, os advogados, tanto por parte de Pedro Alexandre Galvão
quanto dos próprios índios de Mangaratiba, se utilizarem de um linguajar que produz discurso
sobre a própria natureza indígena. Porém como veremos, esse discurso estava engendrado
numa lógica de Antigo Regime, muito diferente do propósito a qual os escritores
dezenovecentistas a utilizavam.
Já em 2002, Carmen Alveal realiza a defesa de seu mestrado sobre a mesma
documentação a qual trabalho. Nesse trabalho, a autora expõe algumas questões que me
ajudam a compreender minha pesquisa. Primeiramente, podemos pensar na sua contribuição
de “resgaste” histórico, no sentido de que sua dissertação trouxe novamente a fonte à
superfície da historiografia, trançando uma nova interpretação, muito diferente da percepção
de Joaquim Noberto. Ao longo de seu escrito, a autora nos faz pensar a Aldeia de
Mangaratiba como um lugar, que ao longo dos séculos XVII e XVIII, teve bastante
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movimentação, tanto no aspecto econômico da região, quanto social. Nesse trabalho, Alveal
nos mostra a implementação do cultivo da cana-de-açúcar e sua transformação em aguardente,
fato que se evidencia na fonte, pois o suplicado (contra quem os índios movem a ação
judicial) possuía um engenho de cachaça. Uma outra contribuição dessa autora, seria a pensar
a Aldeia de Mangaratiba como um espaço que não foi administrado pelos Jesuítas. Ao que
parece, como aponta a historiadora, a administração coube ao Visconde de Asseca (Martim
Correia de Sá). Por isso, ela nos mostra como foram intensas as transações entre moradores
(incluindo índios) de Mangaratiba e da cidade do Rio de Janeiro.
Aqui faço uma indagação. Podemos reparar no longo tempo que houve um “não-dito” por
parte da historiografia. Após o ano de 1854, ainda não encontrei nenhum trabalho científico
que se debruça sobre a fonte, pelo menos até o ano de 2002. Ou seja, se passaram 148 anos
sem que nenhum historiador pesquisasse essa fonte!
Podemos pensar nesse longo “desinteresse” por parte da historiografia através das próprias
indagações levantadas por Maria Regina Celestino de Almeida. Inicialmente, como já dito, o
círculo de intelectuais do IHGB visava afirmar um discurso sobre os indígenas, sendo assim,
para conseguir tal feito, se utilizavam das fontes para comprovarem suas ambições. Nesse
momento, então, os índios eram vistos como pessoas miseráveis, com hábitos não
convencionais à civilização e entregue aos vícios. Já ao longo do século XX, a historiografia,
digamos, mais “culturalista”, sempre tendeu a ver os índios como alheio aos próprios
interesses, de forma, que sempre agiam ora por mera reação, ora movidos por interesses de
outros agentes da sociedade colonial (missionários, moradores ou Coroa). Tendo uma
epistemologia que via o indígena como um “fantoche” dos interesses dos brancos, obviamente
que um caso, como o que envolve os índios de Mangaratiba, seria altamente descartável, pois
não atenderia a seus pressupostos. Como exigir de uma historiografia que, na época, estava
mais preocupada em demonstrar o avanço do “capitalismo” e seus efeitos drásticos sobre a
população indígena? Como seria problemático para àquelas certezas “existir” um caso, onde
os índios, enfrentam judicialmente um outro, movido pelos seus próprios interesses, ainda por
cima conseguindo obter a reinvindicação requisitada? Essas perguntas, nos ajudam a entender
o porquê de haver esse “silêncio” por vários anos por parte da historiografia.
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Deixando de lado essa questão, devemos evidenciar como a recente historiografia tem
tratado a temática. No final do século XX, outras abordagens estão sendo indagadas pelos
historiadores. Com cada vez mais diálogos entre outras áreas do conhecimento como
sociologia e principalmente antropologia, têm-se ampliado os horizontes dos pesquisadores,
que muitas vezes se utilizando de fontes já trabalhadas, a partir de novas questões e
problemáticas chegam a outras conclusões. Nesse processo, sem dúvida, a temática indígena
não escapa.
Como já dito, em outro processo, os índios eram encarados como coadjuvantes do
movimento histórico, sempre agindo, ou melhor, reagindo de acordo com estímulos, nunca
porém evidenciados por suas próprias questões e ambições. Nas novas abordagens trazidas
pelas recentes interações com outros campos de saberes, têm-se destacado o papel histórico de
protagonistas ao longo de todo período, desde o período da América Portuguesa até o Brasil.
Nessa perspectiva, a epistemologia da historiografia tem cada vez mais lançado seu olhar para
casos indígenas, não partindo mais do pressuposto que estavam obedecendo aos interesses
alheios, antes, agindo por suas próprias questões. Obviamente, essa historiografia não é
míope. Não nega a violência aplacada contra povos nativos, que podemos afirmar que foi um
verdadeiro etnocídio, nem tampouco a situação subalterna e marginalizada que grande parte
dos índios viviam no cotidiano de suas relações ao longo do passado. Porém, ao invés de nos
lamentarmos do que deveria ter acontecido, devemos compreender o homem e a mulher
indígena de acordo com a época, e ver sua possibilidade de articulação para obter seus
direitos, muitas das vezes já prescritos na legislação.
Para o estudo do caso, essa historiografia me contempla, no sentindo de compreender as
relações envolvendo as possibilidades de ação dos indígenas, no caso, judicialmente. Nessa
perspectiva, Maria Regina Celestino em sua obra Metamorfoses Indígenas – Identidade e
Cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro, abre várias chaves de compreensões do
cotidiano do indígena aldeado. Pela pesquisa se tratar de uma aldeia de Mangaratiba, esse
livro é fundamental para entender a questão da identidade indígena vinculadas às questões
políticas e sociais do período colonial.
Nesse sentido, Celestino contribui muito com a pesquisa, já que uma de suas principais
perspectivas está em observar os aldeamentos indígenas, não como meros espaços dominados
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por brancos (seja sob administração jesuítica, ou seja sob administração de moradores), mas
como um lugar que havia espaço para a articulação dos índios, a fim de que eles próprios
pudessem aplicar seus interesses na correlação de forças políticas que envolviam os
aldeamentos. Sendo assim, sua abordagem não encara os índios aldeados como apenas
dominados subalternos, antes, além de estarem nessa subposição, também conseguiam por
diversos meios se organizar e articular suas reivindicações e seus direitos estabelecidos. Na
análise de quase três séculos que a autora faz, ela observa não apenas mecanismos de se
defenderem dos outros atores políticos da colônia, mas também conseguiam barganhar
conquistas e avanços importantes numa sociedade de antigo regime, que vale lembrar, onde a
maioria da população nem livre era.
Outro autor que contribui muito ao debate trazido pela fonte a qual trabalho é Antônio
Manuel Hespanha. Esse historiador tem uma excelente contribuição ao estudo da sociedade de
Antigo Regime, principalmente a portuguesa. Para Hespanha, uma das melhores formas de
compreendermos esse tipo de sociedade é olhando para as suas leis e suas justiças. Pois
através dela, vemos uma civilização extremamente dividida e planificada, tendo diversas
categorias sociais incluídas no seio jurídico do reino lusitano. Havia legislação específica para
todos os tipos de pessoas na sociedade: escravos, livres, sacerdotes, mulheres, pessoas com
problemas mentais, legisladores, ... e obviamente, os próprios índios. Creio que a contribuição
de Hespanha, em seu livro Imbecillias, para o presente caso é a compreensão do lugar jurídico
dos índios. Como dito, todas categorias sociais estavam circunscritas na lei, e, para cada uma
delas, havia leis específicas, ou seja, também havia o gozo de um determinado direito, mas
também havia obrigações a serem cumpridas perante o corpo social. Quando compreendemos
a legislação indigenista durante o período colonial, vemos a mesma lógica dita anteriormente:
em vários decretos havia o direito, mas também a obrigação.
Essa lógica, a qual nos mostra Hespanha, é de extrema importância para a compreensão
filosófica da fonte. Pois, entender a utilização do mecanismo judicial por parte dos índios na
América Portuguesa é refletir sobre o lugar jurídico desta população. Como nos mostra a
documentação pela sua linguagem, me parece que os índios estavam cientes das “obrigações”
a serem cumpridas por seus papéis de índios na sociedade colonial, basta vermos muito deles
se referirem honrosamente às demais autoridades da Justiça e do Reino, e que principalmente,
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argumentavam da importância prática da existência dos aldeamentos no propósito colonizador
da Coroa. Ao passo, que tinham conhecimento dos deveres, os índios de Mangaratiba também
tinham de seus direitos. Tanto é, que por conhecer seus direitos, estes utilizavam a Justiça
para poder ganhar as suas causas cotidianas. No caso da fonte, nos é mostrado um suposto
“foreiro” que se assenta em terras indígenas, tentando adquirir legalmente sua sesmaria.
Porém os “nativos” de Mangaratiba tentam impedir isto, alegando que a posse do território
adquirido por Pedro Alexandre seria dos próprios índios. Tendo em vista a jurisdição
específica para cada categoria social, vemos que o direito básico dos índios nas políticas da
Coroa durante o período colonial eram: liberdade e terras. Como dito, numa sociedade de
Antigo Regime, esses dois direitos eram muito caros à população geral, já que a maioria era
pobre e escrava. Com essa premissa, os índios da freguesia de Mangaratiba buscaram junto à
Coroa e à Justiça seu direito resguardado pela própria lei.
Não quero dizer, que assim como hoje, o que está escrito na lei é cumprido, ou que
acontecesse na vida real cotidiana. Porém, tendo seu direito estabelecido na legislação, a
peleja para conseguir resguardar suas conquistas ou adquirir novas, há um caminho: a
utilização do recurso judicial, direito prescrito para todos os súditos da Corte.
Problemática
Na perspectiva da mais recente historiografia, na qual vêm abordando temáticas antes
impensáveis, pretendo trabalhar com a questão da identidade indígena no caso judicial. Já
sendo evidenciado por Maria Regina Celestino de Almeida, o debate sobre essa temática
ganha cada vez mais espaço nas problematizações dos historiadores.
Por muito tempo se pensou, e de certa forma ainda perdura no senso comum, a ideia
de que após 1500, os índios foram cada vez mais perdendo espaço no seu próprio território
natural. Estudos recentes, nos apontam que apesar de ter havido um massacre, os indígenas
faziam alianças e guerras com quem lhes convinha, visto do ponto de vista de seus próprios
interesses. Por exemplo, quando pensamos na conquista da Guanabara, seria imprescindível a
vitória portuguesa sem a aliança com os tememinós. Subsequentemente, esse “pacto” tanto
beneficiava os lusitanos, quanto aos próprios nativos, visto que décadas antes foram expulsos
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de seu território pelos tamoios. Sendo a oportunidade da guerra muito grata às próprios
pretensões, de se vingarem da expulsão e voltarem para suas terras de origem. Portanto, cada
vez mais, nos espaços acadêmicos, a perspectiva indígena tem dado outro tom aos velhos
debates.
A questão dos índios aldeados, também tem ganhado outros interpretações. Antes, os
espaços dos aldeamentos eram vistos como uma prática de “aculturação” – como se fosse
possível aculturar um humano – atendendo aos interesses únicos e exclusivos do dominador.
Agora, com as recentes abordagens, esse mesmo espaço é visto como um local de encontro de
diversas culturas (pois nas aldeias conviviam índios de diversas tribos), que em condição de
súditos do Rei português, souberam se utilizar de todos direitos que lhes cabiam. Identidades
e práticas culturais vão sendo formadas e sendo modificadas dentro desse ambiente.
Obviamente, a condição de aldeado impunha certos deveres, como disponibilidade para mãode-obra (mal remunerada por sinal), porém, também tinham seus direitos. Por meio dessa
questão, que pretendo lançar o debate, assimilando a identidade dos índios da Aldeia de
Mangaratiba, juntamente com seus direitos prescritos.
Tendo por partida esse ponto de vista, o contexto político-indigenista da época do
processo nos dá as ferramentas para demonstrar a complexidade da problemática. O processo
situa-se entre os anos de 1785 à 1798, ou seja, durante o período do reinado de D. Maria.
Durante esse período, ainda estava em vigor o Diretório dos Índios (ou, Diretório Pombalino)
como norteador das políticas indigenistas da Coroa portuguesa. Com essa questão, pretendo
problematizar a lacuna existente entre o que é previsto pelas leis e o que é praticado na vida
real. Ou seja, questionar uma visão retilínea do que foi o Diretório, e, mostrar até que ponto os
seus propósitos foram eficazes ou não, no caso, na Aldeia de Nossa Senhora da Guia de
Mangaratiba.
Retornando para meados do século XVIII, as Reformas Pombalinas, sem dúvida,
modificaram muito as relações internas e externas de Portugal. Sempre cercado por
polêmicas, Pombal desde o terremoto de Lisboa (1755) quando foi-lhe outorgado poder,
implementou grandes reformas não só no Reino, como nas possessões ultramarinas.
Fortemente influenciado pelos pensamentos iluministas, o Marquês visava modernizar a
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administração portuguesa concentrando cada vez mais poderes nas mãos do Rei, D. José I. A
América Portuguesa, sendo a principal colônia, também sofreu intensas modificações.
Concedente ao tratamento para com as populações indígenas, suas diretrizes podem ser
entendidas através do Diretório dos Índios, redigida pelo irmão de Pombal, Francisco Xavier
de Mendonça Furtado, sendo primeiramente implementada no Estado do Grão-Pará (1757) e
logo após no Estado do Brasil (1758). As ambições traçadas sobre essas leis visavam
transformar todos os índios em súditos fiéis do Rei, para que possam, livres dos jesuítas,
povoar e explorar economicamente e proteger a vasta região colonial. Portanto, essa medida
acabava com qualquer distinção legal entre um indígena e um branco, apesar de haver direitos
específicos: como o de possuir terras e ser livre. Direitos esses, em tempos de uma sociedade
de Antigo Regime, muito valiosos. Para conseguir dar cabo as ideias, Pombal passou a
incentivar cada vez mais o contato entre brancos e índios afim de selarem o fim da “odiosa
separação”. Sendo assim, essas medidas podem ser entendidas por assimilacionistas, no
sentido de que visava homogeneizar a população livre de todo território português na
América. Por isso, supostamente, cada vez mais iria acabar a distinção entre um índio e um
branco nos parâmetros tanto legais quanto práticos.
Sendo essa política de assimilação vigente para o período do caso analisado, podemos
encontrar muitas evidências que contestam o efeito desejado pelo Diretório. Primeiramente,
esbarrou-se na vontade dos índios continuarem a se auto intitularem indígenas. Nos fica bem
claro, que na representação judicial da Aldeia de Mangaratiba, os “nacionais” continuavam a
se apresentar enquanto índios, criando assim uma diferenciação, que nos evidencia a
contestação da assimilação. Na medida em que todos tramites são desenvolvidos, observa-se
que esse elemento que delimita uma diferença, não apenas surte um efeito discursivo, antes,
dialoga na própria forma como a Justiça (juízes, desembargadores e procuradores) lida com os
índios de Mangaratiba. Ou seja, mesmo que em termos legais os índios estejam equiparados
aos brancos, os homens que fazem a Justiça funcionar não descartam a distinção, que no caso
era pleiteada pela parte indígena. Por toda parte da fonte, há uma nítida distinção entre o que é
índio e um não índio, entre a aldeia e a freguesia, apesar de “oficialmente” esta prática estar
extinta.
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Apesar de enfatizar essa diferenciação, creio que como historiador não posso buscar testes
de DNA para comprovar uma etnia ou outra. Aliás, a própria fonte nos faz pensar como é
porosa a divisão entre um indígena e um morador. É possível ver ao longo das petições, como
elementos supostamente “externos” das aldeias estão dentro da própria. Em outras palavras,
observa-se a presença de brancos em seus espaços, como também, observa-se a
transitoriedade de índios nas freguesias e vilas. Por isso, podemos pensar que a
problematização da documentação é essencial para entendermos o papel de um índio na
capital do Estado do Brasil, que pouco tempo depois se tornaria a capital do Império Lusitano.
Conclusão
O processo judicial deixa em evidência a capacidade de ação dos índios. Isso implica que
podemos entender os índios como
sujeitos históricos no Rio de Janeiro e buscar seus
interesses, estratégias, visões de mundo e as relações que criaram com as instituições do
Reino, no caso a Justiça. Por meio da Justiça, os índios puderam manifestar suas insatisfações,
induzindo Juízes, Ouvidores e os demais oficiais a ouvi-los e até mesmo a atendê-los,
movendo a história a partir de seus próprios interesses.
Sendo assim, o caso judicial envolvendo os índios de Mangaratiba e Pedro Alexandre
Galvão, nos ajuda a pensar que através da identidade indígena e sua subsequente legislação,
não só os da dita aldeia mas como de várias outras, puderam requerer seus direitos junto às
autoridades judiciais, a fim de que pudessem consolidar suas pretensões e preservar seu
acesso à terra. Pensando no contexto do mundo luso-brasílico, as políticas indigenistas da
época, sob orientação do que se conhece por Diretório Pombalino, visavam o incentivo a
mistura entre indígenas e não-indígenas a fim de que todos se tornassem súditos de um
mesmo Rei, num processo em que se tentava homogeneizar a população da Colônia. Porém,
essa medida esbarrou na organização dos índios, que como os de Mangaratiba buscavam à
Justiça seus direitos específicos na qualidade de pessoas indígenas, preservando assim a suas
culturas, hábitos e memórias.
Referências Bibliográficas
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EXU NO “NOVO MUNDO”: O PROCESSO DE HIBRIDAÇÃO
CULTURAL DA UMBANDA NA DIÁSPORA AFRICANA
Léo Carrer Nogueira180
Universidade Estadual de Goiás / Universidade Federal de Goiás
[email protected]
Introdução
A experiência colonial deixou profundas marcas nas sociedades americanas. Os
resultados desta experiência podemos notar cotidianamente à nossa volta. Nos últimos anos,
cada vez mais autores tem buscado compreender esta experiência colonial e as marcas
profundas que ela deixou, especialmente no âmbito cultural. Para isto, diversos conceitos e
chaves explicativas foram elaborados no intuito de traduzir estes fenômenos em algo
científico.
E é a alguns destes diversos conceitos que nos debruçaremos ao longo deste texto para
buscar explicar um dos elementos culturais que entendemos ser fruto do que Balandier (1993,
p. 114) chama de Situação Colonial:
Seja qual for a doutrina adotada, as relações de dominação e de
submissão existentes entre a sociedade colonial e a sociedade
colonizada caracterizam a situação colonial. E os autores que
concentraram sua atenção sobre este aspecto mostram que a dominação
política é acompanhada de uma dominação cultural. Um deles pensa
que “o problema cultural está intimamente ligado ao problema geral da
evolução política e econômica”, que “a influência das culturas
europeias” teve como resultado “a opressão do fundo cultural”
autóctone.
180
Trabalho vinculado à pesquisa de Doutoramento em História pela UFG, sob orientação do prof. Leandro
Mendes Rocha, realizada com licença fornecida pela UEG e bolsa de pesquisa fornecida pela FAPEG.
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No bojo das experiências coloniais, um novo personagem surge no âmbito cultural,
mais especificamente no religioso. Trata-se de Exu, divindade de origem Iorubá que, a partir
do contato com os europeus, se transfigura em um novo Exu, entidade cultuada nos terreiros
de Umbanda, agora não mais como divindade, mas sim como espírito ancestral (Egum).
Tal transfiguração é resultado de um longo processo de ressignificação ocorrido no
“Novo Mundo”, em que os cultos africanos, quando em contato com o elemento europeu,
acabam por sofrerem sua influência, dando origem a um quadro inteiramente novo,
impensado e original. A este processo de modificações e trocas culturais é o que alguns
autores chamam de hibridismo. Tal hibridismo tem como pano de fundo a diáspora dos
africanos, escravizados e trazidos para as Américas. Estes são os dois conceitos chaves para
compreender os processos de mudanças culturais que tem lugar no “Novo Mundo”.
Portanto, nosso objetivo é mostrar como o surgimento deste novo Exu cultuado na
Umbanda está inserido no âmbito das relações coloniais, e só pode ser explicado dentro deste
contexto, a partir dos conceitos elaborados por historiadores, sociólogos e antropólogos da
chamada corrente pós-colonial, como Homi Bhabha (1998), Stuart Hall (1996), Nestor
Canclini (2006), entre outros, que buscam através de seus conceitos formas de compreender
os processos culturais que se desenrolaram nas Américas induzidos pela situação colonial.
O “Novo Mundo” e as Identidades diaspóricas
O processo colonial dá origem a inúmeras identidades culturais novas, resultantes dos
processos de encontro dos elementos que foram trazidos para a América. Longe de serem
fixas, estas identidades estão sujeitas a inúmeras variáveis que as moldam a partir dos
contatos entre as diferentes presenças culturais em terras americanas. Como define Stuart Hall
(1996, p. 69),
as identidades culturais provem de alguma parte, tem histórias. Mas,
como tudo o que é histórico, sofrem transformação constante. Longe de
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fixas eternamente em algum passado essencializado, estão sujeitas ao
contínuo “jogo” da história, da cultura e do poder.
A noção de diáspora é uma das chaves para se compreender os processos de mudanças
culturais ocorridos nas Américas, sob a luz da situação colonial a que este continente foi
colocado. Através dela passamos a vislumbrar o longo processo que levou à formação de uma
nova cultura em terras americanas. Não mais africana, nem europeia, mas fruto do encontro
destas duas presenças em um espaço totalmente novo. Assim, retornar a esta África se torna
essencial para compreender estes diversos espaços culturais que surgem.
Estas viagens simbólicas são necessárias a todos nós – e
necessariamente circulares. Esta é a África a que devemos retornar –
mas “por outra estrada”: o que a África se tornou no novo mundo, o
que nós fizemos da “África”: “África” – como a recontamos através
da política, da memória e do desejo (HALL, 1996, p. 73, grifos nossos).
“O que a África se tornou no Novo Mundo”? Esta é a pergunta que norteia Stuart Hall,
e que devem fazer todos aqueles que pretendem compreender as diversas culturas americanas
e a formação de suas identidades culturais. Este é precisamente o caso de Exu, que ao deixar o
continente africano, trazido pelos africanos escravizados que para aqui vieram, acaba se
tornando outra coisa diferente, reelaborado e ressignificado pela experiência colonial que aqui
toma forma.
Segundo Hall, esta seria a primeira presença colonial, aquela que fornece a matriz
cultural que será retrabalhada e transformada no processo diaspórico: a presença africana. A
segunda presença é a europeia, aquela que irá submeter esta cultura, mediante uma relação de
poder, e obrigá-la a se transmutar e se reinventar, estando ela própria entranhada em nossa
identidade.
Porque a présence européenne diz respeito à exclusão, imposição e
expropriação, somos muitas vezes tentados a localizar esse poder como
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completamente externo a nós (...). O que Frantz Fanon nos lembra, em
Black Skin, White Masks, é como esse poder se tornou um elemento
constitutivo de nossas próprias identidades (HALL, 1996, p. 73).
O poder colonial europeu é constitutivo de nossas identidades. Sem ele não seríamos o
que somos hoje, e provavelmente não faríamos muitas das coisas que fazemos hoje. Não
cultuaríamos o Exu da Umbanda, uma vez que só faz sentido falar em Umbanda devido ao
processo colonial que permitiu aos diferentes elementos culturais aqui presentes hibridizaremse, dando origem a novos quadros religiosos. A dialética da ação (poder) e da reação
(resistência) é o que move as práticas culturais encontradas neste “Novo Mundo”, resultando
em novas práticas culturais fundidas, como define Hall (1996, p. 74):
O diálogo de poder e resistência, de recusa e reconhecimento, pró e
contra a présence européenne, é quase tão complexo quanto o “diálogo”
com a África. Em termos de vida cultural popular, em parte alguma se
encontra prístino, puro. Está sempre já-fundido, sincretizado, com
outros elementos culturais. Está sempre já crioulizado (...).
Para que tais processos culturais ocorram, é necessário que haja um espaço
privilegiado, no qual estes elementos possam ser reunidos e, assim, servir de local para que as
trocas, fusões e fissões culturais ocorram. Esta é exatamente a terceira presença definida por
Hall (1996, p. 74):
A terceira presença, a do “Novo Mundo”, não é tanto poder quanto
chão, lugar, território. É o ponto de junção em que os muitos tributários
culturais se encontram, a “terra vazia” (esvaziada pelos colonizadores
europeus) onde estranhos vindos das partes mais distintas do globo
colidiram. (...) Neste espaço é que as crioulizações e assimilações e
sincretismos foram negociados.
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É no “Novo Mundo” que as novas identidades culturais são processadas. É aqui que o
orixá Exu, cultuado em África como divindade, sofre um processo de hibridização que dá
origem a novas práticas culturais. A América é o espaço privilegiado da diversidade e da
transformação culturais. “A presença do ‘Novo Mundo’ – América, terra incógnita – é,
portanto, em si mesma o começo da diáspora, da diversidade, da hibridação e da diferença, de
tudo isso que já faz do povo afro-caribenho o povo de uma diáspora” (HALL, 1996, p. 74).
A diáspora, portanto, é o elemento que permitiu à América enquanto espaço a
formação de novas identidades culturais, frutos dos processos coloniais que tiveram como
personagens africanos e europeus. Estas novas identidades, diaspóricas, tem como
característica principal a diversidade e a dinamicidade. Carecem de uma noção dinâmica de
cultura, como elementos que estão sempre em processo de transformação, a partir dos
contatos com outras matrizes culturais.
A experiência da diáspora, como aqui a pretendo, não é definida por
pureza ou essência, mas pelo reconhecimento de uma diversidade e
heterogeneidade necessárias; por uma concepção de “identidade” que
vive com e através, não a despeito, da diferença; por hibridação.
Identidades de diáspora são as que estão constantemente
produzindo-se e reproduzindo-se novas, através da transformação e
da diferença (HALL, 1996, p. 75, grifos nossos).
Assim, o surgimento do Exu da Umbanda é um processo de formação cultural que
teve lugar na América e como origem o processo colonial. Pode ser compreendido pela
formação de novas identidades, frutos da diáspora africana e dos processos de hibridação que
aqui ocorreram, conceitos chaves para uma nova corrente de pensadores que buscam
compreender os fenômenos pós-coloniais.
Exu no “Novo Mundo” – uma identidade em transformação
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O orixá Exu, na cosmologia iorubá, possui funções bem definidas. Por ser o
mensageiro e responsável pela ligação entre os homens e os demais Orixás, é a ele que se
destina a primeira oferenda, antes de todos os outros orixás, pois, sem ele, não há a
comunicação com os outros, é como se eles não escutassem o chamado dos homens. (OLIVA,
2005).
Para os sacerdotes e pessoas comuns entre os iorubás a função principal
de Exu é de representar a oposição à criação, sendo o infrator das regras
e da ordem. (...) Incumbido por Olodumaré181 da tarefa de mudar o que
está parado, Exu recebe o Adô, uma cabaça na qual se encontra a força
da transformação. (...) Exu destrói para recriar. É o principio da
desordem, inseparável da estrutura da ordem; um depende do outro. (...)
Uma outra característica de Exu, que se alia à ideia da modificação e da
recriação da ordem, é seu aspecto fálico: (...) ele é o senhor dos
cruzamentos e dos caminhos, o que abre, penetra e liga os mundos que
formam o universo religioso iorubá (OLIVA, 2005, p. 19).
Sua importância era tanta que seu culto se estendia a praticamente todas as regiões da
Iorubalândia, marcada por uma grande diversidade de cultos e orixás distintos. Além disto,
Exu se ligava também ao comércio e as atividades econômicas, sendo representado sempre
com cauris e búzios, consideradas importantes moedas de troca na África Ocidental.
“Em grande medida, essas características de Exu o tornaram para os ocidentais, um
orixá contraditório e de difícil definição” (OLIVA, 2005, p. 20). Por isto mesmo ele será
interpretado, por muitos viajantes, como sendo a personificação do mal, assumindo, assim,
toda a carga simbólica construída em torno da figura do diabo cristão. Observamos nos relatos
de vários viajantes esta associação, de forma direta ou indireta. É o caso, por exemplo, dos
irmãos Lander, que pesquisaram o rio Níger no início do séc. XIX, e lá encontraram um
sacerdote de Exu, deixando anotado suas impressões sobre o mesmo, onde percebemos a
181
Deus supremo e criador dos Orixás. Não é venerado entre os iorubás (OLIVA, 2005, Nota 9, p. 32).
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maneira pejorativa como encaravam as religiões dos africanos (OLIVA, 2005). Nestes relatos
podemos perceber também que
o cristianismo não era a única religião monoteísta a interpretar de forma
negativa as práticas religiosas dos orixás. Unia-se a ele, nesse mister, o
Islamismo. (...) Em alguns estudos realizados sobre Exu na África
Ocidental, de fato transparece a ideia de que também os muçulmanos
relacionavam o orixá com o princípio da maldade e da ação demoníaca
(DOPAMU, 1990, p. 34182apud OLIVA, 2005, p. 22).
Este imaginário diabólico foi sendo reelaborado em terras brasileiras. As ideias criadas
por europeus sobre os cultos africanos deram origem a um novo personagem, um novo Exu
que passa a ser cultuado nos terreiros de Umbanda.
Ao visitarmos um terreiro de Umbanda hoje, é quase certo que encontraremos ali uma
sala dedicada exclusivamente a Exu, com estátuas que recebem denominações como Exu
Caveira, Sete Encruzilhadas, Giramundo, entre outros. Mas é de se notar, também, que este
Exu presente na Umbanda já não é mais o mesmo Orixá que veio da África e se assentou nos
terreiros de Candomblé. O Exu que encontramos na Umbanda é fruto de um longo processo
de ressignificação, que faz com que Exu aos poucos perca seu caráter de Orixá para assumir a
posição de espírito ancestral, conhecidos como Eguns183.
Este culto aos Ancestrais, no Brasil, irá se estabelecer juntamente com o culto aos
Orixás, nas casas de Calundus e Candomblés que se formam. Mas como as relações clânicas
no Brasil estavam fragmentadas devido a grande diversidade de grupos étnicos presentes, já
não existiam mais ancestrais comuns entre os participantes do culto, o que acaba substituindo
a figura do ancestral tradicional por um ancestral genérico, arquetípico, comum a todos os
cidadãos. Os primeiros a serem assentados nos terreiros serão os Caboclos, representando os
indígenas brasileiros, os donos da terra. Estas entidades se apresentam em vários terreiros de
182
DOPAMU, Ade. Exu: o inimigo invisível do homem. São Paulo: Oduduwa, 1990.
Já na África existiam o culto aos Eguns, que poderia ser definido como um culto aos mortos. O poder dos
ancestrais na África era grande, e os espíritos dos que morreram tinham grande prestígio, sendo recorridos
sempre que houvesse necessidade, através de oferendas e sacrifícios.
183
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Candomblé, e também fora deles, juntamente com uma outra figura que toma forma nestes
cultos. Trata-se do pai-velho, ou preto-velho, que representa os primeiros escravos a virem
para o Brasil, que geralmente eram antigos sacerdotes na África, conhecedores dos segredos
da magia e dos feitiços.
Mas não eram só caboclos e pretos-velhos que baixavam nestas casas de Macumba. A
figura do Diabo também era lembrada, mas na Macumba recebia o nome de Exu. As duas
figuras, já bastante assimiladas no imaginário popular devido às associações dos europeus,
passam a figurar entre as entidades cultuadas nos terreiros de Macumba, mas agora não mais
como Orixás, e sim como espíritos ancestrais, também chamados de Eguns, representando
pessoas que, em vida, tiveram um comportamento abaixo dos padrões morais impostos pela
Igreja Católica.
A passagem de Exu-Orixá para Exu-Egum permeará toda a história da Macumba
brasileira, desde os primeiros Calundus, até culminar na organização da Umbanda carioca.
Vários autores identificaram este processo ao estudar as religiões africanas no Brasil, como
Arthur Ramos (2001), Nina Rodrigues (1935) e Roger Bastide (1945). Em suas obras, todos
eles atestam o caráter maléfico de Exu, mas o identificam como sendo fruto do ensino
católico (COSTA, 1980, p. 88).
A influência do Espiritismo Kardecista, que chega ao Brasil no final do século XIX,
acabará fazendo com que sejam separados os cultos de Caboclos e Pretos-Velhos dos cultos
de Exu. Conforme já explicamos, todos são entidades arquetípicas, que representam
personagens ancestrais da cultura brasileira, espíritos de pessoas que já morreram. Mas,
devido à carga negativa presente em torno de Exu, este continuará sendo identificado com o
demônio, e seu culto será separado dos demais.
A partir daí a Umbanda se dividirá em duas linhas. A linha da direita será dedicada ao
trabalho com os Caboclos, Pretos-Velhos, crianças, e outras entidades cuja característica
principal é serem considerados espíritos de luz, iluminados, o que denota sua condição de
avanço espiritual, dentro da lógica evolucionista do kardecismo, e de terem um código moral
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bem definido. Na outra linha, da esquerda, ficam os espíritos de moral duvidosa,
representados pelos Exus e pelas Pombagiras184.
Esta linha de esquerda, também conhecida como Quimbanda, durante muito tempo foi
sendo associada à prática da Magia Negra. Os próprios praticantes umbandistas por vezes
fazem esta identificação, atribuindo sempre ao outro esta prática, nunca a si mesmos. Eneida
Duarte (2002, p. 184) coloca que
criou-se o hábito, entre pessoas pouco escrupulosas, de utilizar a
Quimbanda para fazer o mal, vingar-se de desafetos e obter vantagens
por meios pouco honestos. Entretanto, as pessoas que trabalham a sério
com estas entidades sabem que elas podem ser boas protetoras de seus
fiéis, como o exu que guarda a porteira da casa.
Inserido na teoria da evolução dos espíritos kardecista, Exu é considerado como um
espírito ainda em evolução, que deve prestar trabalhos de caridade para evoluir e deixar sua
condição de espírito inferior. Sua condição de espírito inferior vem de sua própria encarnação,
marcada sempre pela falta de uma conduta moral rígida, e pelos erros e pecados cometidos.
Esta ausência de uma moral definida em vida, permanece após a morte, e é responsável pela
neutralidade com que este espírito se apresenta nos terreiros, aceitando fazer tanto trabalhos
de caridade, de ajuda espiritual, quanto trabalhos considerados a-morais, que visam
influenciar na vida de outras pessoas através da magia.
Nas palavras dos próprios praticantes da Umbanda percebemos estes elementos:
Exu é um espírito elementar, não tem origem. A gente pensa por ele,
por isso ele aceita tanto fazer o bem como o mal. (...) Exus são espíritos
184
As Pombagiras são espíritos femininos, correspondentes de Exu, mas que apresentam características
diferentes, mais ligadas à sexualidade. Apresentam o estereótipo da prostituta, de mulher vulgar. Nos cultos elas
riem alto e bebem champanhe. A origem do termo está ligada a um Inquice, divindade dos povos Bantus,
correspondente de Exu, o Bombojira ou Pambu Njila, que tem como correspondente feminino a Vangira.
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de pessoas sofredoras. (...) São pessoas que em vida fizeram alguma
coisa errada. Exu todo mundo recebe, porque ele é uma segurança para
nós. (...) São espíritos sem doutrina, vieram para cumprir missão. Eram
espíritos rebeldes na outra encarnação (MAGNANI, 1986, p. 46-47).
As noções de evolução, missão, caridade e doutrina estão fortemente presentes no
imaginário umbandista. Sua missão aqui na Terra seria a de trabalhar através da prática da
caridade, para assim se doutrinarem e conseguirem evoluir. Neste sentido, sua identificação
com o diabo cristão é substituído pela identificação a um espírito atrasado, sem luz, que ainda
não tem um conhecimento moral definido. Nas palavras da líder de um centro Umbandista,
Exu não deve ser identificado com o diabo:
É uma ideia muito errada que as pessoas fazem do Exu. Claro que tem
alguns que ainda não tá bem esclarecido, (...) não tem conhecimento de
nada, (aí) as pessoas usam ele pra fazer essas coisas; ele faz aquilo pra
ganhar o que eles prometeram, ele não sabe se tá fazendo o bem, se tá
fazendo o mal, não tem distinção.(...), mas depois que ele começa um
esclarecimento, ele quer crescer, ele tem compreensão que ele precisa
crescer, ele não faz isso mais (NOGUEIRA, 2005, p. 55).
Percebemos que dentro dos próprios terreiros é feita uma distinção entre os que se
utilizam de Exu para fazer trabalhos sérios, para conseguir proteção e atender a pedidos
relacionados à problemas diversos, sejam de saúde, trabalho, amorosos, entre outros; daqueles
que se utilizam dos Exus para fazerem trabalhos maléficos, conhecidos como magia-negra,
que visam prejudicar ou influenciar de alguma forma na vida de outras pessoas.
Assim é atestada a neutralidade da entidade Exu, podendo ele fazer tanto o bem quanto
o mal, dependendo apenas do pedido que lhe é feito. Neste caso, a responsabilidade não está
na entidade ou espírito que realiza o ato mágico, mas sim naquela pessoa que fez o pedido. A
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entidade é apenas um instrumento, um agente utilizado, e não se responsabiliza pelo teor do
pedido feito. Este caráter é atestado pela própria literatura umbandista. Rubens Saraceni
(2006, p. 87) coloca que “quem conhece a entidade Exu sabe também que é uma entidade
neutra. Para eles não existe a divisão entre bem e mal, apenas objetivos a serem atingidos. Se
direcionados para o bem, fazem-no à sua maneira, e se para o mal, também”.
Percebemos assim que a definição de Exu na Umbanda nem sempre é simples. Isto
porque a imagem do Orixá Nagô sofreu um longo processo de ressignificação, que foi lhe
atribuindo características diversas ao longo dos vários anos em que se foram constituindo os
Calundus e a Macumba, e que resultaram na organização dos Candomblés e da Umbanda.
Considerações Finais
Pudemos notar como a ressignificação sofrida por Exu, de Orixá na África e no
Candomblé, para entidade ancestral na Umbanda foi fruto de um longo processo de
hibridação promovido pela diáspora africana em terras brasileiras. A experiência colonial, a
partir da opressão europeia aos valores africanos, fez com que um novo imaginário sobre Exu
tomasse forma. A associação ao diabo cristão feita pelos primeiros viajantes europeus ainda
em terras africanas tem como consequências a re-elaboração das práticas culturais e religiosas
dos africanos que são trazidos para o “Novo Mundo”. Exu aos poucos se transforma em dois
personagens diferentes, um que mantém suas características originais, e outro inteiramente
novo que mescla características dos imaginários africano e europeu.
O conceito de hibridação nos permite compreender a origem do culto a este novo Exu
que surge na Umbanda, como foi descrito ao longo deste texto, a partir da presença africana e
europeia em terras americanas. Este é mais um exemplo dos fenômenos culturais ocorridos no
bojo da experiência colonial e que, portanto, devem ser estudados como tal.
Referências Bibliográficas
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O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO DA CIDADE DE GOIÁS
Marcello Rodrigues Siqueira185
Introdução
A ideia central deste artigo é discutir os efeitos do processo de patrimonialização
no desenvolvimento do município brasileiro de Goiás-GO no período compreendido entre
2001 e 2010. O interesse pela temática em questão se justifica por meio de pelo menos três
fatores conjugados.
Primeiro, a noção de desenvolvimento proposta aqui leva a entender que se trata
de um processo dinamizador da sociedade para melhorar a qualidade de vida da sua
comunidade, contribuindo com a emergência de novas formas de produzir e compartilhar.
Segundo, o desenvolvimento econômico local pode ser visto como um dos
campos de investigação da escala local. Nas últimas décadas, a instância local de poder
emergiu como tema, caracterizando um saber que converge na análise de relações concretas,
socialmente construídas e territorialmente localizadas.
Terceiro, em 2001 Goiás-GO conquistou o título de Patrimônio Histórico da
Humanidade e, atualmente, vem recebendo turistas do mundo todo. Desde então, as opiniões
se divergem. Para uns, a cidade melhorou e estão apostando todas as fichas no turismo; para
outros, pelo contrário, a situação fica pior a cada dia e alimentam esperança de dias melhores.
Portanto, é imperativo conhecer e analisar a dinâmica do desenvolvimento em Goiás-GO.
Durante a Conferência Geral da UNESCO, em 15 de novembro de 1989, a
Recomendação Paris, sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, reconheceu a
cultura popular e tradicional como parte do patrimônio cultural. Segundo Berenstein (2008, p.
32), as iniciativas de patrimonialização e museificação tão em voga hoje, “(...), parece fazer
185
Professor efetivo da Universidade Estadual de Goiás, Campus Iporá (UEG-Iporá). Doutorando em Políticas
Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED) junto ao Instituto de Economia (IE) da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista de iniciação científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás –
Fapeg (FAPEG). E-mails: [email protected] ou [email protected]
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parte de um processo bem mais vasto de utilização da cultura como instrumento de
desenvolvimento econômico”.
Partindo dessa premissa, é imprescindível perceber as diferenças conceituais entre
patrimônio e patrimônio cultural, principalmente, porque este tem um sentido voltado para a
coletividade, o público, e aquele tem um sentido restrito, familiar, voltado para o lado privado
e particular (PEREIRO, 2006).
Conforme Veloso (2006), ao ampliar a ideia de patrimônio cultural, deixando de
incorporar somente os bens materiais, assimilando também as práticas culturais da
diversidade cultural brasileira, representada pelas manifestações históricas vindas dos
diferentes grupos sociais pode-se interpretar o patrimônio cultural como fato social total,
“pois é uma arena em que se descortinam diversas dimensões, como a simbólica, a política e a
econômica” (VELOSO, 2006, p.447).
Na atualidade, “o patrimônio cultural é um debate sobre os valores sociais e a
patrimonialização é um processo de atribuição de novos valores, sentidos, usos e significados
a objetos, a formas, a modos de vida, saberes e conhecimentos sociais” (PEREIRO, 2006, p.
27). Assim, fundamentados na idéia de Veloso (2006) e Pereiro (2006) a patrimonialização no
âmbito deste trabalho é entendida como um processo de atribuição de novos valores para um
fato social total.
Material e Métodos
Este trabalho se baseia em ampla pesquisa bibliográfica e documental. Segundo
Chizzotti (1995, p.11), “a pesquisa investiga o mundo em que o homem vive e o próprio
homem”. Contudo, a pesquisa só existe com o apoio de procedimentos metodológicos
adequados, que permitam a aproximação ao objeto de estudo.
A pesquisa bibliográfica, segundo Gil (2002, p.44), “[...] é desenvolvida com base
em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos” (GIL,
2002, p. 44). A principal vantagem da pesquisa bibliográfica está no fato de permitir ao
investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que
poderia pesquisar diretamente. Sua finalidade é colocar o pesquisador em contato com o que
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já se produziu e se registrou a respeito do tema de pesquisa. Tais vantagens revelam o
compromisso da qualidade da pesquisa.
Por sua vez, a pesquisa documental constituiu-se num “verdadeiro garimpo de
fontes” por se encontrarem muito dispersas. Acessar essa documentação, ler, classificar e
selecionar exige muito esforço. Mas, de acordo com Gil (2002, p.62-3), a pesquisa
documental apresenta algumas vantagens por ser “fonte rica e estável de dados”: não implica
altos custos e possibilita uma leitura aprofundada das fontes.
Também se pretende aqui efetuar uma aproximação ao nível do desenvolvimento
local por meio de uma abordagem objetiva a qual deverá ser mensurada por meio de
informações disponíveis sob a forma de indicadores. A base operacional/metodológica está
fundamentada em levantamentos de dados secundários obtidos junto ao IBGE,PNUD,
SEPLAN/SEPIN/Gerência de Estatísticas Socioeconômicas, Central de Consultoria e
Negócios (CNN) do SEBRAE-GO, ESTADO DE GOIÁS, IPHAN, IPT/CEMPRE, Ministério
do Turismo, Secretaria de Estado da Fazenda, Portal da Cidade de Goiás, SEGPLAN, Relação
Anual de Informações Sociais – (RAIS) e outros.
A utilização dos dados secundários fez-se necessária para se ter um quadro atual e
recente da economia do município, uma espécie de raio-x que permitisse identificar os
principais setores de atividade não apenas em termos estáticos, mas também em termos
dinâmicos (levando-se em consideração sua evolução).
Resultados alcançados
Atualmente, o desenvolvimento implica muito mais que aumentar índices
econômicos, é estar aberto para transformações em todas essas áreas abrangentes que o
conceito pode influenciar.
Agora descobrem que “desenvolver” não significa nada se só se trata
de despejar cimento, instalar canos de água ou levantar a qualquer
custo curvas estatísticas, sem pensar, antes, durante e depois de suas
intervenções, nas reações muito diversas das pessoas atingidas por
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essas intervenções e nos benefícios que esperam ou não das mesmas.
(HERMET, 2002, p.18).
Para Hermet (2002, p. 85-86), a partir do momento em que a comunidade local
começa a se identificar e a valorizar o seu patrimônio cultural, ele passa a ser reconhecido,
protegido, revitalizado e torna-se uma ferramenta para o desenvolvimento. Nesse momento,
“a cultura saí de um longo ostracismo, pois durante décadas havia sido considerada mais
como um fator capaz de paralisar a mudança do que como um possível ponto de apoio do
desenvolvimento”. Mas, no caso de Goiás-GO, acredita-se que é preciso repensar essa
premissa.
Quando o órgão responsável pela instituição do Patrimônio Nacional,então
denominado Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional(DPHAN) chegou ao
município de Goiás-GO, no início da década de 1950, pararealizar o tombamento dos
principais edifícios públicos e religiosos, “a cidade ainda vivia o trauma da transferência da
capital para Goiânia,ocorrida em 1937”. Sua identidade estava até então estreitamente
vinculadaà condição de sede do poder político, como capital da Capitania, capital da
Provínciae do Estado de Goiás, sucessivamente.“Síndrome da mudança” e “trauma da
mudança” são expressõesutilizadas pelos vilaboenses para explicar o comportamentodaqueles
que identificavam o “tombamento com o atraso, a estagnação dacidade”, enquanto que o
“sonho de Goiás era crescer, se igualar à Goiânia” (DELGADO, 2005, p. 116).
Entretanto, mesmo após forte resistência às ações do DPHAN, as“famílias
tradicionais” de Goiás vão ceder aos apelos da modernidade. Trata-se, de uma curiosa
reversão ideológica, na qual o patrimônio cultural, normalmente associado à história e à
tradição, cada vez mais adquire um valor positivo, justamente no momento mais agudo da
modernidade e da globalização.
Conforme Chuva (2009, p. 106-112), “a construção do patrimônio histórico e
artístico nacional no Brasil pode ser localizada historicamente nas décadas de 1930 e 1940” e
“dentre as características históricas mais significativas desse processo estava a associação
entre modernidade e tradição”.
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É muito louvável a valorização e o reconhecimento do patrimônio cultural, ao
mesmo tempo ancorado na tradição e considerado índice de modernidade. Contudo, o perigo
reside na apropriação politiqueira, patrimonialista, privatista do patrimônio cultural, o que
consiste em negar sua característica mais poderosa, fonte de força e legitimidade, a de ser o
resultado de uma produção coletiva. Por isso, Veloso (2006, p. 45) enfatiza que “a relação
entre poder local e patrimônio cultural deve ser cada vez mais pesquisada no Brasil”.
Ao encerrar o Cântico da Volta, Cora Coralina fez um prognóstico da nova
identidade de Goiás-GO: “Uma nova esperança acena no horizonte. Com a expansão de
Goiânia e com a possibilidade da mudança da Capital Federal para o planalto, Goiás será, sem
dúvida, um centro de turismo, dos mais interessantes do país” (CORA CORALINA, 1956).
Por volta de 1940, por meio do jornal Cidade de Goiaz já se promovia a
possibilidade de vincular Goiás-GO às atividades econômicas do turismo como monumento.
Cidade-evolução, cidade-monumento, cidade-cultura, cidade-mãe,
enfim, – Goiaz está presente em todas as emoções cívicas de nossa
história, desde as remotas quadras da tumultuária colonização lusa até
a edificação de Goiânia [...]. Essas razoes recomendam Goiaz como
um excelente ponto de turismo, porque ali se sente plenamente o
brasileiro típico do Estado, [...]. Para se conseguir esse objetivo [...],
há uma coisa para se fazer: intensificar o intercambio social entre a
velha e a nova capital – duas cidades que tem que marchar de mãos
dadas, no futuro. (CASTRO COSTA, Jornal Cidade de Goiaz, 10 mar.
1940, n°.75 – Grifo nosso).
Para a concretização da atividade econômica do turismo em Goiás-GO, Castro
Costa (1940) sugeria intensificar o intercâmbio social entre a velha e a nova capital, indicando
mais uma vez a indissociabilidade entre a modernidade e a tradição. Na visão dos defensores
dessa ideia, o novo não abandona o velho, mas o acompanha de mãos dadas.
Assim, se observa que a partir da década de 1950 a Organização Vilaboense de
Artes e Tradições (OVAT) implementou inúmeras estratégias com o intuito de fomentar o
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turismo cultural no município. Essa organização incorporou um discurso preservacionista
buscando resgatar o patrimônio cultural de Goiás-GO, vislumbrando a produção da cidade
como turística.
Ao vislumbrar que o futuro de Goiás era o passado, a Ovat empreende
e estimula várias ações culturais: o Gabinete Literário, fundado em
1864, foi reaberto; os saraus foram revitalizados; as manifestações
folclóricas e musicais foram pesquisadas e registradas; o acervo de
arte sacra foi reunido no Museu da Cúria e, posteriormente, no atual
Museu de Arte Sacra da Boa Morte; modificações foram
implementadas na celebração da Semana Santa, que passou a contar
com a Procissão do Fogaréu (DELGADO, 2005, 121).
Delgado (2005, p. 122) confirma a importância da OVAT e a adaptação de
estratégias desencadeadas por essa organização no sentido de promover a associação entre a
preservação do patrimônio cultural e o impulso ao turismo, atribuindo-lhe “a responsabilidade
pela alteração no desenvolvimento da cidade”. Desde a década de 1990 e, principalmente,
após a cidade conquistar o título de Patrimônio da Humanidade em 2001, o patrimônio
cultural tem movimentado o turismo no município de Goiás-GO.
A manutenção desse patrimônio é uma das grandes preocupações para a
manutenção do título. Por isso são criados programas com essa finalidade, mantendo a
arquitetura e incentivando a promoção de eventos culturais. Nesse período um fator muito
relevante e que deve ser mencionado, foi a criação do Festival Internacional de Cinema
Ambiental (FICA) que promove uma grande movimentação turística em Goiás-GO.
Mas, de acordo com Prizibisczki (2008), “a simpática cidade de Goiás, eleita
patrimônio da humanidade pela Unesco em 2001, para muitos moradores é agradável somente
na época do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (FICA), realizado sempre
nas primeiras semanas de junho. No resto do ano, o grave problema de coleta e deposição
irregular de lixo é que rouba a cena” (Cf. PRIZIBISCZKI, 2008).
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o Império português no Atlântico Sul
De acordo com Carneiro (2005), na memória coletiva, o fato de Goiás ter se
tornado Patrimônio da Humanidade gerou sentimentos diferentes nos vilaboenses. Assim,
percebe-se que o título “fez bem para autoestima” da elite, entendidos como “os mais
ressentidos com a transferência da capital” enquanto os menos favorecidos “não sentem
orgulho”, mas, pelo contrário, “sentem o peso de viver numa cidade turística mundialmente
reconhecida” (CARNEIRO, 2005, p. 96).
Depois de 4 anos que Goiás adquiriu o título de Patrimônio da
Humanidade, o que se vê, o que se fala e que se ouve dos moradores
da cidade é que pouco mudou na realidade. Não houve aumento na
oferta de emprego e trabalho, os jovens precisam mudar da cidade
para trabalhar. Outros saem da cidade para estudar em outros centros,
já que os cursos oferecidos nas Faculdades locais são poucos. Os
turistas diminuíram consideravelmente e os que visitam Goiás não
consomem o suficiente para corresponder às expectativas do
comerciante, além de ter havido desvalorização dos imóveis
(CARNEIRO, 2005, p. 98 – Grifo nosso)
Para conhecer e analisar o setor de turismo em Goiás-GO, o Plano Estadual de
Turismo (PET) foi considerado fundamental. O PET foi elaborado pela Agência Estadual de
Turismo – Goiás Turismo, órgão do Governo de Goiás, para o fortalecimento e crescimento
do turismo no Estado de Goiás, buscando intensificar sua contribuição para a geração de
renda, ampliação do mercado de trabalho e valorização cultural, natural e técnico cientifico. O
trabalho desenvolvido pela Goiás Turismo aponta na direção do desenvolvimento humano e
econômico. (ESTADO DE GOIÁS, 2007).
Desde então, estão sendo emitidos boletins informativos com o objetivo de
delinear uma evolução e tendências do comportamento da economia do turismo no Estado de
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Goiás. Para tanto, a Política Estadual de Turismo utiliza-se de uma série de critérios186 para
classificar os destinos turísticos nas três categorias de destinos prioritários (Diamante,
Esmeralda e Cristal). Seguindo essa metodologia, o IPTur Goiás divulgou a classificação dos
vinte e seis destinos mais importantes do Estado de Goiás (Destino Diamante). De acordo
com a tabela de classificação, o município de Goiânia-GO seria o melhor estruturado,
ocupando o primeiro lugar no ranking com 403 pontos. O município de Goiás-GO encontra-se
bem classificado, aparecendo em nono lugar na classificação geral com 77 pontos (BOLETIM
DADOS DO TURISMO EM GOIÁS. EDIÇÃO Nº 02 / 2010 - IPTUR / GOIÁS).
É importante para Goiás-GO figurar entre os principais destinos turísticos do
Estado de Goiás e ainda apresentar bom desempenho em relação aos critérios estruturantes,
conforme os resultados da pesquisa apresentados anteriormente, mas será que as atividades
turísticas conseguiram transformar a realidade local e promover o desenvolvimento local?
No caso do município de Goiás-GO, os impactos podem ser mais bem
visualizados conforme a Relação Anual de Informações Sociais – RAIS referentes à
participação do turismo na geração de empregos e estabelecimentos formais nas Atividades
Características do Turismo. Entretanto, os dados são pouco animadores. Os resultados da
pesquisa revelam crescimento negativo no período analisado, entre 2006 e 2011, tanto em
relação ao número de empregos formais (-27%) quanto em relação o número de
estabelecimentos (-16%) relacionados com as Atividades Características do Turismo (ACTs).
Portanto, o impacto do turismo em Goiás-GO não tem conseguido transformar a realidade
local (RAIS, 2011).
Além disso, o número de turistas vem diminuindo o que tem dificultado a criação
de novos postos de trabalho, a ampliação, melhoria ou criação de novos estabelecimentos
comerciais. Para verificar se o número de turistas realmente tem diminuído consultou-se os
registros de visitantes do Museu Casa de Cora Coralina, um dos pontos turísticos mais
186
Foram selecionados dez critérios de estruturação de destino turístico. Entre eles destacam-se: 1) Conselho
Municipal de Turismo – COMTUR; 2) Fundo Municipal de Turismo – FUMTUR; 3) Participação em instância
de governança regional – Fórum Regional de Turismo; 4) Instituto de Pesquisas Turísticas – IPTur; 5) Boletim
de Ocupação Hoteleira – BOH; 6) Plano Municipal de Turismo (PMT) validado pelo COMTUR; 7) Número de
leitos disponíveis no município; 8) Centro de Atendimento ao Turista – CAT; 9) Cadastro dos Prestadores de
Serviços Turísticos – CADASTUR; 10) Sustentabilidade Turística.
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importantes do município. Os dados apresentados revelam que em 2010 foram registrados
20.425 visitantes. O maior índice de todo o período analisado. Este número indica uma média
mensal de 1702 visitantes e uma média diária de, aproximadamente, 56,7 visitantes. Contudo,
há certa irregularidade no período analisado e os dados mostram que em 2011 houve um
declínio no número de visitantes. Em comparação ao ano de 2010, o número de visitantes caiu
14% e, em 2009, 13%. A média do número de visitantes nos anos de 2007 e 2011 foi de
18.282 pessoas (MUSEU CASA DE CORA CORALINA, 2012).
Atualmente, há vários problemas em Goiás-GO que colocam em dúvida a
capacidade de gestão territorial e não podem deixar de ser analisados. Nesse sentido, as
pesquisas de campo revelaram também que embora menos intenso que nas décadas de 1970 e
1980, o chamado êxodo rural e urbano ainda é um grave problema. A migração para outras
cidades – principalmente Goiânia-GO e Itaberaí-GO – é notória e atinge principalmente
jovens e mulheres, que não encontram trabalho ou outros estímulos para permanecer em
Goiás-GO e alimentam perspectivas de dias melhores.
Conforme dados levantados junto ao IBGE (2010), no período compreendido
entre 1990 e 2010 foi possível perceber o decrescimento populacional de Goiás-GO em
relação ao município vizinho de Itaberaí-GO. Em 1990, a população de Itaberaí-GO (24.852
habitantes) era menor que a de Goiás-GO (27.782 habitantes). Nos dez anos seguintes,
Itaberaí-GO (27.879 habitantes) apresentou um índice populacional praticamente igual a
Goiás-GO (27.120). Mas, a partir dos anos 2000 até 2010, Itaberaí-GO (35.412 habitantes)
ultrapassa Goiás-GO (24.745 habitantes). Enfim, de 1990 a 2010, em 20 anos Goiás-GO
perdeu aproximadamente 3.037 habitantes enquanto o município vizinho de Itaberaí-GO
obteve um acréscimo populacional de aproximadamente 10.560 habitantes. Como resultado
do maior crescimento econômico e da proximidade187 entre os municípios, Itaberaí-GO tem
atraído grande parte da população ativa de Goiás-GO e acelerando o seu decrescimento
populacional.
Outro indicador importante para se avaliar o desenvolvimento e a qualidade de
vida em Goiás-GO é o índice de desenvolvimento humano (IDH). Assim, observa-se que após
187
A distância entre Goiás-GO e Itaberaí é de aproximadamente 41,9 km. O tempo médio de condução é de
40min. Ver: http://distanciacidades.com/. Acesso em 13 de setembro de 2013.
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o processo de patrimonialização ocorreu diminuição neste indicador passando de 0,736 (2000)
para 0,709 (2010).
Assim, a qualidade de vida em Goiás-GO tendeu a piorar após a
patrimonialização do município.
Considerações Finais
Embora Goiás-GO tenha optado pela patrimonialização acredita-se que os
resultados das atividades econômicas ligadas ao turismo em Goiás-GO ainda são incipientes e
não têm conseguido promover o desenvolvimento do município (SIQUEIRA e VIANNA,
2011, p. 13).
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o Império português no Atlântico Sul
DO TERÇO QUE SE REZA ÀS TERRITORIALIDADES DA FÉ CATÓLICA: O
CASO DA COMUNIDADE RURAL DE SANTA LUZIA188
Marcos Roberto P. Moura
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Geografia189
Universidade Federal de Goiás/ Instituto de Estudos Sócioambientais
[email protected]
Introdução
Sendo a principal religião no Brasil em termos de fiéis, o catolicismo estabelece sua
territorialidade através de um sistema hierárquico organizado em diferentes escala espaciais e
em diferentes escalas de poder, como paróquias, dioceses e arquidioceses. A comunidade
apresenta-se como a menor organização episcopal do território, esta submetida à paróquia.
A Comunidade de Santa Luzia é uma dessas demarcações do território, delimitados
pela influência da Igreja Católica. Nessa comunidade religiosa a fé os une, sustentando seus
espíritos e fortalecendo as relações sociais entre o grupo. Compreender espaços territoriais
como esses, significa uma relevante aproximação com as crenças, percepções e
representações que sugerem contornos e consistência a territórios como esse.
Comunidade de Santa Luzia – seus sujeitos e a construção de um território
A Comunidade de Santa Luzia, antiga comunidade da Baíca, é o local que recebe
todos os anos, no dia 13 de dezembro, a romaria de Santa Luzia. A comunidade que carrega o
nome da santa venerada pelos romeiros não surgiu a partir do evento religioso, mas ganhou
grande notoriedade com os sucessivos anos em que ocorria. Uma comunidade que não teria
outro destaque, mas, com a realização do evento, a comunidade de Santa Luzia torna-se um
188
Este artigo é parte de discussões elaboradas no decorrer de uma dissertação de mestrado em processo de
construção no mestrado em Geografia da UFG/IESA.
189
Orientadora: Profª Drª Maria Geralda de Almeida.
265
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centro de convergência religiosa, atraindo grande quantidade de fiéis e ocupando os
noticiários do município de Porangatu e região.
Localizando-se a 20 km da cidade de Porangatu, fazendo parte desse município, a
Comunidade de Santa Luzia é composta por cerca de 30 propriedades rurais de variada
extensão, a maioria delas não ultrapassa os cem hectares de terra.
As casas que se encontram na comunidade são em sua maioria, moradias modestas,
pequenas, com apenas dois quartos, uma varanda. Como as terras são de poucos hectares, as
áreas de pasto e plantio não ficam muito distantes das casas. Ribeiro e Alencar (2012)
esclarecem que a produção de legumes, hortaliças, de animais e aves serve para o próprio
sustento ou também para a venda na feira da cidade de Porangatu, fator que aumenta a renda
da família.
É sobre esse território que se constroem os modos de vida desses povos do cerrado.
Sobre essas terras são construídas suas histórias, se firmam e reafirmam suas tradições, se
erguem memórias coletivas. Acreditando que toda memória coletiva é consolidada a partir de
um determinado espaço e que as imagens espaciais são importantes elementos em sua
constituição, Halbwachs (1990, p. 133) afirma que “Quando um grupo está inserido numa
parte do espaço, ele o transforma à sua imagem, ao mesmo tempo em que se sujeita e se
adapta as coisas materiais que a ele resistem”.
Ocupando um determinado território, todo o processo de (re)construção das
identidades coletivas tem forte vinculação à história e à tradição, reelaboradas conforme os
interesses do presente. O pequeno grupo de produtores rurais já mantinham certos vínculos
entre si, mas a igreja católica teve importante papel na aglutinação do grupo, identificando-os
como a comunidade de Santa Luzia. A denominação atribuída pela igreja católica, mais
precisamente, pela Paróquia de Nossa Senhora da Piedade, que em Porangatu é responsável
pela organização das comunidades católicas do município, tem como intuito possibilitar o
gerenciamento das visitas de Ministros da Palavra190. Assim, a conhecida comunidade da
Baíca passa a ser chamada de Comunidade de Santa Luzia.
190
Os Ministros da Palavra são pessoas leigas da comunidade, instruídas a efetuar alguns serviços religiosos da
Igreja Católica, como a realização de celebrações na ausência de um padre. De acordo com o Cânone 230 §3:
“Onde a necessidade da igreja o aconselhar, podem também os leigos na falta de um ministro, mesmo não sendo
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O antigo nome da comunidade é alusivo a uma importante figura dessa localidade, já
falecida, mas que permanece muito presente nos relatos dos moradores. Não existem muitos
registros publicados sobre a vida de Maria Pereira Soares, a Dona Baíca, ou sua pequena
comunidade. As informações mais esclarecedoras, de fato, se descortinam a partir de poucos
trabalhos divulgados sobre a comunidade e a romaria de Santa Luzia, como uma monografia
apresentada por Ribeiro e Alencar (2012)191. Desse modo são importantes os relatos obtidos
com os trabalhos de campo.
Compreender o processo de surgimento da Comunidade de Santa Luzia torna-se mais
interessante quando se dá enfoque a partir do momento em que Maria Pereira Soares (que no
futuro seria chamada de Dona Baíca), casa-se com Deuzelis Vieira Soares. Ao chegar à
região, Deuzelis, que já era casado, compra uma propriedade com a intenção de morar nesse
local com a esposa. Trabalhando em suas terras, o recém-chegado conhece Maria por quem se
apaixona, separando-se da esposa para casar-se com a moça que conhecera na região.
Muitos anos se passaram desde a união de Deuzeli e Maria, que sendo muito católicos
realizavam encontros para rezarem em louvor a Santa Luzia todo dia 13 de dezembro. O
evento sempre reunia muitas pessoas da região, até devotos de outros santos, mas que se
juntavam pela amizade ao casal e/ou pela fé católica.
Em 1978, Deuzelis chega a falecer, mas Dona Baíca continua a gerenciar os trabalhos
em suas terras. Segundo Ribeiro e Alencar (2012), o cultivo da terra passa a ser realizado por
meeiros e arrendatários, que plantam arroz, feijão, milho, mandioca e cana. Dona Baíca
mantém a tradição religiosa das rezas na comunidade e incentiva as pessoas a também
rezarem. A comunidade já conhecida como Comunidade da Baíca, passa a adotar o nome de
Santa Luzia devido a destacável devoção à santa.
A viúva tem uma posição de destaque na comunidade, tornando-se uma liderança não
apenas religiosa, mas também política. É devido a todo esse prestígio que Dona Baíca
consegue trazer para a comunidade a primeira escola com o Ensino Fundamental I. Uma das
leitores ou acólitos, suprir alguns de seus ofícios, a saber, exercer o ministério da palavra, presidir as orações
litúrgicas, administrar o batismo e distribuir a sagrada Comunhão, de acordo com as prescrições do direito”
(CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO, 1983, p. 39).
191
A monografia citada foi apresentada como requisito a obtenção de grau de Licenciatura Plena em História em
2012, por Maria Lopes Ribeiro e Weber José Gomes de Alencar na Universidade Estadual de Goiás – Unidade
Universitária de Porangatu.
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professoras que atuaram na pequena escola, Maria da Glória Carvalho Campos, hoje com 48
anos, nos conta que já era moradora da região e assumiu o cargo de professora devido ao
apoio de Dona Baíca. Atualmente ela ministra aulas em uma escola de outra comunidade rural
e se lembra de Dona Baíca com gratidão e respeito: “Todos aqui gostavam muito dela, pois
ela ensinava e incentivava todos a rezar. As crianças desde cedo já aprendiam a rezar com ela.
Ela também buscava o tempo todo trazer melhorias pra comunidade, ela queria facilitar a vida
de todo mundo” (Pesquisa de campo, maio de 2014).
A dona de casa, Maria Sônia Teixeira de Morais Carvalho, de 41 anos, foi adotada por
Dona Baíca aos quatro anos de idade logo após tornar-se viúva. Maria relata que, como sua
mãe adotiva não teve filhos, adotou-a e em seguida reconheceu como filho adotivo mais uma
criança, um menino chamado Leci Teixeira de Moraes. Os filhos adotivos, Maria e Leci, hoje
são herdeiros e continuam ocupando as terras que compunha a Fazenda Santa Luzia, de Dona
Baíca.
Na empreitada de seu trabalho religioso sempre a frente de rezas, missas e encontros
na comunidade, Dona Baíca via crescer cada vez mais a quantidade de pessoas que se
reuniam de casa em casa, para os eventos religiosos. Esta senhora percebia que a comunidade
crescia c via a necessidade da construção de uma capela em louvor a Santa Luzia, que pudesse
abrigar todos os fiéis. Mas do que a construção de um templo religioso, um objetivo de todos
que participavam da comunidade, era a materialização de sua memória religiosa sobre o
espaço, de maneira que essa imagem (edificação) espacial, desse maior sentido a sua devoção
e fortalecesse o sentimento de perpetuação da tradição religiosa. “Cada vez que se ergue uma
nova Igreja, o grupo religioso sente que cresce e que se consolida” (HALBWACHS, 1990, p.
157).
O espaço passa por sucessivas e rápidas transformações e a sociedade como agente
dessas transformações, não lhe é indiferente, ao passo que as relações entre os seres também
sofrem consideráveis alterações. Assim, um grupo religioso encontra maior amparo em
acreditar que sua memória coletiva, não está mais presa apenas aos homens em sua visível
volatilidade. De forma estável, se consolida sobre o espaço sob a forma de uma igreja.
Depois de a comunidade arrecadar dinheiro com algumas festas, os sucessivos
mutirões, também com o apoio da paróquia e da prefeitura de Porangatu, a capela de Santa
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Luzia foi construída no ano de 2000, a conclusão das obras deu-se dois anos após o
falecimento de sua principal articuladora, em 1998. A imagem da santa que pertencia a Dona
Baíca deixou o lar que ocupava (isto quando não “passeava” pelos vários lares da comunidade
durante as rezas) para tomar o lugar que lhe fora destinado, sobre o altar da pequena capela de
Santa Luzia. A santa de devoção da família de Dona Baíca, torna a padroeira da comunidade.
Em um estudo sobre a religião na zona rural de Itapira, interior de São Paulo, Brandão (1985)
nos aponta algumas características da prática religiosa católica que incorrem em diversas
comunidades rurais, ressaltando que existe uma trajetória rotineira em que o santo de devoção
de uma família passa a ser o padroeiro de uma comunidade camponesa.
Mas, Dona Baíca continua presente na memória daqueles que a conheceram, sendo
lembrada sempre pela comunidade com muita gratidão pelas suas ações em favor da região
em que vivia. A região é ainda conhecida por muitos como Comunidade da Baíca.
O pequeno agropecuarista José Alves Carvalho, de 50 anos, mostra com orgulho o
galpão que construiu para abrigar o trator conseguiu comprar, adquirido mediante uma das
linhas de crédito do FCO Rural192. José fez parte da primeira romaria de Santa Luzia,
compondo um grupo de 70 pessoas, que em 13 de dezembro de 2001, caminhou do centro da
cidade de Porangatu até a comunidade.
Assim se torna perceptível na comunidade da Baíca uma identidade religiosa,
motivando os encontros movidos pela fé católica, além de possibilitarem a realização de
festas para arrecadação de fundos para eventos religiosos. Os momentos em que esses
pequenos agricultores se reúnem para a realização de rezas e missas, configuram-se em
destacáveis oportunidades para que a comunidade pudesse se reunir, se socializar, se divertir
no contato uns com os outros. A comunidade religiosa de Santa Luzia constituíra-se em
importante elemento aglutinador dos sujeitos na região, promovendo a solidariedade, a
geração de interesses em comum, uma identidade.
192
O Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste (FCO) foi criado pela Lei nº 7.827, de 27/9/1989,
que regulamentou o art. 159, inciso I, alínea c, da Constituição Federal, com o objetivo de possibilitar o
desenvolvimento econômico e social da região, mediante a execução de programas de financiamento aos setores
produtivos. O FCO Rural, destinado a produtores rurais, possui baixas taxas de juros e prazos para pagamentos
de
até
20
anos
(Cartilha
do
FCO,
http://www.sudeco.gov.br/documents/10157/84110/Cartilha_FCO_20_2_14_sem_logo.pdf, acesso em 05 de
julho de 2014).
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Comunidade: uma breve, mas necessária discussão
Procuramos até aqui tecer uma abordagem a respeito da criação da comunidade de
Santa Luzia instalada na antiga Comunidade da Baíca (se bem para algumas pessoas, ainda
persiste essa denominação como principal). Temos utilizado até o momento como meio de
delimitação territorial o espaço da “comunidade”, esta ocupada por seus sujeitos que lhe dão
forma e que são dialeticamente influenciados por ela. Mas o que seria uma comunidade? A
resposta não é tão simples assim. As mais abrangentes incursões a respeito desse conceito, do
ponto de vista da ocupação humana podem nos ser dadas a partir de ciências humanas como a
sociologia, que tem esse como um de seus principais conceitos.
O sociólogo Bartle (2001 p.1) nos coloca a par da complexidade da questão,
apontando que, “... uma ‘comunidade’ é uma construção mental, um modelo [...] não se
resume às pessoas que a constituem [...] pode nem sequer possuir um lugar físico, mas ser
simplesmente demarcada por um grupo de pessoas que partilham um interesse comum”.
Contudo, nossa investigação, partindo de um interesse que segue os ditames da ciência
geográfica, busca um espaço no qual haja um sentimento de pertencimento, que possa dar
certa concretude às ações práticas e simbólicas de um grupo.
Em se tratando de uma comunidade, é mais convincente outra visão sociológica, que a
respeito das comunidades, sugere “a existência de três padrões de sociabilidade comunitária:
os laços de consanguinidade, de coabitação territorial e de afinidade espiritual, cada qual
convergindo para um respectivo ordenamento interativo, como comunidade de sangue
(parentesco), lugar (vizinhança) e espírito (‘amizade)” (TÖNNIES, 1947 p. 33 apud
BRANCALEONE, 2008 p. 100). Essa concepção apresentar melhor que a definição de Bartle
(2011) que sugere a ideia de uma comunidade desvinculada seu espaço físico, e até mesmo
seus indivíduos.
Adotaremos então a definição de comunidade de Tönnies (1947), na qual umas das
três dimensões destacadas reflete a importância da apropriação do espaço. É uma proposição
mais condizente com nossos objetivos de investigação, já que acreditamos que, apesar de não
ter seus limites tão rigidamente delimitados, uma comunidade territorializa seu espaço. Por
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meio de seus laços de parentesco, de suas relações sociais, constroem formas, imagens e
representações que se fundem ao território.
Com o pessimismo sobre as relações humanas, pós-modernas, que marcam seus
textos, além da coragem que lhe é habitual, o antropólogo Bauman (2003) faz uma categórica
crítica ao conceito de comunidade. O autor começa alertando para a capacidade de “seduzir”
que está imbricado no conceito:
As palavras têm significado: algumas delas, porém, guardam
sensações. A palavra “comunidade” é uma dessas. Ela sugere uma
coisa boa: o que quer que “comunidade” signifique, é bom “ter uma
comunidade,” “estar numa comunidade”. [...] Comunidade, sentimos,
é sempre uma coisa boa (BAUMAN, 2003, p.7).
Ele (2003, p. 9) declara que “comunidade é o tipo de mundo que não está,
lamentavelmente, ao nosso alcance — mas no qual gostaríamos de viver e esperamos vir a
possuir”. Para o autor, viver em uma comunidade é mais uma aspiração do que propriamente
uma realidade a ser experimentada. A solidariedade, o conforto e a segurança, que segundo
Bauman (2003) são próprios de uma comunidade não podem ser vistos em seu modelo real.
Podemos inferir que estamos mais próximos de compreendermos os traços culturais de
um grupo ao analisarmos suas relações comunitárias, pois observamos grupos de pessoas, que
num delimitado território deixam transparecer em suas ações, seus simbolismos. Uma
abordagem cultural na geografia como nos lembram Wagner e Mikesell (2003), deve levar em
conta que:
A noção de cultura considera não indivíduos isolados ou quaisquer
características pessoais que possam possuir, mas comunidade de
pessoas ocupando um espaço determinado, amplo e geralmente
contínuo,
além
comportamento
de
numerosas
comuns
aos
características
membros
de
tais
de
crença
comunidades
(WAGNER E MIKESELL 2003, p. 28).
271
e
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Uma base geográfica, de fato, é o que dá o suporte inicial para uma cultura à medida
que favorece uma comunicação mais regular entre os indivíduos, assim, os geógrafos citados
completam esse entendimento ao afirmarem:
Uma comunidade de pessoas que compartilha uma cultura comum
pode existir encravada numa única aldeia isolada, na qual todos os
habitantes estão em contato direto diário, ou pode se estender sobre
um vasto território dentro do qual, pessoas, objetos e ideias circulam
mais ou menos livre e continuamente (WAGNER E MIKESELL
2003, p. 29).
Assim, ao utilizarmos o agrupamento humano definido como comunidade, temos uma
base geográfica que favorece nossa abordagem. Temos assim um território com dimensões
físicas relativamente mensuráveis. Mas do que isso, temos também um agrupamento de
pessoas com objetivos comuns que projetam um território simbólico, no qual seu núcleo se
concentra na capela e que se estende por seus arredores.
Na Comunidade de Santa Luzia o principal elemento que une seus moradores,
dispersos espacialmente, mas não por muitos quilômetros, é a fé católica. A devoção que os
impulsionou a construírem uma capela e consequentemente organizarem-se todos os anos
para receberem uma romaria, agora constrói-reconstrói, força-reforça o estreitamento das
relações entre o grupo nesse território, fortalecendo-se como comunidade.
Territorialidades da Igreja Católica: as comunidades religiosas
A Igreja Católica Apostólica Romana passa por um processo de perda de fiéis nas
últimas décadas, cedendo quantitativos humanos principalmente para as igrejas evangélicas
que apresentam considerável crescimento, ano após ano. Ainda assim, o catolicismo continua
sendo a religião que detém o maior número de adeptos no Brasil. Baseando-se em dados da
Fundação Getúlio Vargas/ Centro de Políticas Sociais –FGV/CPS organizados por Neri
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(2011) é possível perceber que o número de fiéis apresentou maior queda nos anos 1990 em
terras brasileiras.
No entanto, apesar de passar por uma constante perda no seu número de seguidores, o
catolicismo no Brasil, experimenta certo crescimento no número de padres e outros
ingressantes no clero, expandindo suas demarcações territoriais religiosas (Circunscrições
Eclesiásticas como Dioceses e Prelazias, Paróquias).
O catolicismo toma como estratégia a expansão territorial, com ampliação do número
de dioceses e paróquias que cobrem o território nacional. O processo de territorialização do
catolicismo é baseado em hierarquias territoriais, como paróquias, dioceses e arquidioceses.
Com jurisdições bem demarcadas, tais hierarquias exercem seu domínio em diferentes escala
espaciais e em diferentes escalas de poder.
Em relação às territorialidades da Igreja Católica, Rosendahl (1995, p. 56) enfatiza o
poder de controle territorial articulado pelo catolicismo:
É nesta poderosa estratégia geográfica de controle de pessoas e coisas,
ampliando muitas vezes o controle sobre territórios que a religião se
estrutura enquanto instituição. Territorialidade, por sua vez, significa
o conjunto de práticas desenvolvido por instituições ou grupos no
sentido de controlar um dado território.
O primeiro nível da instância hierárquica da igreja católica são as comunidades
religiosas, que atuam a nível local, tendo como hierarquia ligeiramente superior, as paróquias.
Segundo Sopher (1967, apud Rosendahl, 1995), o catolicismo organiza comunidades a fim de
fornecer seus serviços rituais, de maneira que serão organizados dois tipos de territórios: os
episcopais e os lugares sagrados.
Entre os territórios episcopais “A paróquia representa também, para seus paroquianos,
um lugar simbólico, onde cada habitante se insere sem grandes questionamentos e, na maioria
dos casos, desenvolve uma forte identidade religiosa com o lugar” (ROSENDAHL, 2001).
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Instituída como uma Comunidade Religiosa, a comunidade de Santa Luzia faz parte da
hierarquia territorial da igreja submetendo-se, imediatamente, a Paróquia de Nossa Senhora da
Piedade que coordena os serviços eclesiais do município, seja na zona urbana ou rural.
A comunidade rural de Santa Luzia faz parte de um grupo de 15 comunidades
religiosas que são coordenadas pela paróquia local, são 7 comunidades rurais e 16
comunidades urbanas. Devido à falta de um número maior de padres, as comunidades rurais
recebem o padre para as missas uma vez por mês193. O fato é que “o equilíbrio territorial
paroquial pode não resistir ao desequilíbrio demográfico, à mobilidade recente da população e
à escassez de padres” (ROSENDAHL, 2001 p. 19). Apesar da quantidade de padres ter
aumentado nos últimos anos, não é o bastante para atender, semanalmente, os vários e
dispersos agrupamentos humanos no Brasil.
A territorialidade da igreja católica, no ínterim das unidades episcopais e dos fiéis que
se organizam em torno delas, caracteriza o que Gil Filho (2008) denomina como
territorialidade do sagrado. Uma instituição religiosa materializa em sua estrutura física no
território, mas também se apropria deste de forma simbólica “a territorialidade é o atributo de
determinado fato social no qual o poder é imanente” (GIL FILHO, 2008 p. 110).
Ao promover sua territorialidade, a religião impregna o espaço de fortes simbolismos
e representações, a partir daí ocorre um movimento dialético, em que a territorialidade
promove uma identidade religiosa e uma identidade religiosa molda as configurações do
território. De acordo com Gil Filho e Gil (2001, p. 48), “A identidade religiosa seria uma
construção histórico-cultural socialmente reconhecível do sentimento de pertença religiosa”.
Assim, as dioceses são unidades essenciais no processo de territorialização da Igreja
Católica, como foi descrito por Rosendahl (2002), em territórios em que os tentáculos da
Igreja não alcançam surgem as manifestações do catolicismo popular. A partir do momento
em que cresce a movimentação popular, o Catolicismo Oficial procurar auxiliar nos rituais, de
modo a garantir seu domínio sobre o território. Na Comunidade da Santa Luzia, a paróquia
local logo adveio a auxiliar na construção de uma capela na comunidade, que sucedeu a
193
Segundo calendário 2014 da Paróquia Nossa Senhora da Piedade.
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receber a visita do padre uma vez por mês, além de também assumir a coordenação da
romaria com o auxílio da Prefeitura de Porangatu.
Outra estratégia que a igreja utiliza para controlar determinados territórios é convidar
pessoas da própria comunidade para serem coordenadores de seus respectivos agrupamentos
de fiéis. Esses líderes fornecem seus contatos telefônicos, passando a ser o canal direto entre a
organização episcopal e a comunidade. Também são responsáveis por garantir que as
determinações paroquiais possam chegar ao grupo. Na Comunidade de Santa Luzia, há alguns
anos, o coordenador é Leci Teixeira de Moraes194, filho de Dona Baíca.
As comunidades religiosas como a de Santa Luzia representam fisicamente a
territorialidade da igreja católica. São verdadeiros territórios demarcados pelo catolicismo no
exercício de seu poder, procurando sempre proteger os rígidos dogmas católicos daquilo que o
catolicismo oficial considera como exagero de algumas práticas do catolicismo popular. Tais
comunidades adquirem identidades singulares a partir das relações geradas pelo convívio em
função da religião.
Conclusão
Um espaço territorial é bem mais do que um território onde se mora, se planta, se
colhe, se trabalha. É onde sujeitos elaboram todos os dias a suas construções sociais, a partir
da forma como lidam com a terra, das histórias que contam, das memórias que são guardadas.
Mesmo em meio a toda evolução tecnológica, viver em comunidade é algo que a
humanidade busca como forma de alcançar certo conforto e segurança. A vida em
comunidade fortalece as relações e objetivos comuns, motiva a criação de simbolismos e
representações sobre o território.
Os agrupamentos humanos, definidos como comunidade, são apropriados pelo
catolicismo em suas formas de territorialização, configurando-se como o mais baixo nível
hierárquico da Igreja Católica, instaurando-se a representação do catolicismo a nível local.
Contudo, os laços firmados pela proximidade, condições, dificuldades, comungados por
194
Informação também extraída do calendário 2014 da Paróquia Nossa Senhora da Piedade.
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sujeitos em comunidade, se fortalecem ao se amalgamarem com preceitos da fé católica,
próprios da organização de uma comunidade religiosa. Toda essa configuração dá força ao
grupo na busca de seus objetivos, sejam em favor ad fé, ou a busca de melhores condições de
trabalho e produção.
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O CONCEITO SUBSTANTIVO IDADE MÉDIA E O LIVRO DIDÁTICO: UMA
ANÁLISE PELA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO HISTÓRICA195
Max Lanio Martins Pina196
Conceito Idade Média
A historiografia medievalista já resolveu os problemas de ordem pejorativa, negativa
ou depreciativa sobre o período da História comumente denominado Idade Média. Durante
muitos anos essa temporalidade foi fustigada e menosprezada pela cultura erudita ocidental. A
mesma foi reabilitada pelos Annales que a partir da Nova História começou a visitar e
revisitar temas importantes desse período por meio da história das mentalidades (OLIVEIRA,
2010).
No Brasil os estudos medievais surgiram a partir dos anos 1930. Com a criação da
Universidade de São Paulo – USP, vários intelectuais franceses, italianos, alemães e
portugueses foram convidados para participar da estruturação da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), a qual permitiu uma revolução na própria
historiografia brasileira, e também de uma forma tímida permitiu ao surgimento das pesquisas
em medievalidades.
Nos anos de 1990 com o aumento dos cursos de pós-graduação, fomentou também a
criação de vários grupos e laboratórios especializados em temas medievais ligados a
Associação Nacional de História – ANPUH, e a Associação Brasileira de Estudos Medievais
– ABREM, os quais passaram a promover um número expressivo de pesquisas nessa área
(OLIVEIRA, 2010).
A professora Maria Guadalupe Pedrero-Sánches (1999, p. 15), afirma que “entre dois
momentos do acontecer histórico sempre há um período de transição, e sobre essa etapa voltase toda uma série de conjeturas, matizes e restrições que dificultam endossar totalmente um
195
Resultados parciais de pesquisa realizada no mestrado em História na Pontifícia Universidade Católica de
Goiás – PUC-GO. Esta investigação conta com o financiamento da Fundação de Ampara a Pesquisa do Estado
de Goiás - FAPEG.
196
Mestrando em História PUC-GO, docente da Universidade Estadual de Goiás - UEG.
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ou outro dos extremos que se aproximam e se confundem”. Por se situar entre a Antiguidade
Clássica e o Período Moderno, a Idade Média tornou-se esse momento de transição onde fora
considerada pelos renascentistas e iluministas como retrocesso diante do mundo grecoromano, e atrasado diante da modernidade (PEDRERO-SÁNCHES, 1999).
Em um ensaio publicado em 2007 no Brasil com o título “As raízes medievais da
Europa”, Jacques Le Goff apresenta a Idade Média como “época do aparecimento e da gênese
da Europa como realidade e como representação e que constitui o momento decisivo do
nascimento, da infância e da juventude da Europa, sem que os homens desses séculos tenham
a ideia ou a vontade de construir uma Europa unida” (LE GOFF, 2007, 11). Nesse sentido Le
Goff, continua a insistir com sua tese de que a Idade Média vai para além da clássica
periodização estabelecida pela historiografia que a limita no período de mil anos, para esse
historiador quando pensamos o medievo como gênese constituição da Europa Ocidental,
encontramos elementos históricos que extrapolam essa demarcação temporal.
Em “Idade Média: bárbaros, cristãos e muçulmanos”, obra lançada no ano de 2010
na Europa, dirigida pelo escritor, filósofo, semiólogo, linguista e bibliófilo italiano Umberto
Eco, o qual se posiciona criticamente contra o estereótipo que foi construído sobre o medievo,
pela literatura, pelos manuais escolares e pelo cinema. O que é estranho, pois foi ele um dos
responsáveis pela construção dessa visão, já que se tornou um dos maiores divulgadores da
cultura do medievo através de seus romances ficcionais ambientados nesse período, que
também foram adaptados para cinema, como foi o caso do romance “Em nome da rosa” de
1980. O livro descrito no início do parágrafo foi escrito para o público leigo e também
especializado, os autores convidados fazem parte de um grupo de especialistas europeus em
assuntos medievais.
Umberto Eco preferiu adotar uma via contrária, isto é, ao invés de perguntar o que é
a Idade Média, escolheu afirmar aquilo que ela não é, na tentativa de desconstruir a visão
estereotipada que foi e é mantida pelo mass media.
No primeiro ponto a ser desconstruído Umberto Eco afirma que a “Idade Média não
é um século” como também não seria um tempo que fosse possível perceber bem sua
definição e suas características como o Renascimento, o Barroco e o Romantismo. Assegura
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que essa etapa da história é muito longo e seria impossível que o “modo de viver e pensar se
tenha mantido imutável ao longo de um período tão extenso” (ECO, 2010, s/p).
No segundo ponto sustenta que a “Idade Média não é um período exclusivo da
civilização europeia”. Não devemos esquecer e nem perder de vista que nesse mesmo
momento o império do Oriente mantinha viva por meio do esplendor de Bizâncio
características do antigo Império Romano após a queda de Roma. Nestes mesmos séculos
floresceu a civilização árabe, que foi responsável pela preservação e transmissão aos europeus
dos clássicos da filosofia antiga (ECO, 2010, s/p).
No terceiro faz a seguinte ratificação que os “séculos medievais não são a Idade das
Trevas, as Dark Ages dos autores anglófanos”. Umberto Eco concorda que se essa
conceituação pode ser aplicada em parte ao período que vai da queda do Império Romano até
o renascimento carolíngio. Todavia, as raízes da cultura europeia, como a língua por exemplo
surgem nesses séculos escuros, como também, foi nessa fase da história da humanidade que
várias invenções do mundo antigo foram aperfeiçoadas (ECO, 2010, s/p).
No quarto ponto de sua tentativa de desconstrução do estereótipo sobre o medievo
declara que a “Idade Média não tinha só uma visão sombria da vida”. No medievo
encontramos igrejas românicas que estão repletas de figuras como diabos e suplícios infernais
que celebram o triunfo da morte. Também encontramos procissões realizadas por bandos de
mendigos e leprosos que circulavam fanaticamente entre os campos e os burgos. Mas
também, foi nesses séculos que se assistiu ao surgimento dos goliardos que celebravam a
alegria de viver, por meio de seus poemas e canções. (ECO, 2010, s/p).
No quinto assevera que a “Idade Média não é uma época de castelos torreados como
os da Disneylândia”. A maioria dos castelos que conhecemos na verdade foram construídos
no Renascimento e não na época feudal. O castelo feudal “consistia numa estrutura de
madeira erguida numa elevação de terreno (...) e rodeada por trincheira defensiva”. Somente
no século XI é que foi construído em torno dele as muralhas para uma maior proteção. Com
frequência essas muralhas eram feitas de paliçadas que serviam para refugiar os camponeses e
seus animais em tempos de ataques (ECO, 2010, s/p).
No sexto ponto garante que a “Idade Média não ignora a cultura Clássica”. Ainda
que muitos textos e autores antigos tenham se perdido, uns poucos medievais conheciam
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Virgílio, Horácio, Cícero, Ovídio Terêncio, Sêneca, Claudiano e Salústio. Esses autores não
eram conhecidos por todos que sabiam ler, um mosteiro poderia ter um número de obras e
outro não. O que havia de fato nos mosteiros era uma sede de conhecimento, num momento
onde as comunicações eram tão difíceis (ECO, 2010, s/p).
No sétimo ponto Umberto Eco assegura categoricamente que a “Idade Média não
repudiou a ciência da Antiguidade”. Os medievais ocidentais, não possuíam elementos que os
permitiam irem além daquilo que lhes estavam impostos pelas suas limitações, todavia Eco
atesta que
Até um estudante do liceu pode facilmente deduzir que, se Dante entra
no funil infernal e, quando sai pelo outro lado, vê estrelas
desconhecidas no sopé da montanha do Purgatório, isso significa que
ele sabia perfeitamente que a Terra era esférica e escrevia para leitores
que também o sabiam. Mas dessa opinião tinham sido Orígenes e
Ambrósio, Beda, Alberto Magno e Tomás de Aquino, Roger Bacon e
João de Sacro Bosco. Só para mencionar alguns. (ECO, 2010, s/p).
De acordo com Eco a “Idade Média não foi uma época em que ninguém se atrevia ir
além dos limites da sua aldeia”. Este é o oitavo ponto, e expressa sobre as peregrinações que
permitiam a locomoção das pessoas, até mesmo os mais humildes de um local para outro na
Europa. Essas viagens levavam à Jerusalém, Santiago de Compostela ou a qualquer outro
santuário existente naquele momento (ECO, 2010, s/p).
A “Idade Média não foi apenas uma época de místicos e rigoristas” assim enuncia o
autor no nono ponto observado sobre os tempos medievais. Apesar de ter sido um período
marcado pela presença da Igreja, das abadias, dos grandes mosteiros e dos bispos da cidade,
não foi uma época só de atitudes austeras. Foi nesse momento que o amor romântico e
idealizado nasceu, mesmo sendo um amor casto, era obsessivo. Uma vez ao ano em
determinadas localidades o carnaval era permitido ao “povo miúdo”, que não poupavam
palavras obscenas e nem a descrição de práticas indignas. Umberto Eco alega que esse
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período da História é contraditório entre aquilo que se pregava e o que realmente se praticava
(ECO, 2010, s/p).
Como décimo ponto tem-se a visão de que a “Idade Média não é sempre misógina”
(ECO, 2010, s/p). Não obstante a mulher ser constantemente apontada como fomentadora do
pecado e alguns padres recorrerem a autocastração, foi nessa fase da História que houve uma
“das mais apaixonadas glorificação da mulher” (ECO, 2010, s/p).
No décimo primeiro ponto a Idade Média é apresentada como um período que “não
foi a única época iluminada por fogueiras”. Não queimou pessoas na fogueira apenas por
motivos religiosos, “mas também por motivos políticos”, como foi o caso de Joana D’Arc e
muitas outras execuções que se seguirão nos séculos XVI até o XVIII (ECO, 2010, s/p).
Por fim o décimo segundo ponto certifica que “Idade Média não [pode ser vista]
apenas como uma época de ortodoxia triunfante”. Esse aspecto representa “uma piedosa visão
da Idade Média sonhada pelos reacionários de todos os séculos, avessos às polémicas, revoltas
e contestações dos tempos modernos” (ECO, 2010, s/p).
Essas são as doze teses apresentadas por este autor italiano que, como foi exposto
anteriormente, são tentativas de superação dos estereótipos e das representações negativas em
relação a Idade Média.
Educação Histórica e o livro didático
A Educação Histórica é uma linha de investigação que surgiu na Inglaterra a partir da
década de 1970, por meio dos estudos em Cognição Histórica, onde os pesquisadores queriam
compreender como os alunos pensavam historicamente. Esse problema surgiu, pelo fato em
que o sistema educacional britânico permitia ao aluno escolher em quais disciplinas deseja
cursar. Enquanto as salas de matemática estavam lotadas, as de História tinham uns poucos
alunos matriculados. O que levou o historiador inglês Peter Lee iniciar uma campanha
investigativa para reverter o quadro, já que matemática sempre foi considerada uma disciplina
mais complexa que História. Os pesquisadores descobriram que os professores da disciplina
de matemática contavam com o apoio de investigações daquilo que eles denominavam
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Educação Matemática. Daí em diante países como, Portugal, Canadá, Estados Unidos, e
também o Brasil, passaram a desenvolver pesquisas em Educação Histórica.
Essa linha de investigação defende que as analises sobre o ensino e a aprendizagem
em história deve ser realizada por historiadores, porque somente eles detêm o cabedal
epistemológico necessário para perceber os fundamentos do conhecimento histórico, tanto o
científico, como o da história vivida.
A expressão conceito substantivo foi elaborada por Peter Lee (2001) e refere-se aos
conteúdos da História, como por exemplo, Revolução Francesa, Segunda Guerra, Ditadura de
1964 e Idade Média. Juntamente com essa categoria foi constituído aquilo que ele denomina
de conceitos de segunda ordem, que são aqueles que permeiam qualquer outro conteúdo a ser
aprendido, a exemplo, mudança, progresso, continuidade, época entre outros.
Seguindo essa mesma visão só que dentro de outro contexto, que é o da virada
paradigmática da Didática da História na Alemanha nos anos 1960 e 1970, tem as
contribuições do historiador Jörn Rüsen, para quem “o livro didático é a ferramenta mais
importante no ensino de história” (RÜSEN, 2010, p. 109). Sem dúvida, a quase impossível
pensar no ensino de História na educação pública brasileiro sem ajuda do livro didático. Não
se quer aqui desvalorizar as outras possibilidades ou documentos que permitem o ensino de
História, mas observar a importância que a educação básica impõe sobre o livro didático.
No Brasil essa importância é levada a sério pelas autoridades competentes, pois a
partir do ano de 1996 foi criado o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD
(OLIVEIRA, 2010) e de lá para cá foram aperfeiçoadas as exigências em torno dos
conteúdos, das linguagens e também da qualidade dos materiais empregados na confecção do
mesmo.
Rüsen (2010) salienta que os historiadores precisam se preocupar com o livro
didático por três motivos. Primeiro por este ser “um dos canais mais importante para levar os
resultados da investigação histórica até a cultura histórica de sua sociedade”. O historiador
deve tomar cuidado e insistir para ver os resultados de sua investigação serem incorporados
“sem grande demora aos livros didáticos”. Segundo que a função do conhecimento histórico
presente no livro didático é orientar culturalmente a vida em sociedade. Finalmente, pelo
simples envolvimento dos historiadores com as questões políticas do nosso tempo, pois “o
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o Império português no Atlântico Sul
ensino de história é uma das instâncias mais importante para formação política” (RÜSEN,
2010, p. 110).
Jörn Rüsen (2010) lista uma série de característica para um livro didático ideal:
- Aspectos de utilidade para um ensino prático tais como: formato claro, estrutura didática,
relação com o aluno e relação com a aula.
- Já os aspectos para que o aluno consiga alcançar uma percepção histórica são: apresentação
de materiais históricos, imagens, mapa e esboços, textos, pluralidade da experiência histórica
e pluriperspecitivade.
- As características que um manual precisa possuir para despertar nos educandos a
interpretação histórica são: normas científicas, capacidades metodológicas, caráter de
processo da história e pluriperspectividade ao nível do observador e força de convicção da
exposição.
- Por fim o livro didático deve conter para instigar uma orientação histórica são: perspectivas
globais, formas de um juízo histórico e referências ao presente.
Todos os elementos referidos fazem parte das necessidades/exigências que um
manual didático precisa compor na Alemanha. Todavia, não podemos comparar essa realidade
com o Brasil, já que os alemães vêm discutindo através da didática da história desde as
décadas de 1960 e 1970 uma maneira mais adequada para se produzir e se aplicar o livro
didático em sala de aula. Entretanto, esses elementos servem de apoio teórico e
epistemológico para analisarmos os nossos manuais, e contribuem para colocar em pauta do
dia a discussão em torno dessa ferramenta que em algumas escolas no Brasil é o único
material que o professor dispõe.
Temos consciência de que as sugestões de Rüsen são para análise do livro didático,
entretanto essas características também nos servem como elementos norteadores para avaliar
o conceito de Idade Média que o compõe.
Análise do livro didático
Cabe salientar que nosso ponto de vista sobre os livros didáticos brasileiros é o fato
de concordamos com aqueles que defendem o uso dos mesmos para o ensino e aprendizagem
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de história com qualidade. Para nós o problema não está só no livro didático, mas também no
uso inadequado que se faz desse material em sala de aula.
O manual escolar selecionado para análise neste artigo: “Projeto Araribá: História”,
7° ano, organizado pela Editora Moderna, 3°edição 2010. Nossas observações não fazem
parte de nenhuma atitude política em relação a depreciação da obra citada, pelo contrário
acreditamos que o exercício intelectual de análise de todos os conteúdos mantidos pelos livros
didáticos no Brasil deveriam ser colocados a avaliação pelos historiadores, assim como
acontece na Alemanha, para melhoramento do ensino e da aprendizagem histórica. Este
manual didático só foi selecionado porque é adotado pelo Colégio Estadual Presidente
Kennedy, situado em Porangatu – Goiás, onde realizamos uma pesquisa que visa
compreender a consciência histórica de alunos do sexto e nono ano do ensino fundamental
sobre como eles conceituam a Idade Média.
O presente volume dedica um total de noventa e três páginas aos assuntos ligados a
Idade Média, os quais estão distribuídos em três unidades com a média de quatro a seis
capítulos cada uma. A primeira irá observar “A formação da Europa Feudal”, a segunda dos
“Mundos Além da Europa”, e a terceira apresentará a “Baixa Idade Média”.
Não iremos tratar de todos os assuntos medievais presentes nesse livro porque as
especificidades deste artigo não nos permite verifica-los devido ao número de páginas limites,
por essa razão optamos por analisar somente a conceituação sobre a Idade Média presente
nele.
Em um boxe retangular vertical localizado a margem direita da segunda página do
primeiro capítulo, os editores conceituam
A Idade Média, de acordo com a divisão clássica da história, vai da
queda do Império Romano do Ocidente, em 476, até a tomada de
Constantinopla pelos turcos, em 1453. Acredita-se que o termo Idade
Média tenha sido formulado por estudiosos que viveram em cidades
italianas, entre os séculos XIV e XV.
Esses homens defendiam a ideia de que o período posterior à queda de
Roma caracterizou-se principalmente pelo atraso técnico, pela
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exagerada fé religiosa e pela falta de liberdade. Porém, estudos
recentes mostram que a Idade Média foi uma época de grandes
transformações econômicas, culturais e sociais, como pode ser vistos
nas construções e na produção literária e filosófica do período.
(PROJETO ARARIBÁ, 2010, p. 13).
Fica evidente que a visão adotada pelos editores para essa edição é tradicionalista,
rígida e linear em relação à Idade Média, contrariando o pensamento do respeitado
medievalista francês Jacques Le Goff (2007) que acredita ser a Idade Média um período para
além dos séculos que a demarca. Contraria também o segundo ponto apresentado por Eco
(2010), em que o período medieval não foi exclusividade da Europa Ocidental.
Conforme ressalta Oliveira,
As datas de início e término da Idade Média devem ser
problematizadas,
pois
sendo
a
história
um
processo,
os
entrelaçamentos entre elementos sociais, culturais, econômicos do
medievo, dos períodos anteriores (Império Romano) e dos posteriores
(Idade
Moderna)
precisam
ser
considerados.
Essas
divisões
metodológicas não são naturais, mas construções históricas e
arbitrárias com fins didáticos. (2010, p. 19).
Concomitantemente o conceito apresentado esbarra em algumas das sugestões dadas
por Jörn Rüsen (2010) para um livro didático ideal:
- Essa visão não apresenta a pluriperspectividade, ou seja, não é dada outras perspectivas ao
nível do observador/leitor. A História não tem somente um lado.
- Também não privilegia as perspectivas globais, o enfoque é totalmente eurocêntrico.
- Em relação às normas científicas e as capacidades metodológicas os editores optaram por
não apresentar as fontes que os levaram à construção desse conceito, o que para nós
representa um ponto negativo. Quando comentam “Acredita-se que o termo Idade Média
tenha sido formulado por estudiosos que viveram em cidades italianas, entre os séculos XIV e
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o Império português no Atlântico Sul
XV” (PROJETO ARARIBÁ, 2010, p. 13), fica vago e o aluno não tem como perceber os
caminhos que levaram a construção desse conceito.
- A ausência de mais uma característica pode ser percebida a partir do trecho analisado, o que
permite ressaltar a falta de força de convicção da exposição, no momento em que se diz
“acredita-se” e “estudos recentes”, sem mencionar quais são esse estudos, torna a nosso ver o
texto impreciso para os alunos.
- Por fim, observamos que os editores nesse conceito se eximiram de expressar um juízo de
valor, preferiram a manter a aparência de uma imparcialidade, o que para Rüsen (2010, p.
126) não é bom para formação dos alunos, pois os mesmos precisam aprender se posicionar
“alegando as suas razões”.
Outra problemática a ser levantada é fato desse conceito ser apresentado em boxe,
duas coisas podem acontecer, primeiro os alunos podem se interessar por esta parte do texto e
prestar uma atenção especial a ela, ou podem passar pela página e não perceber a importância
do mesmo pelo fato de não fazer parte do texto geral, salvo se o professor chamar a atenção
para ela com o cuidado de problematiza-la.
Ressaltamos que as demais características recomendadas por Rüsen (2010) e também
por Eco (2010), foram encontradas nos conteúdos que compõe as unidades sobre o medievo,
menos uma, o material não permite uma relação com o aluno. Defendemos a bandeira de que
precisamos no Brasil da produção de material didática que parta do contexto das realidades
regionais brasileiras, e não apenas do eixo Rio/São Paulo.
Considerações Finais
A presente comunicação tinha por finalidade realizar uma análise sobre o conceito
Idade Média, desenvolvido recentemente pela historiografia para então relacioná-lo com o
que é abordado no livro didático. Percebemos que as pesquisas realizadas pelos historiadores,
ainda não são incorporadas pelo livro didático na mesma velocidade que são produzidas pela
ciência. Isso acarreta um déficit para o ensino e principalmente para aprendizagem histórica
por parte dos alunos que usufruem do sistema educacional público brasileiro.
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Chegamos a mesma conclusão de José Rivair Macedo em seu famoso texto
“Repensando a Idade Média no ensino de História”, publicado em 2008, onde afirma que a
Idade média que é ensinada na escola básica, não é a mesma Idade Média dos pesquisadores
(MACEDO, 2008). Existe aí um fosso que separa essas duas situações, e de acordo com
Macedo (2008), isso ocorre por causa do estatuto que permeia a função social da História, que
neste caso seria o de manter a estrutura da história política em que o Ocidente está
constituído, indo na contra mão daquilo que é produzido pela erudição acadêmica.
Defendemos um conhecimento adequado da Idade Média ou dos temas medievais
por parte dos estudantes, para que os mesmos possam se posicionarem de forma crítica e
segura diante da avalanche de produtos da cultura de massa (cinema, literatura e jogos
eletrônicos) que são inspirados nas medievalidades, sem que para isso haja um rigor
científico.
Referências Bibliográficas
ECO, Umberto. Introdução à Idade Média. In: ECO, Umberto. (Org.). Idade Média: bárbaros,
cristãos e muçulmanos. Alfragide, Portugal: Publicações Dom Quixote, 2010. Disponível Em:
<http://books.google.com.br/books?id=YA9ZLbUyjLsC&printsec=frontcover&dq=idade+me
dia&hl=pt-BR&sa=X&ei=WPkZVLv9LqrisAT4q4HgCw&ved=0CCcQ6AEwAg#v=onepage
&q=idade%20media&f=false>. Acesso em 17 de set. de 2014.
LEE, Peter. Progressão da compreensão dos alunos em História. In: BARCA, Isabel (Org.).
Perspectivas em Educação Histórica. Actas das Primeiras Jornadas Internacionais de
Educação Histórica. Braga: Universidade do Minho, 2001. p. 13-29.
MACEDO, José Rivair. Repensando a Idade Média no ensino de história. In: KARNAL,
Leandro. (Org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. 5ª ed. São Paulo:
Contexto, 2008. p. 109-125.
PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média: textos e testemunhas.
São Paulo: Editora Unesp, 2000.
PROJETO ARARIBÁ. História. 7° ano. Editora Moderna, (Org.). 3ª ed. São Paulo: Moderna,
2010. p. 6-93.
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Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
OLIVEIRA, Nucia Alexandra Silva de. O estudo da Idade Média em livros didáticos e suas
implicações no Ensino de História. Cadernos de Aplicação, Porto Alegre, v. 23, n. 1, jan./jun.
2010.
RÜSEN, Jörn. O livro didático ideal. In: RÜSEN, Jörn. Jörn Rüsen e o Ensino de História.
(Org.) SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende.
Curitiba: UFPR, 2010. p. 109-127.
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A COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE E A HISTÓRIA
Mayara Paiva de Souza**
A Ditadura Militar no Brasil é um tema bastante estudado e debatido no meio
acadêmico. Muitas análises sobre o tema foram publicadas ainda nas décadas de 1970 e 1980,
produzindo esquemas de interpretação e conceitos que se tornaram célebres197. Todavia, nos
últimos anos vem surgindo debates e produções que lançam um novo olhar sobre o período.
As pesquisas e reflexões recentes têm contado com fontes cada vez mais acessíveis e com o
questionamento de esquemas interpretativos que nasceram ainda no calor dos acontecimentos
(MOTTA, 2014).
Apesar da predominância das narrativas da resistência ao regime, ainda existem muitas
lacunas e inconclusões que aguardam por esclarecimentos. Entre a memória revelada e o
conhecimento do passado há uma pedra no caminho: a necessária abertura dos arquivos e a
lembrança dos que serviram ao próprio governo ditatorial. A anistia de 1979, que é
considerada uma autoanistia, dificultou a abordagem do passado por meio de uma narrativa
que, ao se debruçar com clareza sobre a trágica experiência vivida na ditadura, pudesse ser
social e politicamente aceitável (REIS FILHO, 2004).Resguardados pela anistia de 1979,
muitos militares que participaram ativamente do regime optaram, e ainda optam,pelo silêncio
como forma de proteção e assim buscam se desvencilhar do passado podendo chegar até
mesmo ao limite da negação198.
Um pensamento que predominou nos quartéis a partir de 1979 é que a anistia
representaria uma interdição do passado, o que aconteceu, seja de um lado ou de outro,
deveria ser esquecido. Nesse sentido, o almirante Mauro César Rodrigues Pereira afirmou:
“Um lado tem que calar a boca e ficar quieto. O outro lado tem o direito de ficar a vida inteira

Pesquisa financiada pela Fundação de Apoio a Pesquisa de Goiás (FAPEG).
Doutoranda em História pela Universidade Federal de Goiás.
197
Segundo Rodrigo Patto Sá Motta (2014), conceitos como Doutrina de Segurança Nacional e Estado
Burocrático-Autoritário, apesar de oferecer ideias interessantes para a aproximação com o tema, podem se tornar
camisas de força teóricas que acabam por impor uma lógica férrea dos acontecimentos.
198
Cito como exemplo o depoimento do Coronel Brilhante Ustra na Comissão Nacional da Verdade.
**
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dizendo que tem ferida e que tem que dar um jeito de curá-la? Não. Tem que calar a boca
também e ficar quieto” (CASTRO; D’ ARAÚJO, 2001. p. 282).
Na mesma linha de argumentação o almirante Henrique Sabóia, Ministro da Marinha
durante o governo de José Sarney, destacou que o que houve após a anistia de 1979 foi um
revanchismo, não ocorreu “anistia moral” dos militares, pois as Forças Armadas foram
continuamente cobradas pelos acontecimentos do passado: “É o que eu digo sempre: a anistia
foi one way. Nós anistiamos, mas não fomos anistiados até hoje. Houve anistia, mas num só
sentido. [...] Até hoje tudo é culpa da ditadura”(CASTRO; D’ ARAÚJO, 2001. p. 58).
Diante da tentativa de interdição do passado por parte dos militares e da relativa
sacralização da resistência por parte das vítimas, ainda existem muitas lacunas acerca do
passado ditatorial no Brasil, mas talvez o maior desafio dos pesquisadores do período seja
mitigar os campos de negociações entre a sociedade e o regime. Muitos segmentos da
sociedade se identificavam com o modelo imposto pelos militares, um modelo de
modernização conservadora que colocou Médici, para citar um exemplo, dentre os mais altos
índices de aprovação pública. O temor ao Comunismo levou a mobilizações que eclodiram
antes e depois do golpe. Vale lembrar, ainda, que nas eleições de 1970 o Movimento
Democrático Brasileiro (MDB), partido da oposição, sofrera uma esmagadora derrota imposta
pelo partido governista, Aliança Renovadora Nacional (Arena), derrota que por pouco não
causou o desaparecimento do MDB. Desta forma, notamos que o apoio de parcela
significativa da sociedade, não exclusivamente de setores dominantes, corroborou para que a
Ditadura Militar no Brasil se prolongasse por tantos anos.
Embora haja uma intensa produção memorialística e historiográfica sobre a Ditadura
Militar no Brasil, há uma dificuldade de promover um debate acerca do passado ditatorial que
atinja a esfera pública. Por décadas o debate esteve restrito ao âmbito acadêmico e à memória
privada de grupos de familiares de vítimas da ditadura. Mesmo com as fortuitas participações
do Estado, o debate ainda enfrenta dificuldades para alcançar o âmbito público, visto que,a
transição lenta e gradual para o sistema democrático fez com que o regime militar chegasse ao
fim sem que houvesse uma ruptura com o passado ditatorial. Houve um rearranjo do poder,
todavia, figuras políticas atuantes no regime militar continuaram no cenário político no novo
sistema de governo que se instaurou a partir das eleições de 1989. Se não houve ruptura, mas
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apenas uma transição controlada, conseqüentemente não haveria condenação. Dessa forma, a
anistia de 1979 encarregou-se de suspender o passado.
Diante
de
tais
considerações,
partimos
do
pressuposto
de
que
nos
encontramos,atualmente, em um período de relativa ebulição do passado ditatorial. Relativa
porque, apesar de intensa movimentação, o debate ainda encontra obstáculos para atingir a
esfera pública. Com o cinqüentenário do Golpe de 1964, ressurgem debates e temas acerca do
governo militar, o foco volta-se para um passado que há muito se tentou apagar, entretanto, o
passado ressurge com novos e diversos mirantes.
A Comissão Nacional da Verdade
Embora a transição política de um regime ditatorial para um regime democrático no
Brasil tenha sido marcada pela “lógica da protelação”, da imposição do esquecimento e do
silêncio, algumas pessoas não esqueceram o passado ou não querem esquecer. O passado
continua presente. Mesmo que a anistia de 1979 tenha funcionado como antídoto que
“apaziguou” o passadoe promoveu a possibilidade de seguir adiante, as demandas acerca do
passado ditatorial realizadas pelas novas gerações evidenciam que as medidas tomadas pela
política de transição no Brasil não foram suficientes para promover uma reparação seguida
por reconciliação.Nesse sentido, há algum tempo vêm ressurgindo problemas históricos que
envolvem o período da Ditadura Militar no Brasil, principalmente no que diz respeito aos
setores Executivo e Judiciário.
Dentro dessa movimentação de revisão do passado ditatorial, setores governamentais
têm fomentado algumas medidas ligadas à justiça de transição como a criação dos projetos
Memórias Reveladas e Marcas da Memória, a criação das Caravanas de Anistia, mudanças na
lei de acesso à documentação do período ditatorial e a criação da Comissão Nacional da
Verdade199.
199
Comissões da Verdade são mecanismos oficiais, não-judiciais e temporários de apuração de graves violações
de direitos humanos ocorridas em um determinado período de tempo (GOMES, Luiz Flávio e MAZZUOLI,
Valerio de Oliveira (orgs). Crimes da ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte
Interamericana de Direitos Humanos: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2011. p.231).
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O Projeto-Lei 7.376, que criou a Comissão Nacional da Verdade, foi aprovado dia 21
de setembro de 2011. Apresentado ao Congresso desde maio de 2010, o projeto, depois de
intensas negociações com o governo, obteve o apoio de todas as bancadas no parlamento. A
criação de tal Comissão fora proposta no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos,
assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em dezembro de 2009. O texto do
projeto ressalta que a Comissão busca trazer à tona a "verdade histórica" acerca de
perseguições políticas entre 1946 e 1988 no Brasil e, desta forma, "promover a reconciliação
nacional".
Nessa tentativa de buscar uma “verdade histórica”, a Comissão, criada pela Lei nº
12.528/2011pretende apurar as violações dos direitos humanos entre o período que separa a
promulgação das duas Constituições brasileiras que foram elaboradas após períodos
ditatoriais no Brasil, isto é, a Constituição de 1946 e a de 1988. O primeiro artigo da Lei que
criou a Comissão da Verdade estabelece que esta tem a finalidade de “examinar e esclarecer
as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no artigo 8º do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias”, portanto, de 18 de setembro de 1946 até 05 de
outubro de 1988, “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a
reconciliação nacional” (PLANALTO, 2011). Todavia, a Lei estabeleceu que a Comissão não
tem poderes para punir os agentes envolvidos nos crimes cometidos durante o período. As
investigações incluem a apuração de autoria de crimes como tortura, mortes,
desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres, perdoados com a Lei da anistia, de
1979. Segundo a então ministra da Secretaria dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, a
Comissão da Verdade não é uma resposta à Corte Internacional, mas é uma forma de o Brasil
responder à sua própria história.200
Composta por sete membros indicados pela presidente da República, a Comissão da
Verdade tem até 16 de dezembro de 2014 para apresentar um relatório final sobre seus
200
A Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos condenou, em 2010, o
Brasil em relação à Guerrilha do Araguaia. Pela sentença, o Estado brasileiro terá de remover todos os
obstáculos práticos e jurídicos para a investigação e esclarecimento de crimes e responsabilização dos
envolvidos. O Tribunal reafirmou o alcance geral de sua decisão, exigindo que as disposições da lei de Anistia
não representem um obstáculo à investigação. In: <www.torturanuncamais-rj.org.br> acesso em: 22/09/2011.
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trabalhos.201Durante as investigações, os membros podem requisitar informações a órgãos
públicos, inclusive informações sigilosas, convocar testemunhas, realizar audiências públicas
e solicitar perícias. Ao fim dos trabalhos, a Comissão deverá enviar aos órgãos públicos
competentes informações que ajudem na localização e identificação de restos mortais de
pessoas desaparecidas por perseguição política.
As principais críticas à criação da Comissão Nacional da Verdade relacionam-se,
principalmente, ao longo período que a Comissão investiga. São quarenta e dois anos da
história do Brasil. Por ser um passado longo, o Deputado do DEM-RJ, Arolde de Oliveira,
afirmou que a Comissão pode trazer problemas para o país, pois mexe em uma ferida que já
está cicatrizada e que poderá voltar a causar problemas sérios (CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 2011). Além disso, a Comissão foi bastante criticada, principalmente por
setores militares, por enfatizar as violações dos direitos humanos cometidos por agentes do
Estado, mas não debruçar-se sobre os fatos desencadeados pela “esquerda revolucionária”.
Segundo o deputado Jair Bolsonaro (Partido Progressista - RJ), um dos principais críticos da
Comissão Nacional da Verdade, a Comissão é totalmente parcial, uma vez que os membros
foram indicados pela Presidente da República e que não “querem apurar os crimes da
esquerda”, desta forma, segundo o parlamentar, a Comissão não investiga os dois lados da
história.202
Segundo o historiador Carlos Fico (2013), a questão de que os “dois lados” deveriam
ser investigados se assemelha a tese que, na Espanha, é chamada de “equivalência" e, na
Argentina, é chamada de tese dos “dois demônios”, isto é, compara-se a violência da
repressão com a violência da esquerda. Entretanto, segundo o historiador, o argumento é
falho, uma vez que as comissões da verdade são criadas para apurar crimes cometidos por
parte do Estado. Além disso, o Estado brasileiro tinha possibilidade de acabar com a luta
armada sem recorrer à tortura e ao extermínio.
201
Os membros indicados foram: Maria Rita Kehl, Rosa Cardoso, Paulo Sérgio Pinheiro, José Carlos Dias,
Gilson Dipp, José Paulo Cavalcante Filho e Cláudio Fonteles – renunciou em 2013 e foi substituído por Pedro
Dallari. A maioria dos nomeados para integrar a Comissão Nacional da Verdade tem formação acadêmica na
área de direito, com exceção de Maria Rita Kehl que é psicanalista e Paulo Sérgio Pinheiro que é cientista
político. O prazo para a entrega do relatório final a princípio seria até abril de 2014, mas foi prorrogado pela
medida provisória nº 632 de 24 de dezembro de 2013.
202
Entrevista de Jair Bolsonaro a Alexandre Garcia. In: http://www.youtube.com/watch?v=XX7XrPI0c0s
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Enquanto grupos ligados a setores militares criticam a “parcialidade da
ComissãoNacional da Verdade” e seu caráter “revanchista”, vítimas da repressão e seus
familiares criticam os limites da Comissão devido ao curto prazo para entregado relatório
final, prazo inicialmente estabelecido em dois anos. Para setores ligados aos militantes, o
prazo de trabalho da Comissão da Verdade deveria ser maior e a quantidade de integrantes
deveria ser ampliada.
No que se refere ao setor acadêmico, a Associação Nacional de História (ANPUH)
criticou a não nomeação de um historiador para integrar a Comissão. A Associação divulgou
nota em que apontava como fundamental a presença de historiadores na Comissão Nacional
da Verdade, uma vez que estes profissionais podem se voltar, até mesmo para temas recentes,
valendo-se de métodos rigorosos de pesquisa. Segundo a ANPUH, os historiadores têm o
dever e a capacidade de pensar os temas tratados na Comissão da Verdade não apenas por
intermédio das lentes afetivas da memória, mas também pela perspectiva racional da história
(ANPUH, 2012).
Embora a Associação Nacional de História tenha considerado imprescindível a
participação de historiadores na Comissão da Verdade, Carlos Fico, um dos principais
estudiosos do período da ditadura militar no Brasil, em entrevista ao jornal O Globo afirmou
que se fosse convidado para integrar a Comissão da Verdade, não aceitaria o convite,
poistemia que o resultado levasse a uma "verdade histórica" única, enquanto "um historiador
deve trabalhar com o conceito de que não existe uma verdade absoluta” (O GLOBO, 2012).
Além disso, para Carlos Fico, o historiador deve se distanciar de simplismos como a
vitimização da resistência ou até mesmo a humanização do algoz, as relações são mais
complexas, há jogos de acomodações, e o historiador não deve colocar-se como juiz. Embora
concorde com a posição oficial da ANPUH de que a história tem os melhores instrumentos e
métodos para compor uma reflexão que ilumine o passado traumático, dignificando os que
sofreram, para Carlos Fico o historiador deve escrever a história sem incorrer no simplismo de
condenação do mal.
Dentre as divergências sobre a presença, ou não, de historiadores na Comissão da
Verdade, um ponto que ambos concordam é que tal Comissão é do interesse direto dos
historiadores, sejam eles estudiosos do período, ou não. Além de poder suscitar um debate
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teórico-metodológico sobre a tarefa da história o papel ético-político do historiador, o direito
à memória e o direito à história, a Comissão da Verdade pode trazer, também, novas
informações e fontes para pesquisas.
Dentro do exposto, é necessário ressaltar que a relação entre comissões da verdade e a
“verdade” passa por um processo de tomada de decisões sobre o que será investigado e o que
será relatado, quais depoimentos serão colhidos e o que será gravado. Nessa perspectiva, as
escolhas feitas pelos comissionados e a metodologia empregada influenciam na “verdade” a
ser apresentada no relatório final da comissão (MARTINS; MENDES, 2012, p.214). Nesse
aspecto o trabalho de uma comissão de verdade se assemelha ao trabalho historiográfico, já
que este também conta com a mediação, seleção e interpretação do historiador.
Podemos inserir a criação da Comissão Nacional da Verdade na perspectiva de que a
memória e a história também são mecanismos de reparação. Nesse sentido, a Comissão da
Verdade representa um avanço, não no estabelecimento de fatos, mas no reconhecimento por
parte do Estado de que tais fatos aconteceram. A Comissão representa um passo importante na
história por buscar a revelação de fatos que, de outro modo, dificilmente chegariam ao
conhecimento do grande público. Além disso, os integrantes da Comissão podem convocar
testemunhas, solicitar documentos, exumações, investigações técnico-científicas e policiais,
dentre outros mecanismos legais que podem corroborar, posteriormente, para o trabalho do
historiador.
Apesar das críticas, principalmente advindas de setores militares, a Comissão foi
instalada em 10 de maio de 2012. Durante a cerimônia de instalação, a presidente Dilma
Rousseff ressaltou que a missão do órgão é restabelecer a verdade sem violar a Lei de Anistia
de 1979, que impede que os crimes anistiados sejam julgados. Nesse sentido, os pactos do
passado seriam mantidos, impedindo punições.
Na mesma direção da Presidente da República, os membros indicados para compor a
Comissão sinalizaram para a imprensa que a Lei de Anistia será respeitada. José Paulo
Cavalcante Filho, advogado membro da Comissão, afirmou que o objetivo “é contar a
verdade, a história dos vencidos, sobretudo. Apurar esse pedaço da história do Brasil e depois
sepultar, porque você não constrói um país olhando para trás” (FOLHA DE S. PAULO,
2012). Da mesma forma, Gilson Dipp afirmou que “nenhum Estado se consolida
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o Império português no Atlântico Sul
democraticamente se o seu passado não for revisto de forma adequada” (CORREIO
BRAZILIENSE, 2012). De acordo com o porta-voz da Comissão na cerimônia de instalação
de seus trabalhos, José Carlos Dias, os trabalhos da Comissão da Verdade representarão uma
“institucionalizada montagem de memória coletiva” que ajudará a consolidar a democracia
brasileira sem “apedrejamentos” (SOUZA; ALENCASTRO, 2012).
Distanciando-se da “tese dos dois demônios”, o colegiado da Comissão decidiu, por
unanimidade, que irá examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos
praticados por agentes públicos, pessoas a seu serviço, com apoio ou no interesse do Estado,
desta forma seu foco está nas violações de direitos humanos praticadas pelo Estado e seu
representantes no período de 1946-1988. De acordo com Paulo Sérgio Pinheiro, o foco da
Comissão da Verdade é provar que a repressão ocorrida durante a ditadura não foi mera
questão de abuso ou de excesso, mas sim uma política de Estado (BRASIL, CNV, 2012).
Durante a cerimônia de instalação, contando com a presença dos ex-presidentes José
Sarney, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, a
Presidente Dilma afirmou que a Comissão Nacional da Verdade simboliza a consolidação do
processo democrático que não pode se constituir sob a ameaça do silêncio e do esquecimento.
Nessa perspectiva, a Comissão rompe o silêncio do Estado em relação à transição controlada.
Segundo a Presidente da República, a revelação da verdade e apuração dos fatos,
mesmo não correspondendo a uma punição penal, tem um valor simbólico que pode promover
a reconciliação e contribuir para a construção de uma cultura de direitos humanos, além disso,
pode contribuir para o fortalecimento da democracia, a reabilitação das vítimas e a
restauração de sua dignidade.
Espera-se, com a Comissão, que a revelação da verdade tenha um impacto na
sociedade como um todo e não apenas na esfera privada das vítimas e seus familiares, uma
vez que é a sociedade que, por meio de diferentes mecanismos, nomeia e atribui significação
ao passado. Nesse sentido, a Comissão da Verdade busca, mais do que conhecer os fatos,
reconhecer publicamente o ocorrido para que tal passado seja compartilhado na esfera
pública.
Muitos casos investigados pela Comissão da Verdade já tem seus fatos básicos
conhecidos, ao menos por aqueles que foram afetados. Em depoimento concedido à Comissão
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da Verdade em dezembro de 2013, o General Álvaro de Souza Pinheiro destacou o alto nível
de informação de seus entrevistadores integrantes da Comissão, por vezes o General ironizou
a necessidade de anotar dados, pois os técnicos apresentavam-lhe informações que, até então,
elenão tinha conhecimento.Após a afirmação da entrevistadora de que alguns depoentes
haviam confirmado que os documentos institucionais acerca da Guerrilha do Araguaia foram
destruídos,
o
General
Álvaro
Pinheiro,
questionado
acercado
destino
dos
documentos,destacou: “então se vocês sabem disso, porque vocês estão perguntando pra mim,
querem me emboscar?” (BRASIL, CNV, 2013).
Não era uma emboscada como sugeriu o general, mas uma tentativa de
reconhecimento, uma vez que a ênfase da Comissão da Verdade está em que os fatos sejam
reconhecidos publicamente. Como destacou Gustavo Miranda (2012), o reconhecimento é
visto como uma afirmação de que a dor de uma pessoa é real e merecedora de escuta. Dessa
forma, o reconhecimento dos fatos é considerado central para a restauração da dignidade das
vítimas.
Para promover o reconhecimento público dos fatos passados, o maior desafio da
Comissão da Verdade é romper o “pacto de silêncio” dos militares que ainda tratam os fatos
ocorridos durante o regime ditatorial como segredo de Estado. Como destacou o General
Álvaro de Souza Pinheiro, em seu depoimento à Comissão da Verdade,a busca da Comissão,
na visãodos militares, será inglória. O general declarou diante das questões dos técnicos da
Comissão da Verdade: “não vou confirmar nada a Comissão nenhuma. Nem o papa me
obrigaria [...] Tô rindo. Não tenho nenhum interesse nisso”.203Ora, parece evidente que sem
romper o “pacto”, pouco se poderá aprofundar ou esclarecer sobre o tema. Todavia, entre a
“verdade” buscada pela Comissão e os militares que participaram do regime ditatorial,
encontra-se a Lei de Anistia.
Um dos depoimentos concedidos à Comissão Nacional da Verdade que melhor
evidencia essa opção tanto pela negação quanto pelo silêncio, foi o depoimento do coronel
reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou DOI-CODI entre 1970 e 1974.
Convocado para depor em 10 de maio de 2013, Ustra se apresentou com um habeas corpus
203
O vídeo com a gravação do depoimento do Gal. Álvaro de Souza Pinheiro encontra-se disponível em
:http://www.youtube.com/watch?v=G1xoTwKu4Y4. Acesso em: 12 de abril de 2014.
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que lhe concedia o direito de permanecer em silêncio.Apesar do direito concedido pela
justiça, o coronel, antes das questões da Comissão, leu um depoimento em que destacou que a
democracia brasileira deve muito aos militares que combateram o comunismo e liquidaram os
“terroristas”. Mesmo após afirmar ter “cumprido seu dever”, Ustra negou que tenham
ocorrido torturas e mortes dentro do DOI-CODI durante seu comando, segundo o coronel,
todas as mortes ocorreram em combate, com exceção dos “suicídios” de Vladmir Herzog e
Manoel Fiel Filho, mortes que ocorreram quando Ustra já não comandava a instituição.
Diante das negações, ao ser questionado sobre supostas mortes ocorridas nas dependências do
DOI-CODI, o coronel, alterado, afirmou que não responderia a mais nenhuma pergunta,
cruzou os braços e ressaltou: “eu não tenho mesmo mais nada a responder”, todavia o
advogado José Carlos Dias afirmou que continuaria perguntando204, eis a missão da Comissão
da Verdade.
O depoimento do coronel Ustra ilustra uma das principais dificuldades da Comissão da
Verdade. Respaldado pela Lei de Anistia, o militar tem o direito de permanecer em silêncio,
de esquecer o passado e, face a face com suas supostas vítimas, reafirmar a impunidade do
passado.205
Com a colaboração de Comissões Estaduais e Comissões Universitárias, até a presente
data a Comissão Nacional da Verdade produziu relatórios parciais de pesquisas acerca da
morte de Juscelino Kubistchek, do deputado Rubens Paiva, do atentado no Riocentro, das
ações realizadas na Casa da Morte em Petrópolis e sobre as instituições utilizadas pelas
Forças Armadas para perpetração de violações de direitos humanos. Foram realizadas
diversas audiências públicas por todo o país, colhidos depoimentos e milhares de documentos
recebidos pela Comissão estão sendo analisados. Após dois anos de atividades, a Comissão
204
Depoimento disponível em: http://www.cnv.gov.br/index.php/component/content/article/2-uncategorised/364tabela-de-eventos.
205
Durante o depoimento do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ocorreu um incidente que causou tumulto
na Comissão da Verdade. Questionado se havia torturado Gilberto Natalini em 1972, então estudante de
medicina, Ustra negou o fato, todavia, ao ser questionado se estaria disposto à uma acareação com Natalini, o
coronel afirmou que não faz acareação com “ex-terrorista”. Na plateia e visivelmente alterado, Natalini se
levantou e afirmou que nunca fora terrorista e que o terrorista seria o coronel. A fala de Gilberto Natalini causou
tumulto, mais dois homens se levantaram em defesa de Ustra e exigindo o direito de fala, logo a sessão foi
encerrada.
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ainda recebe severas críticas relacionadas à sua “parcialidade” e por estar voltada para um
passado, que para grande parte da sociedade brasileira, não faz sentido.
Pelo que foi exposto, portanto, espera-se da Comissão Nacional da Verdade que a
sociedade tenha a oportunidade de construir discursos que disputem democraticamente a
hegemonia narrativa da versão oficial sobre o passado (ANTONIO, 2012). Ao levar ao
reconhecimento público dos fatos ocorridos, a Comissão, em vez de produzir um discurso
oficial, poderá contribuir para que o debate histórico seja fomentado no espaço público por
intermédio de debates e a apresentação de versões que competem entre si, uma vez que a
sociedade deve ter o conhecimento dos fatos ocorridos sob diferentes olhares e versões, para
que ela possa conformar, ou não, uma narrativa que faça sentido e coadune com suas
experiências.
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Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
ESTUDANTES QUE TRABALHAM E TRABALHADORES QUE ESTUDAM NO
CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE
ESTADUAL DE GOIÁS, UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE IPORÁ (2011 A 2014)
Nayara Katiucia de Lima Domingues Dias206
Introdução
Há fortes evidências, nos dias atuais, de que a profissão docente vive uma crise
sem precedentes na história do nosso ensino, uma crise das licenciaturas. Conforme Aranha e
Souza (2013, p. 78), ela combina ingredientes de natureza muito diversa, mas o elementochave da sua explicação é o baixo valor do diploma de professor, sobretudo na educação
básica, tanto no mercado de bens econômicos quanto no mercado de bens simbólicos.
Outro problema é a baixa atratividade da carreira docente, com recrutamento dos
estudantes dos cursos de licenciatura justamente entre aqueles de escolarização básica mais
precária. Isso já evidencia que o acesso ao ensino superior não se dá do mesmo modo para os
membros de todas as classes sociais e que a maioria dentre aqueles que estão rompendo as
barreiras econômicas e realizando o sonho de chegar à universidade, o fazem pela via dos
cursos cujo valor do diploma é bem menor (ARANHA E SOUZA, 2013, p. 79).
Um terceiro elemento a ser considerado é o elevado índice de desistência da
profissão. E um dos motivos mais apontados é a informação sobre o elevado índice de evasão
e repetência no cotidiano da sala de aula.
Souza (2006) também enfocou as repercussões no mercado de trabalho no campo
de ensino, e as características da população que está inserida no mercado de trabalho. Para a
referida autora, o mercado de trabalho no campo do ensino não tem exercido boa atratividade
para os profissionais que ali já se inseriram, exceto para “aqueles grupos sociais que se
206
Graduanda em História pela Universidade Estadual de Goiás - Unidade Universitária de Iporá. Bolsista
PIBID/UEG CNPq. E-mail: [email protected]
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encontra em situação de desemprego face às mudanças e reestruturação das atividades
produtivas” (SOUZA, 2006: 3).
Entendimento semelhante ao de Souza (2006) foi apresentado por uma equipe de
pesquisadores da Fundação Carlos Chagas em um relatório preliminar realizado em 2009. Por
meio deste trabalho revelaram diversas situações em que os jovens não se interessam pela
carreira de professor aumentando a escassez de profissionais qualificados em diversas
disciplinas do ensino.
Para os estudantes que participaram da pesquisa, o trabalho do
professor é encarado, portanto, com limitações e dificuldades. E na
possibilidade de um comprometimento exclusivo com essa atividade
profissional, há a preocupação da disparidade entre exigência e
retorno, ou seja, os jovens falam do medo de trabalhar muito e não
serem devidamente reconhecidos [...]. O exercício do magistério
aparece como nobre e desejável, há reconhecimento e gratificação, por
parte dos alunos, por esse ofício; mas tal sentimento de satisfação se
mostra excessivamente intermitente e incontrolável para tornar-se um
desejo/realidade
por
todos
almejada
ou
mesmo
suportada
(FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS, 2009: 66-67).
Assim, os estudantes que trabalham e os trabalhadores que estudam vivem
atualmente um duplo impasse. Ao mesmo tempo em que precisam trabalhar para estudar e
estudar para conseguir uma melhor qualificação profissional muitas vezes não sentem
motivados e confiantes. A própria sociedade brasileira passa uma imagem contraditória da
profissão: ao mesmo tempo em que ela é louvável, o professor é desvalorizado social e
profissionalmente e, muitas vezes, culpabilizado pelo fracasso do sistema escolar. Essas
considerações geram alguns questionamentos: Quais os aspectos que incentivam e/ou afastam
do que constitui a especificidade de ser professor? Valerá a pena investir na carreira docente?
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Diante destas questões-problemas recorreu-se aos pressupostos de Siqueira
(2011). Esta autora destacou a relevância de se compreender sobre a luz do materialismo
histórico e dialético o fenômeno trabalho e estudo. Para ela os estudantes trabalham
demasiadamente tantas horas por dia para poderem estudar, mas se não estudarem não terão
chances melhores de trabalho. Esse conflito manifesta-se como “uma contradição essencial”.
Atualmente, conciliar tempo de trabalho e tempo para estudar é a sua principal conclusão.
Como parte de nossos primeiros resultados da atual pesquisa podemos
dizer que para a maioria dos estudantes, trabalhar possibilita estudar e
estudar possibilita trabalhar. Para eles é essa a troca possível. Torna-se
imperativo conciliar tempo de trabalho e tempo para estudar mesmo
que o estudo se concretize muito aquém do que precisariam para
alcançar uma boa formação profissional (SIQUEIRA, 2011, p. 12).
A contradição que se evidencia é que o trabalho atrapalha o estudo e o estudo
também atrapalha o trabalho. Conforme bem lembra Siqueira (2011, p. 13), a escola e a
universidade assumem “um papel de tolerância” frente às novas relações de trabalho vividas
pelos jovens que nela estudam. E o mais grave: “Não há muito espaço nas disciplinas
acadêmicas para a discussão sobre as mudanças profundas que aconteceram no mundo do
trabalho”. Ainda assim, sabe-se que essas mudanças não atingem apenas nossos alunos
trabalhadores, mas atingem também a todos os professores que são também trabalhadores.
Material e Métodos
Para maior compreensão da chamada crise de licenciatura em relação ao curso de
história da UEG-Iporá além da abordagem teórica conceitual realizou-se uma pesquisa de
campo para coleta e análise de dados primários. Para tanto, optou-se pelas entrevistas
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semiestruturadas tendo como público alvo os alunos no período compreendido entre 2011 a
2014.
Conforme Triviños (1987) a entrevista semiestruturada tem como característica
questionamentos básicos. O foco principal é direcionado pelo investigador-entrevistador. Para
o referido autor, a entrevista semiestruturada “[...] favorece não só a descrição dos fenômenos
sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade” (TRIVIÑOS, 1987, p.
152).
Resultados alcançados
A Universidade Estadual de Goiás (UEG) foi criada em 16 de abril de 1999, pela
lei estadual de número 13.456. Sua sede está localizada no município de Anápolis-Go.
Destaca-se ainda que a criação da UEG resultou de um processo de incorporação de várias
instituições de ensino superior espalhadas pelo interior do Estado de Goiás fazendo desta uma
instituição multicampi, com 41 Unidades Universitárias espalhadas em todo território do
estado de Goiás (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS, 2014a).
No caso de Iporá-GO, a criação da UEG incorporou a Faculdade de Educação,
Ciências e Letras de Iporá (Feclip)207 dando origem a UEG-Iporá. Na época, administrada
pelo Prof. Itamar Paes Sousa (1999-2003/1), ela se fortaleceu e expandiu seu campo de ação
com a implantação das chamadas licenciaturas parceladas, criadas pelo Programa
Universidade para os Trabalhadores da Educação, em convênio com a Secretaria Estadual de
Educação, Prefeituras da região e Sindicato das Escolas Particulares, oferecendo os cursos de
207
A FECLIP foi Criada pelo decreto-lei Estadual de nº. 2.520 de 30/10/1985 (DOE nº 14.899 de 13/10/1986),
conforme Autorização Legislativa Consubstanciada na Lei Estadual nº 9.777 de 10/09/1985 (DOE nº 14.821, de
16/09/1985). De acordo com os termos do citado Decreto 2.520, de 30/10/1985, a entidade autárquica enfocada
teve sede no fórum na cidade de Iporá, situado à Avenida 31 de Agosto, S/Nº - Bairro Mato Grosso – Cep. nº
76.200.000, neste Estado. Constituindo pessoa jurídica do direito público, jurisdicionada à Secretaria da
Educação pelo Art. 8º do Decreto de sua instituição autárquica, a Faculdade de Educação, Ciências e Letras de
Iporá, sendo órgão integrante da Administração indireta do Executivo Estadual, gozando de todas as
prerrogativas asseguradas às entidades de Direito Público, com autonomia patrimonial, financeira,
administrativa, disciplinar e didático-pedagógica, observados os princípios de dependência jurisdicional em
relação à administração direta (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS, 2013, p. 6)
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Geografia, História, Letras, Matemática, Biologia, Pedagogia e Educação Física, sendo esta a
última turma, dessa modalidade de ensino, tendo seus trabalhos concluídos 09/11/2009
(UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS, 2013, p. 6-7).
O Curso de História foi criado na época da FECLIP e autorizado a funcionar por
meio do Decreto n°. 98.958, de 15/02/90, nos termos do Parecer CEE-GO nº 11/87, com 50
vagas anuais. Cumpre informar que o curso começou a funcionar em 1988, anteriormente,
portanto, ao referido Decreto. Consta às fls. 041/043 a relação dos alunos que ingressaram no
curso nos anos de 1988 e 1989. Pela Portaria nº 209/91 - SENESU/MEC foi designada
Comissão Verificadora, constituída pelas professoras Marília Souza do Valle e Regina
Rotenberg Gouvêa, da Universidade Federal do Paraná e Deisy Mathias Ribeiro, da
DEMEC/GO (BRASIL, 1992).
Em 2013, sob a coordenação da professora Suzana Rodrigues Floresta, o Curso de
Licenciatura em História obteve o novo reconhecimento de funcionamento oferecendo
atualmente 40 vagas anuais, sendo todas no turno noturno, com módulos presenciais e
práticos. O curso possui cerca de 73 alunos matriculados, distribuído por ano, que encontra-se
em funcionamento nas instalações do prédio sede da Unidade da UEG de Iporá. Possui 15
professores, dos quais 11 são contratados por contratos especiais e 04 são contratados como
efetivos. Na época, o quadro de professores era composto por 10 especialistas e 05 mestres
(ESTADO DE GOIÁS, 2013).
A matriz curricular do curso está organizada em quatro anos e sua estrutura
abrange disciplinas de conhecimento básico, conhecimento profissional e núcleo de formação
complementar. Funciona com duas matrizes, uma de 2008, com poucos alunos e a atual que é
de 2009, com uma carga horária de 2.950 horas aulas. O colegiado dos professores se reúne
em média uma vez por mês para avaliar e discutir a lógica do curso.
Por meio da pesquisa de campo foi possível perceber que a maioria dos estudantes
do Curso de História são trabalhadores ou já trabalharam (93,48%). Apenas 6,52% dos alunos
entrevistados afirmaram nunca terem trabalhado. Diante deste quadro, se considera que o
Curso de História é um Curso de Trabalhadores onde o trabalho tem ocupado a maior parte do
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tempo e das preocupações do estudante trabalhador. Assim, há de se observar que “mesmo
tentando conciliar trabalho e estudo, enfrentando o tempo e o cansaço do dia-a-dia, os
estudantes trabalhadores não conseguem alcançar a dedicação ao estudo necessário ao
percurso acadêmico” (ABRANTES, 2012, p. 5).
Quanto à forma de inserção no mercado de trabalho, percebeu-se que a ocupação
informal absorve a maioria dos estudantes trabalhadores distribuídos em diversas áreas tais
como: do lar, domésticas, vendedores, auxiliares, secretárias, digitadores, funcionários
públicos, serviços gerais, pedreiros, operadores de caixa, babás, cabeleireiras, artesãos e
pintores. Dentre os 46 entrevistados, observou-se também que sete já estão atuando como
professores e 6 são bolsistas de iniciação científica.
O quadro de certa forma não é muito animador. Afinal, apenas 28,2% de todos os
alunos entrevistados se dedicam em tempo integral às atividades de ensino, pesquisa e
extensão, ou seja, já trabalham como professores ou são bolsistas de iniciação científica.
Dessa forma, entende-se que os demais alunos que trabalham em outras atividades (71,8%),
além de não se dedicarem ao estudo e a profissão em tempo integral, consomem grande parte
das suas forças e potencial criativo em outras atividades.
Quando os estudantes do curso de História foram questionados em relação a
possibilidade de conciliar trabalho e estudo, observou-se uma divergência muito grande de
opinião. De certa forma, os resultados apresentados evidenciaram senão um empate técnico,
pelo menos uma convicção apertada de que não é possível conciliar trabalho e estudo
(52,17%). Entre os entrevistados 47,83% afirmaram que é possível conciliar trabalho e
estudo.
Com a finalidade de verificar com mais precisão se é possível conciliar trabalho e
estudo, fez-se a pergunta de forma diferente208. Ou seja, perguntou-se: O trabalho atrapalha o
208
A elaboração de um questionário de pesquisa pode parecer, à primeira vista, uma tarefa simples e trivial.
Contudo, seguindo o exemplo de Almeida (2002, p. 339) esta pesquisa mostra que os efeitos de uma pergunta na
entrevista sobre os resultados da pesquisa podem ser muito grandes. Assim, “o que é detalhe se torna
extremamente relevante, exigindo que os questionários de pesquisa sejam cuidadosamente elaborados e prétestados. Uma alternativa a isto é a utilização de casos como o apresentado aqui, e a realização de experimentos
com perguntas”.
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o Império português no Atlântico Sul
estudo? Desta vez, em relação a possibilidade do trabalho atrapalhar ou não o estudo,
verificou-se que 84,78% dos entrevistados acreditam que o trabalho atrapalha o estudo.
Apenas 15,22% disseram que o trabalho não atrapalha o estudo. Donde se concluí que pode
ser muito difícil conciliar estudo e trabalho (empate técnico) tendo em vista que, com maior
frequência, o trabalho atrapalha as atividades acadêmicas.
Mesmo entendimento expressado pelos alunos do Curso de História apresentou
Cardoso e Sampaio (2013, p. 2): “O trabalho do estudante tanto prejudica seu desempenho em
atividades ligadas ao aprendizado como também reduz seu grau de envolvimento com o
ambiente acadêmico”.
Também se procurou investigar nesta pesquisa se as atividades acadêmicas
interferem no trabalho dos alunos. A pergunta se justifica porque a explicação mais comum
entre os evadidos do curso, é que não estavam conseguindo conciliar trabalho e estudo e, via
de regra, o estudo estaria atrapalhando o seu trabalho e desta forma ameaçando a segurança e
bem estar dos entrevistados e das suas famílias. Desta vez, a maioria confirmou que o estudo
atrapalha o trabalho (67,40%).
Portanto, o quadro que ora se apresenta pode ser caracterizado da seguinte forma:
a maioria dos alunos do Curso de História trabalha, estão divididos em relação à possibilidade
de conciliar trabalho e estudo, mas acreditam que trabalho atrapalha o estudo e que o estudo
também atrapalha o trabalho. Diante da situação, alunos, professores, estudiosos e a sociedade
em geral têm reivindicando mudanças no sistema educacional.
De acordo com Siqueira (2011), com as mudanças no sistema de relações de
trabalho, o emprego estável é reduzido apesar das noticias insistirem que aumentou no Brasil.
O número de trabalhadores qualificados também é menor (considerando o avanço tecnológico
de hoje, que justamente precisa de trabalhadores mais qualificados). Existe o medo de perder
o emprego mesmo pelos trabalhadores que possuem maior qualificação. Isso os levaria a
buscar outras formas de trabalho como trabalhos terceirizados ou subcontratações. As perdas
dos direitos dos trabalhadores e o aumento do desemprego contribuem para a deterioração do
trabalho e, portanto, para uma maior exploração.
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o Império português no Atlântico Sul
Diante da chamada “flexibilização laboral” da nossa sociedade, não dá mais para
cruzar os braços ou “não fazer nada” até porque “não há muito espaço nas disciplinas
acadêmicas para a discussão sobre as mudanças profundas que aconteceram no mundo do
trabalho”. Pesquisar sobre trabalho como categoria central e colocá-lo em conexão com a
educação desvelam realidades estruturais da qual o capitalismo não pode prescindir para se
reproduzir como sistema (a exploração do homem pelo próprio homem). Dito de outra forma,
os indivíduos são explorados em todos os lugares. Por isso, “a escola e a universidade tem
assumido um papel de tolerância frente às novas relações de trabalho vividas pelos jovens que
nela estudam” (SIQUEIRA, 2011, p. 13).
A partir das considerações de Siqueira (2011), buscou-se perceber se a
tolerância209 é ou não importante junto ao Curso de História. As pesquisas revelaram que para
a maioria absoluta dos estudantes (91,30%) a tolerância é importante contra apenas 8,70%
para os quais a tolerância não é importante.
Observa-se ainda que de acordo com Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996
que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional estabeleceu que a educação é dever
da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade
humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (Art. 2º). O ensino será ministrado
com base no seguinte princípio: respeito à liberdade e apreço à tolerância (Art. 3º, IV
parágrafo).
209
Tolerância é um termo que vem do latim " tolerare " que significa "suportar", "aceitar". A tolerância é o ato
de indulgência perante algo que não se quer ou que não se pode impedir. A tolerância é uma atitude fundamental
para quem vive em sociedade. Uma pessoa tolerante normalmente aceita diferentes opiniões ou comportamentos
diferentes daqueles estabelecidos pelo seu meio social. Este tipo de tolerância é denominada "tolerância social".
A expressão "tolerância zero" é utilizada para definir o grau de tolerância a uma determinada lei, procedimento
ou regra, de forma a impedir a aceitação de alguma conduta que possa desviar o que foi previamente
estabelecido. Por exemplo, "tolerância zero a motoristas embriagados". O dia 16 de Novembro foi instituído pela
ONU (Organização das Nações Unidas) como o Dia Internacional para a Tolerância. Esta é uma das muitas
medidas da ONU no combate à intolerância e não aceitação da diversidade cultural (Ver:
SIGNIFICADOS.COM.BR, 2014).
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O não cumprimento do princípio número IV por parte de alguns professores foi
descrito de várias formas. Para Rocha (2014) a não tolerância depende do professor, mas está
presente no dia-a-dia, principalmente, em relação à chamada:
Depende do professor, inclusive tinha um professora que tentou
estipular que até 07:15 tinha presença e a professora tinha duas aulas e
entrando até 07:15 você ganha presença, se chegar por exemplo 07:20
você além de ficar com falta da primeira aula ainda fica com falta na
segunda aula. Eu acho que isso não é tolerância né, deveria contar
apenas a primeira aula como falta, não as duas. Por exemplo, eu
chegava tarde do serviço e acabava chegando tarde na faculdade,
então se eu ultrapassasse as 07:15 eu já estaria com falta nas duas
aulas. (ROCHA, 2014)
Para Cardoso (2014) muitos professores não são tolerantes em relação à entrega
de trabalhos e se não entregar na data exata, “fica com zero mesmo”.
Em relação aos trabalhos não, porque muitos deles a maioria em si,
tirando uns dois ou três, eles tem tolerância sim, permite que a gente
entrega com um pouco de atraso, porque devido alguns fatores que
impeçam a gente entregar no dia, mas outros não toleram não, se não
entregar no dia, naquela data exata, fica com zero mesmo
(CARDOSO, 2014)
Santos (2014) completa o raciocínio enfatizando a falta de tolerância em relação à
sobrecarga de trabalhos.
Alguns não têm essa tolerância, não ajudam. Por exemplo, quando
passa um livro pra você ler ou vai ter um seminário é uma
responsabilidade que temos que pegar. Nós sabemos que temos que
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ler o livro até para amanhã mesmo para nós apresentar esse trabalho.
As vezes temos um tempo, mas não temos que preocupar só com uma
matéria temos mais 5. Então fica um pouco pesado, pois você não vai
estudar só para um professor, já tem de outros professores (SANTOS,
2014).
Enfim, haveria por parte de alguns professores do Curso de História uma espécie
de “tolerância zero” em relação à chamada, entrega de trabalhos, leitura de textos e
avaliações, apesar de a tolerância ser considerada um elemento fundamental apontada pela
literatura (SIQUEIRA, 2011), valorizada pelos acadêmicos e, inclusive, constituir um
princípio educacional constitucional.
Considerações Finais
De acordo com as informações fornecidas pela secretaria acadêmica da UEG, em
2013 havia na UEG-Iporá 450 alunos matriculados e em 2014 o número de alunos
matriculados reduziu para 360. A redução do número de alunos é preocupante e há alguns
anos a própria UEG se questiona a respeito de sua forma de ser e de atuar enquanto Instituição
de Ensino Superior Pública.
O crescimento desordenado e a multiplicação dos mesmos cursos
constituem-se em um problema a ser enfrentado. As questões e
interesses políticos, sem dúvida alguma, influenciaram muito na
criação de Campi e Cursos. A avaliação realizada sob a coordenação
do Grupo de Trabalho de Políticas de Oferta e Demanda de Vagas,
com início em maio de 2013, consolidou-se em um instrumento em
busca de conhecimento mais apurado sobre a situação real dos cursos
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ofertados por essa instituição para subsidiar, com critérios técnicos,
um processo de planejamento visando ao fortalecimento dos cursos
ofertados e a qualidade na formação (UEG, 2014b, p. 5).
Diante de um quadro pouco animador verifica-se que alguns cursos já estão sendo
fechados. Este é o caso, por exemplo, do curso de história da UEG-Jussara que teve a pior
avaliação (5,5). O curso de história da UEG-Iporá também corre este risco. Afinal, entre os
doze cursos de história avaliados ficou em penúltimo lugar (5,7) enquanto o curso de história
de Anápolis teria sido o melhor avaliado (7,2) (UEG, 2014c, p. 28).
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Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
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________. Relatório do Grupo de Trabalho (GT) de Política de Oferta e Demanda de Vagas
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________. Anexos. Relatório do Grupo de Trabalho (GT) de Política de Oferta e Demanda de
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Entre Europa África e América:
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ENTRE OS SABERES MÉDICOS E URBANÍSTICOS: A REFORMA
DE PEREIRA PASSOS NA CAPITAL FEDERAL (1902-1906)
Nilton Rabello Ururahy210
Milena d’Ayala Valva211
Saber médico: um dispositivo de poder político
A ciência moderna212 nasceu com o papel de proporcionar a ordem racional, tendo a
ambição de dominar a natureza para sustentar as necessidades humanas. É sob esse prisma
que destacaremos a medicina, ciência a qual passou a ser utilizada como instrumento de
intervenção estatal para controlar e disciplinar a sociedade e seu espaço a partir da concepção
de progresso e modernidade. Portanto, o saber médico é um produto da era moderna.
Sobre essa temática, Michel Foucault pronunciou uma conferência nomeada O
Nascimento da Medicina Social213, no curso de medicina social, na Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, em outubro de 1974. Nessa conferência, o autor elucida que o capitalismo
210
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER) pela
Universidade Estadual de Goiás (UEG). E-mail: [email protected]
211
Docente da linha de pesquisa Dinâmicas Territoriais no Cerrado, do Programa de Pós-Graduação em
Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER) pela Universidade Estadual de Goiás (UEG).
212
Ciência moderna refere-se ao sistema utilizado para adquirir saberes baseados no método científico, ou seja,
os conhecimentos são elaborados a partir de técnicas partilhadas por um grupo de especialistas que o
reconhecem como verdade, validando-o como tal. Ver em FRANCELIN, Marivalde Moacir. Configuração
epistemológica da Ciência da Informação no Brasil em uma perspectiva pós-moderna: análise de períodos da
área, 2004, p. 50-51.
213
O autor divide, em sua análise, a formação da medicina social na Europa em três etapas: a primeira a se
constituir foi a medicina de Estado, desenvolvida na Alemanha no século XVIII. A ciência de Estado, na
Alemanha, forjou duas noções referentes a este: na primeira, ele era objeto de conhecimento e, na segunda,
instrumento e espaço de formação de conhecimentos especializados. A segunda a se formar foi a medicina
urbana, que desenvolveu-se na França no século XVIII. Ela esteve ligada ao desenvolvimento das estruturas
urbanas. Entre as razões de seu desenvolvimento, encontravam-se a falta de unidade territorial e a existência de
poderes paralelos nos múltiplos espaços de Paris, o que fez emergir a necessidade de unificação do poder urbano,
visando organizar o espaço de forma homogênea, coerente e regida por um poder centralizado. Por último, a
medicina da força de trabalho, desenvolvida na Inglaterra, que começou a tornar-se social com a criação da Lei
dos pobres, tinha por finalidade o controle médico do pobre. Esta lei assegurava o controle dos indivíduos e de
sua saúde, além de obter reserva de mão de obra e de proteger as classes ricas de qualquer subversão social. Ver
em FOUCAULT, Michel. Arte, Epistemologia, Filosofia e História da Medicina, 2011.
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permitiu a formação de uma medicina social. Para Foucault, a partir do final do século XVIII
e do início do século XIX, o corpo era visto como símbolo de força de trabalho e produção. O
controle do indivíduo na sociedade capitalista não se realiza apenas pela ideologia, mas se
inicia pelo controle do corpo. Nesse sentido, “[...] o corpo era uma realidade biopolítica. A
medicina, uma estratégia biopolítica.” (FOUCAULT, 2011, p. 405). Sendo assim, a medicina
se desenvolveu acionada estrategicamente, tanto para as questões de ordem política quanto
para as questões que envolviam o fator biológico, corporal.
Já no que se refere ao contexto brasileiro, Roberto Machado e autores, na obra
Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil, elucida que a
medicina social teve sua emergência no início do século XIX. Nesse período, conforme o
autor, algumas transformações foram relevantes no campo da saúde e merecem destaque
como, por exemplo, o deslocamento do objeto de intervenção médica da doença para a saúde,
sendo o médico o agente dificultador do aparecimento da doença. Machado ainda enfatiza que
o médico, além de praticar a cura, passava também a praticar a prevenção. Foi a partir dessa
prática que, paulatinamente, a medicina foi se configurando em uma das armas de intervenção
do Estado para controlar a sociedade e as cidades. A saúde da população tornou-se um dos
focos essenciais da política de Estado. Assim, cabia ao médico o dever de atuar por meio da
prevenção, uma vez que a própria sociedade é desarticulada e fomentadora de enfermidades
devido ao mau comportamento e aos hábitos anti-higiênicos. Portanto, os miasmas urbanos
não poderiam ser aniquilados pela ação médica fragmentada e individualizada; a medicina
necessitava ser transformada, ou seja, tornar-se coletiva. O Estado tinha o dever de legitimar
as ações médicas. A sociedade consequentemente, deveria ser medicalizada214. Nesse sentido,
Machado afirma que
214
O termo medicalização poder ser utilizado para caracterizar a medicina social brasileira a partir do século
XIX, quando o médico passa a intervir em todas as questões, seja de ordem política, econômica, social ou
urbana. A medicina ultrapassa as fronteiras da saúde, passando a penetrar e intervir na sociedade, nas cidades,
nos espaços públicos e privados. Ela estabelece leis, normas, regulamentos que produzem mecanismos de
controle social, objetivando afastar e prevenir os miasmas e os maus comportamentos que contribuem para o
caos urbano. Ver em MACHADO, Roberto /et all/. Danação da norma: a medicina social e a constituição da
psiquiatria no Brasil, 1978, p 155-156.
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Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
O médico torna-se cientista social integrando em sua lógica a
estatística, a geografia, a topografia, a história; torna-se planejador
urbano: as grandes transformações da cidade estiveram a partir de
então ligadas à questão da saúde; torna-se enfim um analista de
instituições: transforma o hospital – antes órgão de assistência aos
pobres – em "máquina de curar"; cria o hospício como
enclausuramento disciplinar do louco tornado doente mental; inaugura
o espaço da clínica, condenando formas alternativas de cura; oferece
um modelo de transformação à prisão e de formação à escola
(MACHADO, 1978, p. 155-156).
Deste modo, entre os séculos XIX e XX, a medicina brasileira gradualmente foi se
tornando social, coletiva e urbana, ligada aos ideais de progresso, desenvolvimento e
modernização da ordem capitalista. Ela aos poucos adquiriu poderes, graças ao seu caráter
empírico e científico que possibilitou a sua legitimação política para organizar os vários
aspectos da vida social, política e econômica, buscando alcançar o progresso capitalista. A
medicina tornou-se um instrumento político do Estado brasileiro para intervir, controlar,
organizar e disciplinarizar a sociedade e o espaço urbano. Desta forma, para o Estado e a
medicina, sanear e higienizar a sociedade e o espaço urbano era garantir a saúde física, mental
e moral dos trabalhadores, além de prevenir e combater doenças, epidemias, maus hábitos e
comportamentos que desembocavam tensões sociais e desiquilíbrios políticos e econômicos.
Em síntese, a ciência médica foi um dos dispositivos políticos do Estado brasileiro
utilizado para auxiliar na sustentação, materialização e consolidação do projeto de
modernidade baseado na razão, ordem e progresso capitalistas.
Saber urbanístico: um dispositivo de poder político
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Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
No curso das Revoluções Industriais dos séculos XVIII e XIX, uma complexidade de
problemas urbanos passou a atormentar o cotidiano dos habitantes das grandes cidades
industriais europeias. Sobre essa temática, Leonardo Benevolo destaca as principais
dificuldades urbanas, dentre elas: o frenético processo de industrialização; o forte crescimento
demográfico; a insalubridade dos edifícios, habitações e fábricas; as tipologias estreitas das
ruas; a falta de higiene e limpeza nos espaços públicos e privados das cidades; a proliferação
de epidemias; as revoltas sociais; as dificuldades de locomoção e segurança; o crescimento
desenfreado das cidades e a especulação imobiliária215. Deste modo, todas as entraves urbanos
supracitadas tornaram-se alvo de preocupação do Estado, dos gestores, dos higienistas, dos
médicos, dos engenheiros e dos arquitetos em razão das expansões urbanas desorganizadas e
da péssima situação social e sanitária da população, influenciando no pensamento urbanístico
e higienista da segunda metade do século XIX e do início do século XX.
Contudo, o contexto em vigência possibilitou o nascimento de uma nova ciência, o
urbanismo, que visava organizar as cidades. Deste modo, semelhante às ações médicas, as
ações urbanas tornaram-se necessárias para eliminar os problemas relacionados ao caos
constituído nas cidades. Tal fato nos permite afirmar que, no final do século XIX e no início
do século XX, o urbanismo, pouco a pouco, assumiu um papel de destaque, assim como a
medicina, tornando-se um dispositivo político utilizado pelo Estado para intervir e organizar
os espaços das cidades e seus habitantes.
Giulio Carlo Argan afirma que “[...] o urbanismo é uma disciplina moderna.”
(ARGAN, 1993, p.240); isto porque o urbanismo teve a sua normatização como ciência
tardiamente, apenas entre o final do século XIX e início de século XX, com distintas formas
de atuação na área acadêmica e profissional. Para Argan, o urbanismo refere-se à prática de
peritos responsáveis pelas operações urbanísticas e arquitetônicas que, muitas vezes,
estiveram submetidas aos interesses econômicos, estatais e aos distintos conhecimentos –
demográficos, econômicos, produtivos, sanitários e tecnológicos – que compõem a área do
215
Ver em BENEVOLO, Leonardo. História da cidade, 1983.
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Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
planejamento e dos modos de intervir no espaço urbano216. Apesar disso, a imprecisão do
regulamento acadêmico e das teorias e práticas urbanísticas estavam relacionadas à
indefinição metodológica, devido à pluralidade de saberes constituídos pelos especialistas do
urbanismo.
No entanto, o urbanismo gradualmente torna-se uma disciplina autônoma e
pluridisciplinar – pois reúne conhecimentos sociológicos, históricos, geográficos, físicos,
químicos, sanitários, higiênicos, produtivos, econômicos e tecnológicos. Para compreender
esse processo, a historiadora Maria Stella Bresciani aclara que o urbanismo tem sua gênese
como ciência na década final do século XIX. Essa temporalidade pode ser definida, neste
momento, quando os pressupostos teóricos se arranjam com a ambição de formar um
arcabouço definido sobre uma base formal, ou seja, a partir de um plano que admitia a
sistematização edilícia de uma cidade217. Nesta concepção, o urbanismo torna-se uma ciência
com a finalidade de aliar teoria, técnica e prática para organizar o funcionamento da vida
urbana. Em suma, o urbanismo é
apresentado como disciplina relativa ao controle do crescimento e da
transformação espacial dos assentamentos urbanos com pretensão
científica e globalizante; propõe-se resolver os conflitos sociais, por
meio de um projeto de organização técnica da cidade e de
regulamentação do uso do solo, numa divisão lógica dos ambientes
públicos e privados (CALABI apud BRESCIANI, 2009, p.30).
Para Bresciani, em linhas gerais, o urbanismo formou-se como uma disciplina
autônoma com o intuito de resolver os problemas consequentes da industrialização, do
crescimento demográfico, dos problemas sociais, higiênicos e epidêmicos, das edificações
216
Ver em ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade, 1993, p. 211.
Ver em BRESCIANI, Maria Stella. Cidades e Urbanismo. Uma possível análise historiográfica, 2009, p. 2830.
217
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insalubres, das dificuldades na circulação e da necessidade de expansão de várias cidades
europeias ao longo da segunda metade do século XIX218. Nesse cenário, complementando as
ideias de Bresciani, Choay afirma que “[...] a expansão da sociedade industrial dá origem a
uma disciplina que se diferencia das artes urbanas anteriores por seu caráter reflexivo e
crítico, e por sua pretensão científica.” (CHOAY, 1979, p. 02). Sendo assim, o urbanismo
aparece como uma ciência política, uma vez que foi corporificada a partir de elementos
técnico-administrativos capazes de organizar e projetar os espaços públicos e privados das
cidades.
A circulação das ideias, discussões, debates teóricos e experiências urbanísticas
desenvolvidas na Europa entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do
século XX influenciaram no desenvolvimento teórico e prático do urbanismo em países de
diferentes continentes, inclusive na América, sobretudo o Brasil. Assim, o Brasil esteve
conectado aos debates teóricos e técnicos sobre o urbanismo ocorridos internacionalmente.
No entanto, muitas vezes, as ideias chegavam com certo atraso. As teorias e técnicas
urbanísticas europeias entraram no Brasil de várias maneiras. Dentre elas, três pontos valem a
pena ser ressaltados: o primeiro remete à exportação do saber e da formação urbanística
europeia; o segundo refere-se à execução de trabalhos de organização urbana realizados em
diferentes cidades brasileiras por engenheiros e arquitetos europeus; já o último destaca-se na
formação acadêmica de engenheiros e arquitetos brasileiros em diferentes universidades
europeias. Em vista disso, a experiência urbanística europeia, especialmente a francesa, foi a
principal fonte de inspiração para as práticas urbanísticas realizadas no Brasil entre o final do
século XIX e a primeira metade do século XX.
A Reforma de Pereira Passos: entre os saberes médicos e urbanísticos
Durante a recém criada República, os ideais de progresso e modernidade circulavam
nos meios políticos, acadêmicos, produtivos, profissionais e intelectuais do Brasil. Assim,
configurou-se um objetivo nacional a se alcançar: a modernização do país via industrialização
218
Ver em BRESCIANI, Maria Stella. Cidades e Urbanismo. Uma possível análise historiográfica, 2009, p. 3133.
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e renovação dos espaços das cidades. Para engenheiros, médicos, sanitaristas, higienistas e
arquitetos a cidade seria o pontilhão desse processo. No Brasil, então, emergiu a negação das
estruturas urbanas coloniais e a afirmação da modernização de tais espaços. Para atingir a
meta, os saberes médicos e urbanísticos foram utilizados como dispositivos políticos do
Estado na condução deste processo. Nesse contexto, evidenciaremos uma das grandes
experiências urbanísticas no cenário brasileiro, que se tornaria símbolo de modernização,
baseada nas concepções de ordem e progresso: a Reforma de Pereira Passos (1902-1906),
realizada na então Capital Federal, Rio de Janeiro.
O Brasil almejava, então, inserir-se na modernidade segundo os padrões europeus. O
clima e o anseio de mudança nas estruturas socioeconômicas brasileiras eram notórios.
Segundo Hugo Segawa, “[...] a elite urbana, progressista, positivista, cosmopolita,
contrapunha-se à sociedade tradicional, de índole agrária e conservadora.” (SEGAWA, 2002,
p. 19); deste modo, industrializar o país seria o pontapé inicial para o processo de
modernização e progresso brasileiros e, consequentemente, a cidade seria a plataforma desse
movimento. Nesta feição, Segawa ressalta que a cidade
afirmava-se como palco do moderno – modernização tendo como
referência a organização, as atividades e o modo de vida do mundo
europeu.
Os
engenheiros
colocavam-se
como
agentes
dessa
modernização – era a corporação que apostava na ciência e na técnica
como os instrumentos de progresso material para o país, nos moldes
do desenvolvimento industrial do velho mundo, vislumbrando, na
industrialização, um objetivo nacional a se atingir (SEGAWA, 2002,
p.19).
Nesta perspectiva, Maurício de Abreu aponta que as transformações urbanas foram
motivadas de modo a adequar a forma urbana da então capital federal às necessidades de
ordem econômica, estética, viária, higiênica, sanitária e social. Contudo, o autor enfatiza que a
reforma de Passos esteve extremamente ligada aos interesses de ordem econômica, visando
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integrar o país no contexto capitalista internacional. Por isso, a exigência de uma
reorganização modernizadora do espaço urbano tinha como finalidade transformar a cidade do
Rio do Janeiro num símbolo de modernidade e progresso do novo Brasil – modernizado
estruturalmente e inserido no mercado internacional. Deste modo, de acordo com o autor,
o rápido crescimento da economia brasileira, a intensificação das
atividades exportadoras e, consequentemente, a integração cada vez
maior do país no contexto capitalista internacional, exigiam uma nova
organização do espaço (aí incluído o espaço urbano de sua capital),
condizente com esse novo momento de organização social. [...] a
importância cada vez maior da cidade no contexto internacional não
condiziam com a existência de uma área central ainda com
características coloniais, com ruas estreitas e sombrias, e onde se
misturavam as sedes dos poderes políticos e econômicos com
carroças, animais e cortiço. Não condiziam, também, com a ausência
de obras suntuosas, que proporcionavam “status” às rivais platinas.
Era preciso acabar com a noção que o Rio era sinônimo de febre
amarela e de condições anti-higiênicas, e transformá-lo num
verdadeiro símbolo do “novo Brasil” (ABREU, 1997, p. 59-60).
Corroborando com estas ideias, Segawa evidencia que a formação da elite intelectual
brasileira da passagem do século XIX para o século XX amparou-se num tripé entre medicina,
ciência jurídica e engenharia, sendo que, conforme o autor, durante o século XIX, a ciência
jurídica obteve um importante espaço no exercício do poder político. No entanto, no florescer
do século XX, o domínio político passaria a ser partilhado entre médicos e engenheiros
devido aos problemas de ordem higiênica, sanitária e estrutural das cidades brasileiras219.
219
As primeiras escolas de medicina datam entre 1808-1809; as academias de ciências jurídicas seriam fundadas
a partir de 1827 e, no final do século XIX, seriam criadas as primeiras escolas de engenharia: Escola Politécnica
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Assim, o saberes acadêmicos e técnicos de médicos e engenheiros pouco a pouco ganharam
prestígio e espaço nas instituições políticas; dessa forma, as duas ciências constituíram-se em
aparatos políticos empregados pelo Estado com o intuito de encontrar soluções para os
entraves das cidades. A medicina e, especialmente, a engenharia tornaram-se ciências
credenciadas para realizar as intervenções modernizadoras no Brasil na virada do século XIX
para o século XX.
As autoras Angela Moulin Simões Penalva Santos e Marly Silva da Motta abordam
que a gênese do planejamento urbano no Brasil decorreu de fatores de ordem social, política e
econômica, afetando as cidades, em especial o Rio de Janeiro – antiga capital federal. Ordem
social, pois “[...] as precárias condições higiênicas de moradias, sobretudo as coletivas,
figurou com destaque, no século XIX, nos trabalhos realizados por sanitaristas, os verdadeiros
pioneiros na discussão do planejamento urbano.” (SANTOS & MOTTA, 2003, p. 23); ordem
política porque o Estado cercou-se de profissionais habilitados e respaldados cientificamente
– como médicos, sanitaristas e engenheiros – para auxiliá-lo na organização das cidades,
eliminando as perdas econômicas, a desordem social e as epidemias; finalmente, fator de
ordem econômica pelo fato da necessidade de modernizar a infraestrutura (portos, avenidas e
estradas), adaptando a cidade às exigências industriais e urbanas modernas.
Acrescentando contribuições acerca do tema, Segawa salienta que a intervenção
impulsionada pelo prefeito Francisco Pereira Passos tinha como pilares o saneamento físico e
social e o embelezamento da capital federal220. No entanto, apesar do caráter higienista,
estético e civilizador, a reforma de Pereira Passos possuía, ao mesmo tempo, um caráter
segregador, como afirma o autor:
do Rio de Janeiro (1874), Escola de Minas (1876), em Ouro Preto, e a Politécnica de São Paulo (1894). Ver em
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil, 2002, p. 18.
220
A reforma de Pereira Passos visava eliminar os resquícios coloniais nos espaços da cidade do Rio de Janeiro a
partir de medidas sanitárias e modernizadoras, dentre elas: a remodelação do tecido urbano da cidade, a abertura
novos eixos viários, a padronização das fachadas das novas avenidas, a implantação de parques públicos
arborizados e arejados e a erradicação das epidemias que assolavam a cidade durante todo o século XIX. Ver em
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil, 2002, 19-21.
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afastar a população pobre de setores estratégicos para a expansão
urbana e conferir à paisagem uma estética arquitetônica de padrão
europeu caracterizaram iniciativas para a modelagem de um Brasil
condizente com o figurino de uma nação “civilizada” (SEGAWA,
2002, p. 21).
Salientando o contexto acima, Maria Alice Rezende de Carvalho enfatiza que a
Reforma de Pereira Passos não almejava simplesmente conceber um arquétipo de cidade
moderna, mas também ambicionava transformar o Rio de Janeiro, então, a capital federal,
num modelo primoroso para a nação brasileira, servindo de referência mundial. Portanto, o
ideal transformador esteve pautado na superação das amarras de um passado nefasto para
atingir o desenvolvimento incessante: ordem, progresso e modernidade seriam alcançados por
meio da razão científica e técnica221.
Segundo Nara Britto, as intervenções sanitárias no Rio de Janeiro tornaram-se
incisivas por volta de 1903, quando o médico-sanitário Oswaldo Cruz foi nomeado Diretor
Geral de Saúde Pública, com a finalidade de exterminar as epidemias– febre amarela, malária,
peste e varíola – que assolavam o Rio de Janeiro222. De acordo com Luiz Augusto Maia
Costa, em apoio a Oswaldo Cruz, o prefeito Pereira Passos autorizou a criação de medidas
sanitárias e comportamentais para a cidade, dentre elas: a instalação de mictórios públicos em
vários locais da cidade; a viabilização de escarradeiras para o cidadão nos órgãos públicos; e a
substituição dos cortiços, das vielas coloniais e dos terrenos baldios por largas avenidas, ruas
e praças arborizadas223.
O médico Oswaldo Cruz foi discente do Instituto Pasteur em Paris e um dos
responsáveis pela introdução da “medicina científica” no Brasil. A estratégia dele foi
inspirada no modelo da polícia médica para organizar a cidade do Rio de Janeiro em distritos,
cada um chefiado por um delegado de saúde224. A inspeção sanitária tinha atribuições como
221
Ver em CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Governar por retas: engenheiros na belle époque carioca,
1994.
222
Ver em BRITTO, Nara. Oswaldo Cruz: a construção de um mito na ciência brasileira, 1995.
223
Ver em COSTA, Luiz Augusto Maia. O ideário urbano paulista na virada do século – o engenheiro
Theodoro Sampaio e as questões territoriais e urbanas modernas (1886-1903), 2003, p. 85-90.
224
Ver em BRITTO, Nara. Oswaldo Cruz: a construção de um mito na ciência brasileira, 1995, p. 30-32.
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visitar as casas, aplicar multas e interditar as residências. As ações médico-sanitárias estavam
centradas no combate aos vetores e na vigilância dos doentes, conforme as teorias e práticas
microbianas225. Desta maneira, as campanhas sanitárias do governo colaboravam para a
elaboração de uma reforma social e urbana que exigisse mudanças nos hábitos de higiene da
sociedade. Sob essa ótica, o projeto de saneamento do Estado tem como objeto a população
marginalizada e trabalhadora do centro da cidade. Conforme as elaborações Noé Freire
Sandes:
Sanear, remodelar, civilizar passaram a ser as palavras de ordem do
Estado Brasileiro. [...] Sanear significava remover os agentes
etiológicos causadores de epidemias que afetavam negativamente a
dinâmica das nossas atividades agroexportadores; remodelar implica
destruir o antigo espaço urbano do Rio de Janeiro, estruturado ao sabor
do cotidiano de trabalhadores, vendedores ambulantes, desocupados
que enchiam de vida o centro da cidade (SANDES, 2002, p 27-28).
Em linhas gerais, a concepção de ordem e progresso foi o sustentáculo ideológico do
Estado brasileiro durante a República recém-instalada. O governo utilizou o saber médico e o
saber urbanístico como dispositivos políticos para controlar a sociedade e o espaço urbano. As
ciências médica e urbana, nesse sentido, tinham o papel de sanear qualquer miasma físico,
moral e mental, fruto do comportamento social ou da natureza do ambiente. Para o Estado
brasileiro, amparado pelas concepções higienistas, a sanidade mental, moral e física, a
salubridade e o trabalho eram princípios que levariam a sociedade ao progresso
socioeconômico. Portanto, a Reforma de Pereira Passos no Rio de Janeiro representou um dos
modelos mais expressivos no que se refere às experiências urbanísticas realizadas no Brasil.
No entanto, esta reforma também teve o escopo de estabelecer novos modos de vida,
intervindo, controlando, reconfigurando e modernizando a cidade e a sociedade carioca com
Ver em COSTA, Luiz Augusto Maia. O ideário urbano paulista na virada do século – o engenheiro Theodoro
Sampaio e as questões territoriais e urbanas modernas (1886-1903), 2003, p. 87-88.
225
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base nos interesses econômicos, imobiliários e industriais. Durante esse processo foram
utilizados como instrumento político do Estado dois saberes: médico e urbanístico. Deste
modo, a Capital Federal seria um modelo pautado nos pilares de razão e ordem científica, que
visava constituir um novo Brasil baseado nas concepções de modernidade e progresso.
Referências Bibliográficas
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(org.). História geral da civilização brasileira. São Paulo: Editora Difel, 1984, p. 9-49.
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BRESCIANI, Maria Stella. Cidades e Urbanismo. Uma possível análise historiográfica.
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Janeiro: Editora Fiocruz, 1995.
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carioca. In: CARVALHO, Maria Alice Rezende de. (Org.). Quatro vezes cidade. Rio de
Janeiro: Sette Letras, 1994, p.65-94.
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COSTA, Luiz Augusto Maia. O ideário urbano paulista na virada do século – o engenheiro
Theodoro Sampaio e as questões territoriais e urbanas modernas (1886-1903). São Carlos:
Editora FAPESP, 2003.
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saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1985.
FOUCAULT, Michel. Arte, Epistemologia, Filosofia e História da Medicina. Coleção Ditos
& Escritos (vol. VII). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
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Entre Europa África e América:
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Brasil em uma perspectiva pós-moderna: análise de períodos da área. Ciência da Informação
(Impresso). Brasília: v. 33, n. 2, 2004, p. 49-66.
MACHADO, Roberto /et all/. Danação da norma: a medicina social e a constituição da
psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.
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SANTOS, Angela Moulin Simões Penalva & MOTTA, Marly Silva da. O “bota-abaixo”
revisitado: o Executivo municipal e as reformas urbanas no Rio de Janeiro (1903-2003). Rio
de Janeiro: Revista Rio de Janeiro, n. 10, maio/ago. 2003, p. 05-40.
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil. São Paulo: Editora USP, 1999.
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Entre Europa África e América:
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ÁFRICA E ENSINO DE HISTÓRIA
Patrícia da Silva Soares226
A história da África no currículo obrigatório escolar brasileiro
Como professora da educação básica da rede estadual e estudiosa da história da África
e dos afrodescendentes, tenho procurado manter um estreito vínculo entre minhas pesquisas
de natureza historiográfica e aquelas relacionadas ao processo de ensino de história.
A característica da sociedade contemporânea é a globalização, é a informação
imediata, em tempo real, é a possibilidade de conectar-se com qualquer parte do mundo a
qualquer tempo. A reflexão mais cuidadosa, entretanto, introduz inúmeras dúvidas quanto à
abrangência desse mundo de informação e conhecimento. Quando voltamos nosso olhar para
o continente africano a dúvida se torna mais explícita.
Quais são as imagens que o brasileiro possui da África hoje, em pleno século XX?
Esse continente continua praticamente desconhecido, submetidos aos mesmos e velhos
preconceitos. É visto como uma África formada somente por selva, com populações isoladas,
famintas, aculturadas, vivendo em choupanas. Uma visão de uma suposta inferioridade do
africano e logo do negro trazido ao Brasil na colonização e de seus descendentes.
Mônica Lima fala como á participação africana na nossa formação foi tratada por
nossos historiadores:
O fato é que nossos antigos historiadores trataram indevidamente, ou
ignoraram a participação africana em nossa formação, influenciados
por preconceitos originários da sociedade escravista, entre os quais os
ideais de branqueamento da população brasileira nutridos, desde
meados do século XIX, por boa parte das elites nacionais.227
226
Especialista em História Cultural pela Universidade Federal de Goiás. Professora da Rede Estadual de
Educação de Goiás.
227
LIMA, Mônica. A África na Sala de Aula. Nossa História, Rio de Janeiro, Ano 1, n. 4, p. 84, fevereiro 2004.
329
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Nesses estudos conservou-se, entretanto, um grande vazio no que se refere ao
conhecimento sobre a África. Segundo Tedesco228, as referências ao continente ou a algumas
de suas regiões era predominantemente relacionadas ao tráfico de negros trazidos ao Brasil
para trabalhar como escravos. Negro e africano constituíam-se, desta maneira, sinônimos de
povos cuja identidade era ter sido escravo. Da mesma maneira, e talvez por isso mesmo, a
ideia que possuímos de África hoje é, também, desprovida de identidade, África é uma
totalidade, não conseguimos imaginá-la como um continente onde habitam povos diferentes
com culturas diversas, não conseguimos imaginá-la como uma região marcada por uma
diversidade ecológica que exigiu de seus habitantes respostas diferentes para garantir sua
integração e sobrevivência. A imagem predominante que temos dela é que de lá vieram os
negros/escravos para trabalhar na plantation da América.
A ocultação sistemática da história africana é uma das faces da
discriminação a que foi submetido o negro na Idade Moderna. Os
europeus, que impuseram aos africanos processos sucessivos de
espoliação, precisaram justificar seu comportamento e o fizeram
caracterizando o negro como “inferiores”, como “povos bárbaros”,
como “crianças que ainda têm de crescer” e necessitam serem
governados por outros. Assim, ignoram até mesmo as narrativas
repletas de admiração produzidas pelos primeiros europeus a atingir a
costa ocidental da África (século XV) ou por aqueles que penetraram
pela primeira vez o interior do continente (século XIX). Muitos desses
cronistas descrevem formas de organização social e política, sistemas
religiosos e regras de comportamento social bastante complexas229.
228
TEDESCO, Maria do Carmo Ferraz. Povos Africanos Antes da Chegada dos Europeus. In: SILVA,
Marilena; GOMES; Uene José (Orgs.). África, Afrodescendência e Educação. Goiânia: UCG, 2006. p. 23.
229
Ibid. p. 23-24
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Foram igualmente esquecidas as relações entre Brasil e a costa ocidental africana
(Angola, Benin, Nigéria) durante o período colonial, às vezes mais intensas que aquelas entre
Brasil e Portugal.
O principal problema encontrado no processo de ensino e aprendizado da História
Africana não é relativo à história e à sua complexidade, mas é com relação aos preconceitos
adquiridos num processo de informação equivocada sobre a África. Estas informações de
caráter racista produziram um imaginário igualmente pobre e preconceituoso, extremamente
alienante e fortemente restritivo. Seu efeito é tão forte que as pessoas quando colocadas em
frente a uma nova informação sobre a África têm dificuldade na articulação de um novo
raciocínio sobre a história deste continente, sobretudo de imaginar diferente do raciocínio
habitual. A imagem do Africano na nossa sociedade é a do selvagem acorrentado à miséria.
Essa imagem foi construída pela insistência e persistência das representações sobre a África
como a terra dos macacos, dos leões, dos homens nus e dos escravos.
Paralelamente a esses questionamentos não poderíamos deixar de nos perguntar que
métodos didáticos deveríamos desenvolver para estimular um olhar mais relativisado em
relação às sociedades africanas ou qualquer sociedade culturalmente diversa da nossa.
A inserção da História da África no currículo de História no Ensino Fundamental e
Médio mantém-se como uma necessidade, como um elemento essencial de fundamentação e
de estabelecimento do sentido para as experiências vivenciadas pelas comunidades negras e
afro-brasileiras além de proporcionar importante contribuição na discussão das questões de
natureza étnico-raciais.
Hoje, quando a Lei Federal 10.639/03 determina a obrigatoriedade
do ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira nos parece adequado à efetivação
desde projeto.
Com as leis aprovadas, as dificuldades até agora foram a sua implementação,
particularmente no capítulo relativo ao ensino de História da África, para que ela possa se
concretizar e se desdobrar de forma positiva em prática escolar.
Os PCNS apontaram para a necessidade inserir temas sobre “pluralidade cultural”
destacando a questão da “democracia racial” como um aspecto central a ser pensado nas
atividades escolares. Observemos, um pequeno trecho do referido documento:
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A idéia veiculada na escola de um Brasil sem diferenças, formado
originalmente pelas três raças – o índio, o branco e o negro – que se
dissolveram dando origem ao brasileiro, também tem sido difundida
nos livros didáticos, neutralizando as diferenças culturais e, às vezes,
subordinando uma cultura à outra. Divulgou-se, então, uma concepção
de cultura uniforme, depreciando as diversas contribuições que
compuseram e compõem a identidade nacional 230.
Vemos, portanto, que a problematização da diversidade cultural já estava presente na
legislação desde a década de 90. A necessidade da lei 10.639, de 2003, que determina a
obrigatoriedade do ensino Historia da África no ensino básico, coloca para nós algumas
questões, uma vez que ela indica que o trabalho que vinha sendo feito segundo os PCNs não
estava sendo satisfatório.
Não basta desenvolver um trabalho centrado nas questões étnico-raciais, mas é preciso
rever o olhar dirigido para o próprio continente africano mantido, até o advento da Lei
10.639/03, em um “silêncio” que exterioriza a continuidade do preconceito. A História da
África nos currículos de história no Ensino Fundamental e Médio adquire, assim, o papel de
fundamentação e estabelecimento de sentido para as experiências vivenciadas pelas
comunidades negras e afro-brasileiras e é essencial na discussão das questões relacionada à
construção de preconceitos e estereótipos em relação ao povo negro.
Os currículos escolares brasileiros constituem um poderoso instrumento de
intervenção do Estado e este é o responsável pelo direcionamento do conteúdo que será
transformado em saber escolar. É por meio do currículo que se selecionam e divulgam as
concepções produzidas por diferentes áreas de conhecimento, daí a necessidade de uma
reflexão sobre os currículos escolares e, principalmente, do “Currículo Referência de
História” do Ensino Fundamental e Médio proposto pelo Estado.
230
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais
História. Brasília: MEC/SEF, 1998. p. 126.
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As novas propostas curriculares apresentadas às Escolas (PCN) criaram brechas que
possibilitam a superação das lacunas/ preconceitos que ainda persistem nos currículos. A
possibilidade de inserir temas relacionados à diversidade étnica e cultural não só se tornou
possível como está sendo explicitamente recomendado.
Ao pensarmos no tema transversal “pluralidade cultural”, que foi proposto pelos
PCNs, a reflexão é a mesma, a proposta existe, mas há uma dificuldade para sua
implementação. Na proposta para o ensino de história o tema tem que vir ligado a um
contexto, a um período e a um espaço específico, ele exige do professor um profundo domínio
dos conteúdos propostos, e para isso uma proximidade permanente entre ensino de história e
pesquisa. A dificuldade está na transposição231 destes estudos para a situação de ensino e a
explicitação dos conteúdos ao tema pluralidade cultural. O que vemos hoje nas tentativas de
trabalho com a pluralidade cultural, e principalmente na sua abordagem nos livros didáticos, é
sua ligação às formulações clássicas de nossa historiografia, não estando em sintonia com as
novas pesquisas que estão sendo forjadas em nossas universidades. Em algumas áreas o
problema é ainda maior, como a da história da África que ainda engatinha como área de
discussão e de pesquisa nas nossas universidades. Até mesmo para os próprios africanos a
história deste continente é recente, só começou a ser abordada e explorada com as lutas de
independência quando os países africanos começaram a construir sua própria História, e a
resgatar seu passado e a desconstruir a visão da África subjugada, inferior e sem história.
Em relação ao material sobre História da África que temos no Brasil após a Lei
10639/03 Marina de Mello e Souza diz:
231
Maria Auxiliadora Schmidt diz que o conceito de transposição didática foi forjado em sua origem por um
sociólogo e “designa o processo de transformação científica, didática social, que afeta os objetos de
conhecimento até a sua tradução no campo escolar. Ele permite pensar a transformação de um saber dito
científico em um saber a ensinar, tal qual aparece nos programas, manuais, na palavra do professor,
considerados não somente científicos (...) Isto significa, então, um verdadeiro processo de criação e não somente
de simplificação, de redução (...) Nós preferimos empregar um termo que marca mais fortemente este processo, o
de recomposição didática”. (INRP Apud SCHMIDT, 2004, 59)
A autora afirma que “em relação à transposição didática do procedimento histórico, o que se procura é algo
diferente, ou seja, a realização na sala de aula da própria atividade do historiador, a articulação entre elementos
constitutivos do saber histórico e do fazer pedagógico. Assim, o objetivo é fazer com que o conhecimento
histórico seja ensinado de tal forma que dê ao aluno condições de participar do processo do fazer, do construir a
História. [...] Esse é um caminho da educação histórica da qual a sala de aula é um espaço privilegiado que pode
possibilitar a desnaturalização de uma visão critica do passado que está presente em nossas vidas [...]”
(SCHMIDT, 2004, 59)
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Como só há pouco tempo o tema passou a ser dado nas universidades
e a ocupar com mais freqüência as preocupações dos pesquisadores, a
carência de formação dos professores e de material didático é
compreensível. Mas isto está mudando. Já há algum material em
português para orientar professores e alunos dos vários níveis, como
livros de literatura para crianças, didáticos para jovens e de cunho
mais acadêmico para professores. Esses materiais ainda são escassos,
e poucos são realmente bons, pois antigos preconceitos teimam em
persistir, seja por desinformação, seja pela força das heranças
recebidas232.
Há alguns anos, historiadores alertam para a necessidade urgente de se promover o
desmonte de certos arranjos de conteúdos da história apresentada nos livros didáticos e
ensinada nos níveis fundamental e médio buscando, desta forma, a superação da visão
teleológica imposta pelos currículos tradicionais, onde se cristalizam noções como progresso,
civilização, modernização, marcando os rumos em direção aos quais todos os povos devem
caminhar. Essa desmontagem passa pela reorganização dos tópicos a serem trabalhados e pela
inclusão de temas que, ao invés de construir aqueles modelos de sociedade a serem
alcançados, ou mostrar sociedades diversas sob uma visão linear e generalizadas, numa linha
histórica que é europeia, busquem analisar efetivamente os temas e problemáticas presentes
no meio social com uma abordagem diversificada, não somente política e econômica, mas
também cultural e social. O que se pretende é que o ensino de história, como o das demais
disciplinas, seja significativo e desencadeie um processo de reflexão comum a alunos e
professores.
Hebe Maria Mattos fala de como a África e os africanos ainda estão inseridos em boa
parte de nossos currículos de Ensino Fundamental e Médio e sua consequência para o
aprendizado:
SOUZA, Marina de Mello. “Um continente no currículo”. Disponível em:
< http://www.revistadehistoria.com.br/secao/educacao/um-continente-no-curriculo > /Acesso em 15/07/2014
232
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Os africanos entram em cena na história do Brasil colonial a partir do
“pacto colonial”, da ‘monocultura do açúcar’ e do exclusivismo
metropolitano”, que necessitavam do “tráfico negreiro” e do “trabalho
escravo africano”. Esta formulação clássica da nossa historiografia
produz como efeito uma relativa naturalização da escravidão negra
como simples função da cobiça comercial européia, escamoteando a
face africana do tráfico essencial para o entendimento de sua dinâmica
e durabilidade. Essa naturalização da escravidão negra, a partir de uma
premissa que torna o tráfico negreiro um fenômeno histórico,
econômico e cultural derivado apenas da historia européia, é fruto do
desconhecimento da história africana e de sua importância na
articulação do mundo atlântico233
Danielle Bastos Lopes diz que alteridade africana ainda é pouco conhecida pelos
professores e retratada de forma superficial nos livros didáticos mesmo após 10639/03:
A maior parte dos livros didáticos possuem algumas características
comuns na forma de apresentar a história de negros e índios no Brasil.
A primeira é o chamado “congelamento das culturas”. Apesar de
geralmente valorizarem a diversidade da formação nacional, essas
publicações quase sempre relegam as contribuições dos índios e dos
negros a um passado pouco problematizado. O indígena é
correntemente o “selvagem e bravo”, com seus cocares, arcos e
flechas, enquanto o negro é o “escravo que joga capoeira”. Outro
problema é o caráter genérico como esses grupos são retratados.
[...]Tradicionalmente o currículo escolar de história considera as
233
MATTOS, Hebe Maria. O Ensino de História e a Luta Contra a Discriminação Racial no Brasil. In: Ensino de
História: Conceito, Temática e Metodologia. Organização: Martha Abreu e Rachel Soihet. Rio de Janeiro: Casa
da Palavra,2003, 133.
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Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
diferenças de identidade entre os europeus que passaram a residir em
território brasileiro no período colonial: portugueses, espanhóis,
franceses, entre outros. Como então é possível ainda encontrar
referências a “escravos africanos”? Este termo reproduz acriticamente
o tratamento subumano a que os negros eram submetidos, tratados
como mercadoria sem alteridade. O ensino de história herda o dever
de ressaltar a pluralidade de povos vindos daquele continente, como
os bantos e sudaneses – estes incluindo grupos diversos como os
yorubás, nagôs, gegês, ewes e haussás, entre outras relações étnicas.
São legados culturais complexos e diversificados, o que torna a
proposta de um ensino de história da África desafiadora e ao mesmo
tempo estimulante. Equívoco semelhante é constatar nos livros
didáticos a permanência da concepção de culturas ‘atrasadas’,
“primitivas” ou pouco desenvolvidas em relação às sociedades
ocidentais234.
Anderson Ribeiro Oliva também faz uma análise do material didático para Ensino
Fundamental de História da África no Brasil, que segundo o autor é um instrumento de grande
importância para a construção do conhecimento e na elaboração de referências sobre a
História da África e dos africanos.
Silêncio,
desconhecimento
e
poucas
experiências
positivas.
Poderíamos assim definir o entendimento e a abordagem da história
africana nas coleções de livros didáticos brasileiros. Apenas um
número muito pequeno de manuais possui capítulos específicos sobre
a temática. Nas outras obras, a África aparece apenas como um
figurante que passa despercebido em cena, sendo mencionada como
um apêndice misterioso e pouco interessante de outros assuntos.
LOPES, Danielle Bastos. ‘Não’ para os clichês. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro,
ano 9, n. 103, p.72-73, abril 2014.
234
336
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Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
Tornou-se evidente também que, quando o silêncio foi quebrado, a
bibliografia limitada e o distanciamento do tema por parte dos autores,
criaram obstáculos significativos para uma leitura mais atenta e um
tratamento mais pontual sobre a questão. [...] Nos textos em enfoque,
por razões que talvez espelhem a pequena intimidade com a
bibliografia especializada em História da África e as circunstâncias
específicas da elaboração de um livro didático, as imprecisões e
equívocos acabam por predominar. Isso não exclui algumas boas
reflexões realizadas pelos autores ou ainda abordagens adequadas dos
conteúdos apresentados. No entanto, os livros, quase sempre, são
marcados mais pelos desacertos do que pelos acertos235.
Desse modo, nos parece fundamental desvincular a história das sociedades africanas
dessa “história eurocentrica”, de limitar nossa compreensão do continente africano apenas ao
contexto do mercantilismo e do tráfico negreiro ou, séculos depois, da colonização efetiva
daqueles territórios. Frente a essa expectativa a introdução do eixo temático “pluralidade
cultural”236 torna-se imprescindível para o desenvolvimento de uma nova proposta curricular
que pode se apresentar com um importante instrumento que possibilite a compreensão da
História da África em todas as suas dimensões.
Olhares para a África: os limites da imaginação
235
OLIVA, Anderson Ribeiro. O ensino da história da África em debate: uma introdução aos estudos africanos.
In: RIBEIRO, Álvaro Sebastião Teixeira Ribeiro et. al (orgs.). História e cultura afro-brasileira e africana na
escola. Brasília: Ágere, 2008, p. 32-33.
236
Segundo os PCNS as culturas são produzidas pelos grupos sociais ao longo das suas histórias, na construção
de suas formas de subsistência, na organização da vida social e política, nas suas relações com o meio e com
outros grupos, na produção de conhecimentos, etc. A diferença entre culturas é fruto da singularidade desses
processos em cada grupo social. A temática pluralidade cultural diz respeito ao conhecimento e à valorização
dessas características culturais dos diferentes grupos sociais que convivem em um território. Quando
trabalhamos com essa temática oferecemos elementos para a compreensão de que respeitar e valorizar as
diferenças étnicas e culturais não significa aderir aos valores do outro, mas, sim, respeitá-los como expressão da
diversidade, respeito que é, em si, devido a todo ser humano, por sua dignidade intrínseca, sem qualquer
discriminação. Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais : pluralidade
cultural, orientação sexual / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília : MEC/SEF, 1997. Página 19.
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o Império português no Atlântico Sul
A história ensinada nas escolas é um elemento formador da memória coletiva e da
identidade nacional. Como afirma Jacques Le Goff: “A memória coletiva é não somente uma
conquista, é também um instrumento e objetivo do poder”237.
É inequívoco que a construção de uma identidade passe pelo conhecimento da própria
história para fazê-la presente como referência cultural. O Brasil é habitado por cerca de 76
milhões de negros e pardos, o equivalente a 45% da população. Portanto, os negros não
podem ser considerados uma minoria num país que só perde para a Nigéria em quantidade de
negros no mundo. O curioso é saber que, mesmo com toda a riqueza cultural, histórica e
econômica que nós, brasileiros, herdamos da África, ainda conhecemos muito pouco sobre o
continente, onde vivem mais de 780 milhões de pessoas das mais variadas etnias.
No estudo e no ensino de História no Brasil, a história da África foi quase inexistente
até muito pouco tempo atrás. Se os antropólogos e estudiosos da cultura popular sempre
registraram e analisaram as manifestações culturais, portadoras de elementos africanos,
realizadas por aqueles que para cá foram trazidos na condição de escravos e pelos que deles
descendiam, os historiadores se preocuparam muito pouco com a presença africana no Brasil
ou com as relações mantidas ao longo de séculos com aquele continente.
Caso o Brasil fosse um país sem nenhuma imigração africana de importância, não
seria surpreendente que os currículos escolares dispensassem estes conteúdos. Mesmo assim,
por razões da história da humanidade, seria indispensável um conhecimento da história
africana. Surpreendente é um país que, nos seus últimos quatro séculos, teve não somente a
imigração africana maciça, como também a maioria da sua população descendente de
africanos, não ter história africana nos currículos escolares.
O argumento principal para o ensino da História Africana está no fato da
impossibilidade de uma boa compreensão da história brasileira sem o conhecimento das
histórias dos atores africanos, indígenas e europeus. Sem estes elementos, constrói-se uma
história parcial, distorcida e promotora de racismos.
LE GOFF, Jacques. Memória. In: Enciclopédia Einaudi – Vol 1. Lisboa: Império Nacional – Casa da Moeda:
1984, p.46
237
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o Império português no Atlântico Sul
A exclusão da História Africana é uma dentre as várias demonstrações do racismo
brasileiro, pois produz a eliminação simbólica do africano da história brasileira.
O intelectual zairense, radicado no Brasil e professor da USP, Kabenguele Munanga
questiona a visão que foi construída sobre a África, considerando-se que, para a maioria das
pessoas, a África é:
- um “país” indiferenciado e uniforme; uma massa compacta ao pé da Europa;
- composta de sociedades “primitivas” e estáticas;
- um “país” tropical, de paisagens e culturas exóticas;
- marcada pelas catástrofes sociais, guerras civis e guerras étnicas.
Por esses motivos, o principal problema encontrado no processo de ensino e
aprendizado da história da África são as informações adquiridas sobre a África fora do
contexto escolar, marcadas por preconceitos. Estas informações de caráter racistas são
produtoras de um imaginário pobre e preconceituoso, extremamente alienantes e restritivas.
Seu efeito é tão forte que, segundo Henrique Cunha Junior238, as pessoas quando
colocadas em frente a uma nova informação sobre a África têm dificuldade em articular
outros raciocínios sobre a história deste continente.
Predomina-se, na nossa sociedade, a imagem do africano como selvagem acorrentado
à miséria. Esta imagem é construída pela insistência e persistência das representações
africanas como a terra dos macacos, dos leões, dos homens nus e dos escravos. Há
um
bloqueio sistemático em pensar diferente das caricaturas presentes no imaginário social
brasileiro.
Para Henrique Cunha Júnior239, o elemento básico para introduzir a história da África
é a desconstrução e eliminação de alguns elementos básicos das ideologias racistas brasileiras.
Segundo o autor são cinco os pontos importantes a serem desconstruídos na imaginação dos
brasileiros sobre a África:
1. A África não é uma selva tropical;
2. A África não é mais distante que os outros continentes;
238
CUNHA JR., Henrique. O Ensino da História. Disponível em:
<http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=499> Acesso em: 05/10/2012.
239
Ibid
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o Império português no Atlântico Sul
3. As populações africanas não são isoladas e perdidas na selva;
4. O europeu não chegou um dia na África trazendo civilização;
5. A África tem história e também tinha escrita.
Devemos pensar a África a partir da diversidade dos povos africanos e analisar os
problemas presenciados atualmente no continente, considerando os múltiplos processos
históricos pelo qual passou o continente. Não se pode esquecer os impactos dos processos
violentos de colonização pelo qual passou o continente desde o século XV, nem os processos
de independências recentes, já em meados do século XX.
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“RESISTIR É PRECISO, NAVEGAR NÃO É PRECISO”: A INDEPENDÊNCIA DE
MOÇAMBIQUE NA OBRA DE EDUARDO MONDLANE (1964-1968)
Patrícia da Silva Soares240
O estudo das sociedades africanas contemporânea podem trazer uma importante
contribuição para o nosso entendimento sobre o imperialismo e a influência da cultura
ocidental enquanto um conjunto de representações que impôs uma forma de ver e analisar a
realidade a partir de “um discurso científico unitário sobre o homem e a sociedade”
(Pesavento, 1995, p. 9). Discurso esse que desqualificou o homem africano que não se
adequava ao modelo construído pelo ocidente e justificou a dominação colonialista.
É nestas condições que pretendemos analisar as idéias de “resistência” e a construção
desse conceito e sua influência nos discursos de libertação de Moçambique dentro da obra de
Eduardo Mondlane Lutar por Moçambique (Mondlane, 1977), obra esta que foi escrita
durante a guerra pela descolonização de Moçambique. O recorte temporal deste projeto
corresponde ao período em que a obra foi escrita focalizando como marco inicial 1964, data
da proclamação feita ao povo moçambicano pelo Comitê Central da FRELIMO (Frente de
Libertação Moçambicana) por ocasião da declaração de guerra e como marco final 1968,
ultima data que aparece na obra, pois Mondlane será assassinado em 1969. Entretanto, foi
necessário realizar um recuo e uma compreensão do contexto histórico, promovendo o resgate
dos processos históricos vividos pelo autor que nos parecem essenciais na análise do seu
discurso.
A escolha pela obra de Eduardo Mondlane resulta do fato dele ter desempenhado um
papel decisivo na organização da luta pela libertação nacional e produzido um projeto político
para Moçambique e, ainda, a possibilidade de analisar a construção, dentro do seu discurso de
libertação o seu conceito de resistência.
Considerando a narrativa histórica como fruto de uma época e de uma sociedade e,
quem a escreveu como indivíduo e também fruto do seu contexto social, então o sujeito que
240
Especialista em História Cultural pela Universidade Federal de Goiás. Professora da Rede Estadual de
Educação de Goiás.
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escreve a história interage com o objeto ao problematizá-lo e, depois ao construí-lo, forjando
assim um discurso. Discurso esses que são representações da realidade – representações do
sujeito que o escreveu. Assim ao analisar uma obra historiográfica se faz necessário antes
estudar o historiador e seu meio histórico e social (Carr, 1982: 41).
E é isso que pretendemos no primeiro momento: a análise da biografia e dos vários
contextos históricos e sociais vividos pelo autor.
A partir daí analisamos o discurso sobre resistência construído por Mondlane, um
pesquisador das Ciências Sociais, marxista, assimilado que forjou sua personalidade nas
sociedades moçambicana, sul-africana, portuguesa e norte-americana do inicio do século XX.
Discurso este que foi construído para justificar o seu projeto para um Moçambique
independente e a sua proposta de resistência: que é sempre lutar pela revolução e pela
independência.
Em busca de uma biografia
A identidade de Mondlane emergiu de diferentes experiências: a educação tradicional
transmitida pela mãe; a luta quotidiana contra o sistema colonial; a educação veiculada pela
Igreja Presbiteriana e diferentes experiências de vida como estudante, professor, trabalhador e
investigador em universidades e nas Nações Unidas.
Este nasceu numa pequena aldeia no Distrito de Manjacaze no sul de Moçambique, em
1920. Descendia de uma família de chefes: o pai, um regente da linhagem de Khambane,
morreu quando ele era muito pequeno. Até aos treze anos, a sua educação esteve a cargo da
mãe que parece ter tido uma importante influência no seu desenvolvimento espiritual e na sua
personalidade. Dela, Eduardo recebeu a sua educação tradicional, enraizada nos feitos dos
seus antepassados guerreiros.
De acordo com as palavras do próprio Mondlane, é nesta fase da sua vida que começa
a se desenvolver o embrião do interesse pela luta nacionalista, quer através do estímulo que
lhe é criado pela mãe, quer através dos sofrimentos a que a família se viu muitas vezes sujeita
pelo regime colonial e que ele próprio pode testemunhar.
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Quando tinha treze anos Mondlane mudou-se para a escola da Missão Suíça em
Maússe (Manjacaze). Neste período inicia-se seu contato com um novo mundo, onde a sua
personalidade de jovem começa a ser moldada no espírito que caracteriza a educação da
juventude ministrada pela Missão Suíça (Igreja Presbiteriana). Mondlane é, assim, um dos
primeiros estudantes a participar nos grupos da juventude da Igreja – patrulhas ou mintlawa.
Consciente do seu desejo de aprender mais e continuar os estudos secundários, por
volta de 1940, Mondlane foi a Missão Metodista Episcopal em Cambine, na província de
Inhambane, onde os missionários queriam aproveitar a experiência dos Presbiterianos com
grupos de jovens. Em Cambine, este fez um curso de agricultura, estudou música e inglês.
Para os estudantes das escolas secundárias de Moçambique e de outras colônias, o
acesso à informação escrita, que fornecia elementos ligados às mudanças operadas
mundialmente e, sobretudo no continente africano, despertou na juventude o germe da
consciência política, sem esquecer, aqui, a inspiração deixada pelo sistema de dominação
colonial carregado de uma visível injustiça e repressão, que eles podiam sentir diretamente,
sendo um dos catalisadores mais fortes na formação de uma consciência política.
Mondlane também já exprimia a sua preocupação a respeito das leis coloniais que
controlavam a população moçambicana, limitando a sua liberdade de movimento, através de
pesados impostos, bem como através de formas repressivas da organização do trabalho.
Em 1944 os seus apoios na igreja conseguiram que ele fosse freqüentar a Escola
Secundária Douglas Laing Smit em Lemana, no Norte do Transvaal, África do Sul. Um novo
mundo se abre, com as novas experiências acumuladas quer como estudante, primeiro na
escola secundária, depois de uma escola média e da Universidade de WINTS, em
Johannesburg como estudante de sociologia, quer do ponto de vista cultural, e, sobretudo no
enriquecimento da sua cultura política.
Tendo chegado a África do Sul ainda marcado pelos sinais da dominação colonial
portuguesa, que pretendia “civilizar” os povos colonizados, Mondlane vai se sentindo cada
vez mais desapontado com o homem branco, ou mulungo que ele havia idealizado. Na sua
correspondência com André Clerc, ele faz reflexões sobre este aspecto, que pode em parte ser
ilustrado por um extrato de uma carta remetida a este, da África do Sul, em 1946:
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”(...) Os meus contatos com as civilizações, como na religião,
encontrei muitas desilusões. No começo pensei que o europeu
“mulungo” era uma pessoa nobre, cândido, justiceiro e sensível, mas
depois tive que descobrir, para meu desapontamento, que ele não é
mais santo que o preto”. (Silva,1991, p.94)
Em maio de1948, o Partido Nacionalista dirigido por Daniel F. Malan ganha as
eleições na África do Sul e introduz políticas mais abertas de implantação do Apartheid. Um
dos seus primeiros alvos foram as instituições e universidades cujas portas estavam pelo
menos abertas para todos os povos da África do Sul, sem olhar para sua cor. Devido a esta
nova situação, a autorização de residência temporária de Mondlane não foi renovada depois
de junho de 1949. apesar de várias campanhas promovidas por colegas, associações e
personalidades sul-africanas e moçambicanas, este foi obrigado a deixar a África do Sul e
fazer os exames finais da universidade em Lourenço Marques.
O impacto das novas correntes políticas que se desenvolveram durante e depois da
Segunda Guerra Mundial e as mudanças políticas na África do Sul, também influenciaram a
geração de Mondlane. No jornal Nyeleti Ya Miso, foi publicado um poema deste, no dia 03 de
outubro de 1944. Nele o autor homenageia o Dr. Aggrey, a quem considera um homem
inteligente e um campeão da Negritude, numa indicação sobre os efeitos da corrente de ideais
que circulava a sua volta. Embora haja poucas evidencias para analisar o impacto do
movimento Pan-Africanista e da Negritude em Mondlane, parece haver a certeza de que
Aggrey já fazia, em 1942, parte das suas leituras.
Define-se Pan-africanismo como um movimento que promove a auto-afirmação do
negro. O termo surgiu, pela primeira vez em 1900, na Conferência de Londres. Inicialmente,
tomou a feição duma simples manifestação de solidariedade fraterna entre Africanos e gentes
de ascendência africana das Antilhas Britânicas e dos Estados Unidos da América. No I
Congresso Pan-Africano foram afirmadas ideias como: “O problema do século XX é o
problema das relações entre os Homens de pele mais clara ou mais escura na Ásia, na África,
na América e nas ilhas do oceano”. (Davidson, Apud Corrêa & Homem, 1997, p.107).
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Entre o período que decorre desde a expulsão da África do Sul, até a sua partida para
Lisboa, Eduardo Mondlane, adquire novas experiências no seu dia-a-dia em Moçambique; é
agora visto aos olhos do mundo, não como “indígena” que se tornou catequista e professor,
mas como um estudante universitário, e assim tratado no seio da sociedade Lourenço
Marquina e no seio da própria Igreja Presbiteriana. Esse tratamento recebido por ele era típico
da sociedade colonial portuguesa, onde uma minoria de moçambicanos que tinha acesso a
estudos secundários, ou em casos mais raros a estudos superiores, poderia ascender ao
estatuto de assimilado e gozar de determinados privilégios que a aproximavam dos europeus.
Na colonização promovida pelos impérios econômicos europeus em meados do século
XIX, o controle das colônias é feito pela força e pela cultura. Dispositivos militares são
estabelecido nos territórios conquistados. Mas para garantir a exploração das sociedades
submetidas, torna-se necessário criar mecanismos de dependência no nível cultural e
ideológico. E a solução é levar os valores e a cultura ocidental à população. Esta é a
característica do chamado processo de assimilação – tradição humanista onde se via o outro
como um possível europeu, um europeu civilizado em potencial.
As populações colonizadas sofreram um processo de desenraizamento em relação a
sua própria cultura. Desenraizadas pelo próprio processo de colonização que retira do
colonizado sua autonomia, até mesmo sua cultura através de mecanismos de alienação e
despersonalização, passando estes a vislumbrar a cultura do colonizador.
Foi neste contexto que em 1950 Mondlane parte para Lisboa. De acordo com os
planos ele faria um ano de estudos em Portugal, antes de partir para os Estados Unidos da
América, para melhorar seus conhecimentos de língua portuguesa, e para evitar eventuais
conflitos com a administração portuguesa. Este matriculou-se na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, no curso de Ciências Histórico-Filosóficas.
Em Portugal ele manteve contato com outros intelectuais e futuros líderes
nacionalistas africanos como: Agostinho Neto, Marcelino dos Santos, Mário Pinto de Andrade
e Amílcar Cabral. A maioria desses teve que sair de Lisboa por causa da difícil situação em
que viviam, com a policia diariamente no seu encalço, uma vez que os portugueses se
opunham abertamente aos movimentos e a questão da independência.
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A situação em Lisboa ensinou a Mondlane que apesar de todo o seu luso-tropicalismo,
para os portugueses um negro sempre seria um negro e, por conseqüência, um inferior. Não se
conseguia quebrar a barreira da raça apenas a força de educação e capacidade pessoal.
Terminado o ano letivo, depois de ter enfrentado alguns problemas com a polícia no
aeroporto de Lisboa, Eduardo Mondlane parte para os Estado Unidos da América, para
prosseguir seus estudos.
Chegou aos Estados Unidos em junho de 1951 e passou o verão a proferir palestras
sobre a África em vários acampamentos religiosos. Em outubro, foi admitido pela
Universidade de Oberlin, como estudante de Antropologia e Sociologia.
Entre 1954 e 1955 obteve o lugar de assistente na Universidade de Northewestern
onde fez mestrado e doutorado em Antropologia e foi depois para Harvard como investigador.
No decurso dos seus estudos escreveu extensos trabalhos sobre Marx e Weber, uma tese sobre
Woodrow Wilson e uma dissertação sobre as influências raciais nos testes de educação. Tinha
uma grande atração pelas raízes da revolução Norte Americana e leu muita coisa sobre a vida
e a obra de Thomas Jefferson e Thomas Paine. Começou a procura de uma sinergia que unisse
Marx e Jefferson. Ao longo do seu estudo de textos revolucionários, a medida que o seu
mundo se alargava para incluir mais aspectos de Marx e Engels, Plekhanov e Mão Tse-tung,
era a dinâmica e não o dogma que interessava a Mondlane. Este dava ênfase mais na
dinâmica de qualquer situação, na interação dos opostos em conflito. Ele tentava sempre
compreender o processo dialético, em vez de se contentar com classificações e identidades
estáticas. Procurava trabalhar em termos de dinâmicas internas. Esta forma de pensar permeou
sempre a sua visão de Portugal e dos portugueses e a sua compreensão dos Estados Unidos,
do seu povo e do seu governo.
No pós-guerra, entre os anos de 1945 e 1960, a África estava em polvorosa em termos
de revoltas e lutas políticas pela independência. Nos países africanos ia se operando
transformações conducentes a uma independência nacional. Foi um período de efervescência
nacionalista. Movimentos de resistência surgiram em varias colônias africanas.
Neste período, em Moçambique, intelectuais também refletiam sobre a sua situação
política, e juntavam-se em grupos associativos e em organizações nacionalistas clandestinas.
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E é neste período de efervescência nacionalista que Mondlane volta à África e ao seu
país. Ele estabelece contatos com os três principais movimentos de resistência moçambicana
(UDENAM, MANU e UNAMI)241 e acaba desempenhando papel fundamental na sua
unificação e na posterior formação da FRELIMO. Em 25 de julho de 1962, estes lideres
revolucionários nacionalistas juntaram-se em Dar-es-Salam (Tanganica) para organizar uma
frente nacionalista a FRELIMO, onde Eduardo Mondlane é eleito seu 1º presidente.
Ao regressar ao seu país depois de 11 anos no estrangeiro, Mondlane foi recebido
como um herói como o Messias que iria salvar o povo do poder colonial. Para seus biógrafos,
a efervescência nacionalista dos anos 60 personifica no Dr. Mondlane o líder ausente. (Silva,
1991, p.80). As autoridades coloniais, por seu turno, também o receberam com respeito e
reconhecimento. Mondlane tornou-se para muitos moçambicanos o símbolo da liberdade.
Resistência na obra Lutar por Moçambique
A escolha pela obra de Eduardo Mondlane resulta do fato dele ter desempenhado um
papel decisivo na organização da luta pela libertação nacional e produzido um projeto político
para Moçambique e, ainda, a possibilidade de analisar a construção, dentro do seu discurso de
libertação o seu conceito de resistência.
Vinculadas a estas análises algumas questões surgiram: a primeira é qual o tipo de
resistência proposto por Mondlane em seu discurso de libertação nacional? Como ele vê as
outras formas de resistência que não a da luta pela independência, por exemplo, a resistência
cultural que foi implementada pelo povo por todo o período da colonização? Como esta
resistência proposta por Mondlane foi implementada na guerra de libertação?
Mondlane propõem um tipo de resistência: resistência é o combate que irá substituir
uma determinada organização social – a colonialista –, por outra organização social –
241
A idéia de criara um movimento nacionalista radical deu origem a três movimentos separado, que foram
formados por exilados moçambicanos: UDENAM (União Democrática Nacional de Moçambique), formada em
Salisbury, em 1960; MANU (Mozambique African National Union), 1961 formado de grupos que atuam em
Tanganika e Quênia; UNAMI (União Africana de Moçambique Independente), iniciado por exilados da região
de Tete e residentes no Malawi. Em 25 de julho de 1962, juntaram-se em Dar es Salam para organizar uma
frente nacionalista.
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Moçambique Independente –, é lutar pela revolução e promover a construção da nação
moçambicana.
Hoje os novos estudos culturais e a nova produção historiográfica nos
permitem construir um conceito mais amplo de resistência, baseado na construção das
diferentes identidades sociais, culturalmente produzidas, fundadas na experiência e na
tradição, podemos perceber que toda a concepção de resistência presente em inúmeras
manifestações culturais ficou de certa forma esquecida nas reflexões presentes no texto Lutar
por Moçambique, apesar da riqueza desse documento ele marca, entretanto, o limite de
conhecimento que a própria intelectualidade tinha de sua terra e de seu povo.
Em sua obra Lutar por Moçambique, que foi escrita no período de mobilização para a
luta de libertação moçambicana, Mondlane vai construir seu conceito de resistência a partir da
reconstrução da História da colonização de Moçambique pelos Portugueses. O autor recupera
essa gênese histórica para justificar a sua proposta de resistência e o seu projeto para um
Moçambique independente ao propor um modelo de resistência o qual é sempre lutar pela
revolução e pela independência.
Mondlane em seu discurso afirma que as tentativas de obter a independência por meios
pacíficos foram inúteis e, os dirigentes dos movimentos de resistência se convenceram que a
guerra seria necessária. Todos os tipos de atividade legal democrática e reformista, tentadas
durante os quarenta anos precedentes à guerra de descolonização fracassaram. O próprio
modelo da colonização portuguesa, de repressão e violência, sobre suas colônias leva segundo
Mondlane a esse tipo de resistência. Então para este a resistência africana nasceu dessa
experiência com o colonialismo português, um regime de discriminação, exploração e
trabalho forçado.
Mondlane utiliza algumas características do sistema colonial para justificar a sua
proposta de resistência pela luta, pela guerra:

seu primeiro pressuposto é que o sistema colonial isolou suas colônias do resto do
mundo e que a guerra daria visualização a essa região explorada, tiraria esta do
isolamento e da obscuridade;
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
o segundo se refere ao modelo administrativo implantado por Portugal em
Moçambique, que mondlane diz ser um modelo autoritário e violento que levaram os
africanos a resistência;

o terceiro argumento de Mondlane se refere a teoria portuguesa do não racismo, que
defendiam a idéia de todos cidadãos de um Portugal maior cego a cor, e que por essa
razão os colonizados não tinham necessidade de independência, Mondlane vai refutar
essa afirmação ao expor que existia racismo nas colônias, que mesmo assimilados, em
nenhuma circunstância poder-se-ia identificar na colônia uma real igualdade de
oportunidade desses indivíduos. Com isso os argumentos dos portugueses para não
promulgação da independência não são válidos e podem ser contestados nas lutas pela
descolonização.

o quarto argumento utilizado por Mondlane é que o tipo de educação implementado
por Portugal ao povo colonizado tinha como finalidade apenas a submissão deste ao
colonizador e não seu desenvolvimento.
A partir desses argumentos Mondlane afirma que a resistência africana nasceu dessa
experiência com o colonialismo português, um regime de discriminação, exploração e
trabalho forçado. E a revolução armada surgiu da recusa do colonizador em reconhecer e
atender a essas resistências.
Para o autor o sofrimento causado pelo sistema colonial e o desejo de ação eram as
condições para uma resistência armada.
Partindo de pressuposto cientificista e marxista Mondlane, afirma em seu discurso que
outras formas de resistência – como exemplo a cultural – não lograram êxito. Isso se justifica
na obra de Mondlane partindo das idéias de alguns teóricos marxista que argumentam que a
revolução se dará pela luta, no campo do empírico e a resistência pacifica ou cultural, não é
valida, pois não atua no concreto.
Por isso na obra de Mondlane questões como a resistência cultural que foi
implementada desde o inicio da colonização, são consideradas apenas como discursos
ideológicos para a politização e união da população em torno do movimento de libertação da
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FRELIMO, e não como uma real vivencia da população, não como uma resposta cultural
possível para esta sociedade submetida à violência colonial.
O tipo de valorização cultural que a revolução vai propor, excluí o que eles vão
chamar de obscurantismo (exemplo as praticas mágicas), é a valorização da tradição da
música, da dança, que para os revolucionários funcionária quase como um apelo ideológico de
discussão e aceitação de seu passado cultural, ao mesmo tempo em que os aspectos tidos
como negativos deveriam ser rejeitados.
Hoje as ciências humanas passam por uma crise, uma interrogação, que deriva da
perda de certezas das normas fundamentais desse discurso cientifico e unitário sobre o homem
e a sociedade ao qual se inseria Mondlane. Essa chamada crise dos paradigmas de análise da
realidade, o fim na crença nas verdades absolutas e legitimadoras da ordem social e a
interdisciplinaridade implicou para as ciências humanas uma mudança de conteúdo e de
método. Então surgem novos objetos, problemas e sentidos e as formas de conhecimento
transmitidas pela tradição ou pelos vieses ideológicos ressurgem no cenário de análise das
ciências humanas.
Assim hoje já se considera a busca por práticas tradicionais como tendo um papel
decisivo nestes processos revolucionários, sendo considerados como uma tentativa por
encontrar a identidade de um povo, de atribuir algum sentido ao vivido, de interferir nos
rumos da própria existência. O movimento em direção ao passado, à retomada de rituais
mágicos, pode significar um movimento de superação de identidades estraçalhadas nos
processos de colonização e posteriormente de guerra revolucionária.
Outro ponto colocado no discurso de Mondlane é a questão de como se efetuaria essa
resistência armada. Para ele um marxista a resposta pressupõem a aliança entre teoria e prática
como elemento de transformação. Então o autor conclui que seu projeto de resistência se
efetuaria pela “educação e por ações militares”(Mondlane, 1977)
Para o projeto revolucionário seria necessário substituir a ideologia colonialista, da
classe dominante, pela construção de um homem novo, que seria um pouco tradicional e outro
pouco moderno, construído pela educação revolucionária, como se fosse uma tabula rasa, sem
crenças, passado ou cultura.
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Com a criação do homem novo e sua desalienação242, no discurso de Mondlane, este
discerniria que as ações militares são necessárias porque a violência empreendida pelos
portugueses tornou a resistência pacífica “fútil”, e a severidade da repressão portuguesa criou
as condições necessárias para o desenvolvimento dum movimento nacionalista militante.
Este é só um primeiro trabalho, na análise da obra de Mondlane verificamos a
possibilidade de exame de várias outras questões como: seu projeto para um Moçambique
independente; suas idéias e projetos de nacionalismo, em uma região onde a população ainda
não se reconhece como moçambicana e muito menos como integrante de uma nação; analisar
como Mondlane tenta compreender as razões dos problemas vividos por seu país no período
(fome, miséria, exploração), analisar os limites que a ocidentalização de Mondlane impõe ao
seu projeto político para Moçambique; analisar como este vê Moçambique, seu povo
diversidade cultural do seu país.
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Brasileira, 1966.
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MANGHEZI, Nadja. O Meu Coração Está nas Mãos de um Negro. Maputo, CEA & Livraria
Universitária: 2001.
MONDLANE, Eduardo. Lutar por Moçambique. Lisboa: Sá da Costa.1977
Cf. Para Karl Max (apud BARBOSA, 2002, p.70) é da sua base “material que o real ao ser desvendado
pela pesquisa científica expressa como o pensamento poderia autocriticar-se e desalienar-se”.
242
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Imaginário. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/ Context, vol.15, nº
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um nacionalista (1940-1961). In: Estudos Moçambicanos. Africanos- Universidade
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TEDESCO, Maria do Carmo Ferraz. Guerra Civil em Moçambique e a Intervenção dos
Espíritos: Reflexões Sobre História, Violência e Magia. 2003 Mimeo
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O INTERESSE CULTURAL FRANCÊS PELO BRASIL: REPRESENTAÇÕES DA
PAISAGEM BRASILEIRA NAS ARTES PLÁSTICAS NO SÉCULO XIX
Pepita de Souza Afiune243
Introdução
O século XIX foi um período marcado pelo intenso desenvolvimento nas artes
plásticas, marcando o florescimento de novas vanguardas europeias. Paris considerada
a“capital da arte”ou até mesmo a “meca da moda” neste período, busca legitimidade
intelectual para manter-se como referência da arte internacionalmente. Estava entre as
principais potências, com uma crescente industrialização, construção de ferrovias e o
urbanismo crescente.
É o que percebe-se através do grande empreendimento do projetistaGustave
Eiffel, uma torre de ferroconstruída no Champ de Mars, com seus 324 metros de altura,
conquistou milhões de pessoas que a visitam a cada ano. A Torre Eiffel fora construída para
ser exibida ao mundo na Feira Mundial, em 1889,em uma espécie de competição com a Feira
Mundial de Londres, a primeira feira realizada em 1851 com o objetivo de mostrar a
modernidade de seu país, em suas principais construções, para proclamar a grandeza do país
perante o mundo. Após esta feira britânica, vários países da Europa e até mesmo depois a
Américatambém realizaram suas respectivasexposiçõesinternacionais. Um mundo que insiste
em expirar ares imperialistas, em pleno século XIX, com o intenso desenvolvimento
industrial, os países europeus buscavam respaldo para justificar seu desejo desuperioridade
perante os demais países.
Na França, “a burguesia exalava comportamentos, formas de vestir, comer e, sem
dúvida, de consumir. A influência cultural espalhava-se, inclusive por meio da exportação dos
243
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado / TECCER e
Bolsista do Programa de Bolsas Stricto Sensu daUniversidade Estadual de Goiás. Email: [email protected]
Orientador: Profº Dr. Eliézer Cardoso de Oliveira.Doutor em Sociologia pela UnB. Coordenador do Programa de
Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER) e Professor do curso de História
(UEG). Email: [email protected]
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chamados ‘artigos de Paris’.” (BIVAR & SAMARA, 2009, p. 210 – 211).Desta forma, além
de proclamar-se como um país em pleno desenvolvimento industrial, urbanístico e
econômico, a França também mostrava o interesse em desenvolver a sua intelectualidade em
outras regiões.
Juntamente às expedições científicas enviadas ao Brasil com o objetivo de
catalogar espécies da fauna e flora brasileira, o interesse artístico desenvolveu-se de forma
contundente a partir do espelho francêsem sua atitude de olhar para o “outro”.
Portanto, este artigo pretendediscutir as formas de representação da natureza e
paisagem brasileira afinadas com o discurso da Academia Imperial de Belas Artes 244. Um
interesse em retratar a nação brasileira e seus grandes herois mostra-se no estilo Neoclássico e
no Romantismo que chegam ao Brasil numa perspectiva de trazer arte a um lugar considerado pelos europeus -desprovido de cultura.
Ao discutirmos sobre as representações através da imagem, recorremo-nos aos
estudos de História Cultural,que compreendeque qualquer indivíduo é produtor de
cultura.Esta discussão abarca a relação entre as formas de criação e recepção de visualidades,
à medida que “envolve processos de percepção, identificação, reconhecimento, classificação,
legitimação e exclusão”. (PESAVENTO, 2003, p. 40).
A metodologia utilizada nesta pesquisa é a análise das imagens construídas por
estes artistas plásticos franceses, especificamente os artistas Jean-Baptiste Debret e NicolasAntoine Taunay, que partiram da proposta de representar o país, sua cultura, paisagem e
também fatos históricos, como os retratos da família real e as cerimonialidades oficiais.
A História Cultural e a imagem como fonte de pesquisa
A grande revolução na historiografia no século XX passa a incorporar como seus
sujeitos e objetos, mais do que grandes fatos e feitos heroicos, passando a acrescentar as
244
Fundada em 1826 no Rio de Janeiro, à iniciativa de Dom João VI em um contrato com os franceses. Inaugura
o ensino de artes no Brasil nos moldes das academias artísticas europeias.Oferece ao estudante formação
científica e artes de ofício, provenientes de um ensino pautado nos preceitos da arte francesa.
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ideias, os costumes, às mentalidades de cada período.Dentro deste âmbito, estabelecemos os
contatos com os estudos sobre imagem.
A imagem é a representação do homem acerca de sua realidade, em um processo
de criação através de sua própria ótica, como uma evidência histórica, assim apontada por
Burke (2004). É o reflexo da sociedade que a produziu, sendo um grande legado da
humanidade, representando uma importância à medida que induz processos de produção de
sentido e construções culturais.
Ao adentrar-se no campo destas representações, é imprescindível levar em
consideração a intenção do artista, como um sujeito inserido em um determinado contexto
histórico.O homem carrega consigo impressões e marcas de sua época, como uma forma de
manutenção de sua culturalidade.
A importância de se ter a imagem como fonte na pesquisa histórica é respaldada
por Burke que afirma que as imagens “são testemunhos dos estereótipos, mas também das
mudanças graduais, pelas quais os indivíduos ou grupos vêem o mundo social, incluindo o
mundo de sua imaginação”. (BURKE, 2004, p. 232).
As imagens podem complementar os documentos escritos e os relatos orais na
pesquisa histórica, pois possuem a capacidade de revelarelementos que podem estar ocultos, o
que pode trazer à tona características ideológicas.“É determinada ao mesmo tempo pelo
próprio sujeito (sua história, sua vivência), pelo sistema social e ideológico no qual ele está
inserido e pela natureza dos vínculos que ele mantém com esse sistema social”. (ABRIC,
2001, p. 156)
A provável missão artística francesa no Brasil
Em 1808 na fuga da corte portuguesa para o Brasilapós o bloqueio continental
imposto pelo imperialismo napoleônico, o rei D. João VI mostrava-se encantado com a região
na qual acabara de embarcar com a sua família. A presença da corte real significaria
progresso, já que com ela, a economia e o comércio abriram-se aos países estrangeiros,
ocasionando mudanças importantes para a sociedade, pois foram construídos hospitais,
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escolas, fábricas e desenvolvido o urbanismo. O próprio fato de receber reis e rainhas criava
um sentimento de importância no país.
A partir de 1815, depois da derrota de Napoleão Bonaparte, quando Dom João VI
decreta que as relações entre Brasil e França eramamigáveis,implicaria na livre chegada de
franceses ao Brasil.Em 18 de novembro um novo decreto abre finalmente os portos brasileiros
aos navios franceses. O coronel Jean-Baptiste Maler fora nomeado cônsul da França no
Brasil,marcando uma fase de intensas relações entre ambos países, que irão desenrolar-se pelo
campo político, científico, cultural e social.
Apesar do Brasil mostrar-se um Estado autônomo após 1822, mantém-se
governado por uma monarquia lusitana, que por sua vez revela um interesse pelas artes
plásticas, que na verdade irão utilizá-las como arma política. A pintura histórica surge como
uma representação carregada do simbólico, convidando estes artistas franceses a ilustrar
também os acontecimentos históricos e seus herois. Surge um sentimento de nacionalidade,
criando uma forma de imaginário que mascara as diversidades sociais, mostrando um
encantamento dos fatos históricos, como se o período vivido pelo Brasil durante o governo da
corte portuguesa fosse um período maravilhoso, com um intenso desenvolvimento do país em
todos os sentidos.
Na verdade, após a independência em 1822, a construção da
identidade nacional tornou-se uma preocupação do Estado. E, nesse
esforçopara estabelecer as referências para a nação brasileira, a
história tem umpapel central. O passado, reconstruído de maneira
intelectual, torna-seuma importante fonte de legitimação do novo
regime.(PEREIRA, 2012, p. 95)
Dentro desses interesses da corteem se criar no Brasil um clima favorável a si
próprio, era necessário destacar características de uma realeza tão tradicional quanto as
demais europeias,criando uma imagem de grandeza e importância, que representava para estes
artistas um trabalho que já estavam acostumados,a arte em prol da política. Diversos artistas
franceses temerosos das consequências da queda do império napoleônico,estavam com o
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intuito de deixar aquele país, aceitando o convite do embaixador português na França, o
marquês de Marialva, que os contrataram para trabalharem no Brasil a serviço da corte
portuguesa.
Assim, a Missão Artística Francesa chega ao Brasil em 1816, formada por um
grupo de artistas liderados por Jean-Baptiste Debret e Nicolas Antoine Taunay. Com uma
formação neoclássica, estes artistas procuram pintar o Brasil conforme os seus moldes
ocidentais. Este estilo neoclássico propôs o retorno aos valores da arte da antiguidade clássica
(greco-romana) e renascentista, no retorno aos padrões de beleza apresentados pelas
esculturas gregas em mármore, a valorização do mito e a reconstrução arquitetônica baseada
nas regras dos templos greco-romanos, com seus frontões, colunas, mármore branco e as
abóbadas.
Para Schwarcz (2008) essa seria a versão oficial da história da chegada dos
artistas franceses no Brasilena verdade a missão não foi um convite da realeza portuguesa
como nos parece, e sim, uma iniciativa própria dos franceses. Sua teoria defende que a missão
não seria de todo responsabilidade dos portugueses, primeiro porque, é de se estranhar o fato
da corte escolher justamente e apenas artistas franceses, e além do mais, artistas ligados a
Napoleão,sendo que haviam tantos artistas holandeses, alemães, britânicos e portugueses a
disposição, e com talento não menos nato. A iniciativa teria sido dos próprios franceses que
ao chegarem ao Brasil precisaram de conseguir a aprovação oficial da corte portuguesa.
O próprio D. João VI procurou fugir à responsabilidade pública de ter
oficialmente patrocinado a vinda dos artistas franceses através das
autoridades competentes em Paris, dando a entender, no decreto com o
qual criou a Academia Real de Ciências, Artes e Ofícios, decreto de
12 de agosto de 1816, que visava aproveitar alguns estrangeiros
beneméritos que procuravam a sua proteção. (BARBOSA, 1978, p.
49)
Jean-Baptiste Debret escreveu em sua obra “Viagem Pitoresca e Histórica ao
Brasil” que eles teriam sido bondosamente acolhidos, afirmando que o projeto era do governo
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português, mas com o objetivo dedeixar registrado na história o fato de que eles foram
convidados pela corte portuguesa, acobertando o fato de que vieram por contra própria, como
um autoconvite.
Diante da queda de Napoleão, “ficaram muitos artistas desgostosos em Paris, os
quais foram chamados ao Brasil para formarem uma Academia”. (PORTO-ALEGRE apud
SCHWARCZ, 2008, p. 62). Porém, Schwarcz(2008) não duvida de que a corte seria a mais
interessada nesta presença destes artistas que contribuiriam para a construção de sua imagem
positiva, como dito antes, mas “o que está em questão é a premeditação do projeto e a falta de
atenção aos interesses e projeções dos próprios franceses”. (Idem, 2008, p. 62)
Desta forma, Schwarcz (2008) conclui que os artistas acadêmicos, como Taunay e
Debret trabalhavam a favor de Bonaparte, e com a sua queda,tornaram-se perseguidos
políticos, precisando partir da França para algum país, seja algum dos países baixos, ou algum
país que ainda era pouco procurado por estrangeiros e que necessitasse de contato com
civilizações mais avançadas, como eles se autoproclamavam.
Porém, o próprio termo por nós aqui utilizado - “missão artística”, é encontrado
através da leitura de “A missão artística de 1816” de Nicolas-Antoine Taunay, que investiu na
ideia de uma missão necessária a um país que necessitava de uma renovação no campo das
artes. Uma missão que se parece até mesmo com a missão do cristianismo em trazer a fé para
os infieis, que necessitavam da luz divina. Como se o trabalho deste artista fosse como o
trabalho de um missionário, um sacrifício, para a salvação de várias almas.
Mas independente da utilização do termo “missão” ou se a mesma fora iniciativa
portuguesa ou francesa, não é do interesse desta pesquisa.O que nos interessa neste momento
é trabalhar a questão destas obras de arte que foram realizadas no Brasil com o intuito de
representá-lo, o que carregará vários elementos simbólicos do próprio sujeito produtor da
obra.
O objetivo desta então provável missão era abrir um novo período de arte no
Brasil, implantando uma educação artística, que culminou com a criação da Academia
Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, em 1826. Para o seu funcionamento, artistas
estrangeiros tomaram a frente,muitos seriam os mestres da Academia, garantindo uma
educação nos moldes europeus, um estilo de ensino acadêmico, que estimulava a pintura
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histórica, retratística e paisagística.“As academias surgiram, não para fazer o papel das
oficinas – onde se aprendia a prática –, mas justamente para fazer o que as oficinas não
faziam: a discussão teórica e o estudo do desenho.” (PEREIRA, 2012, p. 91)
Como a arte francesa ganhava novos rumos no século XIX, eles procuraram
buscar inovações quanto a estudos sobre paisagem, viajando a territórios desconhecidos. “O
artista dos arredores de Paris, da Roma antiga e das telas militares napoleônicas preparava-se
para uma nova paisagem: os trópicos desconhecidos e imaginários do Brasil” (SCHWARZ,
2008, p.157)
Estes preceitos neoclássicos foram desenvolvidos no Brasil paralelamente ao
romantismo no sentido de que ambos valorizavam a idealização da natureza.Representação de
paisagens com uma natureza modificada pelo homem, ou pelo “progresso”. “A colônia
portuguesa era, assim, um imenso desafio a resumir e reunir as riquezas e imaginários
dispersos por toda a América”. (Idem, p.56)
O Artista-Cientista no Brasil Imperial
Conforme Pereira (2012) a paisagemnos estudos de cenas históricas também foi
considerada um gênero autônomo, ganhando importância na Academia, passando a ser uma
disciplina no currículo a partir do ano de 1816. É importante analisarmos o papel do estudo da
paisagem que representa a natureza brasileira no processo de construção da identidade
nacional, tarefa esta, realizada por artistas e naturalistas.
A paisagem brasileira em sua especificidadeé um convite à observação e
contemplação da natureza.Para Belluzzo, “a contemplação da natureza brasileira promove a
visão e o tato, provoca a sensação do gosto e do cheiro”. (BELLUZZO, 1994, p. 114). Um
“país da flora exuberante e da enorme fauna;mas também quase um continente misterioso,
caracterizado por gentesde hábitos estranhos” (SCHWARCZ, 2008, p.13).
No caso da paisagem, árvores e campos, rochas e rios, todos esses
elementos comportam associações conscientes ou inconscientes para
os espectadores. Devemos enfatizar que nos referimos a observadores
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de determinados lugares e períodos da história. Em algumas culturas e
natureza selvagem é detestada e até temida, enquanto em outras ela é
um objeto de veneração. Pinturas revelam uma variedade de valores
[...] (BURKE, 2004, p. 53-54)
Para Süssekind (1990) o objetivo do naturalista é caracterizar de forma precisa a
paisagem, como um documento, uma descrição da paisagem. A arte poderia como uma
enciclopédia, catalogar as espécies em seus tamanhos, características, em todos os seus
detalhes.
Afinal, o Brasil era para esses novos viajantes um país conhecido e
desconhecido. Era, por um lado, um “velho amigo”, uma vez que,
através dos relatos coletados durante três séculos – a partir das obras
de Thévet, Lery, Goneville, Claude d’Abeville, Duguay Trouin,
Bouganville e tantos outros, o Brasil surgia como o local da grande
flora e da fauna diversificada. (SCHWARCZ, 2008, p.56)
Para Pereira (2012) as paisagens brasileiras são representadas de diversas
formas.Encontramos artistas que trabalham na criação das paisagens urbanas,com o objetivo
de se criar uma documentação visual daquela região,tendo a natureza transformada pelo
homem, baseando-se nos preceitos progressivistas atenados com o positivismo vigente no
século XIX, como por exemplo, a pintura de Nicolas-Antoine Taunay“Morro de Santo
Antonio”245, que convida o espectador a adentrar-se em sua criação paisagística, procurando
representar o Rio de Janeiro, de forma a mostrar o contraste entre a construção arquitetônica
com a imponência da natureza como pano de fundo. Para Belluzzo (1994) Taunay compensa a
horizontalidade da paisagem natural de fundo colocando os prédios, em sua geometria,
contribuindo para uma clareza da tela.
245
Morro de Santo Antônio, autor: Nicolas-Antoine Taunay; 1816; óleo sobre tela, 45 x 56,5 cm.Rio de Janeiro.
Disponível em: http://www.mnba.gov.br/2_colecoes/9_pintura_e/h_taunay.htm. Acesso em: 01 de Agosto de
2014.
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Há também representações da paisagem natural, com a descoberta da diversidade
desta rica e exótica natureza, como por exemplo a pintura “Cascatinha da Tijuca246”, de
autoria do mesmo artista.Desta forma, Taunay mostra uma liberdade em retratar a natureza do
Brasil e“mantém-se sempre como um observador longínquo, que se deixa contaminar pela
paisagem local mas a traduz em seus próprios termos. Estava no Brasil, mas permanecia de
certo modo na Europa”. (SCHWARCZ, 2008, p. 273)
Para Pesavento (2003) as representações também são dispositivos portadores do
simbólico, pois o seu conteúdo está imbuído de elementos objetivos ou subjetivos. Esses
elementos subjetivos presentes nas obras de Taunay possuem sentidos ocultos e foram
construídos em um determinado contexto histórico, demonstrando também manifestações de
inconsciente coletivo. O processo de representação parte de um sujeito individual ou coletivo
tendo uma finalidade específica, esse sujeito individual é o artista que ganha respaldo coletivo
em suas representações, visto que neste período toda arte realizada por franceses era vista
pelos brasileiros como um molde a ser seguido.
Destaque para Debret, que se posicionou no sentido de retratar cenas históricas,
retratando também a natureza e a cultura no Brasil, permanecendo no país entre 1816 a 1831.
Apesar de ser mais conhecido por representar a cultura brasileira e o seu contexto históricosocial da escravidão, tem a característica de detalhismo muito forte em suas pinturas
paisagísticas. Um convite ao espectador a entrar no espaço da tela, induzindo-o a adentrar-se
em sua temática e em sua composição. Sua obra “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”,
livro tido como uma importante fonte para a historiografia, fora publicada na França em 1841,
através dos primeiros contatos de Debret com o Brasil. Mostra a crença no progresso e a sua
atuação no Brasil, como se aqui fosse um local que necessitasse disso. Debret também
representa a paisagem urbana e coloca o homem como o seu protagonista, é o que percebe-se
em sua tela intitulada “Ponte de Santa Ifigênia”247.
246
Cascatinha da Tijuca, autor: Nicolas-Antoine Taunay; 1821; óleo sobre tela, 53 x 37 cm; Rio de Janeiro,
Museu do I Reinado. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/viajantes/taunay.swf. Acesso em: 07 de
Agosto de 2014.
247
Ponte de Santa Ifigênia. Autor: Jean-Baptiste Debret; 1827;aquarela sobre papel, 14,5 x 20,6 cm; Coleção
particular. Disponível em:
http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_IC/index.cfm?fuseaction=obra&cd_verbete=670&cd_
obra=61235.
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Debret produziu um acervo de obras que retratam a realidade histórico-social do
Brasil do século XIX. “Preconizava no exótico dos costumes e na representação fiel da
natureza, a mais perfeita finalidade da arte no século XIX” (DEBRET, 1989, p. 11).
Os estudos de paisagem faziam com que o artista deixasse o ateliê e buscasse a
própria natureza como palco das suas criações. “O paisagista é também um observador a
distância que, em nome de ver tudo, se separa e abstrai o mundo.” (BELLUZZO, 1994, p. 35)
A pintura paisagística traz a magia da imaginação mas não deixa de representar a
realidade. Num tom romântico idealiza lugares de forma bem detalhada, levando o espectador
a um esplêndido exercício de imaginação e contemplação.
Uma relação direta entre o naturalista e o ambiente o qual está representando, no
qual ele encontra-se imerso. Essa experiência de imersão em que o artista se encontra e que
também leva o próprio espectador a experimentar nas representações da paisagem
brasileira,estabelece relações entre o homem e o mundo em que vive.
Considerações Finais
O homem iluminista embrionado no século XVIII é artista e cientista, sabe unir a
razão com a sensibilidade artística. Desta forma, fica evidente a relação entre a ciência e a
arte, sendo esta última, auxiliar das expedições oficiais, contribuindo com as suas formas de
observação da natureza, com uma forma contemplativa e detalhista.Essas formas de
representação visual da natureza e da paisagem brasileira fazem parte de um período marcado
por relatos de viagens, descrições de paisagens, catalogação de espécies, mostrando uma
atitude de observação.
Conforme Belluzzo (1994) com a presença da corte portuguesa no Brasil houve
uma preocupação em se acelerar o processo de aculturamento, transformando o país nos
campos econômicos, urbanos, sociais e artísticos.Este brasileiro a viver sob a tutela dos
estrangeiros, recebera muito bem a corte real portuguesa, que por sua vez passara ser modelo
de conduta, tendo o próprio país que se adaptar para as novas demandas que uma corte real
implicaria em transformação de toda infraestrutura da cidade do Rio de Janeiro. Portanto, as
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representações desta nova cidade, trazem a ideia de uma cidade em expansão, trazendo os ares
de uma nova civilização.
Os franceses criam representações do Brasil a partir de sua própria percepção,
classificando elementos, entre o que deve ser colocado na imagem ou o que não deve
aparecer. Desta forma, elementos podem ser excluídos, manipulados, distorcidos, pois este
artista imprime nesta imagem características próprias de seu contexto.É o que os estudos da
História cultural sobre as imagens nos atenta, para tratar a imagem como uma criação repleta
de simbolismos carregados pelo próprio sujeito autor da obra.A obra de artepor trás de sua
aparência pode possuir um interesse de se apresentar determinada ideia, que nesse caso, seria
o desejo de pintar um Brasil que crescia conforme os moldes europeus.
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das
Representações
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do Instituto de Estudos Brasileiros. Universidade de São Paulo. N° 54, Set/Mar de 2012.
Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/49114. Acesso em: 24 /07/ 2014.
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Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
PESAVENTO, Sandra Jatahy.
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Entre Europa África e América:
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A ORGANIZAÇÃO DAS ESCOLAS DOS JESUÍTAS NO BRASIL-COLÔNIA:
BUROCRACIA, ESTRANGEIRISMO E COMPETITIVIDADE
Rachel Silveira Wrege
UNESP - Universidade Estadual Paulista – FCT
[email protected]
A solução encontrada para Portugal superar a falta de padres em altos cargos da
Companhia de Jesus no Brasil-Colônia não consistiu no investimento de padres com o curso
completo de Teologia. Com um raciocínio colonizador e, assim sendo, dominador, próprio de
uma Metrópole em relação a uma Colônia, o jeito encontrado para resolver o referido
problema foi o de enviar padres intelectualmente completos para a Colônia, tanto de Portugal
como de outros países afeitos ao pensamento dominante, que por sua vez reproduzia-se,
gerando urra seletividade ainda mais crescente no ensino superior. Podemos concluir que o
estrangeirismo jesuítico no ensino colonial estava intimamente relacionado à privação de
nascidos no Brasil ao respectivo grau de ensino. Estava claro na mente dos portugueses quem
era nascido na Colônia, incluindo-se os mamelucos ou mestiços, por disparem de um
parentesco português. Sendo assim, os índios puros eram considerados brasileiros e, os negros
de seus locais de origem. Para "estrangeiros" reservavam-se aos que não se encaixavam nessa
classificação. Esta observação é importante quando se faz menção aos padres estrangeiros e,
principalmente, a quem era considerado aluno de algum colégio jesuítico da Colônia, que
além de não ser índio, nem negro, não podia ser de origem judaica (SERAFIM LEITE, 19381949, t. VII, p. 236-241).
O determinado vínculo entre a falta de pessoal nascido no Brasil que fosse altamente
qualificado e a existência de padres estrangeiros na Colônia registrou-se em alguns fatos
elencados por Serafim Leite. Entendo que neste aspecto, o historiador da Companhia de Jesus
no Brasil, é confuso em sua exposição, na sua obra “História da Companhia de Jesus no
Brasil”. Além disso, ele relaciona de modo subentendido a baixa qualificação dos padres do
Brasil com a vinda de padres estrangeiros, sendo que não lamenta sobre o problema quanto à
formação dos padres do Brasil, apenas a justifica. Para a infelicidade dos jesuítas de origem
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colonial, o ano de 1663 marcou o destino de suas carreiras, por ser nomeado Jacinto de
Magistris para o cargo de Visitador, que atuaria como verificador das atividades dos padres na
Colônia, com o atributo de ordenar a realização do que o Padre Geral lhe atribuía. Este padre,
de origem estrangeira, portanto, não sendo natural de Portugal e nem do Brasil, trouxe a
experiência de ter sido procurador da Província do Malabar, localizada na Índia. O Padre
Geral fez uso de seu poder supremo ao elencar Jacinto de Magistris para ser visitador da
Colônia, feito que agradou o rei de Portugal e, preocupou e entristeceu os padres da então
Colônia, como evidência da consonância de Roma com Portugal para o atendimento das
propostas educacionais colonizadoras. Esta função era bastante adequada para o que se estava
propondo, uma vez que ela era responsável pelo relacionamento entre os padres de Portugal e
da Colônia, articulando-se ainda com o rei de Portugal. Portanto, o padre visitador transitava
livremente no ambiente da Coroa Real e nos meios institucionais jesuíticos da Colônia
(SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 33-43, 51, 69, 87).
Vejamos como Serafim Leite aborda esses vínculos:
Ao voltar do Brasil a Lisboa, o P. Jacinto de Magistris foi recebido
com veneração na Côrte, e El-Rei escreveu os seus louvores ao Geral,
oferecendo-lhe o seu patrocínio ou para ele voltar ao Brasil ou para ir
para a Índia, como o P. Geral determinasse (SERAFIM LEITE, 19381949, t. VII, p. 40).
Pela leitura feita da Obra de Serafim Leite, percebi que a nomeação de um visitador
estrangeiro sobrepujou, por absurdo que tenha parecido, uma lei da própria Companhia de
Jesus, que estabelecia como norma, a inexistência do cargo de visitador se realizar por padres
de outra origem que não a da Metrópole e Colônia. Os jesuítas, feitores de tal lei, não se
submeteram a ela (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 33-43, 51, 69, 87).
Tratando o P. Jacinto de Magistris do seu embarque com o Conde de
Óbidos, Vice-Rei do Brasil, declarou-lhe este que no Brasil os
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estrangeiros não podiam ser superiores, de acordo com a lei então
vigente; lei que aliás se não cumpria, porque o P. José da Costa,
estrangeiro, era Provincial do Brasil. (SERAFIM LEITE, 1938-1949,
t. VII, p. 34-35)
Fazendo-se uma tentativa de perceber criticamente o que apenas Serafim Leite
descreve, o leitor pensará que este visitador, conquistando a antipatia dos padres da Colônia,
além de não dar mostras de se importar com a referida lei, pois oficialmente estava amparado
por autoridades políticas, se impôs na forma de mandatário autoritário do Padre Geral, em
razão de não ter a confiança dos padres, subalternos. O visitador ordenou, assim, que os
padres saldassem dívidas que tinham com Portugal e Japão. Contudo, a medida mais forte a
ser seguida competia à área escolar, isto é, a de que não se aceitassem mais alunos de origem
da Colônia que quisessem se tornar jesuítas, do que se conclui que o ensino superior viu-se
sem alunos, de 1662 a 1664. De Magistris apenas repetia o que havia feito na Índia, enquanto
política de incremento à proveniência de estrangeiros nas colônias portuguesas. A desculpa
era a de que os jesuítas da Colônia estavam formando muitos jesuítas locais (SERAFIM
LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 236-241).
Quem pretendia, então, ser jesuíta neste período não foi possível, nem viável foi a
permanência dos já jesuítas de naturalidade colonial em atividades de liderança e de alta
administração da Companhia de Jesus da Colônia, considerados, por este visitador,
desprovidos de virtude religiosa para assumir tal responsabilidade. Continuando a descrição
do historiador dos jesuítas do Brasil, os padres foram afastados para ocupações de ordem mais
prática, sendo distribuídos dispersivamente pelas aldeias e casas de ensino, provavelmente,
devido à insegurança da respectiva autoridade. Com todas essas ordenações, o que Jacinto de
Magistris na verdade realizou foi o chamamento de padres de Portugal para exercerem os
trabalhos que eram anteriormente realizados pelos padres da Colônia. Dava-se o estímulo para
que o Colégio da Bahia formasse jesuítas ainda alunos que viessem de Portugal para cursarem
o noviciado, em substituição ao excessivo número de alunos da Colônia, considerado pelo
Padre Geral (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 33-43, 51, 69, 87, 239-241).
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Há indicações de que os objetivos de De Magistris se efetivaram porque deram início a
uma reação contrária, através de uma representação escrita pela Câmara de Vereadores da
Bahia em 1665 ao rei de Portugal, em atitude de reclamação quanto ao preconceito de se
educar padres coloniais. Os jesuítas locais tinham o seu argumento respaldado na ideia de
liberdade, ocasionado em consequência da desvinculação do trono português do de Castela.
Esta liberdade levava à defesa daquilo que era inerente ao local, contra tudo o que se traduzia
num certo estrangeirismo. Da parte dos padres jesuítas, este assunto resolveu-se com o mesmo
entusiasmo, numa ação que demonstrou que eram capazes de decidir por si, o futuro do ensino
e da formação dos padres da Colônia, por meio da deposição do visitador, sem a devida
licença de quaisquer autoridades externas. Quanto a esta liberdade dos padres do Brasil,
Serafim Leite sugere que ela tenha se dado em função das ideias em vigor, como se supôs, de
libertação do trono português em relação ao espanhol. Sendo assim, ele retira dos jesuítas a
responsabilidade das ideias que estavam tendo (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 4454).
Seis padres, tanto de naturalidade da Colônia, como de Portugal, somados ao
provincial que era estrangeiro, depuseram o Padre Visitador de Magistris e, tiveram como
consequência, uma tremenda repreensão do Padre Geral em 1667, quando cinco deles foram
impedidos, por causa de seus atos tidos como insubmissos, de serem padres de decisões e de
governança da Companhia de Jesus. Aos demais, como não foram encontrados no momento
da notícia, não se viram privados do respectivo chamamento. Ainda, o Padre Geral afirmou
ter aceitado a admissão de nascidos na Colônia ao sacerdócio e, de que não retirou os padres
da procedência de altos cargos. Com tudo isso, o resultado dos acontecimentos foi positivo
em relação aos argumentos dos padres coloniais, pois o Padre Geral teve de abafar a opinião
pública de manifestantes da população. Para a desmoralização do Padre Geral e do Padre
Visitador contribuiu a irregularidade que eles cometeram no tratamento dado à dívida que a
Companhia de Jesus da Colônia e de Portugal tinha com o Japão, isto é, o Brasil teria de arcar
também com a parte que competia a Portugal pagar do Colégio de Santo Antão de Lisboa. No
que se referiu a esta atitude dos jesuítas de deposição do Padre Visitador, Serafim Leite se
manteve bastante narrativo, sem quaisquer indícios de posicionamento. No entanto, ao não
defender o Padre Visitador, e nem a justificativa do Padre Geral, pode-se concluir que
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Serafim Leite, de certa forma, vai ao encontro do que os jesuítas faziam, ou seja, de deposição
de um Padre Visitador estrangeiro (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 41-59).
A exigência legal de que o ocupante do posto de visitador deveria ser um português de
Portugal ou da Colônia cumpriu-se quando Antônio Vieira dispôs-se a ser visitador da
Colônia, depois de ser quase obrigado a exilar-se na Índia Oriental pela pena imposta a ele
pela Inquisição. Ele terminou não indo para onde a Inquisição pretendia, devido a
complicações de sua saúde e, permaneceu em Portugal. Cumpridas as exigências inquisidoras,
em 1688 este padre vem para a Colônia com a mais alta ocupação, ao invés de se tornar
consultor da Rainha da Suécia, a convite dela. Ao se posicionar no que se referia à hierarquia
de funções da Companhia de Jesus relacionada com a naturalidade dos padres, fez com que se
cumprissem as normas do rei de Portugal. Elas atribuíam para a ocupação dos cargos de
visitador e provincial a preferência dos padres serem originalmente de Portugal ou da
Colônia. Entretanto, o ordenamento régio tratou de não se esquecer de constar em suas
cláusulas o estabelecimento de uma quantidade inferior de padres nascidos na Colônia em
relação aos portugueses. Diante desta norma, Vieira sendo simpático a ela, cumpriu-a e
demandou a vinda de padres da Metrópole. Como parte do tipo de exposição de Serafim
Leite, ele pareceu se mostrar favorável à deposição do Visitador estrangeiro, mas não à lei que
limitava a admissão de nascidos no Brasil (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 73-78,
96).
Compreendi que o plano de se trazer cada vez mais padres de Portugal não era
consensual no interior da Companhia de Jesus, devido ao fato de que nem todos os padres
pensavam como Vieira. Alexandre Gusmão foi o expoente máximo da opinião inversa, o que
elucidou o entendimento de que os padres entre si não formavam um acordo. Enquanto Vieira
defendia a existência de padres portugueses na Colônia e que tivessem o domínio das línguas
angolana e tupi, Alexandre Gusmão, como fundador do Seminário de Belém da Cachoeira,
mostrava-se afeito à constituição de um grupo de padres. Ele acreditava que a instituição por
ele criada teria condições de formar um número razoável de padres, para que a Colônia não
dependesse de padres de Portugal. Esta autonomia em relação a Portugal não teve sustentação
porque era próprio da Colônia ter que se submeter ao rei português. É desta maneira que
Serafim Leite colocou esta dependência, como algo natural da Colônia em relação à
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Metrópole. Tratando-se mais do parecer de Gusmão, ele, opostamente a Vieira, não
visualizava como de máxima importância o ensino das línguas das colônias na formação dos
padres, por ter vivido sempre no interior da instituição escolar, não sentindo a sua necessidade
(SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 73-78, 96).
Mostrando-se ao lado de Vieira, Serafim Leite escreve que até 1691, ano em que
Vieira deixou de ocupar a função de Visitador, o direcionamento quanto à limitação de
nascidos na Colônia ao sacerdócio continuou de maneira eficaz. Evidencio que a posição de
Vieira foi característica, quer dizer, ao mesmo tempo em que decidia sobre a vida dos
pretendidos ao sacerdócio que fossem da Colônia, não deixou escapar os estrangeiros. Ele
tinha a clareza de que somente garantir, a predominância de padres portugueses era uma
atitude cuidadosa em face da ameaça da Espanha de invadir os territórios do Brasil. A dada
preocupação recebeu a sua atenção a partir de 1677, em justificativa da tentativa de se
colonizar o Rio da Prata e o Amazonas com a ajuda de padres da confiança do rei de Portugal,
porque estas regiões estavam servindo de moradia para os castelhanos (SERAFIM LEITE,
1938-1949, t. VII, p. 85, 93-109).
De acordo com o estudioso da Companhia de Jesus no Brasil, no ano posterior a que
Vieira deixou de decidir sobre a escolha dos destinos do sacerdócio na Colônia, o provincial
colocou à Companhia de Jesus de Portugal, a necessidade de padres portugueses no Estado do
Maranhão, sempre mais escassos do que no restante do Brasil; que o circuito das destinações
desses padres se fizesse apenas entre Brasil e Portugal e, que para as outras colônias
portuguesas se enviassem missionários europeus, que então não viriam para a Colônia. O
resultado disso foi desvantajoso para os padres que viviam há algum tempo na Colônia, em
ocasião dos padres italianos e da Europa Central, em número menor do que o esperado, terem
se acomodado nos colégios, procurando torná-los semelhantes às escolas europeias,
principalmente, em matéria de hábitos e costumes (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p.
85, 93-109).
A situação apontada por Serafim Leite sobrecarregou os jesuítas da Colônia no
cuidado das aldeias, ficando assim a distribuição deles e dos padres estrangeiros:
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No grupo do Brasil sucedeu que, tirando alguns poucos estrangeiros,
que aceitaram de coração alegre a vida anónima das Aldeias, os mais
tendiam à vida dos Colégios, com a ideia implícita de que o Brasil do
século XVII já não era país de Missões. Sorriam-lhes mais os cargos
de governo e de ensino ou as missões rurais, pelas vilas ao redor dos
Colégios: critério prematuro no século XVII, com o Brasil ainda cheio
de Índios, e que levava como consequência, dada a existência efectiva
das Aldeias, que o peso da catequese recaísse quase todo sobre os
Portugueses (filhos do Brasil e de Portugal). E assim insensivelmente
começaram a coexistir duas categorias de Jesuítas do Brasil, os dos
Colégios e os das Aldeias; e nas disputas sobre a liberdade dos Índios
notava-se que a não favoreciam tanto com os outros Padres, os que
nunca tinham visto Indios, nem aprendido a sua língua (SERAFIM
LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 101).
A divisão entre os padres estrangeiros e os coloniais era mais acentuada por todo o
Brasil do que no Maranhão, isto é, neste a distribuição dos jesuítas era homogênea, conforme
a observação que faço de uma estatística apresentada por Serafim Leite. Mas, tanto no
Maranhão como nas demais partes do Brasil, as funções dos padres eram díspares. O texto
transcrito oportuniza a ideia de que as funções nobres de ensinar eram reservadas a muitos
estrangeiros, como parte daquela proposta de trazê-los para tanto, a fim de dirigirem o ensino,
sendo que a prática árdua da catequese incumbia-se aos padres da Colônia, sem a completa
formação em Teologia. A preservação dos estrangeiros em relação ao que era particular da
Colônia, ou seja, os índios, fazia-os agir do mesmo jeito de quando viviam na Europa.
A distinção dos tipos de trabalho para os padres estrangeiros e para os da Colônia não
existiu com tanto ímpeto na Missão do Maranhão e Grão-Pará, como ocorreu no Brasil,
porque lá a colonização e a presença dos religiosos estavam ainda numa etapa inicial, na
metade do século XVII, enquanto que no Brasil os jesuítas haviam criado as suas bases. Como
a Missão do Maranhão e do Pará não tinha quase padres da Colônia, os de origem estrangeira
foram muito bem-vindos. Desta descrição de Serafim Leite concluo que, por isso, é que o
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protesto no Brasil, contra os padres estrangeiros de tomada de ocupação, não se manifestou no
Maranhão e Grão-Pará (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 242-245).
Tenho a expor da Obra de Serafim Leite, que esta Missão do Maranhão e Grão-Pará
buscou uma formação teológica razoável, e para tanto, os padres pretenderam utilizar uma lei
de 1574 que previa o envio de alunos jesuítas para terminarem os estudos em Évora ou em
Coimbra, mas de fato ninguém se encaminhou neste sentido. O que se fez valer consistiu na
chegada de alguns padres estrangeiros, provenientes daquela leva que chegou à Colônia no
século XVII. Mas o número de padres não foi suficiente, através da comprovação de que
alunos pretendentes a jesuítas, do Maranhão, rumaram para os colégios da Companhia de
Jesus de Portugal na esperança de receberem instrução gratuitamente, considerando-se que a
Missão do Maranhão e do Pará não tinha meios financeiros para formá-los na Colônia.
Desprezavam-na a própria Ordem Jesuítica e o Padre Geral, segundo Serafim Leite, na
avaliação que faziam do ambiente maranhense e paraense, porque lá os padres possuíam uma
pequena lavoura e criação de gados, não dando conta de sustentar a obra missionária. Porém,
o motivo mais forte de suas desconsiderações foi de fundo moral. Não sendo as áreas
habitadas, pela falta de desenvolvimento econômico e, ficando as terras e os aldeamentos
distantes longe uns dos outros, os padres não se agrupavam para o fortalecimento espiritual
contra as tentações daquilo que chamavam de "mundo terreno". Isto, os jesuítas de Portugal
não desejavam para os alunos da Colônia que iam estudar lá. A Companhia de Jesus de
Portugal argumentou que, além disso, esses alunos não levavam os estudos a sério, pois
gastavam muito para viverem por conta da mencionada missão e, se alongavam anos a fio nos
estudos. A forma de bloqueá-los foi bastante prática. Simplesmente, sabendo Portugal que o
Maranhão e o Pará não podiam manter os alunos sob a dependência da Metrópole, esta lhes
impôs o ônus financeiro do encargo dos alunos, o que inviabilizou a formação de um quadro
sacerdotal para a região missionária (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 242-245).
Com um mínimo de padres estrangeiros e da Colônia, pela própria condição escassa de
padres no Maranhão e Grão-Pará e, dada a situação financeira da região, o caminho viável foi
a criação de um seminário em 1736 destinado à formação de catequistas, visando atender a
um maior número de índios e colonos com a ministração da doutrina da Companhia de Jesus
(SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 244-247).
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Apesar de Serafim Leite não clarificar, encontrei nas entrelinhas do que ele escreve o
seguinte: a iniciativa conjunta do rei de Portugal e da Companhia de Jesus portuguesa, de
investirem no envio de seus padres ou que proviessem da Europa não foi bem conduzida dada
a pequena quantia dos mesmos na Colônia, tanto no Brasil como no Maranhão e Grão-Pará.
Talvez a intenção das autoridades fosse realmente a de produzir um alarde, iludindo os padres
coloniais só para não formarem um grande número de sacerdotes qualificados. Serafim Leite
dá alguns indicadores sobre a ilusão de que estou tratando, ao destacar a origem dos poucos
padres estrangeiros, numa longa passagem de sua Obra:
Sobre a presença de Jesuítas estrangeiros no Brasil a estatística mostra
que o seu contingente não foi abastado. No primeiro período (século
XVI) era sobretudo de espanhóis, [...]
Além dos espanhóis ainda no século XVI chegou ao Brasil algum
inglês ou irlandês, que a perseguição religiosa na Inglaterra impedia
de voltar à pátria. Também chegou no século XVI algum italiano
como primícias de outros (incluindo sicilianos) que vieram a constituir
depois a mais valiosa contribuição de Jesuítas estrangeiros no Brasil
durante o século XVII. Com eles alguns Padres da Europa Central e
das Provinciais belgas (Flandro-Belga e Galo-Belga) entre os quais se
conta algum francês.
No século XVIII sobressaem dois pequenos grupos: o britânico:
algum filho da Irlanda Católica e vários da Inglaterra e Escócia,
protestantes, que passando pelo Brasil se converteram ao Catolicismo;
e o grupo imperial, oriundo dos países da Europa Central, pedidos
pela Rainha de Portugal D. Maria Ana de Áustria, a rogos das
Provínciais do Brasil e dos Vice-Provinciais do Maranhão, [...]
(SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 246-247).
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Na época foi bem provável que os padres tenham se preocupado em comparar,
aproximadamente, o seu contingente com a existência de jesuítas estrangeiros:
As percentagens dos Jesuítas estrangeiros são: na Provincia do Brasil,
média geral, 6,30 por cento, média final 4,20 por cento; na ViceProvincia do Maranhão e Pará, média geral 9,60 por cento, final 8,30
por cento (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 247).
A escolaridade seletiva dos colégios jesuíticos devia-se, portanto, às normas
pedagógicas rígidas da Companhia de Jesus, que eram exercidas pelos jesuítas portugueses e
reforçadas pelos padres estrangeiros. A falta de padres para o exercício do sacerdócio pode
encontrar explicações nesta composição de normas e estrangeirismo, incidindo sobre o ensino
jesuítico. É, por isso, que o contexto educacional da Colônia imperado no século XVII, pelos
colégios de maioria jesuítica, mostrou evidentemente a sua face, precipuamente, com a
expansão aparentemente numérica de seus institutos. Pode-se assistir a um forte mecanismo
interno dos próprios jesuítas da Colônia, de seletividade educacional, bem como a iniciativa,
na mesma direção, da parte dos políticos e religiosos de Portugal, mediante, a limitação dos
nascidos na Colônia ao sacerdócio. A promulgada vinda de padres estrangeiros não se
concretizou, como mostra a última citação, pois foi útil apenas para fazer com que os padres
não se preocupassem com a formação quantitativa de sacerdotes. Em conclusão, a
seletividade educacional conseguiu ser mantida pelo rei português e pela Companhia de Jesus
de Portugal através da promessa, jamais cumprida, mas acreditada pelos padres da Colônia, de
virem jesuítas.
Referências Bibliográficas
SERAFIM LEITE, S. I. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa & Rio de Janeiro:
Livraria Portugália & Civilização Brasileira, tomos I-X, 1938-1949.
Referências Complementares
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O ENSINO SUPERIOR NO BRASIL-COLÔNIA E A
COMPANHIA DE JESUS: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Rachel Silveira Wrege
Universidade Estadual Paulista – UNESP – FCT
[email protected]
Os cursos superiores de Filosofia e Teologia no Brasil-Colônia foram mais duradouros
do que a Faculdade de Matemática. Na Colônia, sendo originados desde o século XVI com
início tímido, nos séculos seguintes estes cursos vieram a contribuir, de modo relativo, para a
formação de um quadro de pessoal formado para servir aos propósitos coloniais. Desse modo,
o ensino superior estava estritamente relacionado à expansão do ensino de certa forma, quer
dizer, não foi exclusivamente o ensino elementar e intermediário que se difundiram. Mas,
nem todos os alunos que haviam cursado as Humanidades ou Latinidade (intermediário)
contavam com a chance de assistir às aulas de Filosofia, pois uma pré-seleção era feita tendo
em vista a escolha de pessoas consideradas aptas. A análise que faço do estilo seletivo da
educação escolar jesuítica é, fundamentalmente, oposta à que Serafim Leite faz, como
historiador da Companhia de Jesus no Brasil. Este autor conduz o pensamento, que dispõe
acerca do assunto, de forma a dar a entender ao leitor que a seleção dos candidatos ao ensino
superior era pertinente, pois representava rigor. O leitor presenciará adiante o
desmembramento desta ideia veiculada na obra de Serafim Leite, através de algumas
informações que ele oferece. Ainda tenho a observar que o conteúdo deste item se encontra
muito espalhado nos escritos do respectivo historiador (SERAFIM LEITE, 1938-1949, tomo
VII, p. 149-150).
Dou início à exposição, chamando a atenção para o fato de ser muito importante
diferenciar os alunos que já tinham sido alunos do curso de Humanidades nos próprios
colégios jesuíticos dos que tinham feito esta modalidade em outra instituição, como a dos
franciscanos e carmelitas. Quanto aos alunos externos e internos dos colégios da Companhia
de Jesus, pode-se dizer que era mais fácil para eles conseguir uma vaga no curso de Filosofia,
pois já tinham feito antes um ano de Lógica, que equivalia ao primeiro ano de faculdade e, só
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depois, prestavam a prova que lhes dava ou não o privilégio do prosseguimento dos estudos
(SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 175-180).
De acordo com o Padre Leite a partir do início do século XVIII foi possível existirem
pretendentes que não tinham convivido anteriormente no ambiente estudantil dos colégios da
Companhia de Jesus, pois o curso de Humanidades acabou por ser absolvido sob a forma de
aulas particulares, dadas por religiosos seculares, como por exemplo, ex-padres de alguma
outra ordem não jesuítica, sendo que também os próprios religiosos supriam este ensino para
as suas ordens religiosas. Estas aulas particulares, com o objetivo de formação geral ou
especificamente religiosa, existiam paralelamente aos colégios jesuíticos, não retirando deles
o alunado porque a demanda era intensa. Levemente, Serafim Leite opina a respeito das aulas
de Humanidades terem se dado também fora da instituição escolar dos jesuítas. Ele me deu a
impressão de não reprovar este esquema particular nos locais onde faltavam os padres
jesuítas; os carmelitas e os franciscanos abriram esta modalidade de ensino, com o apoio do
subsídio do rei de Portugal. Mas, o que interessa depreender da existência de várias
proveniências do ensino de Humanidades, sem retirar dele a nítida preponderância dos
colégios da Companhia de Jesus, é que os alunos formados nessas instituições paralelas
recebiam um tratamento mais rigoroso ao quererem cursar a Filosofia sob a orientação dos
padres jesuítas. Podemos concluir que por causa do ensino superior só existir nos colégios da
Companhia de Jesus, isto tornava ainda mais a educação escolar jesuítica seletiva, pois a
procura era elevada em relação à quantidade oferecida deste grau de ensino. Os alunos tinham
de enfrentar uma avaliação que não existia para os que tinham se enquadrado anteriormente
nos cursos elementar e de Humanidades; este exame qualificava-se como de “competência ou
aptidão” e tinha a sua elaboração conforme as ordenações dos estatutos do Colégio das Artes
de Coimbra, correspondendo a este padrão de exigência, que estava além das condições
apresentadas pela maioria dos candidatos. Vale lembrar que informações deste tipo não são
omitidas por Serafim Leite, porém, se compõem de outra maneira, conforme a interpretação
do historiador (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 149-150).
Serafim Leite escreve que os alunos que passavam na prova de competência adquiriam
o direito de frequentar o primeiro ano de Filosofia, que incidia sobre o conteúdo de Lógica e
assim, eles se igualavam institucionalmente aos outros alunos. Neste caso, a palavra “direito"
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estava de acordo com o que o escritor da Companhia de Jesus no Brasil entendia por acesso à
educação superior (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 149-150):
No século XVIII, quando já eram mais as escolas particulares de
Latim, se os alunos delas desejavam frequentar o curso de Filosofia,
público, prestavam no Colégio exame de competência antes de serem
admitidos, conforme aos Estatutos do Colégio das Artes, de Coimbra:
que era a Lei do Brasil (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 150).
Feito o primeiro ano da Lógica, tanto os alunos de fora que tinham passado por um
processo de seleção, como os que não tinham como exigência tal requisito, eram submetidos a
um exame com uma única chance, sem qualquer outra oportunidade de passar. Chamo de
cinismo dos padres jesuítas o fato de que aos reprovados era "permitido" fazerem novamente
a prova, mas não para serem reconsiderados e admitidos, e sim para terem a confirmação de
que não seriam aproveitados como alunos do ensino superior. O trecho seguinte de Serafim
Leite demonstra textualmente esta realidade (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 175180):
Ano de Lógica: Todos o devem estudar; o seu exame só se fará uma
vez, isto é, não se repete; e só serão admitidos a novo exame os rudes,
mas para se convencerem da sua inaptidão para estudos maiores
(SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 175).
Os alunos aprovados para o curso de Filosofia estudavam, principalmente, os livros de
São Tomás de Aquino para, através desta leitura, compreenderem Aristóteles. Com isto estou
querendo referendar que o filósofo antigo não era lido em sua forma clássica e pura, pelo
contrário, delineava-se um cerceamento para o seu pensar. Na verdade, os alunos tinham
acesso apenas ao material de São Tomás. Não bastando apenas a leitura dos textos de São
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Tomás, os leitores do curso de Filosofia viam-se cercados pelo conteúdo apresentado nos
livros dos professores do Colégio das Artes de Coimbra e da Universidade de Évora. Quanto a
Coimbra, o livro mais significativo era o "Cursus Conimbricensis", fonte de comentários
acerca do mesmo Aristóteles. Dos autores destacados achavam-se os portugueses Baltasar
Teles em "Summa Universae Philosophiae"; Arriaga, da Universidade de Praga, em seu
escrito "Cursus Philosophicus" e, o padre Antônio Vieira, autor do trabalho "Curso de
Filosofia". Em termos genéricos um ou outro escritor europeu entrava na listagem dos livros
filosóficos que deviam ser foco de atenção dos alunos e professores. A confluência, portanto,
sobretudo, de autores europeus e portugueses e, em menor quantidade, de um jesuíta marcado
pela cultura colonial, reunia o conjunto do que se constituía em matéria de estudo (SERAFIM
LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 213-223).
Nem todos os alunos conseguiam se formar em Filosofia, por causa da seletividade
também existente no decorrer do curso. Faço ideia de que os que se formavam encontravamse marcados pelo seu histórico escolar enquanto medida pare conseguir uma vaga nos dois
últimos anos de Teologia, que era a Teologia Especulativa, porque Serafim Leite descreve que
o aluno de rendimento médio não tinha a possibilidade de mudar de atitude e vir a ser exímio
nesse Curso de Teologia, pois o seu desempenho no curso de Filosofia e nos dois primeiros
anos da Teologia valia-lhe pontos contrários ou a favor para a permanência nos colégios
jesuíticos. Assim, da mesma maneira que os alunos não eram barrados de início no curso de
Filosofia, salvo para este curso os alunos de fora como se pode ver, na Teologia os jesuítas
faziam uso do mesmo procedimento, ou seja, aqueles que eram nomeados como regulares ou
medianos no curso de Filosofia prosseguiam cursando a Teologia Moral e, se continuassem
estudando como tal e não melhorassem daí eram impedidos de realizar a complementação do
curso de Teologia. Entendo que a seletividade educacional nesta etapa da escolaridade dos
alunos era o marco divisório entre aqueles que possuíam um rendimento mediano e, os alunos
considerados exemplares, chamados de "insignes" pelos padres jesuítas. Esta separação
significava que tanto alunos internos como externos com qualificativos menos plausíveis,
estudavam uma Teologia prática que tratava de problemas cotidianos à luz de resoluções
teológicas existentes no plano dos costumes morais próprios da economia colonial. Por isso,
este curso de Teologia Moral denominava-se também de "Casos de Consciência" e
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correspondia à formação breve dos alunos em Teologia (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t.
VII, p. 175-180).
Acrescento ainda que os alunos internos de rendimento mediano e que, por isso, não
participavam das conversas teológicas que o curso de Teologia Dogmática suscitava, restavalhes a nomeação para o cargo de coadjutor espiritual que era o mesmo que casuísta, professo,
teólogo ou irmão. A eles competia o exercício de cuidados práticos da Ordem Jesuítica e de
promover a correção de valores tidos como nocivos à cristianização dos colonos, índios e
negros. Portanto, esses teólogos atuavam estritamente naquilo para o qual se formavam e,
ainda, em casos difíceis nem precisavam utilizar os seus próprios recursos, dada a sua
formação incompleta, pois os padres das Universidades de Coimbra e Évora colocavam-se a
par dos acontecimentos e, enviavam, prontamente, o modo de solucionar as questões. Vemos
aí a interferência da intelectualidade portuguesa num trato teórico das questões morais da
Colônia. Por conta da praticidade deste tipo de Teologia, ela existia enquanto curso apenas
nos colégios da Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco; digo que a forma popular da Teologia
Moral estava na sua difusão em termos do atingimento da população local, vilas, casas e nos
colégios, quer dizer, em qualquer instituição jesuítica educacional os "Casos de Consciência"
eram marcantes sob a forma de palestras, tanto é que ocorriam semanalmente, e eram
proferidas por um irmão especializado. A popularidade da Teologia Moral era tamanha que os
religiosos de outras ordens tinham de receber noções dela no Colégio da Bahia, segundo
ordens do arcebispo. Os colégios dispunham de material escrito por padres portugueses,
europeus e da Colônia, onde se encontravam as diretrizes e, acima de tudo, casos de feliz
resolução. Era uma espécie de guia prático de Teologia. Também, nas casas e nas aldeias os
padres não deixavam faltar livros a respeito (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 175187).
Em função do caráter moralizador do curso de Casos de Consciência, os alunos
externos tinham a oportunidade de se formar neste curso breve e prático de Teologia, que
embora não lhes servisse diretamente porque não seriam teólogos de envergadura exercia
sobre eles a função social de estabelecer um rígido padrão de comportamento moral,
veiculado quando ocupavam cargos no governo (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p.
175-180).
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Serafim Leite sugere que a Teologia Moral era levada a sério pela Companhia de
Jesus, em razão da importância que tinha claramente percebida por ter se associado ao Direito
Canônico. Este Direito era responsável pela elaboração das leis de regulação entre a igreja, o
governo e a população. Na época, como não havia a desvinculação destas três instâncias, o
que a Companhia de Jesus produzia vinha a efeito. O exemplo mais típico do que estou
apresentando foi a difícil situação em que se colocavam os índios, escravizados pelos colonos,
e “defendidos” contra isso pelos teólogos e pela lei, feita exclusivamente pelos jesuítas, com a
aprovação do rei de Portugal. Ainda outro exemplo cabe colocar através do Direito Canônico
que eram as constantes cobranças ilegais de impostos que chegavam aos portões das
instituições jesuíticas e, eram bloqueadas pelos padres coadjutores espirituais, encarregados
de provar a sua isenção (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 183-184).
A seletividade educacional, nas circunstâncias da época não era motivo de
questionamentos no interior da Companhia de Jesus ou pela exposição de Serafim Leite a este
respeito. Na Obra do autor ela é descrita como algo normal sobre a vida dos alunos, não
tomando para si o ônus do pouco tempo de aprendizado da maioria que compunha os graus de
ensino elementar, Humanidades e Teologia Moral, que era obstaculizada de se manter no
curso de Teologia. Parece que se tinha a visão de ser a culpa só dos alunos por não terem se
dedicado o quanto deveriam. Esta afirmação fica revestida de maior firmeza e gravidade ao se
pensar que o sistema educacional jesuítico era seletivo para os próprios jesuítas, parecendo a
olhos vistos uma contradição. Vejamos como se dava a seletividade para a frequência ao
curso de Teologia Especulativa tanto para os alunos internos, como para os externos:
Dos estudos internos da Companhia, a Teologia Especulativa ou
Dogmática é o mais alto curso. Não eram admitidos a ele todos os
estudantes. Havia uma como selecção natural ou eliminatória, a
começar na lógica (Menor e Maior), expressa para o Brasil em Carta
de “2 de Setembro de 1600, o P. Geral Aquaviva ao Provincial Pero
Rodrigues: Teologia: Os medianos estudam-na só até ao 2º ano
(Curso Breve); os de talento insigne, também o 3º. e 4º' ano (Curso
Longo)” (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 175).
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A diferenciação na ocupação de cargos da Companhia de Jesus fazia valer a hierarquia
dos graus de estudo para os componentes da Ordem, que se traduzia para equivalente
hierarquia de funções porque nem todos os jesuítas podiam se realizar em altos cargos de
comando, pois não havia número suficiente para o seu aproveitamento. Chego a esta
conclusão ao observar na Obra de Serafim Leite que os alunos da Teologia Dogmática
representavam o grupo dos poucos que se aproximavam de documentos importantes da
Companhia de Jesus, de seus dogmas e questões teológicas complexas. Ao contrário do
estudo de problemáticas teológicas de peso no curso de Dogmas, tanto os alunos deste como
os de Moral, enfim, todos os alunos de Teologia eram obrigados a receber aulas sobre a
História da Igreja, traduzidas em assuntos como os concílios, vida de padres importantes,
história sacra e profana; sermões de autoria do padre Vieira deviam ser estudados com muita
atenção porque através deles os alunos tinham a interpretação considerada correta acerca do
Antigo e Novo Testamento. Deste autor também era lido o “Tratado de Cristologia e de
Eclesia” em latim. Nesta parte do curso de Teologia é interessante mencionar que Serafim
Leite faz referência de que este autor que vivia na Colônia era o mais respeitado e, os seus
escritos eram mais utilizados do que escritores como Bayardi, Bonucci, Estancel, Faletto e
Inácio Rodrigues (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 169-189).
O procedimento para a escolha dos candidatos valia para os alunos externos também,
com a diferença de que eles cursavam o mais alto grau de ensino nos colégios da Companhia
de Jesus, em separado. Este tipo de informação do historiador dos jesuítas no Brasil é
constante em seu texto, quer dizer, ele sempre está preocupado em descrever a maneira pela
qual o ensino era oferecido. A justificativa pensada pelo historiador para esta separação
encontrava-se nos itens destinados a este aluno diverso. Penso que até nisso os jesuítas eram
reservados e exigentes, pois a divisão de classes entre internos e externos devia-se ao melhor
preparo que os futuros jesuítas precisavam para o exercício do sacerdócio e da docência neste
mesmo ensino superior, enquanto que os alunos externos recebiam uma formação não tão
acurada, em função de se tornarem depois governantes, mais preparados do que os alunos
medianos. No entanto, eles estudavam Teologia para atuarem praticamente e, daí se explica a
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não preocupação excessiva com a formação dos externos. O tempo de formação em Teologia
Dogmática era igual para ambos, ou seja, dois anos, só que para os alunos internos o curso era
intensivo, com mais leituras e cobranças. Tudo porque esses alunos tinham de prestar um
exame, encomendado diretamente para a ministração de aulas no ensino superior. É o que
Serafim Leite chamou de exame "ad gradum", que os alunos externos não prestavam, por não
serem jesuítas e não poderem, portanto, ser professores jesuítas (SERAFIM LEITE, 19381949, t. VII, p. 175-176).
O Curso de Teologia Especulativa ou Dogmática algum tempo foi
duplo: um público para os estudantes de fora, outro particular para os
estudantes de casa, quer para mais intensidade dos estudos, porque era
a escola dos futuros mestres e a habilitação requerida para o exame
final e mais alto grau da Companhia, que era o ad gradum
(SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 176).
Ao fazer uma relação do conteúdo curricular, Serafim Leite expôs que o curso de
Especulação estava planejado para seguir com leituras até o 4º ano, sobretudo, de São Tomás,
seguidas de escritos de Francisco Suárez e Molina, como autores internacionais, e incluía-se o
"Tratado de Teologia" do padre. Antônio Vieira. Este material permanecia, em parte, nas
prateleiras das bibliotecas dos colégios da Bahia, Maranhão e Rio de Janeiro, locais que
possuíam este curso, com a justificativa de que os exímios alunos não chegavam a fazer o 4º
ano de Teologia por causa da premência de atuarem na catequese junto aos índios, sem o que
estes estariam entregues à própria sorte. Defendendo tal justificativa, de forma incompleta,
Serafim Leite descreve que havia uma reação contrária do Padre Geral quanto à falta de
pessoal formado, porque ele não estava em contato com as dificuldades enfrentadas pela
Companhia de Jesus atuando em uma Colônia. Nesse sentido, percebi contradições: por um
lado a Companhia de Jesus era desejosa de formar qualificadamente uns poucos jesuítas, por
outro, este impulso não se dava por satisfeito. Os ideais jesuíticos se tornavam incoerentes
com a realidade escassa da catequese que precisava de catequizadores. O fato dos jesuítas
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viverem em um sistema econômico colonial, se encarregava de tornar o ensino seletivo e, ao
se pensar que já havia uma seletividade interna nos colégios, conclui-se que os alunos que se
formavam em Teologia eram pouquíssimos (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 175177).
Para os alunos internos, esta política de formação precária comparada à existente na
Europa, parecia ser condizente com os propósitos que o rei de Portugal intentava implantar na
Colônia, ou seja, o de não só dominar politicamente o Brasil, como também o de fazer o
mesmo no interior das atividades educacionais e culturais, tendo por um de seus efeitos a não
formação dos alunos no mais alto Curso da Companhia de Jesus. Esta não finalização, de
certa forma, ocasionava, ainda que não verbalmente, uma discrepância entre a realidade da
Colônia e, daí haver uma exigência rápida de catequistas e, o padrão estabelecido pelos padres
de Roma quanto à qualificação dos jesuítas para o ensino superior:
Pela penúria de Padres, deixava-se às vezes de fazer 4º ano de
Teologia, mas as ordens de Roma são sempre apertadas e insistem em
que o quadriênio de Teologia deve-se ter na íntegra, resolvendo-se a
dificuldade, de qualquer maneira, menos à custa dos estudos
(SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 176).
Assim sendo, a solução encontrada por Portugal para suprir a falta de padres não foi o
investimento na formação em massa de padres com o curso completo de Teologia. Com um
raciocínio colonizador e, por conseguinte, dominador e próprio de uma Metrópole em relação
à Colônia, o jeito foi enviar padres intelectualmente completos, tanto de Portugal, como de
outros países afeitos ao pensamento dominante, que por sua vez reproduzia-se, gerando um
crivo ainda mais crescente no ensino superior, ao seguir a lógica da extrema seletividade ao
longo do processo educacional (SERAFIM LEITE, 1938-1949, t. VII, p. 236-241).
Referências Bibliográficas
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PERSCRUTANDO CAMINHOS DA HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA EM
(SOBRE) GOIÁS A PARTIR DO CONCEITO DE “DECADÊNCIA”
Rogério Chaves da Silva248
O interesse por investigar e dar sentido, através de uma narrativa histórica, ao passado
de uma região que, espacialmente, foi denominada de Goiás remonta o século XIX e teve
naquela época a figura do cônego Silva e Souza como seu primeiro grande expoente.
Afamando como “fundação” da história de Goiás a partida da expedição de Bartolomeu
Bueno da Silva, em 1722, ou propriamente o noticioso achado de minas ouro no sertão dos
Guayaze em 1725, a historiografia que se investiu da tarefa de narrar “o passado goiano”
elaborou diversos relatos sobre os mais variados fenômenos pretéritos ocorridos no território
de Goiás. Enredado pelas penas de cronistas, viajantes, memorialistas, estudiosos,
historiadores e outros interessados em produzir narrativas sobre a experiência histórica, o
passado da região foi contado de acordo com os próprios modos de se produzir história em
suas respectivas épocas, a partir de determinados cânones escriturários. No oitocentos, Luis
Antônio da Silva e Souza249, Raimundo José da Cunha Mattos250 e José M. P. de Alencastre251
constituíram numa espécie de “trindade historiográfica”, que ficou notabilizada por registrar,
cada qual à sua forma, os fenômenos históricos “dignos” de serem conhecidos pelas gerações
posteriores. Além desses “historiadores-fonte” citados, não só passado, mas, sobretudo, a
realidade goiana do século XIX foi intensamenterelatada por viajantes e cientistas europeus
248
Doutorando em História UFG/Bolsista FAPEG
Luiz A. Silva e Souza, Luiz A. “Memória sobre o descobrimento, governo, população e cousas mais notáveis
da capitania de Goyaz”,Revista do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo
V, vol. 12, 2ª série, 1849, p.429-510.
250
Raymundo J. da Cunha Mattos, “Chorographia histórica da Provincia de Goyaz”,Revista do Instituto Histórico
e Etnográfico Brasileiro, tomo XXXVII, 1ª parte, 1874, p. 213-398, e tomo XXXVIII, 1ª parte, 1875, p. 05-150.
251
José Martins P. de Alencastre, “Annaes da Provincia de Goyaz”,Revista do Instituto Histórico Geográfico e
Etnográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Tomo XXVII, 2ª parte, 3º Trimestre, p. 05-186, 4º Trimestre, p. 299349,1864 e Tomo XXVIII, 2ª parte, 3º Trimestre, p. 05-167, 1865.
249
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que palmilharam os caminhos de Goiás nessa quadra histórica: Auguste Saint-Hilaire,
Emmanuel Pohl, Wilhelm von Eschwege, Luis D’Alincourt, Francis Castelnau foram alguns
deles.
Indubitavelmente, esses registros históricos oitocentistas abrigam um potencial
informativo incomensurável, principalmente porque acessam dimensões da vida humana
pretérita que não estão disponíveis em outras documentações, especialmente, àquelas
relacionadas às vivências sociais e aos aspectos culturais vistos em Goiás naquele período
histórico. Daí o fato de essas fontes se constituírem num acervo documental extremamente
sedutor e, por isso, foi (e ainda é252) intensamente devassado por historiadores que
pesquisa(ra)m sobre história regional. Sem embargo, os relatos históricos desses viajantes e
cientistas europeus que estiveram em Goiás no século XIX guardam uma singularidade: suas
impressões sobre essas terras sertanejas, em muitos aspectos, mostraram-se, em muitos
aspectos, impregnadas de tonalidade depreciativa acerca de comportamentos, costumes,
sujeitos ou sobre a realidade goiana que presenciaram. Vivenciando o momento de plena ou
pós-falência das minas de ouro em Goiás, os relatos desses viajantes, assim como a Memória
de Silva e Souza e os relatórios de governadores de capitania e presidentes de província,
teriam produzido registros históricos que desenharam uma fisionomia de decadência para a
região. As imagens sobre Goiás presentes nestas fontes, certamente, influenciaram muitas
representações históricas que foram construídas sobre o passado da região, por isso,
problematizá-las significa o esforço em compreender capítulos importantes da própria história
da historiografia em Goiás, como tentarei demonstrar a seguir.
Desde princípios do século XX até os anos 1960, a escrita da(s) história(s) de Goiás
tratava-se de um empreendimento intelectivo que esteve ao encargo de médicos, advogados,
jornalistas, políticos, militares, enfim, pessoas com diferentes formações, mas que tinham um
interesse comum: elaborar narrativas que contassem importantes capítulos da história goiana.
Assinando a autoria dessas obras estavam profissionais que viviam de outras ocupações, seja
Podemos citar como exemplo a tese de doutorado de Maria Lemke, Trabalho, família e mobilidade social –
notas do que os viajantes não viram em Goiás (1770 – 1847), defendida no Programa de Pós-Graduação em
História da UFG em 2012.
252
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como funcionários públicos, ou atuando na cena política, no atendimento médico à população,
na redação de jornais, na carreira jurídica ou nos quartéis militares. Em meio a essas
atividades que garantiram a sobrevivência de si e da família ou até o aumento de seus
cabedais particulares, encontrava-se outra que, embora não fosse vinculada à formação
profissional deles, ocupou parte importante de suas vidas: escrever sobre história de Goiás.
Seja pelo gosto que cultivavam pelas letras, ou pelo apego à erudição, ou para a satisfação de
fins pessoais (e) ou políticos (no sentido amplo do termo), ou em nome da concretização de
um ideal (ou por essas razões em conjunto), narrar os fenômenos históricos ocorridos nas
latitudes goianas era uma tarefa que fazia parte da vivência intelectual desses homens
letrados. Dentre eles, podemos citar o médico Antônio Americano do Brasil253 e os
“advogados-professores” Colemar Natal e Silva254 e Zoroastro Artiaga255, autores sobre os
quais nos debruçamos para analisar esse período da historiografia regional denominamos de
“fase da produção historiográfica autodidata” e que predominou até os anos sessenta do
século passado.
Dentre os documentos acessados por eles para elaboração de suas histórias de Goiás,
podemos afirmar que tiveram contato com muitas dessas fontes históricas oitocentistas, pois é
possível encontrarmos, em seus trabalhos, referências e citações de trechos retirados delas.
Não obstante, acreditamos que a leitura empreendida por esses historiadores autodidatas, por
estar carregada de valores nativos e permeada pelo esforço em delinear os traços de uma
identidade regional256pretendida, teria engendrado uma espécie de “desfocalização da
253
Antônio Americano do Brasil,Súmula de História de Goiás, 2ª edição, Goiânia, Departamento Estadual de
Cultura, 1961.
254
ColemarNatal e Silva,História de Goiás, 3ª edição, Goiânia, IGL, 2002.
255
ZoroastroArtiaga,História de Goiás: síntese dos acontecimentos da política e da administração pública de
Goiás, de 1592 a 1935 (tomo I), São Paulo, Revista dos Tribunais, 1959.
256
Subsumido ao exercício escriturário desses estudiosos, havia o anseio por lembrar e reforçar determinadas
situações pretéritas e exemplos de conduta que fossem típicos daqueles sujeitos históricos que “amaram Goiás”
ou que pelo menos fizeram algo pelo engrandecimento da região. O ato de recordar e registrar determinados
eventos históricos por meio de uma narrativa plena de adjetivações e de elementos normativos denota o esforço
por eternizar nomes, imortalizar certos feitos e de fixar modelos de agir que se tornassem característicos de uma
“goianidade” que se pretendia constituir. “Goianidade” entendida como um modo de viver caracterizado pelo
amor à Goiás, pela defesa do território e dos interesses regionais, pelo zelo às “tradições” e pela impressão de um
sentido ético-político ao agir dos goianos que, à semelhança “desses grandes homens do passado”, contribuiriam
para o desenvolvimento da região. Logo, não se tratava de uma tentativa de conformação da identidade regional
preocupada em desenhar uma fisionomia cultural dos goianos, e sim de um empreendimento de natureza,
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decadência” como representação negativa de Goiás e dos goianos do passado. Não que
negassem, categoricamente, que essa perspectiva estivesse impregnada na visão desses
europeus que palmilharam os caminhos goianos, simplesmente não focalizaram e nem se
apropriaram desse viés interpretativo contido nessas fontes como fizeram muitos
pesquisadores em uma determinada fase da historiografia acadêmica (como veremos a
seguir). Foram raríssimas as passagens nas quais deram voz a essa fala tão pronunciada nessa
documentação.
Americano do Brasil, por exemplo, dedicou um subtítulo de a Súmula à exposição do
“Fastígio e declínio do ouro”. Em sua concepção, “[...] a indústria mineira entrava já em
decadência, depois de quatro lustros de proventos fabulosos”257, isto é, após cerca de vinte
anos de fausto, a produção aurífera viera a experimentar seu declínio, pois “[...] da superfície
da terra, o metal amarelo recuara para o subsolo e para as correntes fluviais, onde sua extração
demandava grandes trabalhos e aparelhamentos mais aperfeiçoados”258. Em suma, a
decadência registrada nesse texto não coincide com a imagem desoladora descrita por
administradores e viajantes, refere-se à ruína de uma atividade extrativa que, sem dúvida,
atingiu a vida social e econômica da região.
Colemar Natal e Silva, por seu turno, foi mais além na análise sobre o contexto da
decadência aurífera em Goiás. Em sua História de Goiás, um dos subtítulos do capítulo XI foi
nominado de “Decadência positiva da mineração”, no qual, em linhas gerais, argumentou que
o declínio da mineração teve seu lado positivo, qual seja, possibilitou o desenvolvimento de
outras atividades produtivas em Goiás:
As novas tentativas empreendidas também por Luiz da Cunha, no
sentido de levantar a mineração, velho ideal de todas as ambições de
eminentemente, ético-política, na medida em que apresentava fenômenos pretéritos, comportamentos e modelos
de condutas exemplares deveriam ser resgatados da experiência histórica regional.
257
Antônio Americano do Brasil,Súmula de História de Goiás, 2ª edição, Goiânia, Departamento Estadual de
Cultura, 1961, p. 66.
258
Idem, p. 66.
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quem e de além mar, deixaram pelos seus sucessivos insucessos
patenteada a positiva decadência da mineração. Ia a população
procedendo para a lavoura e para a indústria pastoril, ao passo que
abandonava, pouco a pouco, as lavras259.
A decadência presente nos textos desses historiadores tratava-se, sobremaneira, da
ruína de uma atividade econômica que foi a responsável pelo fluxo migratório, pelo
povoamento e estabelecimento efetivo da administração portuguesa na região, e não de uma
representação que fixava um quadro social e cultural como típico de Goiás: a ociosidade, a
letargia social, o desprezo pelo trabalho, a preguiça reinante e o isolamento. O projeto de
“goianidade” subjacente a essa escrita da História obnubilava esse desenho cultural e social
negativo debuxado por governadores, presidentes de província, naturalistas e viajantes
europeus. Era uma “leitura nativa” do novecentos contrastando ou, melhor, filtrando, a partir
de seu sistema de referências, o que lhe era pertinente dessa “leitura adventícia” do
oitocentos. Os olhos historiográficos desses escritores preferiram não enfocar, no interior
dessas fontes históricas, registros de experiências que esboçassem aspectos negativos como
peculiares da região.
Entretanto, a partir da constituição de uma historiografia acadêmica em Goiás,
percebemos que muitas pesquisas sobre história regional acabaram por empreender outra
interpretação sobre os relatos históricos contidos nessas fontes oitocentistas, em especial,
sobre a questão da decadência goiana no período pós-mineratório. Na década de 1970, a
produção histórica em Goiás experimentou uma notável inflexão. Essa reformulação na forma
de se produzir conhecimento histórico em Goiás começaram a serpercebidas a partir de alguns
acontecimentos capitais ocorridos nesse decênio: a realização, em 1971, do VI Simpósio
Nacional de História da ANPUH em Goiânia, a defesa da emblemática tese de livre-docência
259
ColemarNatal e Silva,História de Goiás, 3ª edição, Goiânia, IGL, 2002, p. 337.
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por Luis Palacín260, a criação do Programa de Mestrado em História da UFG e o
doutoramento, na USP, das professoras Dalísia Doles261, Maria Augusta S. Moraes262 e
Marivone Chaim263, fatos ocorridos entre 1972 e 1973. A conjunção desses fenômenos indicia
que a produção historiográfica em Goiás estava, na década em apreço, tomando novos rumos
e a escrita da história regional adquirindo uma nova fisionomia. Era a produção
historiográfica acadêmica em seus prelúdios, assumindo novos contornos teóricometodológicos e estreitando seu diálogo com a comunidade científico-acadêmica no Brasil.
As inflexões apresentadas pelo “fazer histórico” em Goiás eram, sobretudo, de ordem teóricometodológica: o exame crítico das fontes históricas utilizadas, o cuidado metodológico, o
recurso a aportes teóricos debatidos no universo acadêmico, a predominância de uma história
econômico-social em face de uma história política, a estratégia analítica e temática se
sobrepondo à descritiva e factualista, a produção/apropriação de conceitos históricos, a
formulação de hipóteses que passariam pelo crivo crítico de integrantes da comunidade
acadêmica, enfim, elementos que refletiam a preocupação com a validação científica dos
resultados investigativos.E sem dúvida, neste momento em que se estabelecia um novo
modelo de historiografia em Goiás, Luis Palacín Gomez foi decisivo nos rumos tomados pela
pesquisa histórica no estado.
Em sua tese de livre-docência, Palacín, basicamente, construiu uma análise acerca da
dinâmica econômica da mineração e do contexto social goiano entre o período de 1722 e
1822. Do ponto de vista metodológico, o historiador espanhol valeu-se, vigorosamente, de
documentos oficiais: correspondências e relatórios dos governadores da Capitania e
presidentes de Província (século XVIII e início do XIX), cartas régias, editais, bandos,
portarias, ofícios, alvarás, regimentos e livros da Fazenda Real, dentre outros. Além disso, as
LuísPalacín,1722-1822 – Goiás: Estrutura e Conjuntura numa Capitania de Minas. Goiânia. Tese de LivreDocência, Instituto de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal de Goiás, 1972.
261
Dalísia E. M Doles,As comunicações fluviais pelo Tocantins e Araguaia no século XIX, Tese de Doutorado,
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, 1972.
262
Maria A. S Moraes,Contribuição para o estudo político e oligárquico de Goiás, Tese de Doutorado,
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, 1972.
263
Marivone M. Chaim,Aldeamentos indígenas e sua importância no povoamento da capitania de Goiás no
século XVIII (1749-1811), Tese de Doutorado em História, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
Universidade de São Paulo, 1973.
260
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Memórias de Silva e Souza e de Antonil264, e a própria Corografia Histórica de Cunha Mattos
e os Anais de Alencastre foram de extrema importância para a investigação. Todavia,
acreditamos que, com essa tese, Luis Palacín acabou por consagrar outras fontes, que foram
moderadamente utilizadas por Alencastre e, sobretudo, pelos historiadores autodidatas
mencionados alhures, mas que, a partir de então, encontrariam grande acolhida metodológica
entre a historiografia acadêmica: os relatos dos viajantes e naturalistas do século XIX
(Auguste Saint-Hilaire, Emmanuel Pohl, Wilhelm von Eschwege, Luis D’Alincourt, Francis
Castelnau). Irrefragavelmente, a partir de Palacín, esses registros históricos se constituíram
em uma das fontes das mais acessadas pelos pesquisadores que investigaram história de Goiás
no setecentos e no oitocentos. Deste modo, é possível depreender que, deste corpus
documental selecionado, a economia mineradora e sua conjuntura de apogeu e decadência em
Goiás foram analisadas a partir de três locais de enunciação: o olhar oficial, do governo
português e dos administradores da antiga capitania; o olhar dos europeus, que estiveram em
Goiás durante o século XIX; e a memória resgatada da oralidade herdada dos tempos da
mineração e que perpassou também pelos séculos XVIII e XIX.
Todavia, para discorrer sobre a “conjuntura da decadência” que Luis Palacín serviu-se,
primordialmente, dos relatos desses viajantes europeus. De uma análise predominantemente
socioeconômica, em que números, cifras, gráficos, estimativas ditaram a tônica explicativa
para a “conjuntura de apogeu”, o que se percebe é que, para além do decréscimo da
exploração aurífera, também representado quantitativamente, a decadência foi delineada,
especialmente, por seus contornos socioculturais: a ociosidade, a letargia social, o desprezo
pelo trabalho, a preguiça reinante e o isolamento. As memórias de Silva e Souza, escritas no
século XIX, que falavam desse sentimento comum de tristeza e nostalgia dos goianos acerca
dos momentos de fausto da mineração no setecentos, e os registros dos governadores de
Capitania, que acusavam para os sintomas dessa crise, serviram de aporte metodológico para
retratar essa conjuntura de decrepitude. Entretanto, foi nos relatos desses viajantes e
naturalistas que Palacín encontrou maior sustentáculo documental para representar esse
“estado de decadência” que assolou a região após a bancarrota das minas de ouro.
264
André João Antonil,Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas,São Paulo,IBGE, 1963.
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Para tornar mais transparente a questão, retomemos alguns argumentos desse
pesquisador. Inicialmente, sob o primado da quantificação, Palacín frisou que a decadência da
mineração foi resultado da quebra do rendimento das minas, mas que arrastou consigo outros
setores a uma ruína parcial:
(...) diminuição da importância e do comércio externo, diminuição dos
rendimentos advindos dos impostos, diminuição da mão-de-obra por
estancamento da importação de escravos, estreitamento do comércio
interno com tendência à formação de zonas de economia fechada, um
consumo dirigido à pura subsistência, o esvaziamento dos centros de
população, ruralização, empobrecimento e isolamento cultural265.
O autor realçou ainda que a produção bruta de ouro decaiu consideravelmente a partir
de 1778, mesmo tendo essa exploração já dado mostras de desgaste no final da década de 50.
Asseverou que essa conjuntura de decadência iniciou-se em 1778, concordando, então, com o
parecer do governador Fernando Delgado F. de Castilho, e se arrastou pelo século XIX, pois a
“partir de 1779, o quinto não mais alcançou as 15 arrobas, e em 1820 (“às vésperas da
independência”) não chegava sequer a uma arroba; a mineração praticamente tinha
desaparecido como atividade econômica significativa”266. Entretanto, alicerçado nos registros
dos viajantes europeus, Palacín reforçou que a decadência psicológica e social antecipava ao
esgotamento das minas:
O mineiro médio preferia ver no fenômeno da decadência um efeito
apenas do esgotamento das jazidas, enquanto o governo tendia a
destacar a sonegação dos quintos pelo contrabando. Por isso, o
LuísPalacín,1722-1822 – Goiás: Estrutura e Conjuntura numa Capitania de Minas,2ª edição, Goiânia,
Oriente, 1976, p. 171.
266
Idem, p. 173
265
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mineiro continuava sonhando – sonho que cada vez se tornava mais
remoto – que novos descobertos ressuscitaram os dias gloriosos do
passado (PALACÍN, 1976, p. 175).
Pretendendo explicar os motivos dessa decadência da mineração, o historiador
novamente se amparou nas considerações feitas pelos viajantes que buscaram argumentos
para elucidar a questão. Dentre eles, o mais citado, certamente, foi o uso de técnicas obsoletas
para a extração do minério. Palacín registrou que Eschwege, por exemplo, “atribuía toda a
decadência da mineração à carência de conhecimentos técnicos e à falta de organização (...) o
próprio governo nunca soube dirigir a mineração com uma legislação adequada” (PALACÍN,
1976, p. 176).
Permanecendo à sombra desses relatos, o autor retomou sua interpretação enfatizando
a fugacidade do período de prosperidade e a brusca transição para a ruína opaca, que
impossibilitou “a sedimentação de uma verdadeira cultura em nenhum dos campos”
(PALACÍN, 1976, p. 195).Apresentou ainda três manifestações as quais classificou como
“profundas e duráveis da decadência: uma de caráter sócio-geográfico, a ruralização, as outras
duas, a crise do trabalho e o derrotismo moral, com base na psicologia coletiva” 267. No
tocante à ruralização da vida, assinalou que, no período áureo da mineração, a população se
concentrava, em sua maioria, nos centros urbanos, mas com a decadência passou-se a uma
rápida dispersão da população pelos campos: “confirmam-se, desta forma, as impressões
recolhidas por Pohl e Saint-Hilaire sobre o abandono da Capitania por parte de grandes
massas da população, sobretudo branca, a acentuar-se a decadência da mineração”268.Um dos
grandes símbolos dessa decadência seria a fisionomia que adquiriram os antigos centros
urbanos, locais de povoamento mineiro, outrora cheio de vida, “agora”, com a aparência
decaída: “o capim cresce nas ruas, a maior parte das casas encontravam-se abandonadas, as
habitações e construções começam a se desmanchar”269. Além disso, o gosto pela ociosidade,
o desprezo pelo trabalho braçal, complementariam essa face da decadência em Goiás. A
267
Idem, p. 177.
Idem, p. 109.
269
Idem, p. 198.
268
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repulsa pelo trabalho apareceu, segundo o autor, em grande parte das fontes as quais
pesquisou, mas foi no olhar europeu dos viajantes que este “atributo goiano” foi reforçado:
Pohl exemplifica esta atitude, e suas conseqüências, com um caso que
pode parecer grotesco: O ócio é a máxima felicidade dessa gente,
escreve com referência aos brancos em Goiás. O próprio soldado raso
que tem de levar uma carta da Real Fazenda ao palácio do governo,
apenas a duzentos passos de distância, não a leva ele próprio. Manda-a
por um negro escravo e a toma à soleira do edifício270.
A delonga nesta exposição sobre essas bases interpretativas palacinianas tem uma
justificativa: com Palacín, a “decadência” da sociedade goiana no período pós-minerador
sedimentou-se como um conceito histórico que se lastreou pela historiografia regional. Nesta
narrativa do espanhol, a “decadência” não representa um mero vocábulo significador do
declínio de uma atividade econômica, mas como vimos, define um quadro social, econômico
e cultural (com reflexos até psicológicos) que assolou Goiás a partir do último quartel do
século XVIII e que perpassou o XIX. A partir do contato com essas fontes do oitocentos,
Palacín absorveu uma determinada leitura sobre a realidade goiana do período e fixou a
“decadência” como uma fisionomia histórica que definiria a região nessa quadra temporal.
Acreditamos que a sedimentação do conceito de “decadência” como definidor da sociedade
goiana no período pós-minerador abriga uma espécie de “nó existencial-perspectivometodológico-narrativo” que, por sua importância à compreensão dos caminhos trilhados pela
historiografia regional, merece ser desatado.
Primeiramente, é preciso demarcar essa questão também encerra outra diferença
metodológico-narrativa-identitária em relação a produção histórica autodidata. Enquanto os
estudiosos dessa fase, mesmo tendo contato com essas mesmas fontes, produziram uma
270
Idem, p. 199.
398
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“desfocalização da decadência”, ofuscando uma possível representação negativa de Goiás e
dos goianos do passado, a historiografia acadêmica, a partir da tese de Palacín, engendrou a
“fixação da decadência” como um retrato social, econômico e cultural de ruína que marcou a
região com a decrepitude da atividade mineradora. A “leitura nativa do passado” e o projeto
de “goianidade”, impregnados na escrita da História dos estudiosos autodidatas, eclipsaram
esse desenho cultural e social negativo tracejado por governadores de capitania, presidentes
de província e, principalmente, pelos naturalistas e viajantes europeus. Em contrapartida, essa
“leitura adventícia”, extraível dessas fontes do oitocentos, foi apropriada por Luis Palacín e,
desde então, acabou se arraigando na produção historiográfica em Goiás.
Por mais paradoxal que possa parecer, como conhecemos a maior parte das pesquisas
realizadas por Palacín, não temos dúvida de que era um historiador que primava pela crítica
das fontes. Entretanto, no que se refere a essa perspectiva dos viajantes acerca da “decadência
goiana”, concebemos que o proceder metodológico desse espanhol foi atravessado por sua
visão também “adventícia” que, no tocante a determinadas notas históricas, afinava-se com o
tom de “decadência” que esses europeus do XIX conferiram à região.
Partindo do princípio de que a leitura que fazemos da realidade que nos cerca é, em
grande medida, relacional, por conseguinte, derivada da relação que estabelecemos com
determinados referenciais valorativos, éticos, estéticos, políticos que possuímos e que incide
na forma como construímos significados e damos sentido ao mundo social, acreditamos que,
nessa pesquisa, a operação metodológica de Luis Palacín foi atingida, de modo subjacente,
por sua “visão ainda alienígena” sobre Goiás. Como esse trabalho foi desenvolvido por meio
de suas andanças pelos arquivos goianos durante a primeira década dos quase quarenta anos
em que viveu no estado, julgamos que essa “perspectiva adventícia” contribuiu para que, ao
elaborar essa investigação, assentisse com muitas apreciações que viajantes, governadores de
capitania e presidentes de província endereçaram ao contexto de “decadência goiana”.
Nenhum outro trabalho, no interior dessa historiografia acadêmica regional do
novecentos, encontrou tamanha repercussão entre os historiadores do que essa tese de livredocência de Luis Palacín, diga-se de passagem, a única existente na área de História em
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Goiás. Ademais, é importante que se saiba que essa tese teve quatro edições: a primeira,
publicada em 1972, pelo Departamento Estadual de Cultura e Editora Oriente; a segunda
edição, em 1976, também pela Oriente; a terceira, em 1979, foi reeditada com um título
“menos acadêmico”, “O Século do Ouro em Goiás” (editora Oriente) e, por último, a quarta
edição, em 1994, publicada pela editora da UCG. Dentre as investigações acadêmicas no
âmbito da história regional no estado, essa se tornou uma das obras mais editadas em Goiás.
Só não teve mais edições que outro trabalho, também de sua autoria, o qual elaborou em
parceria com a professora Maria Augusta Sant’anna de Moraes, “História de Goiás (17221972)”271, que, com feições didáticas e mais acessível a um público não especializado,
alcançou sete edições. Mas vale lembrar que, concernente ao período pós-mineratório, as
bases interpretativas são as mesmas da tese de livre-docência.Sendo assim, até a primeira
metade dos anos 90, essa interpretação palaciniana acerca da “decadência” em Goiás ecoou
entre os pesquisadores de história regional, constituindo-se, assim, numa espécie de tradição
historiográfica em Goiás, tributária da percepção que os viajantes tiveram da região.
Em face do que foi exposto sobre esse “nó existencial-perspectivo-metodológiconarrativo” que se instalou na historiografia em Goiás e do que aduzimos acerca da ressonância
dessa tese, uma indagação mostra-se instigante: se essa interpretação “palaciniana” sobre a
decadência goiana relacionou-se com sua “visão adventícia” do período, por que ela
continuou sendo repetida na historiografia regional, inclusive por historiadores goianos, por
mais de duas décadas? Sobre esse quesito, construímos algumas ilações. A primeira,
acreditamos residir no fato de que nesta fase da historiografia regional, os historiadores não
haviam sentido os impactos das ideias do pós-estruturalismo e nem da crítica narrativista, as
quais não só evidenciaram o caráter narrativo dos textos historiográficos como também
fizeram com que eles encarassem o discurso contido nas fontes como locais de enunciação,
repletos de zonas de interdito, silêncios e de particularidades semânticas. A segunda,
igualmente importante, cremos que esteja situada na premissa de que se apropriar ou citar
dados, informações e/ou hipóteses formuladas por Palacín, em se tratando de historiografia
regional, era “garantia de autoridade” nas asserções.
271
LuisPalacín,Maria A. S. Moraes,História de Goiás (1722-1972),Goiânia, editora da UFG, 1975.
400
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Não obstante, para termos consciência que nem tudo era consensual,já nos anos 1970,
é possível localizarmos um lampejo crítico sobre essa interpretação hegemônica sobre a
história regional, presente num trabalho de Paulo Bertran intitulado Formação Econômica de
Goiás, de 1978. Esse“economista-historiador” realizou um exame abrangente (com
ancoragem mais bibliográfica do que em fontes) sobre os diferentes momentos da economia
goiana, desde a estrutura estabelecida pela mineração no século XVIII aos reflexos
econômicos da instalação de Brasília no planalto central. Neste estudo, o que mais nos
interessa é sua tentativa, talvez a primeira em trabalhos regionais, de repensar a propalada
interpretação sobre a decadência de Goiás a partir da falência da mineração e, sobretudo, de
problematizar o discurso dos viajantes que acabou por fixar uma paisagem da ruína goiana
nessa quadra histórica. Apontando para os efeitos da mineração, típicos de qualquer lugar
onde ela foi praticada, o autor argumentou que as marcas deixadas por essa atividade
econômica no território goiano significariam, necessariamente, em traços de decadência:
Finalmente o século da mineração em Goiás, em termos estritamente
econômicos, constitui um regime de exceção no concerto das
atividades produtivas do território. Caracterizar como decadência o
fim da mineração em Goiás equivale considerar a extração aurífera
atividade criativa e não predatória, como sempre foi em toda parte do
mundo272.
Logo em seguida, Bertran buscou “relativizar” a dimensão dessa decadência,
assinalando, mais uma vez, as especificidades econômicas e sociais da atividade mineradora e
indicando como determinadas condições regionais favoreceram a decrepitude da extração
aurífera em Goiás:
272
Paulo Bertran,Formação Econômica de Goiás, Goiânia, Oriente, 197, p. 42
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A economia aurífera atingia maturidade e a decadência viria nos
umbrais
do
século
XIX.
Diminuíam-se
os
coeficientes
de
investimentos nas lavras de ouro, não se repunham escravos, a
rentabilidade natural dos veeiros decaía. A decadência, vezes tantas
ressaltada pelos viajantes da época existiu em termos. Mineração
sempre foi negócio cigano e virulento, ignorante de fronteiras e de
massa demográfica. Fluxo e defluxo de gente em quantidade não
esperava mais tão logo descoberto ouro. Testavam-se as jazidas
regionais: se promissoras erigia-se o arraial e logo nas adjacências
punha-se gado a pastar. Via de regrar prosperava três décadas,
dependendo da qualidade e dispersão das jazidas em torno e do acesso
fácil às estradas de mercancia. Sua decadência e abandono também
obedeciam a causalidades estritas273.
Tentando contornar a pasmaceira econômica e social que, segundo viajantes e
administradores portugueses, teria tomado conta da plaga goiana no século XIX, Bertran
procurou compreender a região valorizando suas peculiaridades sociais, culturais e, inclusive,
econômicas, para isso, definiu a economia goiana do período como sendo “de abastância”:
Enfim, para a primeira metade do século XIX, é possível ter-se
mantido a situação descrita em 1828. Por esta época constata-se ainda
simultaneidade de existência da economia de mineração, com
economia agropecuária de abastância e economia pecuária de
exportação. [...] Enfim, a economia agrícola, propriamente, surge por
excelência como um regime de transição entre a economia mineradora
e a economia comercial pecuária. Nem economia de subsistência nem
273
Idem, p. 47.
402
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comercial, a agricultura goiana do século XIX poderia caracterizar-se
talvez como de abastância, vez que seu mercado só raras vezes
ultrapassa as barreiras extra-regionais pelo proibitivo da relação
preço/custo de transporte274.
Como último ato dessa sequência crítica, Paulo Bertran, certamente enviesado por seu
olhar nativo, disparou ironicamente contra a apreciação dos viajantes, os quais realçaram o
ócio como apanágio do povo goiano:
De resto, a ociosidade geral do povo só era condenada por viajantes e
observadores vindos da apertada e difícil Europa – um Pohl, um SaintHilaire, um Cunha Matos – condenação essa não destituída de um
talvez inconsciente fundo de inveja pelo pobre, sensual e non-chalant
paraíso caboclo de Goiás nos anos 1800. São eles, em termos de
folgança e despreocupação, os expoentes máximos da vida goiana,
coincidindo com os momentos de afrouxamento da relação de troca
extra-regionais e do consequente desinteresse por extrair e expatriar
mais-valia do povo e do território275.
Nos anos 1980, tivemos outro insight crítico dessa natureza e que esteve presente no
artigo do professor Sérgio Paulo Moreyra intitulado “O olho que vê o mundo”, de 1987. Ao
debruçar-se, especialmente, sobre os relatos de Saint-Hilaire, Moreyra apontou para a
necessidade de uma leitura cuidadosa e crítica acerca das representações históricas edificadas
a partir desses relatos dos viajantes:
274
Idem, p. 46-47.
Idem, p. 48.
275
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Um excelente exemplo das armadilhas ideológicas que se escondem
no bojo dessas memórias científicas, é o livro de Augusto de SaintHilaire, “Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela Província
de Goiás”. Esse livro tem sido amplamente utilizado na historiografia
brasileira e quase sempre sem que se questione, com os instrumentos
da crítica histórica, o rigor de suas observações sociais. [...] Entre o
que seus olhos viram e o que compreendeu, medeia uma distância,
coberta por sua visão européia. As impressões do naturalista são as
impressões do naturalista. É necessário ver hoje as coisas que ele viu,
da forma pela qual ele não pôde enxergá-la, vê-las como ele não pôde
vê-las276
.
Na década de 1990, em uma conferência célebre, e que foi novamente publicada nos
anos 2000277, Paulo Bertran dispara seu tom cáustico em desfavor daquilo que chamou de
“paradigma da decadência”:
Haja decadência! No caso extremo nada menos do que 157 anos de
“decadência”. Deve ser erro de denominação, ou erro de conceito.
Deve ser, quem sabe, puro e simples desconhecimento, falta de
pesquisas sobre um século inteiro, o século XIX. Em dois e meio
séculos de história de Goiás quase que de todo ignora-se um século
Sérgio Paulo Moreyra, “O olho que vê o mundo”, Boletim Goiano de Geografia, v. 7/8, n. 1/2, jan./dez.,
Goiânia, 1987/1988, p. 164.
277
PauloBertran, “A Memória Consútil e a Goianidade”,Revista UFG, ano VIII, n. 1, junho, Goiânia, 2006, p.
62-67.
276
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inteiro, o da “decadência”, justo quando em todos os quadrantes
nasciam centenas de fazendas e dezenas de povoados278.
Embora lampejos de crítica acerca desse conceito da “decadência” goiana tenham
aflorado nas décadas de 1970, 1980 e 1990, quem ficou consagrado e se tornou o mais
conhecido e badalado representante dessa crítica revisionista da historiografia regional, até
pela maior densidade de sua pesquisa foi o historiador Nasr Nagib F. Chaul. Em sua tese de
doutoramento, defendida na USP, em 1995, “Caminhos de Goiás: da construção da
decadência aos limites da modernidade”, Chaul se propôs a discutir não só a criação do
“estigma” da decadência pelos viajantes europeus, durante o século XIX, mas também como
essa representação perpassou a historiografia de Goiás. Segundo o historiador em pauta, esses
viajantes, “ao passarem por Goiás com seus olhos embotados pela realidade européia,
conseguiram vislumbrar um aspecto comum: a decadência dessa capitania279”. Além disso,
Chaul argumentou que essa idéia construída para Goiás do período pós-mineratório, baseada
nos relatos legados pelos viajantes e governadores, foi continuada por outros estudiosos,
inclusive historiadores que “[...] reproduziram a referida conceitualização, dando-lhe
roupagens teóricas e metodológicas atualizadas, sem escapar, no entanto, da questão básica da
decadência”280.
Nessa pesquisa, Chaul ainda analisou como a representação da decadência legou frutos
às interpretações da Primeira República em Goiás: da decadência surge a noção de atraso que
perpassa toda a República Velha. Nesse aspecto, endereçou uma crítica aos estudos
historiográficos que enfatizaram a “manutenção do atraso” como um artifício das oligarquias
dominantes se perpetuarem no poder. Essa perspectiva teria sido intensamente divulgada nos
estudos sobre o coronelismo na República Velha. Para rebater esse argumento, o autor
demonstrou que, a partir da construção da estrada de ferro, houve um certo dinamismo
278
Idem, p. 66.
Nasr F. N. Chaul,Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da modernidade, 2ª edição.
Goiânia, editora da UFG, 2002, p. 22.
280
Idem, p. 67.
279
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econômico na região e que, nem por isso, os grupos dominantes foram alijados do centro de
poder. Chaul examinou, igualmente, como os grupos opositores a essa elite agrária
dominante, no final dos anos 20 e início da década de 30, apropriou-se dessa representação do
atraso de Goiás para assentarem seu discurso modernizador, impressos sobre um novo
governo, o estado getulista, e a construção de uma nova capital, Goiânia.
Destarte, depois da tese de doutorado de Nasr Chaul, que também repercutiu bastante
entre os estudiosos de história regional, tornou-se procedimento metodológico comum entre
esses especialistas, a busca por “relativizar” essas impressões que os viajantes europeus do
XIX tiveram sobre Goiás e, por conseguinte, o conceito de “decadência”, que foi ancorado
nessas fontes oitocentistas, mas fixado por Luis Palacín, não mais viçou como antes na
historiografia regional, pelo contrário, passou a ser alvo de questionamentos.
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CORUMBÁ DE GOIÁS:
PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E FESTIVO281
Rosana Romenia Fernandes Leal
UEG - Campus Pirenópolis
[email protected]
A cidade de Corumbá de Goiás é uma das cidades goianas pertencentes ao ciclo do
ouro, segundo Curado (1996, p. 15): surgiu no ano de 1729, “devido a descoberta de ouro no
local onde as águas do Ribeirão Bagagem encontram-se com as do Rio Corumbá - Poço
Rico”. Esse motivo levou os descobridores a fixarem acampamento nas margens do rio, para
que assim pudessem explorar melhor a jazida encontrada.
Primeiramente a cidade ganhou o nome de Arraial de Nossa Senhora da Penha,
posteriormente passou a se chamar Corumbá, nome dado devido ao rio que corta a cidade,
mas pelo fato de existir uma cidade com o mesmo nome no estado do Mato Grosso, a
denominação foi alterada para Corumbá de Goiás.
De acordo com o site da cidade, no que diz respeito à descoberta da localidade, temos
que:
os fundadores de Corumbá pertenciam a uma bandeira organizada no
arraial de Sant’Ana, hoje cidade de Goiás. Ali eles foram autorizados
e orientados pelo superintendente das minas goianas, Bartolomeu
Bueno da Silva (filho). Bueno, cujo apelido era Anhanguera, havia
iniciado em 1726 o processo de colonização das terras dos índios
Goiá. Essa bandeira compunha-se de sete paulistas e quatro
281
Fomento: PrP/UEG por meio do Projeto de Pesquisa: Pesquisa Girando Folia: apontamentos turísticos e
gastronômicos em um das devoções ao Divino Espírito Santo – Pirenópolis/Goiás. Integrante do Grupo de
Pesquisa Saberes e Sabores Goianos. Orientador: João Guilherme Curado.
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portugueses, que eram homens livres. Dela também tomavam parte
seus escravos de origem africana e indígena. O líder desta expedição
sertanista era o Capitão Diogo Pires Moreira, natural da vila paulista
de Jacareí, que anteriormente havia descoberto ouro nas Minas
Gerais (www.corumbatur.com.br)
Na cidade foram feitos inicialmente ranchos, uma das primeiras construções no local,
assim como acontecia comumente em núcleos populacionais da época. Além das casas
ocorria, obrigatoriamente, a construção de uma Igreja Matriz, lá destinada a Nossa Senhora da
Penha de França.
Somente algum tempo depois foram edificadas as demais casas do arraial, como de
costume o núcleo urbano crescia em torno da igreja. Esta ocupação inicial é apresentada pelo
pesquisador Hercílio Fleury, que tem por representação o desenho abaixo feito por Lúcia
Curado, no qual remonta a década de 1730, e pode-se ver a capela e a casa dos bandeirantes
que fundaram o arraial.
Nesse período Corumbá de Goiás tinha como sua principal atividade econômica a
mineração.
Para a historiadora Gilka Vasconcelos Ferreira de Salles, a história econômica de
Goiás é composta por três fases:
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Entre Europa África e América:
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a primeira fase, de grandes feitos e lutas, de guerra ao gentio e procura
de fontes de riqueza; a segunda, de exploração e formação de
povoamentos incertos, muitas vezes provisórios; um terceiro
momento, o trabalho agrícola, da fixação da propriedade rural e do
labor artesanal, índice de futuros núcleos manufatureiros ou
industriais (SALLES, 1992, p.13).
Sendo assim, Corumbá de Goiás acompanhou a história econômica goiana, se
encaixando nas fases mencionadas pela autora. Mesmo com o esgotamento da mineração, a
cidade por conta de sua localização geográfica estratégica, acabou se tornando um entreposto
de estradas e, consequentemente uma importante rota comercial para o Brasil, como é
destacado abaixo:
situada em um ponto estratégico na passagem das rotas terrestres
Goiás-Paracatu e Goiás-Bahia, sua urbanização se consolidou ainda
no século XVIII. A localidade resistiu à decadência da mineração e
assumiu a função de entreposto comercial para o abastecimento da
Província de Goiás (www.iphan.com.br).
Esse fator ajudou para que o núcleo urbano não desaparecesse, as atividades ligadas a
terra contribuíram para que Corumbá de Goiás continuasse existindo. Esse motivo também
determinou o fato das pessoas do local se tornassem culturalmente ligadas à ruralidade.
A história de Corumbá de Goiás evidencia muito bem a dinâmica pela que a Província
de Goiás foi ocupada, alguns de seus casarões ainda são mantidos até hoje, sendo assim, para
contribuir com a preservação desses monumentos, o Centro Histórico de Corumbá de Goiás
foi tombando pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o
tombamento ocorreu
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por meio do Processo de Tombamento n° 1269-T-88, tendo sido
inscrito sob o n° 143 às folhas 51 e 52 do volume II do Livro de
Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico em 30 de setembro
de 2008 e cujo tombamento foi homologado na Portaria n.°349 de 21
de dezembro de 2004 (IPHAN, PORTARIA Nº 68/2013).
Na Igreja Nossa Senhora da Penha de França, um dos principais bens que fazem parte
do acervo patrimonial tombado, além do prédio aparece ainda outros bens arrolados, como a
imagem de Nossa Senhora da Penha, a imagem do Menino Jesus, a
banqueta de prata do altar-mor, o crucifixo de marfim doado pelos
Jesuítas (todas as peças do século XVIII); a lâmpada de prata do
Santíssimo (1855); imagens do Senhor dos Passos (1888), do Sagrado
Cojação [sic.] de Jesus (1898), de Nossa Senhora das Dores (1929) e
do Senhor Morto (1930); quadros Jesus Crucificado eBatismo [sic.] de
Jesus, de autoria de Luiz Gáudie Fleury (da década de 1910);
quadros Sete
Dores
de Maria, de
Nossa
Sra.
das
Dores,
do Arrependimento de São Pedro e Nossa Senhora do Rosário (todos
eles do século XIX); o sino da torre do lado norte (1856); e o relógio
dessa torre (1890) (www.iphan.com.br).
Esse processo de preservação por registro oficial tem ajudado na manutenção do
patrimônio na Cidade, pois ainda hoje o local preserva muitos de seus casarões seculares que
constituem um interessante conjunto arquitetônico que possui certa funcionalidade para os
corumbaenses e que também se constituem como atrativos para os visitantes e turistas.
Concordamos com Coelho & Valva (2001), para quem o patrimônio,
em princípio, trata-se da propriedade de bens de valor não
apenas econômico, cuja posse não se liga exclusivamente a uma
pessoa, mas a todo contexto populacional, mesmo que seu uso
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esteja restrito a um grupo reduzido de pessoas. E esse caráter
coletivo da posse vai se basear exatamente no interesse que tal
hoje representa, tanto em nível histórico quanto cultural, estando
geralmente ligada a fatos importantes da história local, regional
ou mesmo nacional, como também a apropriação de conceitos e
conhecimentos relacionados à fatura, à técnica e a elementos
construtivos característicos de determinada cultura (COELHO &
VALVA, 2001, p. 16).
A Igreja da Matriz foi recentemente restaurada por ser um grande símbolo para a
cidade, sendo uma das igrejas mais de Goiás, o monumento traduz um pouco da história tanto
da cidade quanto do estado, principalmente relacionadas à religiosidade do povo goiano.
Breve histórico das festividades corumbaenses
Em Corumbá de Goiás o calendário anual já começa com festividades logo no
primeiro mês. Em janeiro ocorre a tradicional Festa de São Sebastião, ela acontece geralmente
entre os dias 11 e 20 de janeiro, com as missas seguidas de novena. No dia 20, o dia principal
da festa, na Praça da Matriz acontece: leilões de gado, barraquinhas de alimentação e shows
musicais de cantores locais após a missa matinal.
Em fevereiro é promovido o Carnaval, com animados shows de bandas na Praça Major
João Mendes, a organização do evento fica por conta da Prefeitura Municipal, por meio da
Secretária de Cultura Esporte e Lazer.
O próximo evento que acontece na cidade fica a cargo da Igreja Católica, geralmente
no mês março ou abril, acontece uma das maiores celebrações religiosas: a Semana Santa.
Corumbá de Goiás preserva suas tradições ligadas à Paixão de Cristo, por meio da Procissão
de Ramos no domingo e da na Procissão do Encontro realizada na quarta-feira a. Já quintafeira, acontece o ritual do Lava-pés.
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O dia mais solene deste conjunto de dias é a sexta-feira da Paixão, em que há
encenação da Via Sacra pelas ruas da cidade. À noite sai da igreja São Sebastião a solene
procissão do Senhor Morto que termina na Igreja da Matriz Nossa Senhora da Penha.
Assim, como em várias das cidades colonizadas por portugueses, nos meses de
maio/junho Corumbá de Goiás também promove a popular Festa do Divino Espírito Santo, e
ainda comemora-se no mesmo período a Festa de Santo Elesbão e de Santa Ifigênia, santos de
devoção dos negros.
A Festa do Divino é organizada pelo imperador do Divino, este é indicado pelo padre
da cidade (CURADO, 1996). A festa começa na zona rural com as Folias da Roça, que se
constitui como uma caravana de pessoas liderada por um folião que porta a bandeirado Divino
e passa pelo município com o objetivo de conseguir donativos para a realização da festa.
Algumas das manifestações que ocorrem por ocasião da Festa do Divino receberam
mais destaque no decorrer do tempo, como pro exemplo, a Folia do Divino que é bastante
concorrida deste os tempos pretéritos, como podemos observar na imagem da chegada da
folia em Corumbá de Goiás em 1930, quando os foliões desfilavam pela cidade a cavalo e
entregavam suas bandeiras e seus donativos na Igreja da Matriz.
Foto: Hecílio Fleury, s/d.
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No feriado de Corpus Christi, as ruas da cidade são enfeitadas com tapetes elaborados
a partir da junção de serragem colorida, borra de café, flores entre outros acessórios. A
ornamentação é uma iniciativa dos fies católicos para a passagem da procissão.
No mês de julho Corumbá de Goiás comemora seu aniversário e acontece desfile
cívico pelo Centro Histórico, acompanhado pela Banda 13 de Maio (fundada em ????),
constituída por alunos de escolas das redes municipal e estadual.
Após esse evento, a cidade aguarda ansiosa pela principal festa da cidade, a festa em
Louvor a Nossa Senhora da Penha, que de acordo com o historiador Ramir Curado, essa festa
“já foi a maior e mais concorrida festa popular-religiosa” (CURADO, 1996). No entanto,
atualmente a maior desta desse segmento é a Festa de Nossa Senhora da Penha que acontece
em setembro, na qual são encenadas as Cavalhadas.
Para esta festa os preparativos antecedem ao mês de agosto quando se inicia os ensaios
das Cavalhadas e também os jantares dos cavaleiros, evento que anima as noites
corumbaenses.
O ápice da Festa ocorre entre os dias 06 e 08 de setembro, quando as ruas do Centro
Histórico de Corumbá de Goiás são tomadas por barraquinhas e mascarados. Do outro lado do
rio ocorrem as Cavalhadas no período vespertino atraindo moradores, visitantes e turistas das
mais variadas localidades, inclusive estrangeiros.
As festas natalinas populares são poucas e tem por espaço de realização a praça da
Matriz. No entanto, as famílias corumbaenses ainda promovem rezas ou terços nos presépios.
Pela área rural gira uma interessante Folia de Reis, que perpassa as festas de um ano para
outro, uma vez que começa no dia 24 de dezembro e finaliza no dia 06 de janeiro.
Considerações Finais
Propor reflexões, mesmo que breves, sobre a arquitetura e as festas de Corumbá de
Goiás foi tarefa bastante complexa, pois não há estudos sistematizados e as poucas pesquisas
feitas sobre a localidade na maioria das vezes não são disponibilizadaspara consultas.
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Algumas obras importantes sobre Corumbá de Goiás foram produzidas pelo
pesquisador Ramir Curado, do qual utilizamos como referência uma obra que é uma síntese
didática de sua produção.
Grande parte das informações aqui contidas é proveniente de observações
participativas, pois sendo corumbaense e acadêmica do Curso de Tecnologia em Gestão de
Turismo, passamos a valorizar ainda mais os aspectos patrimoniais (materiais e imateriais) de
Corumbá de Goiás, daí a iniciativa de chamar ao debate para as festas e arquitetura
corumbaense.
Referências bibliográficas
COELHO, Gustavo Neiva & VALVA, Milena d’Ayala. Patrimônio cultural edificado.
Goiânia: UCG. 2001.
CURADO, Ramir. Corumbá de Goiás: estudos sociais. Brasília: Editora Ser, 1996. 15p.
IPHAN. PORTARIA Nº 68/2013. Goiãnia, 2013.
SALLES, Gilka Vasconcelos F. de. Economia e escravidão na Capitania de Goiás.
Goiânia: Ed. da UFG, 1992.
www.corumbatur.com.br/historia. Acesso em 01/09/2014.
www.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do;jsessionid=F4C47ED16F10FF293300A3084
E7C70BB?id=18208&retorno=paginaIphan acesso em 15/06/2014
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TRANSFORMAÇÕES DAS PAISAGENS DO CERRADO:
UMA HISTÓRIA AMBIENTAL DA GRAMÍNEA BRACHIARIA NA FRONTEIRA
GOIANA (1960-2010)
Rosemeire Aparecida Mateus
Mestranda, TECCER/ UEG
[email protected]
Introdução
Registramos na história de Goiás os diferentes momentos e modos de ocupação e exploração
do território. Dentre esses modos, destacamos sob a perspectivada Historia Ambiental, a
implantação e o cultivo do capim brachiaria como tecnologia para a pecuária extensiva no
Cerrado goiano.
O tema deste estudo é retirado da tensão entre brachiaria e as espécies nativas. Tensão que
provocou uma nova configuração do Cerrado, porque exigiu das pessoas um novo jeito de se
relacionar com esse bioma e de existir nele, uma vez que diversas espécies nativas “foram
desaparecidas”, e com elas desapareceram saberes e expressões culturais para a manutenção
da vida no referido ambiente. A implantação e cultivo cada vez mais intenso do brachiaria
(quase uma norma) fez nascer um novo território que entra em tensão com os territórios
existentes.
Ativemo-nos ao período histórico de 1960 a 2010, no qual inicia o aparecimento do capim
brachiaria por estas terras. Buscamos através dos registros do período abarcar as complexas
relações de pressão e tensão vivenciadas por parcela da sociedade goiana, fenômenos
advindos do desaparecimento de saberes e expressões culturais de espécies da fauna e da flora
e da diminuição do Cerrado. Diante deste contexto impulsiona-nos a perguntar: como o
agropecuarista ressignificou a sua relação com o Cerrado na presença do brachiaria?
Discutindo à luz da historiografia ambiental, procurando ir além da história do
desenvolvimento agroeconômico, buscando ressaltar fenômenos provocados por esse
desenvolvimento,
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nos
valemos
de
uma
leitura
do
Cerrado
feita
a
partir
da
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o Império português no Atlântico Sul
transdisciplinaridade, proposta dos fundamentos teóricos metodológicos da História
Ambiental. Para esta corrente historiográfica tal pressuposto possibilita o diálogo entre os
diversos saberes envolvidos na pesquisa. Compartilhamos com as ideias de Roderick Nash
(1970), para quem toda a paisagem que nos cerca deve ser encarada como um “documento
histórico” à espera de interpretação. [...] compreender o papel que determinadas paisagens
exercem tanto na constituição da memória coletiva como nas diferentes maneiras de
percepção do espaço. [...] trata-se de uma perspectiva transdisciplinar, segundo a qual as
disciplinas sociais podem sem meia culpa, incorporar às suas listas de variáveis analíticas
elementos do mundo natural (apud ARAUJO, 2007, p.31-37).
Em nossa pesquisa sobre a relação da gramínea com o Cerrado e suas manifestações para a
vida humana, atentaremos aos estudos que contemplem migrações de espécies e suas
implicações ecológicas, a introdução (in) voluntária de animais e plantas em novos biomas, a
invasão biológica de espécies animais e vegetais e sua relação com a biodiversidade, assim
como, trabalhos sobre a importância e uso de plantas e animais nativos no Brasil. São
trabalhos como os desenvolvidos na Universidade Federal de Santa Catarina, através do
Grupo de Pesquisa Laboratório de Imigração, Migração e História Ambiental (LABIMHA)
que nos trarão um suporte e diálogo neste tipo de análise historiográfica.
Um dos vértices fundamentais de nossa problemática na relação dessa gramínea com o
Cerrado é o grande incentivo para o cultivo e, a adaptação impressionante desta gramínea ao
longo dos anos. Seus desfeches devastadores neste Bioma, dada sua grande adesão como
cultura de abastecimento alimentício para o gado e, sua enorme adaptação ao ambiente, se
tratando de uma espécie exótica, é analisada a partir da perspectiva ambiental na qual as
invasões biológicas são tidas como um dos piores problemas ecológicos atuais, por afetarem
drasticamente os processos de homeostase dos Biomas. Os processos de extensão de dada(s)
espécie(s) exótica(s):
Constitui no estabelecimento de espécies animais ou vegetais de outras regiões – (...) em
ecossistemas naturais ou manejados pelo homem, e seu posterior alastramento, de forma que
passam a dominar o ambiente e a causar danos às espécies originais e ao próprio
funcionamento dos ecossistemas. Em muitos casos, invasões biológicas causam a extinção de
espécies nativas. (PIVELLO, 2005).
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Atualmente, no Brasil, há muitos estudos de história ambiental, como os de Marcos Lobato
Martins (2007), Augusto José de Pádua (2010) e José Augusto Dummond (1991), que já
somam décadas de pesquisas, possibilitando uma revisão do conceito de ambiente para além
do espaço físico, incorporando as múltiplas racionalidades e culturas somadas às reflexões
sobre os efeitos secundários da relação da ação humana sobre o ambiente.
Justificativa
O objeto da pesquisa reside no aparecimento do brachiaria em Goiás, sua pressão sobre o
bioma do cerrado e, por extensão, sobre a maneira como o as pessoas passaram a se (re)
apropriar ou se relacionar com ele após o uso intensivo do brachiaria que passou a fazer parte
da paisagem rural de Goiás.
Como se dá a sobrevivência das demais espécies na presença do brachiaria e a configuração
da vida no Cerrado Goiano no período de implantação e consolidação do brachiaria? De que
forma o ser humano vivencia esse processo quanto ao seu pertencimento ao território, a sua
identidade, aos seus saberes e suas expressões culturais. Que formas de resistência foram
construídas, o que desaparece e o que é reelaborado.
Elegemos a fronteira goiana como espaço de análise de nosso trabalho pautado no impacto
causado pela transformação da implantação do brachiaria bem como todo o processo histórico
de práticas agrícolas ao longo das últimas décadas em Goiás - desde a lavoura de subsistência
até as grandes agroindústrias, passando pela tradicional criação de gado às inovações
tecnológicas da pecuária goiana.
Intentamos discutir a complexificação das relações entre agropecuarista e cerrado a partir do
advento do brachiaria em Goiás sob a perspectiva da história ambiental, uma vez que a
construção das realidades históricas humanas é indissociável dos diferentes tipos de relação
que as comunidades mantêm com o meio ambiente a que têm acesso. De acordo com Worster,
A história ambiental nasceu, portanto de um objetivo moral, tendo por trás fortes
compromissos políticos, mas, à medida que amadureceu, transformou-se também num
empreendimento acadêmico que não tinha uma simples ou única agenda moral ou política
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o Império português no Atlântico Sul
para promover. Seu objetivo principal se tornou aprofundar o nosso entendimento de como os
seres humanos foram através dos tempos, afetados pelo ambiente e com que resultados (1991,
p. 93-97).
O período que estudaremos será de 1960 a 2010. Os anos 60 são o marco inicial da chegada
do brachiaria em Goiás, por meio dos programas de desenvolvimento para o Brasil Central, o
que provocou uma grande migração de pessoas de vários estados do Brasil para Goiás em
busca de trabalho, terras e riquezas. Estabelecemos como limite final 1990, por entender que
nesse marco temporal já está consolidada a cultura do brachiaria em nossa região. A análise
dos anos 2000 contribui para a ampliação do olhar econômico e cultural da história de Goiás,
trazendo reflexões para as questões atuais em relação ao cerrado, em seu espaço, além da
dimensão do desenvolvimento agroeconômico, procurando ressaltar fenômenos provocados
por esse desenvolvimento como é o caso do esvanecimento de determinadas memórias devido
à diminuição de determinadas espécies, logo a diminuição de certas práticas ligadas a
existência dessas espécies que sucumbem diante do desenvolvimento do brachiaria.
Objetivos
Buscamos com este trabalho compreender o impacto na diversidade cultural e biológica do
cerrado goiano a partir da implantação e cultivo do brachiaria.
Para atingirmos este intento, propomos estudar o processo histórico da chegada e substituição
das pastagens nativas pelo brachiaria na fronteira goiana; a inventariar os saberes, memórias e
hábitos do agropecuarista goiano em relação às paisagens e, analisar, a partir da História da
Ciência, em consonância com a História Ambiental a divulgação científica das pesquisas que
apresentam a viabilidade econômica do Cerrado por meio das novas gramíneas.
Revisão de Literatura
Os principais pressupostos teóricos que fundamentam nosso trabalho são os da História
Ambiental que se pretende holística por incluir o maior número possível de vertentes para um
determinado objeto de pesquisa e os conceitos que fazem parte de um conjunto de novos
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paradigmas interpretativos para as ciências humanas que escapam a ocidentalização do
conhecimento e que abrem espaço para outros saberes e razões.
Pensamos que estudar a vida e a cultura rural de Goiás pelo viés da História Ambiental nos
possibilita compreender e aprofundar como os seres humanos foram, através dos tempos,
afetados pelo seu ambiente natural e, inversamente, como eles afetaram esse ambiente e quais
os resultados dessas interações.
A interação é na verdade uma das três dimensões básicas analisadas por Worster (1991) para
quem pretende elaborar uma História Ambiental sobre determinada sociedade, considerando
ainda para tal trabalho os aspectos de constituição socioeconômicas em sua inter-relação com
determinado espaço geográfico e, por último, as dimensões cognitivas, culturais e mentais do
ser humano, incluindo cosmologias, valores e ideologias. (PÁDUA, 2010, p.94 e 95).
No que se refere aos recortes do estudo do ambiente, temos os estudos do geógrafo La Bleche
que influenciou historiadores europeus do século XX. Segundo Martins (2007), La Bleche
privilegia os estudos regionais, realizados sob a égide do conceito de “gênero de vida”.
O gênero de vida é o resultado das influências físicas, históricas e sociais, presentes nas
relações do homem com o meio. Nele, há o viés ecológico (o modo como o homem tira
partido do ambiente) e o viés histórico (as relações que os homens tecem entre si). Os
diferentes gêneros de vida, associados às diversas regiões naturais terrestres, constituem as
marcas típicas dos lugares, as unidades elementares do espaço que se articulam num todo. (...)
A ênfase da análise regional recai sobre valores simbólicos e as relações (inclusive as
afetivas) entre os lugares frequentados pelos grupos sociais, negligenciando os aspectos
naturais (MARTINS, 2007, p. 41).
Sobre a relação da gramínea com o cerrado, atentaremos para estudos que contemplem
migrações e suas implicações ecológicas, introdução (in) voluntária de animais e plantas em
novos biomas, a invasão biológica de espécies animais e vegetais e sua relação com a
biodiversidade, assim como trabalhos sobre a importância e uso de plantas e animais nativos.
São trabalhos desenvolvidos na Universidade Federal de Santa Catarina, através do
LABIMHA. E atentaremos aos estudos da EMBRAPA.
Enfim, as abordagens da história ambiental possibilitam uma ampliação do campo do saber. E
a grande quantidade de material da história ambiental está pronta, é necessário buscá-lo e
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organizá-lo. O foco são os efeitos secundários da ação humana. Como por exemplo, as
espécies do cerrado que foram extintas devido ao fortalecimento do brachiaria em Goiás.
Metodologia
A metodologia adotada em nossa pesquisa baseia-se na análise documental aliada à História
Ambiental e no trabalho de campo por meio de entrevista.
Fundamentamos nosso trabalho nos pressupostos teóricos da História Ambiental que
preconiza uma perspectiva holística (dinâmica e complexa) por abarcar o maior número
possível de vieses para um determinado objeto de pesquisa. Podemos exemplificar o propósito
e metodologia das fontes, mediante novas perspectivas de investigação que se filiam às outras
áreas do conhecimento, por meio de intersecções, a complexidade do objeto de análise
(GALLINI, 2005, p8 e 9). Este fator de interação é uma das três dimensões básicas analisadas
por Woster, para quem pretende elaborar uma História Ambiental sobre determinada
sociedade, considerando que, para tal trabalho, os aspectos de constituição socioeconômicas
em sua inter-relação com determinado espaço geográfico e, por ultimo, as dimensões
cognitivas e culturais do ser humano, incluindo cosmologias, valores e ideologias. (PÁDUA,
2010, p. 94 e 95).
Woster abre-nos a possibilidade de trabalhar com a História Ambiental numa perspectiva
transdisciplinar definindo três grandes dimensões, a saber: a dimensão da ciência da natureza,
onde os elementos orgânicos e inorgânicos, incluindo o ser humano, interagem entre si ao
longo do tempo; como exemplo a migração e o processo de sobrevivência das espécies. A
dimensão socioeconômica, a organização social dos grupos em interação com recursos
naturais a que se têm acesso, os processos de produção e destinos que lhes são dados e os
impactos ambientais. A dimensão simbólica das interações entre o ser humano e a natureza, as
“negociações” que as diferentes populações estabelecem com o seu meio e sua representação
ao longo do tempo, (apud PÁDUA, 2010, p. 95).
Dispomos de grandes e diversas fontes históricas para o estudo da presença do brachiaria na
fronteira goiana. Utilizamos arquivos de dados em órgãos oficiais e das Universidades do
estado de Goiás.
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Usaremos georreferenciamento: instrumento de geoprocessamento para mapear a presença do
brachiaria em Goiás. Buscaremos informações importantes das imagens orbitais do Cerrado a
cerca de fenômenos perturbadores ao ambiente natural da fronteira goiana entre o tempo
proposto: 1960 a 2010. Contemplando a afirmativa de Drummond em que o fator “tempo” é a
forma mais provocativa de dar sentido à História Ambiental (SILVA, CARVALHO JR,
SILVA, 2012, p. 80).
Considerações Finais
Enfim, as abordagens da História Ambiental possibilitam uma ampliação do campo do saber,
considerando o ambiente parte constituinte da história da vida humana, bem como, dotada de
uma historicidade própria. Acreditamos na afirmação de Worster (1991) que, “ao ignorar o
mundo natural quando estuda o passado, os historiadores estimulam aos outros a ignorar o
mundo natural no presente e o futuro”. Pois, apesar das ilusões homogeneizantes pregadas
pela globalização, os historiadores ambientais afirmam que em cada lugar no mundo
constroem-se relações únicas entre o ser humano e meio ambiente.
Referências Bibliográficas
ARAUJO, Alexandre Martins de. Memórias que Curam. In: Experiências e Memórias. Olga
Cabrera (Org). Goiânia/Cecab: Ed. Vieira, 2001, p.87-89.
DRUMMOND, José Augusto, Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, pp. 177-197,
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FRANCO, José Luiz de Andrade; SILVA, Sandro Dutra e; DRUMMOND, José Augusto e
TAVARES, Giovana Galvão (Org.). História Ambiental: fronteiras, recursos naturais e
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GALLINI, Stefania. Invitación a la historia ambiental. En: Revista Tareas Nro.120: Historia
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MARTINS, Marcos Lobato. História e meio ambiente – São Paulo: Annablume; Faculdades
Pedro Leopoldo, 2007.
PÁDUA, Augusto José. As bases teóricas da história ambiental – Estudos avançados 24 (68),
81-101, 2010.
PIVELLO, V. R. Invasões Biológicas no Cerrado Brasileiro: Efeitos da Introdução de
Espécies
Exóticas
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a
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Disponível
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SILVA, Nilton Correia da; CARVALHO JR, Osmar Abílio de; GUIMARÃES, Renato
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WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.
4, n. 8, 1991, p.198-215.
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A GÊNESE DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NA CIDADE DE GOIÁS
Suzana Rodrigues Floresta282
As condições de saúde na cidade de Goiás
Pelos idos do século XIX observou-se que a saúde pública era de responsabilidade das
Províncias e da Coroa, mas cada família incumbia-se pelos cuidados sanitários domésticos.
Posteriormente, essas responsabilidades foram sendo atribuídas aos governos municipais e
cabia às autoridades legislar sobre o assunto. A este respeito, a transcrição de um trecho das
Memórias Goianas283 sobre as condições sanitárias de Goyaz, ilustra o desalento da
população:
A Saúde pública em toda a Província está confiada a Providência [...]
O escorbuto, a elephantiazes, a morfea, e as mais moléstias
contagiosas se vão transmitindo de huns a outros pela livre
communicação dos enfermos com os sãos, aquelles por falta de hum
azilo correm as ruas da Cidade, mendigando o indispensável alimento,
estes encarando todos os dias o lastimoso espectaculo se acostumao,
perdem a sensibilidade, e a repugnância, e se misturao, e respirando o
ar inficionado se fazem victimas das mesmas enfermidades; os
primeiros reclamao de Vós os soccorros, e o bem geral exige
282
Professora efetiva da Universidade Estadual de Goiás, Campus Iporá. E-mail: [email protected]
Memórias Goianas é uma publicação do Centro de Cultura Goiana (1980), está vinculado à Sociedade Goiana
de Cultura (mantenedora da Universidade Católica de Goiás (1959) e de outras instituições e se ocupa,
principalmente, da publicação e divulgação de preciosa documentação de seu acervo, para a preservação da
memória historiográfica do Estado de Goiás. Nas duas últimas décadas do século XX o Centro de Cultura
Goiana publicou uma coletânea denominada Memórias Goianas, contendo os relatórios dos governos da
Província de Goiás abrangendo parte do período imperial – de 1835 até o início da República, em 1889. Embora
contendo informações de caráter oficial – denotando modos ideológicos de condução dessas ações
governamentais – a leitura e análise desses documentos foram imprescindíveis para compreender como se
nascia, vivia, adoecia e morria em Goiás no final do século XIX.
283
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providencias para que se não arruíne a saúde pública (MEMÓRIAS
GOIANAS 3, 1986, p. 126)
Na segunda metade do século XIX, Raymundo J. da Cunha Mattos formulou uma
explicação que se tornou corrente sobre a má saúde da população de Goyaz. A principal
característica deste modelo explicativo era o determinismo geográfico, ou seja, o clima e
estações da região produziam em grande número de habitantes dessa Comarca e em quase
toda a província broncoelles ou papeiras enormes.
Climas, Estações e Enfermidades Endêmicas. O clima desta comarca é
quente e úmido na maior parte do ano; nos meses de junho e julho é
frio e úmido e nos de agosto e setembro quente e seco. A atmosfera
esta muito carrega de nevoeiros e fumaça procedida das queimadas
gerais nos meses de agosto e setembro. Desde outubro ate o fim de
março caem chuvas copiosas e há trovoadas continuas, as mais
perigosas porque grandes tufões de vento (...) A irregularidade da
temperatura da atmosfera ou talvez a morada em lugares mui úmidos e
contíguos aos rios e o uso de alimentos de má qualidade produzem em
grande numero de habitantes dessa Comarca e em quase toda a
província broncoelles ou papeiras enormes que muito desfeiam as
pessoas que padecem do incomodo. Aqueles que habitam em lugares
de águas salobras às vezes são acometidos de papeiras. As apoplexias
são continuas; o mal venero faz estragos e por falta de médicos e
cirurgiões morre imenso povo a mão de charlatões e empíricos
(MATTOS, 1874, p. 275)
Muita gente morreu de cólica e de repente. Foram males que fizeram maior numero de
vítimas em Goyaz. As sangrias eram os remédios de muitas doenças. Purgantes e lavagens
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eram aplicadas para todos os casos de cólicas mesmo que fosse uma apendicite supurada.
E é bom que se diga que naquelas priscas eras, como hoje alguns
charlatões eram considerados e atendiam a chamados para resolver
problemas de saúde os mais variados e a sua terapêutica era um sacão
de gatos, variando de um para outro no tratamento de espinhela caída,
vento virado, gálico, afecções de corpo, etc... juntando-se aos
medicamentos os chás de folha ou raízes, pós de chifres ou cascos de
animais a até benzeduras (...) As parteiras ou curiosas, muito famosas,
já que não era de bom tom chamar o médico para este casos, usavam
para a mais rápida secagem do cordão umbilical azeite de mamona e
pó de fumo torrado, causa talvez dos milhares de casos de tétano
umbilical (...) Outro velho habito eram as fontes. Não conseguimos
saber qual a origem desse método terapêutico, já usado pelos jesuítas
nos começos da descoberta do Brasil (escarificação), mas, pela sua
originalidade vamos relatar o procedimento. Havia a conceituação de
que os homens, após os quarenta anos decaiam suas funções sexuais e
acumulavam no organismo “humores e reimas PREJUDICIAIS. Então
para revigorar o status a pessoa escarificava a barriga da perna (região
popliteia) ate produzir uma ferida. Para que ela não cicatrizasse, alem
de ser sempre ativada por um pedaço de madeira, colocava-se dentro
desta ferida um grão de chumbo, maior ou menor, de acordo com a
lesão, a fim de que se ficasse sempre “merejando” os “humores”. E
isso transformado em fistula, era carinhosamente cultivado, amarrado
com um pano, por via dela as “mermas” do corpo se escoavam e
tornavam o individuo forte e sadio (BUENO, 1979, p.10)
Outro método de cura, dos mais antigos era a sangria, panacéia universal para quase
todos os males. A sangria comum era feira por intermédio das sanguessugas, material
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constante e imprescindível do arsenal médico, que remota desde o século I a.C. Eram
específicos para o caso de hepatite, lumbago e outros males tratamento dos olhos e dores de
cabeça. Havia também o tipo de sangria sarjada, quando se lancetava as veias para o
escoamento do sangue deletério, pratica efetuada geralmente pelos barbeiros que tinham
também função de cirurgião.
Em outros casos, quando um doente carecia de cuidados médicos, um facultativo era
chamado à casa do paciente, onde fazia os exames preliminares, receitava e prescrevia os
cuidados necessários. Em casos graves o doente era visitado várias vezes durante o dia e
também à noite, se as circunstâncias assim o exigissem. As gestantes eram assistidas em suas
próprias casas por parteiras, mulheres práticas nesse mister, sem nenhum conhecimento de
obstetrícia.
Ondina Albernaz descreveu a realização dos partos e o trabalho das parteiras
informando muitos detalhes do processo, desde a preparação da gestante até o pós-parto:
A parteira atendia a paciente, ajudava-a durante o parto, pegava a
criança, cortava o umbigo, fazia o curativo, dava-lhe banho, vestia-a e
a agasalhava fartamente, com camisa de pagão, paletó, cinteiro, cueiro
de beata, sapatinhos de lã, touca com pedaços de algodão, em caso de
pouco cabelo, depois era ainda enrolada em xale de lã. A parteira
tomava conta da criança de seis a oito dias, tempo da queda do
umbigo e de a parturiente deixar o leito, o que era feito com muito
cuidado e precaução: calçada de meias, algodão nos ouvidos, evitando
corrente de ar e sereno, nenhum esforço físico, subir escadas, leituras
prolongadas, etc... Como precaução a cabeça era lavada antes do
parto, pois durante o resguardo de quarenta dias não se permitia tal
higienização. A alimentação consistia de sopas, de frango ou galinha;
uma vez ou outra era permitida a carne de porco acompanhada de tutu
de feijão, classificados como comida quente. O arroz, classificado
como alimento frio, só se permitia após decorridos trinta dias.
Somente após um longo período após o parto tornavam-se
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permissíveis os alimentos tidos como reimosos. Nada de frutas,
principalmente as ácidas. Antes das refeições um cálice de Água
Inglesa; após as refeições uma fatia de marmelada de Santa Luzia.
Leite e canjica faziam parte da alimentação (ALBERNAZ, 1992, p.
19-20).
De certa forma, se pode dizer que os problemas de saúde em Goiás no final do século
XIX e início do XX estavam relacionados a diversos fatores. Dentre eles, destacam-se: a
carência de infra-estrutura, a qualidade da água e a falta de higiene dos moradores. Ondina
Albernaz reforça a idéia de que a cidade de Goiás carecia de infraestrutura e água potável.
Nas palavras da referida autora:
A cidade não tinha infra-estrutura e a água das cisternas, por ser
salobra, só era utilizada nas lides domésticas; água para se beber tinha
que ser dos chafarizes, preferencialmente a da Carioca, por ser a mais
potável. Os carregadores de água, em potes ou latas equilibrados sobre
a cabeça, faziam deste trabalho profissão estável. A roupa dos
habitantes da cidade era lavada na fonte, expressão da época que
definia que o trabalho seria realizado nas águas correntes de rios e
riachos próximos, tais como Vermelho, Bacalhau, Bagagem,
Bacalhauzinho, Manoel Gomes e outros menores (ALBERNAZ, 1992,
p. 30).
Ofélia Sócrates do Nascimento Monteiro também fez algumas considerações sobre a
falta de higiene presente no consumo da água na Cidade de Goiás. Em sua obra
Reminiscências afirmou:
Ainda não havia água encanada em Goiás (...) Para se beber, a água
vinha da Carioca, chafariz de água límpida, mais pura que a do
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imponente chafariz do Largo e a dos outros existentes na cidade. Por
ficar mais afastado da parte central, sua condução custava mais caro
que a dos outros chafarizes. Em toda casa a água de beber ficava na
sala de jantar, em cantoneira pregada na parede. Junto do pote, na
cantoneira, ou pendurada em prego, estava sempre bonita caneca
esmaltada destinada a tirar a água de dentro dele. Isso não era nada
higiênico porque as pessoas, principalmente as crianças, enfiavam
também na água, a mão que segurava a caneca (MONTEIRO, 1974, p.
21-22).
Estrutura e dinâmica da assistência social
De acordo com Ondina de Bastos Albernaz, na obra Reminiscências, havia na cidade
Goiás no campo da assistência social, o Hospital de Caridade São Pedro de Alcântara. O
Hospital de Caridade só atendia carentes e indigentes, sendo o único da cidade e do Estado.
Ainda que a criação deste hospital se devesse a uma Carta Régia de 25 de janeiro de 1825 por
iniciativa de um grupo de cidadãos preocupados com a assistência social da localidade podese dizer que nunca se caracterizou como uma instituição integrante da estrutura do Estado.
De fato, a confusão estabelecida entre medicina e caridade favorecia,
desde aquela época, usos assistencialistas. O Hospital São Pedro
d’Alcântara não fugiu a esta regra. Única instituição de assistência à
saúde que existia em toda a Província, foi administrada sem que
houvesse uma responsabilidade governamental direta com sua
manutenção. No entanto, sempre dependeu da providência e
magnanimidade das autoridades públicas (MEIRELES, 2010, p. 105).
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Entre Europa África e América:
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Foram comerciantes, fazendeiros e funcionários públicos abastados, tanto católicos
quanto maçons, que o conceberam. Daí a presença em seu funcionamento, de certos traços
religiosos, caracterizados pela proposta caridosa e misericordiosa.
Infelizmente, a bibliografia a respeito do tema é bastante escassa e/ou não aborda a
situação do município após a transferência da capital de forma objetiva. Por isso, pretende-se
reproduzir aqui aqueles pontos de vista comumente encontrados entre os morados mais
antigos da cidade de Goiás. Considerando que o enfoque desta pesquisa é a assistencial social,
se pode antecipar ao ávido leitor que a situação era bastante problemática.
Os principais estudos sobre o Hospital da Caridade São Pedro de Alcântara
(MORAES, 1995; RABELO, 1997; SALLES, 1999; MAGALHÃES, 2004) mostram-no
como “o eixo central do que se refere à assistência social”, abarcava funções e princípios
caritativos cristãos, recolhendo alienados, menores abandonados, assistindo aos encarcerados,
doentes e necessitados e, posteriormente, enterrando gratuitamente os indigentes. Prestava
amparo material e espiritual à comunidade na vida e na morte (MAGALHÃES, 2004, p. 662).
Em 1883, os primeiros dominicanos chegaram à Cidade de Goiás, obtendo do bispo,
através de instrumentos jurídicos, o usufruto perpétuo da Casa de Goiás, ocupando
inicialmente a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Durante o início da República,
em 1889, a congregação religiosa das freiras dominicanas também se instala na cidade e,
conforme sua tradição passa a se dedicar aos cuidados com a educação, saúde e assistência da
população.
Com a chegada das dominicanas, o Hospital da Caridade São Pedro de Alcântara passa
por grandes transformações. Em 1908 esta Irmandade e a Junta Administrativa, iniciaram uma
grande reforma com a ampliação das instalações tanto para o Hospital quanto para um espaço
contíguo para servir de residência às irmãs de caridade. Em 1921, novas reformas e novas
concepções de atendimento hospitalar vão sendo agregadas, tais como salas cirúrgicas e
enfermarias mais equipadas (Cf. MAGALHÃES, 2004).
Esta congregação religiosa, além de se encarregar de trabalho administrativo
hospitalar, funda também o Colégio Santana e o Asilo São Vicente de Paulo. Este asilo
também fazia parte da assistência social.
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Os primeiros trabalhos deste grupo foram dedicados à fundação de um
espaço, na Cidade de Goiás, com o principal objetivo de abrigar e
assistir mendigos, velhos e doentes mentais. Esta iniciativa deveu-se a
motivos sociais e econômicos, com cunho caritativo. De um lado, a
mendicância aumentava a olhos vistos e conviver com esta população
perambulante nas ruas, ameaçava a “harmonia social”, isto é, o
sossego da sociedade vilaboense. De outro, gastava-se muito com
aluguéis para o abrigo e assistência a estes necessitados (MEIRELES,
2010, p. 109)
Construído em 1908, abrigava retardados e “bobos”. Era dirigido pelas dominicanas e
assistido por uma sociedade filantrópica. De acordo com Meirelles (2010), a iniciativa dos
vicentinos deveu-se a motivos sociais e econômicos, com cunho caritativo. Em 25 de julho de
1909, o Asilo começou a receber seus primeiros internos. Prudente (2006) relata este começo
assim:
Os confrades dirigiram para o antigo asilo localizado na Rosa Gomes,
onde tem-se um beco, do qual chegava ao depois chamado de Chácara
do Sr. Santomé; e buscaram os futuros asilados, carregando nos braços
os que não podiam andar e os portadores de necessidades especiais,
chamados então de “bobos” ou idiotas [...]. No primeiro dia tiveram
onze asilados, dos quais quatro eram homens e sete mulheres. Oito
dias depois mais uma senhora foi asiladas (PRUDENTE, 2006, p. 6869)
A referida autora ainda enfatiza que desde os primórdios até os dias de hoje, esta
instituição foi preferencialmente dirigida a receber “bobos”, que para lá eram encaminhados
ou deixados na soleira de sua porta de entrada, tornando-se referência nesta área em toda a
região. Mas, atualmente, apesar da qualidade assistencial que oferece, “transformou-se na
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porta de saída da vida para os “bobos” que são lá deixados, afetivamente carentes, sem
serventia para os “beneméritos” que os acolheram quando eram jovens e largados no
esquecimento por suas próprias famílias” (PRUDENTE, 2006, p. 78)
Ao retratar o “comércio miúdo” da Cidade de Goiás, Ondina Albernaz informou
inicialmente que “a cidade contava também com uma farmácia dirigida pelo farmacêutico
Luiz de Camargo” (ALBERNAZ, 1992, p. 19). Mais adiante, na mesma obra, afirma a
existência de mais duas farmácias: “contávamos com duas farmácias: a do doutor Perillo
Júnior, o primeiro farmacêutico formado da cidade, e a do Hospital da Caridade” (Op. cit. p.
27). Portanto, supõem-se que haviam apenas três farmácias na cidade de Goiás no começo do
século XX para atender uma população de aproximadamente 21.223 pessoas284.
Além disso, todas as mercadorias chegavam à cidade em carros de bois ou tropas de
burros. Transportados desta forma, passando por estradas quase intransitáveis e atravessando
rios cheios, supõem-se que os sacos de lona que abrigavam o conteúdo nem sempre resistiam
aos embates da longa viagem, assim, em acréscimo ao atraso muito comum à época, podiam
os remédios chegarem danificados.
Considerações Finais
Meireles (2010) afirma que “o cenário que se constrói nos últimos anos do século XIX
na Cidade de Goiás, com um evidente reforço da atividade religiosa católica, terá grande
importância no desenrolar dos acontecimentos políticos que se desdobrarão nas décadas
seguintes, desembocando na transferência da capital para Goiânia” (MEIRELES, 2010, p.
105).
A idéia de mudança da capital há muito existia, e chegou a ser registrada na carta
magna do Estado. Entretanto, Couto Magalhães em 1863 foi quem proclamou com mais vigor
a necessidade da mudança da capital. Escreveu abordando esse imperativo, em seu livro
284
De acordo com Juscelino Polonial as cinco cidades mais populosas de Goiás em 1920 eram: Catalão (38.574
habitantes); Boa Vista do Tocantins (25. 786 habitantes); Morrinhos (24.502 habitantes); Goiás (21.223
habitantes) e Ipameri (19.227 habitantes). Interessante destacar ainda que a população do Estado de Goiás
basicamente dobrou passando de 227.572 habitantes em 1890 para 511.919 habitantes em 1920. Para o referido
autor, a população de Goiás crescia, desde fins do século XIX, fruto da expansão do capitalismo para o interior.
Ver: POLONIAL, Juscelino. Terra do Anhanguera. História de Goiás. Goiânia: Kelps, 1997, p. 83-84.
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“Viagem ao Araguaia”:
Quanto à insalubridade, não conheço, entre todos os lugares que tenho
viajado, onde se reuniam tantas moléstias graves. Quase se pode
assegurar que não existe aqui um homem são. Quanto às condições
comerciais... Os meios de transportes são imperfeitos, a situação da
cidade encravada entre serras, faz com que sejam péssimas e de difícil
trânsito as estradas que aqui chegam. Em uma palavra... A Cidade de
Goiás não reúne as condições necessárias para uma capital como ainda
reúnem muitas para ser abandonada (MAGALHÃES apud CHAUL,
2001, p. 66)
Essas acusações contra a Cidade de Goiás, a insalubridade de seu clima e sua má
localização entre morros e montanhas, serviram para justificar a idéia de que a cidade não
comportaria uma grande população e não poderia servir de centro administrativo da Capitania.
Assim, a 23 de março de 1937, foi assinado o decreto nº. 1816, transferindo definitivamente a
capital estadual da Cidade de Goiás para Goiânia. a criança abandonada poderia viver,
adoecer e morrer na Cidade de Goiás?
Referências Bibliográficas
ALBERNAZ, Ondina de Bastos. Reminiscências. Goiânia: Kelps, 1992.
BUENO, Jerônimo Carvalho. História da Medicina em Goiás. Goiânia: Oriente, 1979.
CHAUL, Nasr Fayad. Caminhos de Goiás: da Construção da Decadência aos Limites da
Modernidade. Goiânia: UFG, 2001.
MAGALHÃES, S. “Hospital da Caridade São Pedro de Alcântara: assistência e saúde em
Goiás ao longo do século XIX”. Revista História, Ciências e Saúde-Manguinhos, Rio de
Janeiro, v. 11, n. 3, set.-dez. 2004.
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o Império português no Atlântico Sul
MATTOS, Raymundo J. Cunha "Explicação da má saúde da população de Goiás". Revista do
Instituto Geográfico do Brasil. 2° trimestre de 1874
MEIRELES, Marilucia Melo. Os “bobos” na tradição da cultura de Cidade de Goiás:
enigmas e silêncios sobre um tipo característico de figura do povo. Tese (Doutorado –
Programa de Pós-Graduação em Psicologia – Instituto de Psicologia da Universidade de São
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MEMÓRIAS GOIANAS 3. Relatórios dos Governos da Província de Goiás 1835-1843.
Goiânia: Editora da UCG, 1986.
MONTEIRO, Ofélia Sócrates do Nascimento. Reminiscências; Goiás de antanho, 1907 a
1911. Goiânia: Oriente, 1974.
MORAES, Cristina de Cássia Pereira de. As estratégias de purificação dos espaços na capital
da província de Goiás (1835-1843). Dissertação de mestrado, Instituto de Ciências Humanas
e Letras da Universidade Federal de Goiás. (mimeo), 1995.
PRUDENTE, T. Cotidiano e Preservação: Asilo São Vicente de Paulo da Cidade de Goiás.
Dissertação (Mestrado profissional em Gestão do Patrimônio Cultural) – Instituto Goiano de
Pré-História e Antropologia – IGPA, Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2006.
RABELO, Danilo. Os excessos do corpo. A normatização dos comportamentos na cidade de
Goiás (1822-1899). Dissertação de mestrado. Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia,
Universidade Federal de Goiás. (mimeo), 1997.
SALLES, Gilka Vasconcelos Ferreira de. “Saúde e doença em Goiás (1826-1930)”. In:
FREITAS, Lena Castelo Branco de (Org.). Saúde e doenças em Goiás. A medicina possível.
Goiânia: UFG, 1999, PP. 63-127.
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OS ALTARES DAS FOLIAS DO DIVINO ESPÍRITO SANTO: UMA DAS
EXPRESSÕES DA RELIGIOSIDADE PIRENOPOLINA
Tereza Caroline Lôbo
UEG/Unidade Universitária de Pirenópolis285
[email protected]
As folias giram pelo mundo
Os rituais de peditório de esmolas para realização de festas são manifestações da
cultura popular presentes em várias localidades do Brasil (CASCUDO, 1972). Estas
manifestações da religiosidade popular tem origem incerta e remota, conforme pesquisa
realizada por Pessoa que ao escrever sobre estas devoções afirma que estas
espalharam-se por toda a Europa como parte das grandes
peregrinações, a exemplo do que já acontecia em Santiago de
Compostela, Terra Santa e Roma. Como herança direta dessas
peregrinações,
surgiram
então
os
cânticos
populares,
muito
importantes em toda a Europa medieval, chamados Noëls na França,
Villancicos na Espanha e Folia em Portugal. Provavelmente, esses
cantos, acrescidos do teatro de Gil Vicente, depois de José de
Anchieta e Manoel da Nóbrega, constituem as matrizes mais diretas
das diversas devoções existentes no Brasil, como reisados, boi-dejaneiro, boi-de-reis, pastorinhas e, especialmente, no chamado
O presente trabalho está vinculado ao Grupo de Pesquisa em Turismo e Gastronomia Canela d’Ema e à
pesquisa “Artes e Saberes nas Manifestações Populares” que conta com o apoio da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de Goiás — FAPEG, conforme Chamada Pública nº 005/2012.
285
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Entre Europa África e América:
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"corredor das bandeiras" (SP, MG, GO, MS), as folias de reis
(PESSOA, 2007, p.65).
Este giro pelo mundo produziu diferentes linguagens festivas, formas variadas de
manifestação que deram a cada uma a singularidade que lhe é peculiar. Ao chegar ao Brasil,
vindas de Portugal as folias foram traduzidas se adequando a cada realidade, daí a
especificidade de cada uma destas manifestações da religiosidade popular.
Existem várias versões sobre a origem das Folias de Divino. Uma
delas é que partiu da própria Igreja a iniciativa de instituí-las como
uma forma de estender as cerimônias religiosas da Festa do Divino até
os moradores de fazendas, sítios e chácaras (DEUS e SILVA, 2003, p.
56).
Em Goiás um estado que tem a agropecuária como atividade econômica principal e
por isso a vida rural está na constituição das identidades locais, as folias têm uma
representatividade reconhecida e se fazem presentes em diversos municípios goianos. Cidades
como Goiânia e Anápolis, maiores centro urbanos do estado, mesmo com a intensa
modernização das últimas décadas, têm variadas manifestações de folias não sendo
festividades restritas apenas às pequenas localidades.
A singularidade de cada uma destas manifestações tem propiciado uma gama de
estudo sobre as folias buscando seu passado e sua interpretação no presente. Os estudos
apresentam estas práticas aliadas a sua tradição, como manifestação folclórica ou religiosa.
Estes festejos, em Goiás, têm sido pesquisados, por Pessoa (1993 e 2001), Coelho (2011) e
por nós que desde 2013 desenvolvemos o projeto “Artes e Saberes nas Manifestações
Populares” com financiamento do Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg).
Este tem como objetivo estudar as Folias e os terços cantados nas cidades de Anápolis e
Pirenópolis.
No município de Pirenópolis encontram-se desde o século XIX diversas
manifestações de folias, giradas ao longo do ano em homenagem a diferentes santos de
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devoção, como a de Santo Reis, realizadas nas fazendas e na área urbana, a de São João, no
distrito de Lagolândia, a de Sant’Ana, no povoado da Capela do Rio do Peixe, dentre outras,
mas as que têm um maior público participante é sem dúvida as Folias em homenagem ao
Divino Espírito Santo.
Acontecem atualmente, em Pirenópolis, três Folias do Divino durante as
comemorações ao Espírito Santo: duas folias rurais e uma urbana. As folias rurais fazem seu
giro – caminho circular percorrido pelos foliões a cavalo - pela zona rural e a folia urbana,
girada a pé pelos bairros periféricos da cidade, cumprindo também uma rota circular. Apesar
dos rituais serem recorrentes, cada uma tem suas especificidades, é um evento singular para
quem participa.
A Folia da zona rural, conhecida como Folia da Renovação Cristã, sai numa sextafeira, três semanas antes do domingo de Pentecostes, e é comandada por foliões e devotos
ligados à Igreja, é comumente chamada de “Folia do Padre”. A outra Folia rural – Folia do
Mateus Machado em alusão ao local de onde teria surgido - e a Folia urbana ou Folia da Rua
– autodenominada por percorrer seu trajeto pelos bairros da cidade - saem uma semana
depois, configurando um final de semana com saídas e chegada de folias. São momentos de
intensas festividades marcadas por desfiles de cavaleiros montados e animados “pousos” nas
fazendas e nas casas de pernoites dos foliões.
Estas práticas populares ao se materializarem em momentos de festas ressignificam
as paisagens e os lugares, construindo identidades variadas e diversas. Identidades estas
resultantes das relações estabelecidas entre seus atores cujas ações figuram entre o tradicional
e o moderno. No festejo ao Divino, as folias englobam tanto a parte religiosa, com destaque
para a fé e a devoção demonstradas pelos foliões e partícipes, quanto a profana, que atrai
pessoas interessadas nas comidas e bebidas distribuídas e nos bailes que acontecem depois de
cumprida a parte religiosa dos rituais.
A folia na sua dinâmica é um patrimônio cultural pertencente a sociedade
pirenopolina que também está em constante transformação, e para compreender sua realidade
é necessário observá-la como produto da sociedade que a gestou ao mesmo tempo que tem
que decifrar as interrelações dos elementos que a compõe. Ao descrever as manifestações
festivas destas folias realizadas em comemoração ao Divino Espírito Santo como integrante
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vital da cultura de Pirenópolis e dentro desta visão observar seus símbolos e rituais espera-se
conhecer mais sobre a manifestação da cultura local, bem como as pessoas que as vivenciam.
Olhares sobre as folias e seus altares
O projeto de Iniciação Científica intitulado Patrimônio e turismo: a Folia do Divino
Espírito Santo em Pirenópolis/Goiás está vinculado ao Grupo de Pesquisa em Turismo e
Gastronomia Canela d’Ema - da Universidade Estadual de Goiás, Unidade Universitária de
Pirenópolis - e objetiva compreender as Folias como patrimônio focando sua dinâmica na
atualidade e sua convivência com o turismo. O trabalho é parte de um projeto maior,
financiado pelo Fundo de Amparo à Pesquisa de Goiás (Fapeg), que está estudando e
produzindo um farto material audiovisual sobre as Folias de Reis e os terços cantados em
Anápolis e Pirenópolis.
As fotografias das Folias do Divino produzidas no campo - nos anos de 2013 a 2014
- denotam os aspectos paisagísticos do local da festa, os rituais, os símbolos, os momentos, os
gestos e as maneiras de ser no mundo de quem vivencia estas festividades. Entendemos que as
fotos não são apenas ilustrativas, mas, são mensagens que se processam como documento,
como um auxílio à memória e, às vezes, como substituto de textos descritivos.
Na produção deste material partimos da premissa de que na Folia “existe uma gama
variada de sistemas sígnicos que, sendo fruto das relações sociais, compõe o quadro cultural
de uma sociedade” (GANDARA, 2005, p.1780), no caso, a sociedade pirenopolina. Servindo,
em última instância, à caracterização do olhar sobre os festejos, ou seja, revelando as
identidades presentes nas celebrações e a realidade que se procura interpretar.
Os símbolos da Folia do Divino são muito importantes para a
compreensão desse ritual, como é o caso da bandeira do Divino, de
cor vermelha, com a pomba branca bordada ou pintada ao centro. Em
cada lugar as pessoas fazem um tipo diferente de bandeira e em geral
ele é muito devotada (DEUS e SILVA, 2003, p. 56).
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Ao observar as imagens dos altares das folias produzidas durante a pesquisa de
campo e avaliar as várias leituras possíveis das imagens realizadas instigava-nos descobrir o
que estava por trás desse pequeno cenário e quais as histórias que fundamentavam sua
disposição. Nestes altares se materializam as práticas e representações da religiosidade
presentes nas Folias do Divino Espírito Santo de Pirenópolis.
Os altares encontrados nas casas que abrigaram as Folias para os seus pousos
demonstram a fé, a devoção e a arte dos anfitriões. Estes cenários dizem muito sobre as
pessoas do lugar, percebidos no esmero da elaboração dos oragos que chamam atenção e atrai
os olhares, como os nossos, que ao organizar o material fotográfico produzido sobre as Folias
deparamos com dezenas de fotos de altares. E, percebemos ser possível observar nos objetos
que compõem os altares formas variadas e complexas de se relacionar com a fé, com a cultura
e com as tradições.
Ao focar nos altares das Folias do Divino –– entendemos que as crenças que estão ali
expressas são manifestações da religiosidade dos donos da casa, pode-se perceber que a festa
é em homenagem ao Espírito Santo, mas os santos de devoção dos anfitriões se fazem
presentes: São Judas Tadeu, Nossa Senhora Aparecida, São José, dentre outros, sozinhos e
não raro compondo um grupo de santos. Estes interlocutores entre o mundo dos homens e o
mundo de Deus estão dispostos obedecendo uma hierarquia cuja centralidade é ocupada pelo
santo de maior devoção, e este quase nunca é o Espírito Santo como pode ser observado na
figura 1.
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Figura 1: Altar da folia tradicional. Fotografia: Lôbo, 2013.
O esmero na elaboração dos oragos chama atenção, atrai os olhares e alimenta a
devoção configurando em diversas representações que simbolicamente permeiam a memória
social. Estes altares possibilitam a manifestação do sagrado sob a forma de hierofania no
espaço, ou seja, são lugares repletos de sentidos para as práticas religiosas (ROSENDAHL,
2005). É o local de repouso das bandeiras consideradas sagradas pelos foliões e é no contato
com as bandeiras e aos pés do altar que os devotos rendem suas graças.
Os altares e a vivência com o sagrado
As casas e fazendas que receberão os pousos e a passagem da folia iniciam sua
preparação com antecedência, os espaços de moradia são intensamente alterados. Altares são
detalhadamente montados para receber as bandeiras, quintais são enfeitados com bandeirolas
coloridas e/ou da cor do Divino – brancas e vermelhas – os espaços de realização dos pousos
são transmudados para acolher os foliões e seus cavalos e os visitantes, pastos são abertos
para estacionamento de carros, áreas de acampamentos são criadas, as cozinhas são adaptadas
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para a feitura de grandes quantidades de comidas, para citar alguns exemplos de
transformação do espaço para a realização dos pousos de folias.
Na chegada à fazenda ou casa os foliões fazem uma evolução formando um “s” e
param diante de um arco de folhas enfeitado com flores e preparado na entrada da casa, este
estabelece as fronteiras entre o sagrado e o profano, entre o mundo da folia e o mundo do
cotidiano. Neste momento entram em cena os músicos que cantam versos rimados louvando o
Divino e citando o que veem no arco. No centro deste arco avista-se uma xícara que
representa um presente guardado pelos proprietários – normalmente uma garrafa de pinga ou
refrigerante enterrada e que deve ser encontrada para que as bandeiras possam passar embaixo
do arco e entrar na casa. As bandeiras são entregues aos donos da casa que as conduzem até o
altar preparado e enfeitado para a festa, aí acontecem mais cantorias.
O altar fica dentro da casa, sendo o responsável por trazer as bandeiras para a
intimidade da residência. Quando as bandeiras transpõem a porta de entrada da casa a
realidade é ressignificada por meio de uma performance ritual, com isso, o espaço da casa
sacraliza-se, é um espaço transcendente e mítico. O altar torna a vivência com o sagrado uma
realidade concreta e não imaginada.
Construir altares carregados de simbolismo não é mérito do homem do passado e
nem tão pouco do homem moderno “a mais pálida das existências está repleta de símbolos, o
homem mais ‘realista’ vive de imagens (ELIADE, 1991, p.12 e 13). No entanto, a vida
moderna dessacralizada, está carregada de simbolismos e cheia de mitos semi-esquecidos, de
hierofanias decadentes, de símbolos abandonados. Ainda dentro deste raciocínio, o interesse
pelas imagens não diminuiu, mas “oferecem um possível ponto de partida a renovação
espiritual do homem moderno” (ELIADE, 1991, p.14 e 15). Os altares das folias despertam e
alimentam as nostalgias e recolocam o homem em um universo do imaginário repleto de
símbolos e vivências mitológicas.
Há uma necessidade premente de estudar os sentidos e os símbolos presentes nestes
altares, não seus significados, pois concordamos com Eliade (1991) quando este diz que
“traduzir” as imagens em termos concretos é uma operação vazia de sentido.
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As Imagens são, por suas próprias estruturas, multivalentes. Se o
espírito utiliza as Imagens para captar a realidade profunda das coisas,
é exatamente porque essa realidade se manifesta de maneira
contraditória, e consequentemente não poderia ser expressada por
conceitos (ELIADE, 1991, p.11).
O oratório comumente encontrado nas residências dos devotos não são suficientes
para compor o espaço do sagrado, e por isso uma mesa é improvisada em um canto da casa
para dar suporte aos objetos que comporão uma estrutura artisticamente construída. Com
relação ao canto da casa nos aportamos em Bachelard, quando este estuda os espaços da
intimidade com base numa fenomenologia do habitar, eis o ponto de partida de suas reflexões:
todo canto de uma casa, todo ângulo de um quarto, todo espaço
reduzido onde gostamos de encolher-nos, de recolher em nós mesmos,
é, para a imaginação, uma solidão, ou seja, o germe de um quarto, o
germe de uma casa (BACHELARD, 1993, p. 145).
Os tecidos coloridos cobrem a mesa e as paredes e juntamente com as fitas e flores
dão cores variadas à decoração. Flores, folhas, vasos com plantas demonstram a presença da
vida e juntamente com a luz das velas afastam a solidão de um espaço de refúgio construído
para intimidade e reclusão. O altar é o refúgio seguro das bandeiras, construído para abrigálas ao longo da noite, responsável pela pausa no giro. Este espaço da imobilidade é também o
lugar de encontro com nós mesmo, da mediação entre o homem e a divindade, ou ainda, “o
canto é casa do ser” (BACHELARD, 1993, p. 147).
Este canto imóvel e seguro do altar é invadido pelos cânticos entoados pelos foliões,
que numa sequência rimadas cantam o sagrado ali materializado. O ritual no altar tem por
função precípua realizar a mediação entre este e o outro mundo, entre o mundo dos vivo e dos
mortos, dos homens e dos santos. As fotos de familiares que já morreram dividem espaço com
os santos no altar, assim como, fotografias dos moradores da casa em momentos de festas e
lazer costumam ocupar lugar próximo às divindades (Figura 2).
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Figura 2: Altar da Folia Tradicional na Fazenda do Cacada. Fotograifa: Luz, 2014.
A disposição e a natureza dos objetos e das imagens presentes obedecem a uma
hierarquia própria de quem o organizou, acreditamos que as ações de elaboração do altar
estejam carregadas de intencionalidades e que
as imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da
psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função:
revelar as mais secretas modalidades do ser. Por isso, seu estudo nos
permite melhor conhecer o homem, ‘o homem simplesmente’”
(ELIADE, 1991, p.8 e 9).
Os deslocamentos realizados pelas folias traçam um mapa das relações sociais
estabelecidas entre foliões e devotos indicando quais as casas e os locais que serão visitados e
a qualidade das relações estabelecidas. Ao percorrer um caminho ritual as folias congregam
pessoas entorno de uma devoção e com isso expressam a religiosidade dos que participam.
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Os altares cumprem dentro das manifestações ritualísticas das folias uma dupla e
contraditória missão, qual seja: a de criar um espaço de intimidade e individualidade em que o
devoto, ladeado pelas bandeiras com toda sua sacralidade, pode vivenciar o sagrado e por
outro lado é o responsável pela constituição de uma ampla rede de sociabilidade que atrai
multidões de partícipes que são autorizados pelos rituais a adentrar o nicho da intimidade que
é o lar do devoto que sede sua casa para o pouso das bandeiras.
Considerações Finais
As bandeiras das folias terminam suas viagens no altar onde se encontra a Coroa do
Divino, um dos símbolos mais significativos da Festa do Espírito Santo de Pirenópolis, datada
da segunda década do século XIX, segundo Jayme (1971). É toda em prata com um Divino
em ouro maciço no alto, seu maior valor está na devoção dos fieis que lhe atribui inúmeras
graças. Fica entronizada na casa do Imperador durante o ano, é deste altar que saem e chegam
os rituais que dão estrutura à Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis.
As novas formas de ver o mundo inauguradas pela pós-modernidade – com todos os
sentidos abarcados pelo termo - ampliam o desafio de entender uma atividade tão complexa
quanto as festas populares, especificamente as Folias do Divino, Trata-se,
portanto,
de
assumir teoricamente as folias como “fatos sociais totais” (MAUSS, 2003) na medida em que
a compreende como um fenômeno social interligado a outras dimensões da vida humana,
como o modo de ser no mundo das populações que coabitam uma localidade.
A inegável complexidade do tema abordado não permite uma síntese, mas amplia a
rede de discussão que permitirá uma proximidade de entendimento da temática cujo desafio
permeia o campo da subjetividade das ideias, dos valores, dos símbolos que constituem as
formas de vida no lugar.
Referências bibliográficas
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes, 1993.
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o Império português no Atlântico Sul
FRONTEIRAS DO COMÉRCIO E A EXPANSÃO DA RURALIDADE
COLONIAL NA AMÉRICA PORTUGUESA (primeira metade do XVIII)
Tiago Kramer de Oliveira286
Este pequeno texto aborda a expansão da ruralidade colonial na primeira metade do
século XVIII, nos territórios da capitania de São Paulo. Nosso objetivo é problematizar a
relação entre a formação de ambientes rurais e as práticas mercantis. Defendemos que a
presente análise fortalece nossa interpretação de que a espacialização de ambientes rurais
ocorrida no período não é consequência imediata dos descobertos auríferos. Também não
corroboramos com o argumento de que o investimento no meio rural significaria a adoção de
um projeto aristocrático de reprodução social em detrimento do setor mercantil. Parece-nos
que a expansão da ruralidade corresponde às mudanças nas fronteiras do capital mercantil na
primeira metade do século XVIII. Mudanças que impactam na intensificação da exploração
escravista nos setores da economia não diretamente ligados à produção para o mercado
atlântico. Tratar da ampliação das fronteiras do capital mercantil na América significa, entre
vários outros aspectos, tratar dos caminhos do comércio.
O único caminho regular que ligava as minas de Cuiabá com praças mercantis do
litoral atlântico - no período entre aconsolidação das primeiras conquistase 1737 - era a rota
das monções. Nestes quase vinte anos entre as primeiras explorações e a abertura do caminho
de terra entre Cuiabá e Goiás, os homens de negócio que controlavam – ou que participavam
do controle – dessa rota, tiveram o privilégio de abastecer um mercado que, embora pequeno,
tinha um poder de compra que permitia elevadíssimos preços.
Rotas terrestres certamente barateariam os custos e, como aponta Nauk M. de Jesus,
existiram propostas de abertura de caminhos de terra. A insistência de Rodrigo César de
Meneses em não permitir que se abrissem novas rotas para as minas de Cuiabá encontrava
justificativa não apenas na defesa dos interesses do rei, mas em interesses do próprio Rodrigo
César e de sua “sociedade mercantil que conectava o Brasil a Angola, por meio do tráfico de
286
Professor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Doutor em História Econômica pela Universidade
de São Paulo.
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escravos e extravio de metais preciosos”. O governador, impedindo “a utilização de novas
rotas, procurava resguardar os interesses econômicos que possuía nas Minas do Cuiabá”287.
E os interesses de Rodrigo César não estavam circunscritos apenas na manutenção da
rota entre São Paulo – mais precisamente Araritaguaba, na vila de Itu - e Cuiabá, mas também
na rota de São Paulo ao litoral do Rio de Janeiro. Caminho que não apenas abastecia a rota
das monções, como também os caminhos que levavam às minas de Goiás e às Minas Gerais.
Poderíamos citar vários outros exemplos, mas os elementos que temos, relacionados às
pesquisas tanto de Maria A. M. Borrego quanto às de Nauk Maria de Jesus, já são suficientes
para percebermos que os agentes mercantis que atuavam no comércio de Cuiabá compunham
redes de comércio coloniais e articulavam-se a redes que envolviam interesses das elites da
nobreza reinol. O que nos interessa aqui é perceber como estes “interesses” articulam-se à
espacialização da economia colonial, construindo outro tipo de “rede”, costurada pela relação
que as múltiplas espacializações tinham entre si.
Ao longo da rota das monções espacializavam-se ambientes rurais para abastecer os
“viandantes”. No extremo leste da rota das monções, em Araritaguaba – no termo da vila de
Itu – várias sesmarias eram concedidas “para a facilidade e conveniência de acharem
mantimentos (...) os que vem das Minas do Cuiabá”288. Silvana Godoy aponta que em 1728,
mesmo ano em que houve várias concessões de sesmarias nas minas do Cuiabá, foram
concedidas sesmarias em Araritaguaba “com o objetivo de atender as rotas que iam para as
minas”289. A produção de mantimentos envolvia também os pequenos produtores livres
pobres290.
O percurso de Cuiabá a Araritaguaba era só uma parte do caminho feito pelas
mercadorias. Os membros das redes mercantis paulistas iam regularmente ao Rio de Janeiro,
ou faziam encomendas ao mercado fluminense291. Era uma elite, portanto, que ocupava um
287
JESUS, Nauk Maria. Na trama dos conflitos: a administração na fronteira oeste da América portuguesa
(1719-1778). Tese de Doutorado. Niterói: UFF, 2006 p. 161-162.
288
Requerimento de Sesmarias de Bernardo de Quadros e Sebastião (...), 18-10-1724. Requerimentos de
sesmarias. APESP, doc 80-01-47.
289
GODOY, Silvana Alves de. Itu e Araritaguaba na rota das monções (1718-1828). Dissertação de Mestrado.
Campinas: Unicamp, 2002, p. 134.
290
GODOY, Silvana Alves de. Op. cit., p. 144.
291
BORREGO, Maria A. M. A Teia mercantil: (...). p. 77.
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o Império português no Atlântico Sul
lugar intermediário nas relações de comércio no âmbito do império português. Acima estavam
os homens de negócio do Rio de Janeiro e de Lisboa. Abaixo um universo de “vendeiros”,
varejistas de diversos segmentos sociais292.
A abertura de um caminho que pudesse ligar por terra São Paulo ao Rio de Janeiro
parecia urgente aos olhos de Rodrigo César de Meneses, e por ele deveria passar o ouro de
Cuiabá. Em documento de 1725, o governador escreve a D. João V,
Por entender ser conveniente a segurança da Real Fazenda de vossa
majestade, principalmente para a remessa dos quintos, que vão para o
Rio de Janeiro e por evitar o risco que se lhe pode seguir no transporte
por mar do porto de Santos àquela cidade, ajustei com alguns homens
principais e poderosos desta capitania a que fossem fazer a abertura do
dito caminho ao qual já deram princípio para ver se podiam vencer as
muitas dificuldades que tem por respeito de matos grossos, e algumas
serras, e porque desse serviço se segue utilidade a Real Fazenda sem
ela entrar com despesa alguma convindo também muito a todos os
povos desta capitania, me parece aprovará vossa majestade, a seu
serviço que tomei sobre este particular (...)”.293 (grifos nossos)
Sabemos dos interesses particulares que moviam o governador a se empenhar na
abertura do caminho. Ele tinha, inclusive, ligações bastante suspeitas com o provedor do
registro de Parati294. Mas as intenções de Rodrigo César são apenas uma pequena parte que
emerge de um conteúdo submerso ao documento. Em um requerimento de sesmarias de 1725,
292
Sobre a hierarquia do comércio, ver os trabalhos de Júnia Furtado e de Cláudia M. das G. Chaves.
FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas minas
setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2006. CHAVES, Cláudia M. das G. Perfeitos Negociantes: mercadores das
Minas Gerais Setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999.
293
CARTA do governador e capitão general da capitania de São Paulo, Rodrigo César de Meneses, ao rei D. João
V. 23-04-1725. AHU_ACL_CU_023, Cx. 1, doc. 51.
294
JESUS, Nauk Maria. Na trama dos conflitos: (...). Op. cit., p. 110. JESUS, Nauk Maria. “As versões de ouro
em chumbo: a elite imperial e o descaminho de ouro na fronteira oeste da América Portuguesa (1722-1728)”. In
FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima. Na trama das redes: políticas e negócios no império português,
séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 536-537; 543.
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o Império português no Atlântico Sul
podemos nos aproximar das práticas dos “homens principais e poderosos” citados pelo
governador.
Dizem o capitão mor Domingos Antunes Fialho, o sargento mor
Domingos Rodrigues de Carvalho, Antônio da Silva, Antônio Ribeiro
do (...) e os mais assinados ao pé desta, moradores que são na vila de
Santo Antônio de Guaratinguetá desta capitania da cidade de São
Paulo que eles suplicantes os foram por mandado e ordem de v.
excelência, como leais verdadeiros vassalos de sua majestade que
Deus guarde, a custa de suas vidas e fazendas e risco de suas vidas e
escravos, a abrir o caminho que vai da dita vila até Santa Cruz (...) a
picada (...) se acha aberta (...) para o ano vindouro de mil setecentos
de vinte e seis fazerem o caminho e por mesmo capaz de por ele se
caminhar gente de pé e cavalo, serviço este muito útil e necessário
para a segurança dos reais quintos das minas do Cuiabá, na condução
deles por terra, e também pelo dito caminho entrar todo o comércio,
tanto da Capitania do Rio de Janeiro como desta de São Pauloe por
prêmio de tão grande serviço que os suplicantes (...) sem remuneração
dele, só rogam a V. Excelência (...) as terras que se acham na Serra do
Mar para nelas fazerem suas roças, plantando (...) o mantimento
necessário para os viandantes e (...) pagar os dízimos”295. (grifos
nossos)
O caminho de fato foi aberto, consolidando a rota São Paulo – Mogi – Jacareí Taubaté – Pindamonhangaba - Guaratinguetá – Parati - Rio de Janeiro.
295
Requerimento de Sesmarias de Domingos Antunes Fialho Domingos, Rodrigues de Carvalho, Antônio da
Silva, Antônio Ribeiro e outros. 02-08-1725. Requerimentos de sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP,
doc. 80-02-19.
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Jundiaí
Figura 1. Detalhe: Territórios entre as capitanias de S. Paulo e Mato Grosso, 1754, apud
GARCIA, João Carlos (coord.) A mais dilatada vista do mundo: inventário da coleção
cartográfica da Casa da Ìnsua. Portugal, 2000, p. 294. (destacamos o caminho de São Paulo
ao Rio de Janeiro, inserimos a vila de Jundiaí, em localização aproximada)296.
Observando o mapa, notamos que na cidade de São Paulo bifurcam-se dois caminhos
que levam às regiões mineiras da capitania. Um, rumo a oeste, levava até o povoado de
Araritaguaba e a partir daí às minas de Cuiabá, e outro, ao norte, passando por Jundiaí e pelo
povoado de Mogi (no topo esquerdo do recorte), levava às minas de Goiás. Para o litoral,
temos dois caminhos, um que leva ao litoral paulista e outro para o Rio de Janeiro.
Destacamos em vermelho uma parte da rota a qual iremos nos ocupar de forma mais detida.
Houve, entre 1720 e 1740, uma quantidade considerável de requerimentos de
sesmarias para terras localizadas nos termos das vilas que ficavam no caminho entre Taubaté
296
A cópia digital do mapa, foi retirada do trabalho de João Antonio Botelho Lucídio. LUCIDIO, João Antonio.
B. A Vila Bela e a ocupação portuguesa do Guaporé no século XVIII. Projeto Fronteira Ocidental Arqueologia e
História – Vila Bela da Santíssima Trindade / MT. Relatório final. Fase 2 , Cuiabá: Governo de Mato
Grosso/Secretaria de Estado de Cultura/ Coordenadoria de Preservação do Patrimônio Cultural, Histórico,
Artístico e Arqueológico OdirBurity, 2004, p. 43.
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e Rio de Janeiro. Entre eles, claro, vários requerimentos dos “homens principais” citados por
Rodrigo César, todos moradores da vila de Guaratinguetá.
Para John Manoel Monteiro, o início do século XVIII, marcaria uma reversão na
agricultura paulista e “a abertura das minas repercutiu na organização agrária do planalto em
pelo menos dois sentidos importantes”:
Primeiro, devido ao custo proibitivo do transporte e a crescente
escassez de mão-de-obra indígena, os principais produtores que
permaneceram no planalto reorientaram sua produção comercial,
transformando searas em pastos e montando alambiques. Segundo, a
migração intensa de boa parte da mão-de-obra indígena para as zonas
auríferas e a concentração do restante nas unidades maiores
confinaram a vasta maioria dos colonos rurais a uma existência
marginal e pauperizada. Muitos homens abandonaram seus modestos
sítios em prol da fortuna, alguns poucos tornando-se ricos nas
distantes minas das Gerais, Mato Grosso e Goiás. Mas, para os que
ficaram, a idade do ouro significou o aprofundamento da pobreza
rural, processo já em marcha desde a segunda metade do século XVII
com o vertiginoso declínio da escravidão indígena297.
Analisando os requerimentos de sesmarias, parece que a circulação de ouro das minas
e a abertura de rotas de abastecimento teriam efeito diverso na agricultura paulista do que o
exposto por Monteiro. Vejamos com mais detalhes as características dos requerimentos de
sesmarias para a região entre Taubaté e Parati298.
297
MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994, p. 225-226.
298
Antes de tudo é preciso que tenhamos certo cuidado com a utilização dos requerimentos – ou mesmo as cartas
de sesmarias - como uma forma de caracterização das atividades rurais. Estes documentos constroem uma
narrativa que se apropria de enunciados que legitimam a posse da terra. Para a primeira metade do século XVIII,
não havia a exigência da enumeração de informações padronizadas, como se possui ou não escravos e em que
quantidade. Por exemplo, quase a totalidade dos requerimentos, referentes às terras que estão nos caminhos entre
Guaratinguetá e Rio de Janeiro, informam que a atividade desenvolvida é/ou será “plantar mantimentos” para
abastecer os “viandantes”. Os requerentes sabiam que era este o interesse da Coroa e do governador da capitania.
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Para o período entre 1721 e 1740 localizamos 46 requerimentos299. Destes, 50%
declaram que as terras estão localizadas ao longo do caminho entre Taubaté e Rio de Janeiro.
Todos os requerentes informam o local de moradia; apenas dois não são moradores da região
entre Taubaté e Parati, e 82% são residentes no termo da vila onde as terras estão localizadas;
32% não informam claramente qual atividade produtiva desenvolvem ou irão desenvolver.
Entre os que informam, a agricultura está presente em todos os requerimentos e, apenas em
10% deles, associado à pecuária. Sobre a extensão das terras, 78,2% estão acima da medida de
1,0 léguas em quadra, sendo que 10,8% têm as extensões maiores, todas de 1,0 por 3,0 léguas.
66,6% ainda não exploravam as terras que requeriam enquanto 34,4% já desenvolviam
atividades produtivas nas terras.Quanto ao que podemos chamar de “forma de legitimação da
posse”, 6,5% afirmam ter adquirido as terras por compra, 10,8% alegam estar pedindo terras
devolutas contíguas às que já possuem, 13% pedem terras ainda não exploradas alegando
serviços prestados300, e 67,3% alegam apenas tratarem-se de terras devolutas nunca antes
possuídas301.
Temos, no período em questão, um grupo de pessoas em condições de explorar terras
em extensões que só podem ser justificadas pela utilização do trabalho escravo. Os
requerentes eram, portanto, em sua grande maioria, senhores de escravos moradores das vilas
próximas às terras. Não era praxe, nas cartas de sesmarias do período, discriminar
informações sobre a posse de escravos. Mesmo assim 15,2% dos requerentes afirmavam
possuir escravos, e 11,6% diziam ter “muitos” ou “bastantes escravos”302.
O que não quer dizer que não plantavam “mantimentos”, mas poderiam manter outras atividades, como os
engenhos, que talvez não fosse conveniente mencionar nos requerimentos.
299
Requerimentos de Sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP.
300
Alegam terem aberto caminhos, lutado contra os índios a serviço do rei, entre outros.
301
Apenas um dos requerimentos, faz referência a uma terra “abandonada”.
302
É o caso de um morador de Pindamonhangaba que, ainda em 1723, diz ser “possuidor de escravos do gentio
da guiné e da terra, com toda a fábrica necessária”. Requerimento de sesmarias de Antonio Cabral da Silva, 3103-1723. Requerimentos de Sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP, doc. 80-01-15. E também de
Manoel de Siqueira Cardozo morador de Guaratinguetá que em 1739 pede uma extensão de terras “de uma légua
por duas léguas” e diz possuir escravos “bastantes para levantar engenho”. Requerimento de sesmarias de
Antonio Cabral da Silva, 29-07-1739. Requerimentos de Sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP, doc.
80-04-01. Um morador do “distrito de Minas Gerais”, requerente deterras em 1735 declara que “se acha com
bastantes família e escravos em que possa plantar seus mantimentos e que tem notícia que no distrito de
Guaratinguetá entre a serra de Mantiqueira e o caminho velho estão muitas terras devolutas”. Requerimento de
sesmarias de Domingos Rodrigues Correa, 30-10-1735. Requerimentos de Sesmarias da Capitania de São
Paulo. APESP, doc. 80-02-48.
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Para as terras no termo da vila de Jundiaí, no caminho para as minas de Goiás, o
padrão não é diverso do que encontramos para os caminhos de Guaratinguetá para o Rio de
Janeiro. Das 20 sesmarias requeridas em Jundiaí entre 1728 e 1740, 65% eram nos caminhos,
75% já ocupavam a terra. Dos 17 requerimentos que especificaram o local de moradia do
requerente, 76,4% eram moradores do termo da vila de Jundiaí303.
Tendo em vista o contexto apresentado por John Manoel Monteiro, não nos parece
absurdo propor que, ao contrário de provocar a desestruturação da agricultura planaltina, o
fluxo de pessoas e de mercadorias entre São Paulo e o Rio de Janeiro, ocorrido a partir da
exploração aurífera, foi responsável pela dinamização da exploração de atividades rurais, até
então em crise devido à falta de mão-de-obra escrava indígena. Mas, se a situação anterior era
de crise, como estes homens reuniriam condições para comprar escravos e abrir caminhos às
próprias custas?
A pesquisa de Maurício Martins Alves, sobre a economia de Taubaté entre 1680 e
1729, revela aspectos importantes de uma significativa mudança em curso nas características
das práticas econômicas e da estrutura fundiária. Em uma tabela, o autor discrimina a
“composição da riqueza por setor econômico” a partir dos inventários. Comparando os dados
de 1680 com os de 1720, temos variáveis que se destacam. Os escravos correspondiam a
74,34% da renda total inventariada em 1680, já em 1720 correspondiam a 48,78%. As dívidas
ativas e passivas somadas passaram no mesmo período de 17,73% para 35,49%.
O autor expõe dados sobre a “participação dos gentios da guiné, carijós e mestiços” no
número total de escravos inventariados. Em 1680 o número de escravos africanos passa de
0,92% para 45,85% do total do plantel, o de escravos índios de 97,91% para 41,53% e o de
mestiços de 1,17% para 12,62%.
Outro aspecto relevante é a questão da relação entre a dívida passiva e ativa e as
formas de uso da liquidez e do crédito. Entre 1680 e 1720, em relação à renda total dos
inventários, as dívidas ativas passam de 6,76% para 19,51% e as passivas de 10,97% para
303
Requerimentos de Sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP.
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15,98%304. A superação das dívidas ativas em relação às passivas ocorre na década de
1700305.
Alves explora as transações de bens rurais que envolvem aqueles que detêm a maior
parte da dívida ativa. Segundo o autor, entre “1690 e 1700 estes grandes prestamistas mais
vendem do que compram bens rurais. Nas décadas de 1710 e 1720, porém, essa situação se
inverte”. Segundo Alves “essa maior procura por bens rurais ocorre justamente nas décadas
de consolidação da produção de açúcar”306.
O autor inclui o investimento em escravos africanos como a principal marca da
conversão de capitais da atividade mercantil para a produção rural. Para explicá-la, o autor
segue a percepção de Fragoso e Florentino, justificando-a por fatores “extra-econômicos”.
Para Alves, “a elite permite-se até perder dinheiro, nunca o poder sobre as pessoas”307.
Havia na década de 1720, na região de Taubaté, uma elite “mercantilizada”,
impulsionada pela recuperação dos preços do açúcar, pelas explorações auríferas, e articulada
ao mercado transatlântico de escravos. “Homens poderosos e principais” com condições de
converter e de conceder empréstimos, e com “cabedais” para abrir caminhos e investir em
terras e escravos negros e índios.
A exploração do ouro das minas do Cuiabá e do Mato Grosso (e também o de Goiás e
Minas Gerais) e seus efeitos sobre a abertura de novas áreas de exploração de atividades
rurais, não pode ser pensada sem sua articulação ao movimento precedente e em curso de
acumulação mercantil e transformações na estrutura fundiária, tanto nas formas de exploração
quanto em sua base social.
Os grupos mercantis da cidade de São Paulo também pareciam dispostos em investir
na expansão das atividades rurais. Mas, como vimos, a presença de moradores da cidade de
São Paulo era praticamente inexistente nos requerimentosdas terras que ficavam no mais
importante caminho do comércio entre Rio de Janeiro e São Paulo e também nos caminhos
304
ALVES, Maurício M. Caminhos da pobreza: a manutenção da diferença em Taubaté (1680-1729).
Taubaté/SP: Prefeitura Municipal de Taubaté, 1998, p. 39.
305
ALVES, Maurício M. Op. cit., p. 83.
306
ALVES, Maurício M. Op. cit., p. 87.
307
ALVES, Maurício M. Op. cit., p. 93. O livro de Alves é o resultado de uma dissertação orientada por Manolo
Florentino.
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para as minas de Goiás. Mas outra amostra de requerimentos, agora para a região de Curitiba
– e nos caminhos que levavam a ela - denota características bem diversas.
De um total de 60 requerimentos de sesmarias para os “campos gerais de Curitiba” e
em seus caminhos, entre 1720 e 1740, apenas 21,6% eram de requerentes que informavam
viver em regiões próximas das terras requeridas, 41,6% não informaram o local de moradia.
Entre os que informaram 62,8% diziam ser moradores de São Paulo (20%), Santos (14,2%) e
Paranaguá (14,2%). Quanto à atividade produtiva, apenas 1,6% (um único requerimento)
requeria terras para agricultura, 8,3% não informaram, 15% requeriam terras tanto para a
agricultura quanto para a pecuária e 75% requeriam as terras apenas para a pecuária. Quanto à
extensão, 16,6% tinham entre 0,5 léguas em quadra e 1,0 léguas em quadra, 71,6% tinham
entre 1,0 léguas em quadra e 1,0 por 3,0 léguas e 8,3% tinham terras em extensões maiores
que 1,0 por 3,0 léguas. Em relação à forma de obtenção, 3,3% por compra, 11,6% pediam
terras contíguas às que já possuíam, 5% requeriam heranças, 8,3% alegavam pedir “terras
devolutas” em função de serviços prestados e 73,3% afirmavam apenas tratarem-se de terras
nunca antes exploradas por outrem. 73,3% também é o percentual de requerentes que pediam
terras onde já desenvolviam atividades agropastoris308.
Pelo perfil das terras, podemos afirmar que havia um significativo investimento na
criação de gado nos campos de Curitiba na primeira metade do século XVIII. Ao contrário da
região de Taubaté ao Rio de Janeiro, a grande maioria dos requerentes já haviam conquistado
as terras que pediam por sesmarias e iniciado a criação de extensos plantéis de “gado vacum”
e também, embora em menor medida, a criação de“gado cavalar”309.
308
Requerimentos de Sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP.
Como o próprio Luiz Rodrigues Villares que, então morador de São Paulo, afirmava ter, desde 1720, ocupado
terras nos campos de Curitiba e “povoado de escravos com princípio de 500 cabeças de gado vacuns e 50 de
cavalar”. Requerimento de sesmarias de Luiz Rodrigues Villares e Antonio Lopes Thomar, 12-02-1725.
Requerimentos de Sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP, doc. 80-01-70. Outro morador de São Paulo
afirma que no caminho que vai para Curitiba ocupava terras, desde 1721, com “currais de gado vacum e
cavalgaduras”. Requerimento de sesmarias de Francisco Xavier de Sales,). (..)-10-1732. Requerimentos de
Sesmarias da Capitania de São Paulo. APESP, doc. 80-06-01. Da vila de Jundiaí, um requerente havia
comprado terras em Curitiba onde criava “mil e quatrocentas cabeças de vacum e cento e sessenta de cavalar”.
Requerimento de sesmarias de Manoel Gonçalves da Costa, 21-05-1735. Requerimentos de Sesmarias da
Capitania de São Paulo. APESP, doc 80-03-46. Um morador da vila de Curitiba, em 1735, declarava possuir
uma “fazenda de gado vacum e cavalar”, com trezentas cabeças de gado e oitenta éguas. Requerimento de
sesmarias de Manoel Rodrigues da Mota (tenente coronel), 01-12-1735. Requerimentos de Sesmarias da
Capitania de São Paulo. APESP, doc. 80-02-50.
309
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Não há dúvida que parte dos lucros oriundos de atividades mercantis desenvolvidas
em localidades como a cidade de São Paulo e vila Santos foi investida na criação e no
comércio de gado. Gado que percorria muitos caminhos, entre eles os caminhos para Minas
Gerais e Rio de Janeiro, passando por importantes entrepostos, como por exemplo,
Guaratinguetá310.
A imbricação entre comércio e atividades rurais na primeira metade do século XVIII,
parece ser fundamental tanto para compreender as práticas mercantis quanto para explorarmos
as características da espacialização de ambientes rurais diversos e interligados por este mesmo
comércio. A questão do investimento de lucros das atividades mercantis em atividades
agrícolas e pastoris deve ser, contudo, analisada com mais cuidado.
Voltando ao estudo de Alves sobre Taubaté, percebemos que as mudanças na estrutura
fundiária da região ocorreram em um período de decréscimo da população. Entre 1680 e
1710, a população livre passa de 208 para 173. Em 1720 a população livre voltaria a ser a
mesma que em 1680, mas o número de escravos inventariados – entre negros e índios - passa
de 1.196 em 1680 para 602 em 1710. Com um decréscimo profundo da presença indígena
tanto em termos relativos quanto absolutos. No entanto, no mesmo período, o monte bruto dos
inventários passou de 35:552$347 para 142:742$904311. O valor das riquezas, portanto, mais
do que triplicou. No período entre 1700 e 1720 - no qual ocorreria essa mudança de um setor
rentável para outro menos rentável - as dívidas ativas subiram de 8:905$148 para
21:940$415312. Se as dívidas ativas são maiores, não pode existir abandono do setor
mercantil, por mais que as evidências documentais mostrem a compra de terras e escravos por
parte dos maiores prestamistas.
Em relação aos comerciantes de São Paulo, Borrego aponta que o grupo dos
comerciantes – entre eles os mais abastados - não abandonou as atividades mercantis em favor
de meios supostamente mais aristocráticos de obter renda. Contudo, pelo número de escravos
em posse da elite mercantil paulista, podemos inferir que estes também investiam em
310
BORREGO, Maria A. M. A Teia mercantil: (...). p. 89.
Em uma amostra de 32 inventários em 1680 e de 38 em 1720. ALVES, Maurício M. Op. cit., p. 39.
312
ALVES, Maurício M. Op. cit., p. 83.
311
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atividades rurais:56,7% dos comerciantes estudados por Borrego possuíam entre 10 a 29
escravos e 13,2% tinham entre 30 e 49 escravos313.
Não temos espaço para discutir as implicações dessa análise para um quadro geral,
mas defendemos que o estudo dos requerimentos de sesmarias revelaa imbricação entre
comércio e expansão das atividades rurais e contribui para expor um dos aspectos essenciais
das mudanças nas fronteiras do comércio entre as últimas décadas do século XVII e primeira
metade do século XVIII: a relação entre as recém formadas elites mercantis locais e a
interiorização da exploração mercantil e escravista.
Referências Bibliográficas
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Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 2002.
JESUS, Nauk Maria. “As versões de ouro em chumbo: a elite imperial e o descaminho de
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XVIII. Projeto Fronteira Ocidental Arqueologia e História – Vila Bela da Santíssima Trindade
/ MT. Relatório final. Fase 2 , Cuiabá: Governo de Mato Grosso/Secretaria de Estado de
313
BORREGO, Maria A. M. A Teia mercantil: (...) p. 229.
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Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
Cultura/ Coordenadoria de Preservação do Patrimônio Cultural, Histórico, Artístico e
Arqueológico OdirBurity, 2004, p. 43.
MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo.
São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
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TERNO DE REIS HUMILDES EM ALEGRIA: DISCUSSÕES SOBRE
RELIGIOSIDADE, CULTURA POPULAR E TRADIÇÕES AFRO-BAIANAS
Fabiane da Silva Andrade
O presente artigo apresenta discussões acerca das festividades aos “santos Reis”
desenvolvidas pelo Humildes em Alegria, grupo de Terno de Reis que surgiu e se manteve na
rua da Alegria, localizada no bairro do Andaiá, na cidade de Santo Antonio de Jesus314. Para
tanto, a memória dos integrantes do referido grupo e dos moradores locais, foi a pedra de
toque para podermos conhecer e analisar esse festejo, característico das comemorações afrobaianas. O surgimento do referido grupo, segundo narrativas dos moradores locais, tem
origens míticas, sendo fruto de uma revelação tida em sonho por D. Maria Bernardina de
Jesus.
Segundo os narradores, Maria Bernardina de Jesus, que doravante chamaremos de D.
Bernarda, teria sonhado com a representação bíblica da visita dos três Reis Magos ao Messias.
Desde então se sentira na obrigação de efetuar os festejos de Reis, o que foi feito a partir da
elaboração de um Terno de Reis, como forma de atender ao pedido que recebera em sonho.
No entanto, o interesse popular pelas festividades de Reis e a permanência das revelações
levaram-na a manter o festejo que se estendeu até o ano de 1993, ano da morte de D.
Bernarda.
No Brasil, as festividades aos Reis Magos passaram por diversas mudanças,
adquirindo características regionais, locais e por vezes, étnicas. Vainfas e Souza ao abordarem
as festas religiosas mantidas na Bahia, a partir das influências jesuíticas, chamam atenção para
o fato de que nesse espaço as festividades católicas não se desenvolveram apenas a partir dos
ensinamentos jesuíticos, uma vez que “os santos da Bahia seriam múltiplos, muito mais
numerosos do que os mil santos da Igreja e mais do que podiam imaginar os nossos primeiros
314
A cidade de Santo Antonio de Jesus situa-se no recôncavo baiano, tendo uma área territorial de 259 KM2 e
população de 84.256 habitantes, segundo o senso desenvolvido pelo IBGE em 2007.
458
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jesuítas“.315 Pois na Bahia, assim como em quase todo o Brasil, as manifestações católicas se
mestiçaram, foram relacionadas com elementos culturais tipicamente indígenas e afrobrasileiros. Dessa forma, as festividades católicas, desde o Período Colonial já apresentavamse hibridizadas.
O Humildes em Alegria, por ser um Terno de Reis, não trazia em si a tradição de
formar músicos ou de fazer os giros, como acontece nas Folias, mas havia o hábito de visitar
casas pré determinadas e também de levar à frente a bandeira do grupo, por vezes chamada de
estandarte. Nos Ternos prioriza-se os desfiles e a indumentária. As comemorações aos Santos
Reis se estabeleceram entre as mais diversas camadas sociais, sendo mais recorrente a
presença de tais festejos entre a população pobre e interiorana que celebra com alegria e
devoção a visita dos Magos ao Messias316.
Araújo ao fazer um panorama das festividades populares da Bahia, descreveu em
breves linhas o Terno de Reis Humildes em Alegria:
No final do mês de janeiro sai às ruas de Santo Antonio de Jesus o
Terno
de
Reis
Humildes
em
Alegria,
concebido
há
aproximadamente vinte anos por Maria Bernardina de Jesus, de 54
anos. Durante as suas apresentações, o quarteirão de sua sede, no
bairro de Andaiá, transforma-se em local de festas e ponto de atração
para o povo da cidade.317
As informações apontadas por Araújo nos permitem a princípio situar o ano de início
das festividades que, teriam se dado em 1966, quando D. Bernarda, ainda muito jovem, com
cerca de trinta e seis anos de idade, organizou o referido Terno de Reis.
315
VAINFAS, Ronaldo; SOUZA, Juliana Beatriz de. Brasil de todos os santos. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2002. p. 9.
316
Maiores informações ver: PESSOA, Jadir de Morais; FÉLIX Madeleine. As Viagens dos Reis Magos.
Goiânia: ed. Da UCG, 2007.
317
ARAÚJO, Nelson de. Pequenos Mundos: Um panorama da cultura popular da Bahia. Tomo I – O Recôncavo.
Salvador: Universidade Federal da Bahia (EMAC). Fundação Casa de Jorge Amado, 1986. p. 198.
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Araújo, além de descrever as festividades do grupo, entrevistou D. Bernarda a fim de
compreender o impulso inicial que a levou a organizar o Humildes em Alegria:
Eu estava muito jovem. Tive um sonho que me disse que eu tinha de
fazer terno. Uma voz me disse: “Faça um terno de Reis”. “Meu Deus,
como é que eu vou fazer um terno de Reis, se é tão difícil?” A voz
respondeu: “Faça! Experimente! Tenha coragem, enfrente a
realidade!” Foram três dias de sonho. E eu fiz o terno.318
A narrativa acima tem uma importância muito singular por ser a única que nos
apresenta a própria D. Bernarda falando do Terno de Reis. Ao se referir ao início do grupo,
destaca o sonho que tivera, ressaltando a permanência desse durante três dias. O que poderia
ser associado ao número dos primeiros visitantes do Messias, pois de acordo às narrativas
bíblicas319, foram três os Magos que se dirigiram para o local de nascimento de Cristo. As
apresentações do grupo surgiram, portanto a partir de uma revelação mítica, tida em sonho, o
que caracteriza a sacralidade da festa, que passa a ser notada pelos moradores da localidade
como uma festa da “Igreja”, ou seja, uma manifestação religiosa.
Cabe destacar que é recorrente nas festividades do catolicismo popular a relação entre
o desenvolvimento de um festejo devocional com sonhos ou revelações. Muitas festividades
em homenagem aos Santos Reis têm início por motivos religiosos como promessas
devocionais que são direcionadas e esses “santos”. Em outros casos os motivos de serem
iniciados grupos de Terno de Reis, partem, como a exemplo da descrição acima, de
revelações.
As revelações de D. Bernarda passam a ser notadas como elementos sacralizados
que, revelam desígnios a serem seguidos pelo grupo. Eliade320 ao analisar questões referentes
às manifestações do sagrado entende que as relações do sagrado encontram-se intermediadas
pela relação com os elementos simbólicos que expressam a sacralidade, mas também
318
ARAÚJO, 1986. Op cit., p. 199.
Evangelho de São Mateus. Cap I, versículo de 9 a 11. In Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. Paulus, 1991.
320
ELIADE, Micea. Tratado de História das Religiões. [tradução Fernando Tomaz e Natália Nunes]. 2ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
319
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encontram-se vinculadas às vivências dos indivíduos. Determinados elementos passam a ser
notados como sagrado ou a representarem a sacralidade em situações históricas específicas, o
que aponta a inter-relação entre os processos sociais e a manutenção ou criação de crenças e
de ritos por comunidades.
Na entrevista com D. Bernarda, transcrita por Araújo percebemos ainda que, não
havia a intencionalidade dela desenvolver as festividades aos Reis Magos. Transparece a
resistência em efetuar o festejo, possivelmente por perceber as dificuldades que se imporiam
para a efetivação deste. Inferimos, no entanto que a insistência da voz e dos recorrentes
sonhos levaram D. Bernarda a organizar o Terno de Reis Humildes em Alegria, que manteve
suas apresentações durante 27 anos.
A presença da religiosidade afro-baiana no Humildes em Alegria
As festividades católicas do Período Colonial foram trazidas para o Brasil pelos
europeus. Essas práticas tinham, inicialmente, como um dos objetivos a catequização dos
negros e índios da Colônia. No entanto, aqui, os rituais passaram a ser ressignificados,
ganhando novas formas de expressão, já que, segundo Abreu, as práticas barrocas foram
alteradas mantendo-se “as festas de santos e procissões, expressivos sinais de força do
catolicismo, independente da ortodoxia oficial”.321 Desta forma, as práticas populares
passaram a associar ao catolicismo oficial elementos típicos de festividades consideradas
profanas. As missas e orações passam a ser associadas a desfiles animados, repletos de
música, festa e diversão. Outras tantas vezes, os rituais ganham independência e se afastam
das imposições Católicas, tomando um caráter intensamente popular.
As festividades católicas no Brasil Colonial, muitas vezes, foram apropriadas pelos
negros devido a sua associação a elementos típicos das crenças e festividades africanas. As
tradições cristãs, a partir desse contato, passaram a ser transformadas, os negros deram-lhes
ABREU, Marta. O Império do Divino – Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro 1830-1900. Rio
de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999. p.35.
321
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novas significações, e assim, africanizaram-nas322. Nesta perspectiva, Abreu, ao analisar a
religiosidade que se desenvolveu no Brasil, afirma que “Os leigos tornaram-se os maiores
agentes do catolicismo barroco, repleto de sobrevivências pagãs, com seu politeísmo
disfarçado, superstições e feitiços, que atraiam muitos negros, facilitando sua adesão e
paralela transformação”.323 Segundo a autora, o catolicismo desenvolvido no Brasil não deve
ser tomado como uma religião pura, mas percebido na sua inter-relação com as demais
tradições religiosas mantidas e desenvolvidas no território brasileiro.
A presença de elementos religiosos diversos pode ser notada nas festas de Reis que
se desenvolveram no Brasil, visto que desde o Período Colonial, quando os europeus
trouxeram tal festividade para o território nacional com a finalidade de catequizar os negros
da Colônia, estes passaram a ver na festa uma possibilidade de associação a ritualísticas das
festividades africanas, inserindo nas representações da adoração bíblica ao Menino Jesus,
simbologias da festa de coroação de Reis Negros, típicas do Congo324.
Souza chama nossa atenção para a interligação que havia no século XIX entre a
coroação do Rei negro e a igreja católica: “No dia de reis, quando a irmandade festejava o
‘santo Baltasar’, o capelão coroava os reis na missa e lavrava no livro da irmandade o termo
de eleição do rei, da rainha e dos demais cargos”325. O Rei negro era coroado no interior da
igreja católica e por um representante direto da instituição. No entanto, com o passar dos
anos, as festividades de coroação aos Reis negros passam a ganhar outros significados,
dissociando-se da ação direta da Igreja Católica.
Seria enganoso afirmarmos que os negros no Período Colonial se adaptaram ao
modo de vida europeu, como seria do mesmo modo enganoso afirmarmos que eles
mantiveram seus cultos e tradições tais quais faziam na África. No Brasil foi preciso adaptar
seus costumes, suas tradições e entrecruzar elementos culturais de etnias africanas diversas,
bem como relacionar cultos afros às tradições cristãs católicas, a fim de manter suas tradições,
322
Para maiores informações sobre as relações entre a religiosidade africana e o catolicismo no Brasil Colonial
ver: BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. 2ª Ed. Editora São Paulo: São Paulo, 1985.
323
ABREU. Op. cit: p.34.
324
Maiores informações sobre as festividades desenvolvidas pelos negros escravizados no Brasil Colônia podem
ser encontradas em: SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil Escravista: história da festa de coroação
de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
325
SOUZA, op., cit., p.251.
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mesmo que elas tivessem sido amplamente alteradas e adaptadas à realidade imposta pela
situação de escravidão e de desterritorialização.
As mudanças que se processaram na religiosidade africana no território brasileiro
podem ser associadas a diversos fatores. Prandi destaca que “a religião africana no Brasil
constitui-se como religião de negros católicos que já haviam perdido a família africana, com
seus clãs, genealogias e antepassados”.326 Desta forma, os cultos desenvolvidos no Brasil não
são os mesmos que se mantiveram na África. No território brasileiro não houve a manutenção
das etnias e clãs africanos, o que levou os negros do Período Colonial a repensarem suas
manifestações alterando-as e associando-as à religião imposta pelos europeus, o catolicismo.
Aos negros escravizados era permitido desenvolver folguedos e festividades que,
segundo a perspectiva jesuítica, serviriam como válvula de escape, seria uma forma de darlhes uma liberdade forjada, de permitir-lhes uma ingênua diversão. No entanto,
Nesse espaço permitido, porque inofensivo na perspectiva branca, os
negros reviviam clandestinamente os ritos, cultuavam deuses e
retomavam a linha do relacionamento comunitário. Já se evidencia aí
a estratégia africana de jogar com as ambigüidades do sistema, de
agir nos interstícios da coerência ideológica.327
A falta de conhecimento do “branco” acerca da cultura negra, ou o seu desinteresse
por ela, proporcionou os espaços necessários para que os negros pudessem manifestar suas
crenças, desenvolver seus ritos e manter sua cultura, mesmo que para isso tivessem que
transfigurá-la, dando-lhe uma aparência cristã.
Assim, ao conhecermos os elementos que compõem a festa de Reis do Humildes em
Alegria, percebemos que muitos são heranças de rituais e festividades africanas, o que nos
conduziu a buscar entender: como esse imbricamento teria se processado, como seria possível
a uma senhora como D. Bernarda, idealizadora e organizadora da festa do Humildes em
326
PRANDI, Reginaldo. Segredos Guardados: Orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.p.143.
327
Idem, p. 93.
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Alegria, conhecida no bairro por seu fervor cristão, ter conhecimento e inserir de forma tão
hábil elementos de origem afro-baiana na festa de Reis? Esse questionamento está aí
fundamentado e nos faz buscar entender as possibilidades de hibridização328 dessa festa, a
partir da relação de diversos elementos simbólicos que rememoram passagens bíblicas, mas
também rituais afro-brasileiros. No entanto, não será nosso objetivo aprofundar discussões
acerca das religiões africanas que se desenvolveram no Brasil, analisaremo-nas apenas no que
for tocante às festividades desenvolvidas pelo Terno de Reis Humildes em Alegria.
As transformações que continuaram se desenvolvendo no catolicismo desde o
Período Colonial até os dias atuais devem-se, em grande parte, ao fato das pessoas menos
abastadas tomarem pra si festividades e rituais, reproduzindo-os a partir de suas necessidades
e possibilidades, o que passou a gerar diversas maneiras de festividades e de ritualísticas que
não mais se identificavam ao proposto pelo catolicismo, mas atendiam às necessidades do
povo. Esse seria o chamado catolicismo popular, que não se limita a repetir os preceitos
católicos, passando a dar-lhes novos significados e a associá-los a elementos e simbologias de
outras religiões, o que facilitava, durante o período escravista, a associação feita pelos negros
entre o catolicismo e suas festividades, inserindo aí características pagãs e africanas.
As festas de Reis organizadas por D. Bernarda eram consideradas, na rua da Alegria,
uma festa de Igreja, porém, muitas características da cultura afro-baiana nela se expressavam,
como a inserção de baianas que se ornavam com jarros de flores na cabeça, a coroação dos
Reis Negros, a presença de canções que se referiam às oferendas feitas nos terreiros aos
orixás. As festas do Humildes em Alegria revelavam nas suas práticas as relações com as
tradições afro-brasileiras, como fica expresso na seguinte narrativa de Eliseu:
Fui colocando as baianas que eu também dei oportunidade a... ao
misticismo, né? Coloquei baianas e aí eu fiz um, um conjunto, o terno
de reis eu, tipo um conjunto, tipo um...porque ela gostava, ela tinha
afinidade, ela já tinha sido vice-presidente de uma escola de samba,
328
Utilizamos este conceito na perspectiva apontada por Burke em seu livro, Hibridismo Cultural, citado
anteriormente.
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Entre Europa África e América:
o Império português no Atlântico Sul
ela já tinha frequentado candomblé, ela já tinha feito muitas e muitas
coisas. Então eu globalizei em cima da crença, em cima da
religiosidade dela eu globalizei tudo e joguei no Terno de Reis de
Bernarda.329
Eliseu ao usar a expressão ela refere-se à D. Bernarda, que, de acordo com as
narrativas, relutou muito em inserir a ala das baianas no Terno, uma vez que a relação entre
elas e a religiosidade afro-brasileira é facilmente identificável. Nas práticas do grupo, os
elementos de rememoração da tradição afro eram expostos de maneira sutil, a fim de que a
festa mantivesse a impressão de uma festa puramente católica.
Eliseu, ao tratar da inserção da ala das baianas, nos informa sobre elementos que
rememoravam não apenas as experiências da religiosidade africana no Brasil, mas também as
vivências pessoais de D. Bernarda. Experiências essas que se destacam por estarem
interligada às ressignificações das festividades do Humildes em Alegria.
Segundo os narradores, D. Bernarda teria sido iniciada, ainda muito jovem, num
terreiro de candomblé, segundo D. Nina, amiga de D. Bernarda. Ela teve como “madrinha”termo que atualmente chamaríamos de mãe de santo- uma senhora conhecida por Vitorina
Grande. Na rua da Alegria emergem várias versões acerca da relação entre o Terno e o
candomblé. Alguns afirmam que D. Bernarda fez o Terno e a partir de então parou de
frequentar o terreiro, outros afirmam que ela manteve a fé cristã associada às crenças do
candomblé. Tide, moradora do bairro e amiga de D. Bernarda, relembra:
Foi um sonho. Disse que ela frequentava, ela gostava de frequentar,
é... é... é, casa, casa de, de, de mãe de santo, candomblé, essas coisas.
E um certo dia ela sonhou, o Espírito Santo, sonhou com o Espírito
Santo, dizendo pra que ela afastasse dessas casas e fizesse um Terno
de Reis, pra que ela realizasse enquanto ela vida tivesse, pra ela
329
Entrevista com Eliseu dos Santos, 52 anos, em 19/11/2007.
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realizar esse Terno de Reis todo ano. E daí pronto, a partir daí não
frequentou mais as casas.330
Tide, apesar de ter convivido muitos anos com D. Bernarda, não sabia de sua relação
com o candomblé. As informações acima foram obtidas numa conversa que Tide manteve
com D. Lúcia, irmã de D. Bernarda, pouco antes de começarmos a gravar a entrevista. A
maioria dos moradores do bairro e integrantes da festa sequer conheciam as experiências que
D. Bernarda trazia consigo acerca da religiosidade afro-braileira; conheciam apenas sua
relação com o catolicismo.
Um segundo elemento que nos atraiu atenção na narrativa de D. Nina foi o fato dela
afirmar que D. Bernarda “deu pra fazer o caruru na casa dela”, o que reforça a ideia de que D.
Bernarda se afastou do espaço geográfico do terreiro, mas não de suas crenças e de sua
devoção à Santa Bárbara, associação feita ao orixá que na religião africana é Iansã.
Ao analisar os elementos que compunham a festa do Humildes em Alegria, emergia
a inter-relação de simbologias do catolicismo e do candomblé. As impressões deixadas pelo
Terno de D. Bernarda para os moradores do bairro era de uma festividade de devoção cristã,
desenvolvida por uma senhora devota à Igreja e que tinha uma fé tão intensa que os próprios
“santos” lhe revelavam os detalhes das canções e da ritualística do Terno de Reis, como
destaca Tide:
Aí os cantos, as letras das músicas vinha num sonho também, ela
dormia e de noite vinha no sonho, e aqueles pensamentos, as letras. De
manhã ela memorizava e colocava a melodia e pronto, e aí se dava os
cantos, dava os cantos que apresentava, no Terno de Reis, né?331
Segundo a narrativa de Tide, D. Bernarda recebia as revelações à noite, enquanto
dormia. Ela sonhava com as canções e no dia seguinte associava as letras à melodia. Assim
330
331
Entrevista realizada com Clotildes Nunes Mello, 56 anos, em 16/01/2008.
Entrevista realizada com Clotildes Nunes Mello,56 anos, em 16/01/2008.
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o Império português no Atlântico Sul
como as canções, as indumentárias do grupo e os elementos que deveriam compor o cortejo
eram revelados a D. Bernarda.
É típico do Recôncavo Baiano a crença na relação com as divindades e santos através
dos sonhos, que passam a ser considerados como revelações. No tocante à D. Bernarda, há
mais de uma possibilidade de entendimento destes sonhos, pois sua crença fervorosa e
extrema vivência católica poderiam ter proporcionado estes contatos com os santos. Em
contra-partida, os sonhos poderiam também ser fruto da sua relação com o seu orixá, neste
caso Iansã, sendo-lhe reveladas as exigências desta entidade. Essas relações com o sagrado
permeiam as vivências de D. Bernarda e permitem entendermos o entrecruzar das
religiosidades africanas e católicas no Brasil, percebendo suas mútuas influências nas
vivências dos indivíduos que a elas se agregam.
O imbricamento entre elementos católicos e da religiosidade afro-brasileira pode ser
percebido no Humildes em Alegria, nas narrativas sobre D. Bernarda e sua possível
desvinculação do terreiro; assim passamos a buscar entender de que maneira o Terno poderia
funcionar como uma manutenção de seu compromisso com o santo. Desta forma, passamos a
analisar elementos típicos das festividades do Humildes em Alegria, como a escolha e
coroação dos Reis do Terno.
Segredo, Poder e Ressignificações: A coroação dos Reis do Terno.
Nas festividades do Humildes em Alegria muitas características se revelam, porém o
elemento mais lembrado pelos entrevistados refere-se aos sonhos, às revelações que D.
Bernarda recebia. Na organização do Terno, as escolhas dos integrantes e toda a ritualística da
festa encontravam-se permeados por segredos que pertenciam apenas a D. Bernarda. Mesmo
Eliseu que trabalhou durante muitos anos auxiliando diretamente nos ensaios e nas
apresentações do Terno, revela a dificuldade de ter acesso aos saberes de D. Bernarda:
No quinto ano eu comecei a me interessar mais com ela, aquela coisa
toda, e comecei e ser aquele pivetinho, aquele molequinho que ficava
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assim observando, quando foi no sexto ano em diante aí eu já
comecei a trabalhar com ela, ajudando ela. Ela não me dizia ainda
quem era a Rainha, nem quem era o Rei, nem quem era nada, era
segredo absoluto, por quê? Porque a, o cargo chefe do Terno de Reis,
o segredo total estava encima do Rei e Rainha, das peças principais
né, Reis, Rainha, porta-estandarte, princesa.332
Na fala de Eliseu vários fatores se destacam, afinal ele já participava da
organização da festa, há cerca de cinco ou seis anos, conforme fica expresso em sua
narrativa. Sua participação, a princípio, se reduzia a auxiliar, sem ter poder sobre as
tomadas de decisões, o que só veio ocorrer cerca de seis ou sete anos após sua entrada no
grupo. Mesmo sendo pessoa de confiança de D. Bernarda e já tendo demonstrado seu
interesse pela organização do evento, Eliseu desconhecia os segredos da festa de Reis do
Humildes em Alegria. Após ter desenvolvido uma relação de confiança extrema com D.
Bernarda, Eliseu passa a conhecer a organização, tendo acesso inclusive à tomada de
decisões referentes ao grupo.
Cabe ressaltar que a cultura africana se edifica sobre uma tradição de oralidade
intensa. Oralidade essa diretamente relacionada a uma vivência, ou seja, muitos elementos
da tradição, como os segredos, são aprendidos no cotidiano, nas experiências práticas. Ter
acesso ao segredo é ter uma vivência que permita conhecer os detalhes sobre a preparação
das festas e de rituais.
Ailma, sobrinha neta de D. Bernarda, rememora a curiosidade que tinha em saber
sobre questões referentes aos “segredos” da festa, relata que muitas vezes ela dormia na casa
de D. Bernarda e auxiliava diretamente na organização das fantasias e de parte do festejo; no
entanto,
332
Entrevista realizada com Eliseu dos Santos, 52 anos, em 19/11/2007.
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teve muita coisa que foi fechado mesmo, e hoje não se pode fazer por
causa disso, porque era muito fechado. Tudo bem que a beleza que
era aquele segredo da Rainha e do Reis era muito bonito isso, mas
assim as outras coisas a gente poderia ter mais acesso.333
O relato de Ailma expressa bem a função do segredo na festa. Muitas coisas eram
fechadas, os integrantes do grupo não tinham acesso a boa parte da organização do festejo.
Mesmo a família de D. Bernarda conhecia muito pouco sobre a preparação da festa, o que
muitos moradores apontam como motivo para que o Terno de Reis tenha se encerrado com a
morte de D. Bernarda, seus segredos teriam se perdido sem que fossem transmitidos a outra
pessoa.
Alguns fatores ainda podem ser destacados na fala de Eliseu. Ao afirmar que os
Reis, Rainhas e Princesas eram o “carro chefe” do Terno de Reis ele nos chama atenção
para perceber que nas festividades do grupo havia destaque para uma corte negra composta
por figuras de prestígio, figuras que rememoravam as cortes africanas existentes na África
cristianizada. Essa é uma tradição mantida ainda no Brasil colonial. Muitas vezes é
descrito por folcloristas e viajantes estrangeiros o hábito de coroar Reis Negros nas
festividades coloniais, bem como o hábito de desfilar pelas ruas com sua corte, conforme
destaca Henry Koster:
Quando se aproximaram, descobrimos, no meio, o Rei, a Rainha e o
Secretário de Estado. Cada um dos primeiros trazia na cabeça uma
coroa de papel colorido e dourado. O Rei estava vestido com uma
velha roupa de cores diversas, vermelho, verde e amarelo, manto,
jaleco e calções. Trazia na mão um cetro de madeira, lindamente
dourado. A Rainha envergava um vestido de seda azul, da moda
antiga.334
333
334
Entrevista realizada com Ailma Souza Santos, 41 anos, em 19/11/2007.
CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia do folclore Brasileiro, Vol. 1. São Paulo: Global, 2003. p. 73.
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Apesar de se destacar a eleição e coroação do Rei Negro, todo um séquito de cargos era
escolhido e desfilava ao lado da figura real nos festejos realizados com autorização da
Coroa Portuguesa no Brasil escravista. As insígnias como a coroa e o manto são
tradicionais nas representações de figuras reais tanto da realeza européia, quanto das
festividades afro-brasileiras, como descreve Souza:
Símbolos católicos que tinham funções de amuletos, bastões de mando,
e mesmo a coroa, símbolo do poder do rei e da sua ligação com o
sobrenatural, eram objetos utilizados em rituais das festas de reis
negros, nas quais as coroações também podem ser associadas a práticas
africanas tradicionais.335
Nesse processo Souza ressalta a necessidade de percebermos a hibridização que se
processou na cultura africana, ainda na África, porque é, muitas vezes, erroneamente
difundida a ideia de que a cultura africana se europeizou após o tráfico de escravos para a
América; esquece-se que esse processo se desenvolveu de maneira intensa ainda na África,
gerando inclusive a cristianização de muitos Reis de nações africanas.
Não se pode negar o fato de que na América, devido às condições às quais os negros
eram expostos, o processo de europeização se manifestou de forma mais intensa; não por
negação à ancestralidade e às tradições africanas, mas pela necessidade de adaptação à
realidade escravista imposta pelo “branco”.
Pensar no imbricamento entre os festejos de coroação dos Reis Negros na África e
sua associação a elementos cristãos nos leva a perceber que a hibridização cultural foi
intensa e ocorreu desde os primeiros contatos entre europeus e africanos. Os resquícios
335
SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil Escravista: história da festa de coroação de Rei Congo.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 224.
470
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desse processo ainda hoje são encontrados em manifestações de celebração que
rememoram ritualísticas, como ocorre nas festas de Reis do Humildes em Alegria.
No Humildes em Alegria eram escolhidos como os Reis da festa sempre figuras que
representassem o povo africano. Essa escolha tornava-se momento de curiosidade, rivalidade
e principalmente de celebração aos escolhidos. D. Balbina336 nos conta que nem mesmo os
escolhidos para representarem os Reis sabiam de sua escolha: “Não, falava bem antes, ficava
pensando lá, mas no dia é que dizia, faltando dois dias é que dizia”. O filho de D. Balbina foi
Rei em um dos desfiles do Terno e ela nos disse que só soube da escolha oito dias antes,
quando foi necessário providenciar o tecido para confeccionar a fantasia do Rei.
D. Ninha337, que morou no Andaiá durante as festividades do Humildes em Alegria,
nos conta que, por ser costureira e pessoa de confiança de D. Bernarda, muitas vezes
confeccionava as roupas dos Reis e Rainhas sem que os escolhidos soubessem que seriam os
Reis da festa.
O mistério em torno da vestimenta e da escolha dos Reis e Princesas era tamanho que
para levar as roupas para costurar ou para levá-las para que D. Bernarda as visse era preciso
enrolá-las num lençol branco afim de que os demais moradores da rua não vissem a roupa e
não soubessem quem a usaria. Todos ficavam atentos tentando descobrir quem seriam os Reis
daquele ano, daí a necessidade de camuflar as fantasias para que os olhares já curiosos
ficassem ainda mais atentos à festa.
Além da existência dos Reis da festa, havia a presença da figura feminina, a Rainha
do Terno era, ao lado do Rei; a figura mais esperada do desfile. Todo o mistério que permeava
sua escolha, a eleição, as fantasias criava em torno dos Reis um ar de curiosidade e de
admiração coletiva. Eliseu aponta, em suas narrativas, a possibilidade de que a Rainha Negra
fosse utilizada como meio de afirmação identitária, uma vez que D. Bernarda era uma mulher
negra: “ela também não esqueceu de colocar dentro do Terno de Reis uma pessoa negra,
336
Entrevista realizada com a Sra Balbina de Jesus , 78 anos, em 17/06/2007.
D. Ninha tinha 60 anos e, numa entrevista feita com sua filha, nos deu informações valiosas sobre a
organização das festividades do Humildes em Alegria. A entrevista realizou-se no dia 29/01/2008.
337
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porque ela era negra e era apaixonada por negros. Ela colocava uma rainha negra no Terno.
Se bem que isso não faz parte do Terno de Reis, mas ela botava.”338
A consciência de que novos elementos eram acrescentados no Terno de Reis fica
explícita na fala de Eliseu ao afirmar que, mesmo sabendo que a Rainha Negra não fazia parte
do Terno, ela (D. Bernarda) colocou a Rainha Negra e a manteve durante todos os anos da
festa. Perceber a consciência da criação de um elemento é essencial para notarmos que havia
o desejo no grupo em buscar inovar as apresentações, mantendo o interesse de pessoas das
mais diversas faixas etárias, pois desde crianças de sete anos até senhoras de terceira idade
desfilavam e se divertiam nas festas do Humildes em Alegria. Além disso, os segredos que
circundavam as figuras dos Reis da festa levavam muitos jovens a ambicionarem o cargo,
participando intensamente dos ensaios e da organização do festejo.
A festa, em seus muitos usos, servia para demonstrar anseios, desejos, era um espaço
onde a cultura local se expressava e poderia ser conhecida por pessoas de outros espaços da
cidade. Na interação da comunidade com a festa é que emerge a relação entre as vivências
cotidianas e a cultura que uma localidade quer expressar.
A festa de Reis do Humilde em Alegrias não era apenas uma comemoração que
ocorria uma vez no ano. Era fruto da labuta de indivíduos que passavam meses organizando,
planejando, construindo o Terno. Construção essa, sempre acompanhada de perto pelo olhar
atento de D. Bernarda, conhecida por muitos moradores como “a dona do Terno”. Seu poder
de decisão se fundamentava na crença mística da revelação divina da festa, e na sua relação
com os sonhos, momento em que eram reveladas as fantasias e as canções para inovar os
desfiles do grupo.
Notamos, portanto, que os festejos em homenagem aos Santos Reis, apesar de serem
desenvolvidos das mais diversas maneiras em localidades distintas, trazem consigo o fato
dessa festa se manter independente das amarras da Igreja, sendo uma comemoração de caráter
popular que agrega em si elementos católicos e rememorações de festividades e tradições
afro-brasileiras.
338
Entrevista realizada com Eliseu dos Santos, 52 anos, em 26/03/2003.
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DA RELIGIOSIDADE POPULAR À DEVOÇÃO AO DIVINO PAI ETERNO
Dalva Pedro da Silva
Mestranda em Ciência da Religião/PUC-GO
Especialista em História Oral/UFG
[email protected]
Introdução
Refletir sobre o tema religiosidade popular, no contexto da devoção ao Divino Pai
Eterno em Trindade GO. Nesse sentido, esta discussão não visa estabelecer definições
distintivas do catolicismo popular e da religiosidade popular. Mas sim como foco de reflexão
e de entendimento do conjunto de práticas simbólicas, com raízes populares nas várias
expressões e atividades: participação dos devotos na romaria, peregrinações, via-sacra, reza
do terço do ajoelhar e beijar a cruz e imagens de santos, do rezar nas novenas, acompanhar
procissões e o pagar promessas.
Um dialogar sobre Religiosidade Popular
Na intenção de abrir ao diálogo de compreensão sobre o termo religiosidade popular,
recorremos a uma investigação feita por Isnard de Albuquerque Câmara Neto (2005),
referente ao artigo Diálogos Sobre Religiosidade Popular. De acordo com este autor citado,
ele diz que
Oscar Beozzo, por exemplo, defende a substituição da expressão
“religiosidade popular” por “práticas religiosas das classes
populares”, do qual, salvo melhor juízo, julgamos lícito discordar,
pois o autor insiste em tê-la como exclusivo “patrimônio de classes
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sociais exploradas e oprimidas” (BEOZZO, 1982, p. 745),
desconsiderando que as manifestações de religiosidade popular
independem de classe social. Dependem talvez do grau de relação
de “ortodoxia” que o devoto mantém com – no caso em tela – o
catolicismo oficial. Günter Paulo Süss, no entanto, é muito
pertinente ao defender que o catolicismo popular estabelece um
limite com a religiosidade popular global, tendo em vista que esta
“abrange todos os costumes evidências religiosas do povo, sejam
eles de origem africana, indiana, protestante, católica, espírita ou
pagã” (SÜSS, 1979, p. 28, apud NETO, 2005, p.1).
Referente à questão religiosidade popular faz-se presente nessa discussão, a Santíssima
Trindade como figura de relevada importância dentro, do universo das devoções dos (
associados:filhos do Pai Eterno). A devoção ao Divino Pai Eterno e a realização da romaria
religiosa de Trindade/Go, têm características peculiares, essa devoção perpassa pelo festejo
das novenas e se caracterizam por serem manifestações de fé de agradecimento por benefícios
alcançados e renovação dos pedidos perante a imagem do Divino Pai Eterno.
A percepção de um lado, dessa presença, do rezar nas novenas, procissões, celebrar, e
do alegrar se constitui na certeza de que por traz de todo um sentimento de paz e gratidão,
existe um motivo religioso transcendente muito forte, presente na festa no Divino Pai Eterno.
Em contra partida, dentro de toda a participação dessa romaria, há dentro do conjunto da festa
do Divino Pai Eterno pessoas, que festejam sem ao menos intencionar que a festa da Trindade
santa tem seu objetivo principal o celebrar religioso.
Segundo entendimento desses participantes últimos citados, o que eles visam no
momento da festa são, os reforços financeiros de seus comércios: vendas de lembrancinhas,
velas, escapulários, terços, camisetas, imagens dentre outros matérias. Bancas de comidas,
locais com músicas, danças e vários outros tipos de shows sertanejos e populares, momentos
que ilustram o universo da festa, e que são atrativos para economia local.
O sentimento de agradecimento de cada romeiro diante do conjunto, de variedades e
oportunidades festivas, durante o período da festa, que os romeiros sentem confortados por
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estarem na festa do Divino Pai Eterno de estar no santuário da Santíssima Trindade. Desta
forma alegram e agradecem por toda essa composição promovida pela festa.
Observada pelo horizonte do comércio e do religioso, a festa de Trindade é entendida
como sagrada, e profana, e essa constatação é notória, ao perceber que os devotos, assim que
acabam de participar da procissão ou novenas, em seguida fazem uma pausa para suas
compras ou passeios pela cidade, até mesmo, para sentir como é tão grande a força do Pai
Eterno sobre seus filhos. Força que indiferente de classes sociais ou crenças religiosas, as
pessoas sentem a necessidade de algo superior por meio da religião para que elas sintam-se
protegidas.
Eu nunca senti uma paz tão imensa como senti ao chegar ao
santuário do Pai Eterno. Tenho feito essa caminhada há dez anos,
cada vez, venho agradecer maravilhosas bênçãos recebidas, por
isso eu vejo essa questão do comércio e outras atuações das pessoas
na festa, seja no comercio local ou de outras pessoas que vem
venderem suas mercadorias no momento da romaria. Penso que
desta forma elas não ganham só com as vendas, mas sim contam
com a proteção que o Pai Eterno é capaz de promover para uni-las,
pois é um sentimento de harmonia e de partilha que sentimos nesta
belíssima romaria. Aqui sentimos todos iguais, diz uma devota do
Pai Eterno na festa de 2014 (Virginia Correia Neto).
Com a fala dessa devota, compartilho com o quê reflete Brandão, em um de seus
estudos sobre religiosidade Popular, “OS Deuses do Povo”, esse autor refere que mais que o
milagre as pessoas esperam serem protegidas pela religião e nela a presença dos santos.
Na verdade, muito mais que o milagre, os sujeitos subalternos
esperam da religião a proteção. Mesmo um fiel que nunca tenha
sido escolhido para um milagre, continua devoto, desde que se
reconheça ligado ao sagrado e protegido por alguma de suas forças.
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No entanto, mais ainda do que proteções, camponesas e proletárias
procuram encontrar a identidade que a crença e a prática religiosa
sobrepõem aos nomes comuns dados ás categorias “dos pobres”,
segundo a posição de suas práticas econômicas. Mas, tanto quanto
ou um pouco mais do que uma identidade que legitima, ao mesmo
tempo, o sujeito e a classe, eles esperam da religião um inventário
de certezas fundamentais – mesmo quando vagas – sobre a vida o
mundo e as contradições das entre ambos. O sentimento de “estar”,
o reforço da identidade e as certezas do saber religioso que fazem o
miolo da crença popular no sagrado, serve menos à filosofia do
pobre do que à experiência de poder religioso de que os clientes,
fiéis e leigos de baixo parecem ser muito mais exigentes e usuários
do que os clientes, féis e leigos. Falo isso aqui, da experiência
pessoal e de participação do sujeito nos rituais e efeitos do sagrado
– da festa ao milagre – e da experiência de ser parte da comunidade
de fé, por sua conta e risco criadora e reprodutora, tanto de rotinas
quanto de prodígios religiosos. (BRANDÃO, 1985, p.140-141).
Entrega Devoção e Fé. Como pode ser descrita a romaria do Divino Pai Eterno. E o
mais importante dessa devoção é a atribuição que a ela é dada, como a maior festa no mundo
dedicada à Santíssima Trindade. Isso faz com que a cidade de Trindade, receba o título de
capital da fé em Goiás, um lugar único e sagrado cheio de bênçãos e graças derramadas do
céu pelo Pai Eterno.
Desde a descoberta do medalhão, por volta de 1840, quando ela foi encontrada pelo
casal de agricultores (Constantino Xavier Maria e Ana Rosa Xavier) encontram às margens do
córego Barro Preto, um medalhão com a representação da Santíssima Trindade coroando a
Virgem Maria aos Céus. Como eram pessoas de grande fé e religiosidade, neste ponto
apoiado pela esposa após encontrar o medalhão sagrado, eles beijaram-na e levaram-na para
casa.
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Constantino e seus familiares começaram a rezar diante do medalhão encontrado,
então a partir desse acontecimento a notícia se espalhou e aos poucos outros moradores locais,
passaram a rezar junto á Santíssima Trindade (representada na Imagem do Medalhão). Há
mais de 170 anos, segundo relatos históricos da biblioteca de Trindade (GUIA DO
TURISTA, 2013 p.4). O Pai elegeu uma cidade e escolheu um povo para revelar ali a face do
Seu Amor.
Um povoado na época simples, humildes e tementes à Palavra de Deus. Com poucas
economias, porém rico de caridade e animados pela esperança. Características que são as mais
importantes para o alicerce de uma devoção. Repercussão de fé e devoção que hoje está no
coração de milhões de fiéis devotos em todo o mundo. Local que antes conhecido como Barro
Preto, mais tarde recebeu o nome de Trindade, cidade que fica a cerca de 18 km da capital
Goiânia(GO).
Universo histórico que perpassa pela representação simbólica e artística do medalhão,
expressada nas três pessoas divinas, Pai, Filho e Espírito Santo que segundo o significado
dado a imagem se caracteriza pela imagem do Pai, mais velho, lembrando Deus Pais; do Filho
mais jovem lembrando Jesus e do Espírito Santo, em forma de pomba, como é narrado no
Evangelho, coroando Maria Santíssima, mãe de Jesus.
O Medalhão (Figura da Santissíma Trindade coroanda a virgem Maria)
Fonte: biblioteca de Trindade – GO. Brasil
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Os devotos do Divino Pai Eterno, saem de vários lugares do Brasil e até mesmo de
outros Paises com destino ao Santuário Basílica do Divino Pai Eterno. Um lugar de paz, onde
os fiéis buscam sentido para a vida, alívio para suas dores e agradecem as graças recebidas.
Festa esta que tem seu começo todos primeiros domingos do mês de julho de cada ano.
Durante os nove dias que antecedem a festa, são celebradas várias missas e novenas;
ocorrem encontros de jovens, acolhimento aos carreiros do Divino Pai Eterno (procissão de
carro de boi), foliões, cavaleiros e muleiros. Muitos devotos percorrem, a pé, o trajeto entre
os municípios de Goiânia e Trindade, chegando até o Santuário Basílica, como forma de
pagar promessas, e agradecer bençãos alcançadas.
Os peregrinos também partem de outras cidades e estados. Mais de 2,8 milhões de
devotos passam pela Romaria durante os dez dias de festa e vários outros fazem visitas ao
longo do ano. Diante da realidade exposta sobre a devoção ao Divino Pai Eterno, a romaria
contribui efetivamente para engrossar o número de devotos na festa religiosa de Trindade.
Uma manifestação pura e sagrada da religiosidade popular dos tempos atuais.
Autoridades eclesiástica, governamentais e parte da sociedade civil investem em
diferentes aspectos como na organização da festa, na infra-estrutura da cidade e no comércio.
Investimento este mantenedor do santuário.
O santuário do Divino Pai Eterno, local
estrategicamente privilegiado na formação de base da Fé e do catolicismo popular em Goiás.
O catolicismo popular acredita na intervenção dos santos, promessas e votos,
privatizando a devoção ao santo ( Divino Pai Eterno). Os eventos e locadlidades produzidos
são nos santuários para os quais caminham os devotos e perigrinos do Pai Eterno. Sobre este
caminhar Stoddard, 1988ª:108 citado por Santos diz que,
“Para alguns pergrinos, a finalidade da viagem não é simplesmente
a de chegar ao destino; a deslocação em si próprio é um acto de
culto. Os méritos
da peregrinação são aumentados através do
sofrimento dos sacrifícios encontrados ao percorrerem-se longas
ditâncias, espacialmente quando realizadas a pé (SANTOS, 2006,
p.524).
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