PARA ALÉM DA PSICOPATOLOGIA DOS CÓDIGOS: UMA PERSPECTIVA
POLÍTICA E CLÍNICA NO ENSINO[1]
Resumo
O objetivo deste trabalho é apresentar uma estratégia metodológica no ensino em
psicopatologia a partir de uma perspectiva política que, por sua vez, viabiliza pensar
uma clínica da singularidade. Para tanto, parte-se da análise de dois movimentos de
“abertura”. A “abertura dos muros” da Reforma Psiquiátrica brasileira e das mudanças –
não homogêneas – das políticas de saúde mental desde as últimas décadas do século
XX. Mas também, da produção de uma “abertura dos muros” conceituais neste mesmo
período histórico, caracterizada pela consolidação e expansão do que podemos chamar
de uma “psicopatologia dos códigos” (DSMs e CIDs) que contempla uma diversidade
de condutas humanas nos critérios de inclusão nas categorias psicopatológicas e que
atravessa
os
“muros”
acadêmico-profissionais,
produzindo
uma
perspectiva
psicopatológica do sofrimento humano no universo cotidiano e legitimando um modo
de regulação fundamentado por um controle contínuo e modular da subjetividade, sendo
a mídia televisiva um locus privilegiado de observação e discussão desta temática
(Silva et al,
2006;
Ferreira,
2006).
Com
tal problematização no
ensino
da
psicopatologia, é possível apontar para a necessidade de criação de modos de escuta que
não aprisione o sofrimento psíquico nos modos de regulação intra e/ou extra-muros.
1. O contexto do trabalho: a problematização no ensino
Ao assumir a docência da disciplina de psicopatologia em 2003, para o Curso de
Psicologia, encontramos um ementário fundamentado nos manuais de classificação e de
diagnóstico – os DSMs (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da
Associação Americana de Psiquiatria) e os CIDs (Código Internacional de Doenças, da
Organização Mundial de Saúde), tal como é comum às ementas desta disciplina. Desta
forma, tínhamos que encontrar, também, uma estratégia para articular a tarefa de ensinar
psicopatologia a partir de um parâmetro curricular restrito em termos de reflexão e
extenso em volume, com uma excessiva abrangência classificatória, com o
compromisso de assegurar o senso crítico na interlocução que seria estabelecida no
contexto de ensino. Desta forma, como docente, optamos por mergulhar no universo
(discursivo) classificatório para entender a sua lógica, sua política e sua tática.
Apresentava e analisava os manuais de diagnóstico “por fora”, mas também, “por
dentro”.
Fizemos experimentações com textos introdutórios (Machado de Assis,
1979; Frayze-Pereira, 1994; Berlink, 1997), quando apresentávamos e discutíamos uma
introdução às idéias foucaultianas sobre a historicidade das doenças mentais, os
cuidados com um certo furor classificatório da psicopatologia na atualidade e o desafio
de pensar o adoecimento psíquico a partir de sua multiplicidade que não a categorial e
classificatória, como veríamos no curso.
Depois
de
algumas
experimentações,
mapeamos
uma
série
de problematizações que passaram a nortear esta parte introdutória e fundamental do
curso, pois constituía a iniciação a uma estratégia de pensamento, mais do que somente
a apresentação formal de um plano, metodologia e critérios de avaliação do curso.
Além de mostrar a historicidade e a medicalização da loucura (Silva, Moura,
2000) como fenômeno da modernidade entre os séculos XVII e XX, na emergência da
sociedade disciplinar, capitalista, industrial e “científica” - tal como trabalhada por
Foucault (2000) - conseguíamos mostrar a historicidade do que passamos a chamar de
“psicopatologia dos códigos”, destacando alguns de seus objetivos, princípios e
domínios no final do século XX.
Na parte seguinte do curso, depois deste momento introdutório, explicitava o
modo como iríamos agrupar algumas categorias para que pudéssemos alinhavar algum
sentido ao “esquadrinhamento do sujeito” que iríamos assistir.
Mas, algo que surgia nas cenas discursivas em sala de aula produziram algumas
das inquietações que foram disparadoras para o desenvolvimento das articulações
presentes neste trabalho. Reiteradas inserções de referências a “personagens midiáticos”
da psicopatologia (televisão, mídia impressa, cinema, literatura, etc.) surgiam em sala de
aula.
Algo nos fazia supor alguma relação entre a “psicopatologia dos códigos”
estendida na rede social a partir da análise de sua relação com a mídia - em especial, a
mídia televisa (Bucci, Kehl, 2004).
. Algo nos fazia supor que a mídia televisiva podia ser tomada como
um locus privilegiado de observação e discussão da extensão da perspectiva
psicopatológica do sofrimento humano no universo cotidiano, configurando-se como
um modo de regulação contínuo e modular da subjetividade. Tais suposições foram
desenvolvidas a partir do trabalho em sala de aula e em pesquisa (Silva, Barros,
Ferreira, Lima, 2006; Ferreira, 2006; Ferreira, 2006), como uma estratégia de leitura
política da psicopatologia contemporânea, apontando seu afastamento da historicidade,
temporalidade e singularidade necessários a uma leitura clínica (Roudinesco,
2005; Birman, 2001), tal como tentaremos mostrar a seguir.
2. A “psicopatologia dos códigos” em tempos de “abertura dos muros”
Para entender a emergência e o expansionismo da “psicopatologia dos códigos”,
partimos da análise de dois movimentos de “abertura” - apresentados separados, mas
fazendo parte de um mesmo processo. O primeiro refere-se à “abertura dos muros” da
Reforma Psiquiátrica brasileira e das mudanças – não homogêneas – das políticas de
saúde mental desde as últimas décadas do século XX, em um contexto nacional de
redemocratização das instituições governamentais e estruturação dos movimentos da
sociedade civil organizada[2].
As mudanças da política de atendimento em saúde mental priorizavam, com
diferentes ênfases: (1) a humanização do atendimento, tal como nas comunidades
terapêuticas na Inglaterra; (2) a desospitalização da doença mental, fazendo emergir
uma psiquiatria comunitária, com a racionalização e a hierarquização dos serviços
assistenciais em rede disciplinar que vai mapear o território extra-manicomial e
distribuir a rede de atendimento inscrita no tecido social, estendendo o
modelo manicomial para os serviços extra-muros, tal como a psiquiatria de setor na
França e a psiquiatria preventiva nos Estados Unidos[3]; e/ou questionar a própria
hegemonia do parâmetro médico para compreensão do sofrimento e enlouquecimento
humano, tal como a psiquiatria democrática de Basaglia (1985) na Itália, que
contemplava o questionamento da relação tutelar da psiquiatria com o fenômeno da
loucura e com o “louco” (paciente, cliente ou usuário do serviço), além da proposta de
ruptura com a tutela asilar e a extinção do estabelecimento físico do manicômio.
Neste movimento de “abertura”, propagava-se - e, em alguns momentos,
instituía-se - a humanização e/ou o esvaziamento dos hospitais psiquiátricos pelo
controle do índice de internações; ao mesmo tempo em que surgiam e aumentavam o
número de unidades dos serviços substitutivos ao manicômio, estendidas na rede
comunitária de atendimento. Tal como constava na Portaria 224/1992 do Ministério da
Saúde: na rede hospitalar tínhamos o hospital especializado em psiquiatria, o serviço de
urgência psiquiátrica, o leito ou unidade em hospital geral e o hospital-dia; na rede
ambulatorial tínhamos os centros/núcleos de atenção psicossocial(CAPS/ NAPS), os
ambulatórios, os centros de saúde e as unidades básicas.
Passávamos a observar os efeitos da institucionalização e da estatização do
“movimento de abertura” pelas políticas públicas de saúde mental - incorporado ao
movimento sanitarista - e utilizado na normatização da população pelas técnicas da
medicina na produção de dados estatísticos e epidemiológicos, controlando o trânsito
dos indivíduos em níveis de normalização intra e extra-muros.
Era justamente, neste momento, que falávamos sobre um outro movimento de
“abertura” que, de certa forma, sustentava a “abertura dos muros” dos hospícios. Uma
abertura conceitual que constituirá o dispositivo que dará legitimidade científica à
“psiquiatrização comunitária” emergente para além dos muros do manicômio e inscritos
na rede de atenção à saúde mental no território da cidade, produzindo uma perspectiva
psicopatológica do sofrimento humano no universo cotidiano e legitimando um modo
de regulação fundamentado por um controle contínuo e modular da subjetividade.
Tendo em vista a apropriação do movimento de “abertura dos muros” pelas
políticas públicas de saúde mental, a produção da necessidade de sistematização de
estatísticas e de dados epidemiológicos que fundamentassem os programas de
intervenção, bem como as diferenças de abordagens e modos de manifestação das
alterações, doenças ou transtornos mentais, destacava-se a tentativa de alcançar uma
uniformidade e universalidade como estratégia de possibilitar a comunicação
profissional e institucional no âmbito nacional e internacional e “combater” a
diversidade teórico-metodológica que caracterizava a área de estudo e de intervenção
em psicopatologia.
Para tanto, propôs-se (1) um enfoque descritivo e “ateórico” na sistematização
de manifestações clínicas, substituindo a noção de doença pela noção de transtorno,
considerando que a especificidade do adoecimento psíquico não possibilitava a
determinação da etiologia, curso e terapêutica em relação as suas diversas
manifestações; (2) a descrição de características essenciais e associadas, comentários
(estatísticas) sobre idade, início, curso, comprometimento, complicações, fatores
predisponentes, prevalência, sexo, padrão familiar, diagnóstico diferencial, registro da
gravidade do transtorno (leve, moderado, grave) e sobre a remissão dos sintomas
(parcial ou completa); (3) uma série de critérios diagnósticos de inclusão e exclusão,
constando a relação de características essenciais que deveriam estar presentes para que
um diagnóstico fosse feito (confiabilidade) e a presença de algumas categorias
regulares, tais como o “transtorno associado a uma condição médica geral”, “induzido
por substância” e “sem outra especificação”.
Para contextualizar historicamente a “psicopatologia dos códigos”, começava
por mostrar o óbvio: lembrava que se contamos atualmente com um DSM-IV e um
CID-10, contamos - em outros períodos históricos - também com um DSM-I, II e III e
um CID 1, 2, 3, 4 e assim por diante. Para, em seguida, oferecer alguns dados sobre os
antecedentes históricos fornecidos nos capítulos de apresentação do DSM-IV-TR (2002)
e do CID-10 (1993).
Quanto às referências aos CIDs, apontava a multiplicação das classificações e
como os cuidados primários em saúde passavam a ser tomados como objeto de
codificação em um manual de patologias mentais – ou transtornos psíquicos – nas
últimas décadas do século XX. Na década de 1940, tínhamos a inclusão das categorias
de transtorno mental pela primeira vez no CID-6; na década de 1970, 30 categorias no
CID-9; na década de 1990, 100 no CID-10! O que teria ocorrido? As pessoas estariam
adoecendo mais ou o modo de compreensão e de classificação sobre o adoecimento
psíquico teria mudado?
Quanto ao percurso dos DSMs, não apontávamos somente a multiplicação das
categorias diagnósticas e a ampliação da especificidade da psicopatologia, mas
evidenciávamos o “aperfeiçoamento” no modo de diagnosticar em rede com o sistema
multiaxial, introduzido na década de 1980, no DSM-III. Um diagnóstico “médico
plural” que contemplava a descrição e registro de cinco eixos: psiquiátrico, psicológico,
clínico geral,psicossocial e situacional[4].
Apesar da pluralidade que adjetivava o diagnóstico multiaxial, este continuava
sendo um diagnóstico “médico”. Apontávamos que apesar da impressão de uma busca
de compreensão do sujeito a partir de uma multiplicidade (psiquiátrica, psicológica,
clínica geral, social e situacional), como se fosse a crítica a uma perspectiva
reducionista em relação à doença; com uma análise mais atenta, era possível verificar
que este sistema diagnóstico era a expressão da objetivação do sujeito nos códigos
modulares a partir de uma perspectiva dita plural, porém, caracterizada pela hegemonia
médica, mostrando a expansão do pensamento médico (psicopatológico) sobre o
sofrimento e o comportamento humano.
A partir daí fazíamos algumas amarrações. Apontávamos o fracasso do propósito
de uniformidade e universalidade pela simples existência dos dois manuais (o CID e o
DSM), semelhantes em seus princípios, mas com algumas diferenças em termos de
categorização (Sonenreich, 2004). Discutíamos como a tentativa de descrição “ateórica”
fracassava, mostrando-se como um dos enfoques possíveis dentre as abordagens
teóricas existentes. Segundo Roudinesco (2005, p.87-90), a “concepção comportamental
da condição humana” fundamentaria as estratégias de codificação nos DSMs e CIDs,
tomadas como única referência “científica” em psicopatologia; bem como uma
concepção organicista das neurociências fundamentaria uma perspectiva farmacológica,
colocada a serviço dos “laboratórios farmacêuticos e da ditadura da perícia técnica”.
Evidenciávamos, ainda, que no mesmo período histórico da “abertura dos
muros” da Reforma Psiquiátrica, foi o momento em que os manuais (CIDs e DSMs)
tornaram-se hegemônicos em termos de cientificidade, quando houve um aumento
significativo do número de classificações, multiplicadas em ramificações diagnósticas,
diversificadas pela sintomatologia, e pela inclusão de uma multiplicidade de condutas
dentro do domínio de investigação e intervenção.
A “psicopatologia dos códigos” não tratava mais da doença mental, mas dos
transtornos com uma ampla gama de indeterminação, incluindo uma diversidade de
condutas nos critérios para inscrição e registro nas categorias psicopatológicas que não
estavam previstos nas definições de doença mental em períodos históricos anteriores; e,
ainda, destacávamos a categoria regular de “sem outra especificação” em seu sistema de
classificação que contemplava parte deste índice de indeterminação, regulando a
extensão da delimitação do objeto e do domínio do conhecimento da psicopatologia e
do exercício do profissional “psi” (psiquiatra, psicólogo e psicanalista).
Algo nos dizia que a mesma modernidade dos séculos XVII ao XX, em que os
saberes e práticas disciplinares (médico-psiquiátricas e psicológicas) sustentaram e
construíram os “muros dos hospícios” - transformando a loucura em doença mental produziria o cenário em que assistiríamos o “aperfeiçoamento” e a milimetragem das
estratégias de controle disciplinar de modo dispersivo, na segunda metade do século
XX, no que Deleuze (1992) [5] sinalizou como a emergência da sociedade de controle.
Mostrávamos
uma
certa normatização da medicalização como
fenômeno
contemporâneo, na emergência de novas regulações sob (e sobre) os imperativos do
mercado, do consumo e das tecnologias de comunicação e de informação que
constituíam os novos cenários sociais na atualidade. Mostrávamos, de certa forma, a
participação da “psicopatologia dos códigos” na construção de novas estratégias de
regulação social para além dos muros das instituições de seqüestro (como o hospício),
mas também além dos “muros” das instituições disciplinares da rede de atendimento
comunitária extra-muros (dos serviços substitutivos como os ambulatórios, centros de
atenção psicossocial, centros de convivência, etc) ou acadêmico-profissionais
(universidades, eventos, etc.).
O indivíduo na sociedade disciplinar era investigado no exame, sua história era
relatada por tópicos nos prontuários e incluía-se em uma de algumas categorias. Na
sociedade de controle, o indivíduo é investigado, modulado e codificado dentre as
múltiplas categorias nos eixos do diagnóstico multiaxial, contemplando um
leque milimetrado de condições, tipos de conduta e de sofrimento psíquico já previstas
nas alternativas a registrar.
Se por um lado entende-se que tal estratégia avaliativa visava aproximar e
facilitar a comunicação profissional e institucional no âmbito nacional e internacional,
é justamente o que afastava esta psicopatologia (dos códigos) da clínica. A nova
“fisionomia da loucura” impressa pela “abertura dos muros” e sustentada por uma
aliança da “quimioterapia, do princípio do acolhimento coletivo e dos tratamentos
psicodinâmicos” era sujeitada à “psicopatologia dos códigos” como um novo modo de
regulação sustentado pelo imperativo da “perícia generalizada”, levando ao
“desastre” no plano clínico e no ensino em psicopatologia (Roudinesco, 2005, p. 102).
3. A “psicopatologia dos códigos” na mídia (em sala de aula)
Depois desta parte introdutória, no contexto do curso, trabalhava com a
historicidade de cada um dos agrupamentos de categorias psicopatológicas, transitando
entre a descrição da “psicopatologia dos códigos”, a discussão do contexto social e
histórico do surgimento das diferentes categorias e a problematização da presença de
características ou de alterações que eram tomadas como sintomas (patológicos) em
certas circunstâncias e, em outras, era “socializado” (de modo intensivo e agudo
ou cronificado e leve).
Como já mencionado anteriormente, não parecia sem propósito a presença de
referências constantes à mídia nas aulas de psicopatologia. Muitas vezes, personagens
de novelas e filmes representavam “pacientes” e “profissionais psi”. Outras vezes,
“pacientes” e “profissionais psi” viravam personagens nas entrevistas em jornais,
programas de entrevista, de auditório, talkshow, etc.
Ao observar a mídia de modo mais ou menos sistemático, encontrávamos uma
ampla lista de categorizações dos manuais de classificação em psicopatologia, a partir
do
qual
poderíamos
abordar
praticamente
todo
o
programa
de uma
“psicopatologia.dos códigos”. Destacaremos, neste momento, algumas referências à
psicopatologia para além dos muros (manicomias e da rede comunitária) e por dentro da
tela, ilustrando este modo de regulação dispersivo em rede (televisiva).
Personagens e cenas de novelas, filmes, telejornais e outros gêneros discursivos
surgiam relacionados às psicoses: a esquizofrenia “curável” porque controlada de
John Nash de “Mentes brilhantes” (2001), personagem da vida real que virou ficção; a
homenagem à Nise da Silveira em reportagem no telejornal em que, além dos
profissionais da comunicação, assistíamos entrevistas com um profissional “psi” e um
usuário do serviço “vítima de esquizofrenia”, bem como ouvíamos referências a G.
Jung, quando a psicose aparecia na tela ainda dentro dos muros (Silva, Barros, Ferreira,
Lima, 2006). Mas, também, tínhamos a loucura estendida no cotidiano, com uma
multiplicidade de sentidos: desde a adjetivação de situações de ruptura mais ou menos
valorizadas socialmente, de um estado psíquico pontual (ou “transtorno psicótico
breve”) até constituir-se em uma categoria psicopatológica (Ferreira, 2006). Quanto
às “patologias da cultura”, destacamos Dr. Lecter de “Silêncio dos inocentes” que
protagonizava as discussões em sala de aula na extensa série de personagens
“psicopatas” da filmografia nacional e internacional (ou portadores do “transtorno de
personalidade anti-social”). Mas, neste agrupamento, tínhamos também, Wionna Ryder,
atriz norte-americana que protagonizou uma cena midiática em que era uma
personagem na vida real, apontada como cleptomaníaca (ou portadora de um
“transtorno do controle dos impulsos não classificados em outro local”). Quanto
às neuroses remetemo-nos a própria presença dos profissionais “psi” na relação de
reciprocidade que estabelecem com o surgimento de seu “objeto institucional”: temos
um médico entre a histeria e a mediunidade de um personagem/paciente na novela das
18h (Alma Gêmea, TV Globo), um Freud “encarnando” na novela das 19h (Bang Bang,
TV Globo) e um psicanalista na novela das 20h (América, TV Globo). Profissionais
“psi” também são entrevistados em gêneros discursivos informativos, definem os
transtornos e indicam terapêuticas (pânico, fobias, tocs, etc.). Quanto às compulsões,
voltamos aos personagens midiáticos da psicopatologia no âmbito internacional: uma
Princesa Diana bulímica, um Michael Jackson pedófilo (tal como apresentado na mídia)
e um Maradona dependente de substâncias (Silva, Barros, Ferreira, Lima, 2006).
Quanto aos transtornos de humor, em um mundo apresentado como excessivo,
intensivo, acelerado – quase um quadro “maníaco” – encontramos a “depressão”
descrevendo situações, estados e categorias (Silva, Barros, Ferreira, Lima, 2006) que –
diferente da “loucura” será predominantemente desqualificada em termos sociais, sendo
extensivamente patologizada.
Este breve recorte de uma rede de cenas da mídia – que poderia exceder nos
detalhes, tal como a “psicopatologia dos códigos” - articulados ao contexto de ensino,
apesar de arriscar constituir uma reiteração do discurso da “psicopatologia dos códigos”,
constituía uma afirmação questionada do esquadrinhamento psicopatológico na
atualidade.
Discutíamos, tal como apontava Birman (2001), como a loucura clássica
das psicoses do “sujeito fora de si” teria sido absorvida pelo padrão de normalidade na
atualidade, fundada em uma cultura performática e do excesso, tendo perdido seu lugar
de centralidade no discurso psicopatológico na atualidade, quando verificávamos a
socialização e a naturalização da “loucura do excesso” no cotidiano. Em contrapartida,
surgia uma série de nosografias relativas a um outro tipo de produção de subjetividade:
de um “sujeito dentro de si” com a interioridade (moderna) difusa na exterioridade que
subverte as hierarquias entre o real e a realidade, sendo a “psicopatologia dos códigos”
responsável por fornecer parâmetros normativos (científicos) que irão fundamentar e
criar o domínio da intervenção pontual e farmacológica de diversas ordenações (des)
funcionais, descrevendo e regulando o mal-estar, sem enfocar a questão da etiologia ou
da cura, tal como na medicina clínica moderna (Birman, 2001, p.185).
Dentre as novas nosografias, Birman (2001, p.190) afirma que as “perversões”
passaram a ocupar um dos focos privilegiados do discurso psicopatológico na
atualidade, quando vemos outros personagens protagonizarem as “patologias da cultura”
(dos transtornos de personalidade aos transtornos do controle dos impulsos) - ao que
poderíamos acrescentar a regularidade de como as compulsões (de modo primário ou
secundário)
surgiam
em
diversos
“transtornos”
(alimentar,
sexual,
substância, factício, obsessivo-compulsvo, transtorno de personalidade obsessivocompulsivo, controle dos impulsos e sem outra especificação como a compulsão
à internet, consumo, sexo, etc.).
Mas destacamos, também, a presença dos “profissionais psi” e a apropriação
social do “discurso psi” (Silva, Barros, Ferreira, Lima, 2006; Ferreira, 2006) na
produção de um imaginário social “psicopatológico”. A presença das cenas
psicopatológicas
na
mídia
representadas
por
“portadores
de
transtornos” e/ou “profissionais psi” mostrava a extensão do discurso psicopatológico e
profissional estendido no cotidiano. Mas, em alguns momentos, a extensão se esgarçava
e dispersava, sendo o discurso psi apropriado por personagem não psi, mas com os seus
pressupostos da perspectiva avaliativa hegemônica, mostrando como o “discurso psi”
extrapolava os muros acadêmico-profissionais, passando a constituir um modo de
compreensão da subjetividade e das relações, tal como podíamos verificar em sala de
aula.
Considerações finais
Não é difícil afirmar que se espera de um professor de psicopatologia a descrição
das classificações diagnósticas. Os alunos estão cursando a disciplina do Curso de
Psicologia que mais se aproxima do modelo médico de diagnosticar (dominar) uma
realidade. Não podíamos negligenciar tal expectativa, mas também, não podíamos
atendê-la. Ao modo dos analistas institucionais (Baremblit, 1998), analisamos a
demanda e o seu encargo.
Efetuávamos uma crítica realizada a partir não somente de uma exterioridade,
mas também, tomada ao entendimento por dentro, pelas entranhas e artimanhas,
buscando a difícil tarefa de cumprir a ementa curricular e inserir no curso uma
perspectiva política e clinica em psicopatologia.
A inscrição da mídia no contexto de ensino poderia parecer interessante, por um
lado, no sentido de aproximar as discussões de aula ao “cotidiano”. Mas, por outro,
dava a impressão de que não estávamos mais presos ao hospício para falar do
adoecimento psíquico, mas estávamos presos à tela da televisão, à página dos jornais ou
ao monitor dos computadores, quando parecia que saíamos dos “muros” e entrávamos
na “tela” (ou na “página”) em sala de aula.
Mostrávamos, então, como que uma mesma época em que foram produzidas
liberações (dos muros), foram criadas novas sujeições e meios de regulação disciplinar
em rede extra muros manicomiais, mas também extra-muros dos serviços substitutivos,
pois as teconologias de comunicação e informação possibilitavam e exigiam novos
modo de controle em circulação; e conseguíamos, de certa forma, problematizar uma
perspectiva avaliativa de regulação entre normalidade e patologia estendida para o
tecido social quando analisávamos o modo que a “psicopatologia dos códigos” surgia
no contexto de ensino atravessada pela mídia. Não mais somente o controle do tempo e
dos gestos em um determinado território, mas um tipo de controle do tempo e dos
gestos em trânsito, em circulação, em movimento.
Como efeito, percebíamos que alguns entendiam e participavam ativamente na
construção das cenas de ensino, da proposta de montagem de um campo
de problematizações sobre os entrelaçamentos de uma leitura política da “psicopatologia
dos códigos” e uma clínica do adoecer psíquico na atualidade, destacando a importância
da historicidade, da temporalidade e da singularidade na compreensão do fenômeno
psicopatológico. Outros pareciam entender, mas mostravam, às vezes, a hegemonia de
uma perspectiva avaliativa em suas falas. Era impossível evitar algumas perguntas e
afirmações regulares desde o início ao final do curso: “fulano tem que ser doente, isto
não é normal!”; “tal conduta é patológica?”. A resposta e o diálogo estabelecido tinha
que contar com a prontidão e a insistência em problematizar a todo o momento a tutela
da psicopatologia sobre a subjetividade e o adoecimento psíquico. Reiteradas vezes era
preciso lembrar que não ser normal ou ser desviante não era igual a ser patológico. De
acordo com a insistência no “furor classificatório” dos enunciadores, chegava até
mesmo a afirmar, com certo distanciamento, que segundo os “manuais de classificação”
tal conduta poderia ser considerada a partir de tal categoria. E prosseguia perguntando
pelo sofrimento e singularidade psíquica que eram postos em cena.
Tal como ensinou-nos Deleuze (1992): “Não se deve perguntar qual o regime
mais duro, ou mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações
e as sujeições. (...) Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas. (p.219-220).
Enfim, na construção de uma metodologia de ensino em psicopatologia tentava produzir
uma leitura política e clínica sobre a produção de subjetividade, constituindo um convite
ao diálogo e ao desafio de criar modos de escuta que não aprisionassem o sofrimento
psíquico nos modos de regulação dentro e fora dos muros, dentro e fora da tela e...
dentro e fora dos códigos.
Referências
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J. Projeto análise. Disponível na internet:
http://www.jorgeforbes.com.br/br/contents.asp [17 ago.200
[1]
Patrícia Regina da Matta Silva, Psicóloga e Professora do Curso de Psicologia da Universidade Estácio
de Sá, Campus Resende, RJ. Doutora pelo Instituto de Psicologia da USP e Mestre em Teoria da Cultura
e da Comunicação da Escola de Comunicação da UFRJ. E-mail: [email protected].
[2]
Dentre as referências sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil, destacamos a leitura de Amarante (1995).
[3]
Cf. Albuquerque (1978) e Costa (1986).
[4]
Segundo consta no DSM-IV-TR (2002): (1) transtorno clínico com 17 classificações principais, 300
específicas e outras condições que podem ser um foco de atenção clínica; (2) transtorno de personalidade
e perturbações específicas do desenvolvimento; (3) condição médica geral; (4) problemas psicossociais e
ambientais; (5) avaliação global do funcionamento (AVG) quando é indicada a alternativa de avaliação a
partir de uma escala de 10 faixas com pontuação de 0 a 100 (DSM-IV, 2002; Kaplan, p.305).
[5]
Considerando a heterogeneidade e a descontinuidade das transformações históricas, Deleuze (1992)
discute a dissolução das sociedades disciplinares que deixavam de existir de modo hegemônico a partir da
segunda metade do século XX - cuja emergência foi trabalhada por Foucault - anunciando o surgimento
do que chamou de sociedades de controle.
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Patrícia Regina da Matta Silva, Para além da psicopatologia dos