ENSAIO SOBRE O FILME “LIFE OF PI” SOB UMA PERSPECTIVA
ÉTICO-ANTROPOLÓGICA
Laura Guerra Colares Leite Prado1
Este artigo traz reflexões sobre as perspectivas ético-antropológicas, tendo como base
o livro do autor Luis Maria Etcheverry, “Perspectivas ético-antropológicas para o mundo
contemporâneo”. O filme no qual será feita a análise foi baseado no livro “Life of Pi”, lançado
em 2001, escrito pelo autor canadense Yan Martel, que com essa obra ganhou o Booker
Prize — o prêmio literário mais prestigioso do Reino Unido, obra que já vendeu 7 milhões de
cópias em todo o mundo, e que nos permite uma compreensão profunda das diversas
dimensões do ser humano. No cinema, sob a direção de Ang Lee, a história ganhou o nome
de “As Aventuras de Pi” e recebeu onze indicações ao Oscar, incluindo o de melhor filme,
onde na cerimônia de 2013, foi o filme que ganhou o maior número de estatuetas do Oscar,
sendo elas a de melhor diretor, efeitos visuais, trilha sonora e fotografia.
Uma curiosidade sobre o libro é que o autor Yan Martel foi acusado pelo jornal britânico
The Garden de plagiar o libro do escritor brasileiro Moacyr Sclier, que já havia lançado um
libro com o título Max e os Felinos, que também conta uma história de um garoto alemão
que sobreviveu a um naufrágio em um barco com o tigre, porém em uma entrevista pela
internet o autor Yan Martel disse que se inspirou em uma crítica do libro de Moacyr Sclier
para escrever “Life of Pi”, inclusive colocou em seu libro um breve agradecimento ao escritor
brasileiro.
Agora que já conhecemos um pouco da história do libro do qual o filme foi baseado,
vamos iniciar a análise do mesmo, fazendo uma correlação com algumas das dimensões
apresentadas no libro “Perspectivas ético-antropológicas para el mundo contemporâneo”
lançado em 2013, do autor argentino Luis María Etcheverry, doutor em Filosofia, professor
universitário, possui várias publicações nacionais e internacionais em filosofia e literatura,
dentre elas estão também, os livros: Introdução à Filosofia, Introdução à Antropologia
Filosófica, Ética e Deontologia Profissional, O ouro velada (histórias), Contos e poemas em
antologias de SADE, Olga Orozco: Territórios de Fogo (emcollab. U.de Sevilha) e Novo
Pensamento para um Novo Milênio (emcollab., U. Salvador).
¹ Coordenadora Geral do Núcleo de Pós Graduação e Extensão – NPGE da FANESE/SE
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Essa história contada por Pi Patel (o protagonista) a um jornalista desacreditado em
Deus, que vai ao Canadá fazer uma entrevista e conhecer a sua história. Pi Patel era filho
de um casal indiano, donos de um zoológico, localizado em Pondicherry, na Índia, que
desde criança parece obcecado em encontrar algum sentido para sua vida e busca nas
diversas religiões uma resposta para suas inquietações internas. Dentre esses
questionamentos, estão a fé, o universo, a natureza, as pessoas em sua volta e ele mesmo.
Etcheverry (2013) diz que cada homem é constituído por sua relação com as dimensões
essenciais, essas dimensões são: a dimension criativa, a mítico-simbólica, da afetividade,
da mismidad, do corpo, da história e dimension finita.
Em seu livro “Perspectivas ético-antropológicas para el mundo contemporâneo”,
Etcheverry faz uma análise da Dimensión Mítico-Simbólica, onde se questiona: De onde
provém o que aqui chamamos de mundo simbólico ou dimensão mítico-simbólica? O autor
propõe que provém do espaço-tempo e do jogo que acontece entre a trama vincular a que
pertencemos, ou seja, a relação mundo mítico-simbólico com o sagrado, com a natureza,
com os outros e consigo mesmo. Diante dessa explanação abordaremos aqui a relação com
o sagrado, quando durante a sua infância, Pí na procura da razão da sua existência, busca
na religião uma resposta para seus questionamentos.
Como Pí nasceu em uma família indiana, o hinduísmo sempre esteve presente em sua
vida, e segundo uma de suas afirmações, ele diz que conheceu “Krishna” através de sua
mãe, e segundo o mesmo autor, a “Dimensión de la Historicidad” diz que o ser humano já
nasce envolvido por uma história (família), mas ela não tem que ser a única e determinante
em sua vida, vivemos dentro da dimensão temporal, onde em seu livro, Etcheverry afirma
que “el hombre y su mundo sólo puenden ser tales y propriamente en la trama vincular que
reúne passado, presente y futuro”.
Mesmo tendo sido criado dentro do hinduísmo e absorvido a cultura e hábitos, como o
hábito de não comer carne, sendo vegetariano, acreditando nos deuses Krishna, Brahma,
Ganesha, Shiva, isso não atendeu as suas inquietações. Pí não encontrou no hinduísmo as
repostas que precisava, e nessa busca constante, conheceu o Cristianismo, onde em uma
visita a uma igreja católica conheceu um padre que lhe apresentou a Jesus Cristo. Pí
conheceu também o Islamismo e começou a praticar hábitos mulçumanos. Em uma das
passagens do filme, ele fala ao jornalista que: “A fé é uma casa de muitos cômodos”, para
justificar a prática de três religiões distintas ao mesmo tempo.
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A busca de Pí tentando se encontrar e se entender através da religião, encontra
fundamento na citação do autor em seu livro, na “Dimensión de la Finitud”, que trata da
busca constante do homem a respeito da razão da sua existência e da sua relação como o
sagrado. Essa busca não é algo exclusivo da humanidade de nosso tempo, e sim que essa
busca e questionamentos acompanham o homem há muito tempo.
Segundo Etcheverry (2013), Nietzsche considerava que as forças originais da cultura
grega eram duas forças estético-ontológicas que lutavam entre si constantemente, mas que
não podiam existir uma sem a outra: o apolíneo (que representava a luz, a ordem, o limite, o
princípio da individualização) e o dionisíaco (que é o símbolo do fluxo profundo e caótico da
vida, que rompe todas barreira e ignora os limites). Nesse sentido o apolíneo é representado
pelo deus grego Apolo (deus do Sol e das artes) e o dionisíaco pelo deus grego Dioniso
(deus do vinho e os impulsos), numa constante procura da compreensão da vida e suas
infinitas possibilidades e questionamentos pelo sentido da vida, seus limites e sua relação
com o sagrado.
Por fim, Pi Patel afirma que em sua procura por Deus, nessa relação com o sagrado,
encontrou a fé através do hinduísmo, o amor através de Cristo, a serenidade e fraternidade
através do islamismo, e que nenhum de nós conhece Deus até que alguém o apresente a
Ele.
Com o passar do tempo e com as mudanças na economia, o pai de Pí ao perder o
apoio financeiro do município ao zoológico, decide ir para a América e vender os animais,
uma vez que diante da situação, não teria como sustentar o zoológico e sua família. O
mesmo autor afirma ainda que “o mundo em que vivemos é um mundo humano, mundo
simbólico, mundo construído na nossa interação com o real”, e dentro dessa interação com
o real, toda a família e os animais embarcam em um navio rumo à América.
Essa mudança veio na vida de Pí justamente no momento em que ele havia encontrado
a serenidade e o amor através do seu namoro com Anadi. Apesar de ser livre para ir e vir,
não era dono de sua liberdade, não tinha uma liberdade absoluta. Essa afirmação pode ser
apoiada através da “Dimensão da Hisoricidade”, que afirma que a liberdade absoluta é uma
ilusão, pois segundo Etcheverre (2013), não podemos escolher quando nascer, nem nossos
pais, quando morrer, a bagagem genética, que temos a história familiar e social, as
condições econômicas, não são feitas por nós, porém afirma o autor que são as condições
de possibilidades para o exercício da liberdade. Portanto a liberdade que temos é uma
liberdade situada, depende de todo um contexto em que estamos envolvidos.
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Durante a viagem a caminho da América, ocorre uma tempestade, ele tenta salvar os
seus pais e irmão, porém não consegue, e os únicos sobreviventes são o Pi Patel, uma
zebra, uma iena, um orangotango e um tigre. Nesse momento começa a verdadeira
aventura de Pi pela sobrevivência, passando pelo conhecimento de si mesmo, do outro, sua
relação com a natureza e com Deus. Em seu livro Etcheverre (2013), afirma que o homem
não é o centro do universo, que ele perde o seu centro, próprio do antropocentrismo da
modernidade para desenvolver a trama criadora do mundo, onde coexiste com a natureza,
com o sagrado, com os outros e consigo mesmo.
Mas logo nas primeiras horas dentro do bote, a iena ataca e mata a zebra e depois o
orangotango, momento esse em que Pi fica muito triste e revoltado, pois gostava muito dos
animais e era vegetariano, e ver aquela cena, ia de encontro com as suas crenças e seus
valores. Logo em seguida o tigre, o qual era chamado de Richard Parker, mata a iena para
se alimentar. Nesse momento Pi se vê sozinho com o tigre, e começa a estabelecer uma
relação com o mesmo, e o meio que ele encontrou para se comunicar com o tigre foi usar
técnicas de treinamento.
Segundo Ernst Cassirer (citado por Etcheverry, 2013), em seu livro Antropologia
Filosófica, uma das maneiras clássicas de compreender o homem é considerando a
dimensão mítico-simbólica da qual carecem nos animais. Incorporado em um meio natural,
o animal para atender a certas necessidades de seu organismo ou dos seus pares, tende a
efetuar algum tipo de reação ou resposta imediata.
O tempo foi passando e o que no inicio era uma relação de medo, passou a ser uma
relação de parceria, uma condição para sobrevivência entre o Pi e o Richard Parker. O tigre
o mantia alerta e atender as necessidades de alimentação do mesmo, deu propósito na vida
de Pi naquele momento, e o que era medo trouxe paz. Em relação a essa amizade, esse
sentimento que nasceu dentro de Pi com relação a Richard Parker, encontramos apoio
teórico no que diz o autor Etcheverry (2013) na “Dimensão da Afetividade”, em que o aceso
reflexivo a esta dimensão parte de nossa condição para ser afetado e afetar. Pierre Hadot
(citado por Etcheverry, 2013) diz que a singularidade reside na fundação da arte de viver
sob o cuidado de si mesmo e do mundo.
Ainda dentro desse contexto onde o Pi sozinho com o tigre, sem alimento, apenas com
um pequeno caderno de anotações e o bote, ele se vê obrigado a pescar peixe para
alimentar o tigre e para sobreviver, indo de encontro a tudo que ele acreditava, uma vez que
era vegetariano e não admitia a ideia de comer carne. Durante essa passagem ele afirma
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que “a forme pode mudar tudo que você sabe sobre vocês mesmo”, o que vai de encontro
ao que diz Scheler (apud Etcheverry) na “Dimensão da Mismidade”, onde afirma que não há
diferenças essenciais entre o homem e o animal, a não ser diferenças de grau, e que o
homem é capaz de dizer não, desligar-se de seus instintos e adaptar o meio ambiente as
suas necessidades, ao contrário do animal que adaptam-se ao meio ambiente. Fica aqui o
questionamento, diante da necessidade de sobrevivência, não foi Pi que se adaptou ao meio
ambiente que se encontrava?
Sócrates (apud Etcheverry, 2013, p.29) afirma que devemos nos questionar a respeito
da relação que temos com o que nos rodeia, ou seja, com o mundo, os objetos, o corpo,
com os outros...e dentro desse contexto questionando como afeto e sou afetado, que
relação tenho comigo mesmo? Da mesma forma, ainda citado pelo autor, Michel Foucault
em seu livro “A hermenêutica do sujeito” traz uma reflexão sobre o autoconhecimento,
quando se refere a “conhece-te a ti mesmo”, numa referência que somente assim o homem
terá a sua liberdade.
Após vários dias à deriva no oceano, em meio a uma tempestade, Pí se encanta com a
força de Deus e ao mesmo tempo se revolta com Ele, questionando o que mais queria dele,
já havia perdido tudo que amava, e nesse momento se entrega a dizendo: “Eu me rendo,
Ama, papai, Ravi, estou feliz porque vou ver vocês hoje”. Mais uma vez podemos perceber a
forte relação que o ser humano tem com o sagrado, com a espiritualidade. Relação essa
que podemos encontrar em relatos, livros, pinturas, registradas pelo homem desde o início
da humanidade. Uma relação de dependência e ao mesmo tempo de contestações, dúvidas,
devoção e gratidão.
Quando Pi se entrega e desiste de lutar, encontra uma ilha, o que o possibilita resgatar
suas forças para continuar sua luta pela sobrevivência, e em seu depoimento ao jornalista
ele afirma que “Até quando Deus parecia ter o abandonado, estava lá vigiando, mesmo
quando Ele parecia indiferente ao sofrimento, estava vigiando, e quando havia perdido todas
a esperança de ser salvo, Ele deu um descanso e um sinal para continuar sua jornada.”
Aqui encontramos a “Dimensão da Finitude”, a relação com Deus, com a morte e com a
existência, como forma de aceitar aquilo que de certa forma não consegue compreender ou
não tem como comprovar a sua existência, mas que ao mesmo tempo serve de respostas e
de um alicerce para a sua existência.
No final de sua jornada, Pi chega na costa do México, onde já exaurido de suas forças,
é resgatado por pescadores. Mas nesse momento o que mais o marcou foi ver o tigre
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Richard Parker, depois de tudo que passaram juntos, sair do barco, entrar na mata e não
olhar para traz e de certa forma se despedir dele, isso partiu o coração de Pi. Essa
passagem encontra sustentação na dimensão da afetividade trabalhada pelo autor citado,
uma vez que o mesmo afirma que seria inaceitável renunciar ao modo próprio em que cada
pessoa pode afetar e ser afetada pela relação aberta com os vínculos existente e criados
por ela.
Reforçando essa relação afetiva com o outro, Pi ao terminar de contar toda a sua
aventura, diz ao jornalista a seguinte afirmação: “Suponho que no fim a vida toda seja um
processo de dizer, de abrir mão, mas o que sempre me doeu mais, foi não ter tido um
momento de dizer adeus e agradecer ao meu pai por tudo que aprendi com ele”.
De fato o filme “As aventuras de Pi” nos traz uma reflexão muito forte sobre a
religiosidade, sobre a fé e a esperança, mostrando de maneira muito clara a relação do
homem com o sagrado, com a natureza, com os outros e consigo mesmo, passando por
várias dimensões ético-antropológicas citadas pelo autor Etcheverry, em seu livro
“Perspectivas ético-antropológicas para o mundo contemporâneo”.
Dentre as dimensões citadas no livro, encontramos de forma mais marcante no filme, as
dimensões Mítico Simbólica, da Historicidade, da Finitude, da Afetividade e da Mismidade.
Por fim essa análise nos mostrou como o ser humano dentro da complexidade de sua
existência, vive em busca de respostas para compreender a sua relação como o sagrado,
passando inevitavelmente pelo seu autoconhecimento.
Referências Bibliográficas
LEE, Ang. LEE, David. Aventuras de Pi. [Video]. Filmes produção Haishang e Netter Gin,
dirigido por Ang Lee. EUA, Fox 2000 Pictures, 2012. 1 CD, 122 minutos. cor. Adventure.
Etcheverry, Luis Maria. Perspectivas ético-antropológicas para o mundo contemporâneo.
Ensaios sobre cinema, filosofia e educação. 1ª ed. Cidade Autônoma de Buenos Aires:
Estudos Mediarte de 2013.
WIKIPEDIA. Desenvolvido pela Fundação Wikimedia. Life of Pi (filme) - Exibe o conteúdo
enciclopédico. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Life_of_Pi_%28filme%29.
Acessado em 06 de outubro de 2014.
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