3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL SILVIANO SANTIAGO E A LEITURA CRÍTICA Roberto Carlos Ribeiro 1 Ao palestrar em um simpósio para um público americano em 1999, Silviano Santiago afirmou que o intelectual brasileiro é quase sempre questionado quanto à contribuição da cultura do Brasil para com a teoria crítica mundial. Lendo na entrelinha da pergunta a intenção de um cidadão que se colocava como metropolitano, superior e universal, Silviano Santiago não aceitou que o brasileiro fosse identificado como periférico, subalterno e particular. Ele propôs que houvesse um diálogo entre as duas instâncias e indicou duas contribuições brasileiras apresentadas por Susan Sontag para a questão: a de Carmen Miranda para a teoria camp na indústria cultural e a ficção de Machado de Assis para a teoria do romance ocidental (SANTIAGO, 2004, p. 195). Ou seja, nós temos material para ser objeto teórico, se bem que às vezes nos falta pesquisador, visão e o movimento de olharmos para o nosso espaço para nos darmos conta de que podemos contribuir para a cultura mundial. Na mesma perspectiva, enquanto foi professor na Universidade de Buffalo/USA, Silviano Santiago pôde levar aos seus alunos americanos tanto Glauber Rocha quanto Hélio Oiticica e até mesmo o espetáculo teatral Arena conta Zumbi. De certa forma, o crítico tentava materializar a reflexão sobre o diálogo entre culturas ao apresentar o Brasil aos americanos. E por falar nisso, não é à toa que as duas edições dos livros de Silviano Santiago, O cosmopolitismo do pobre e Ora (direis) puxar conversa! trazem imagens dos parangolés de Hélio Oiticica estampadas nas capas. Naquele, Nildo da Mangueira veste parangolé em 1964. Neste, cidadão veste parangolé no metrô de Nova Iorque em 1972. Hélio Oiticica faz, em escala infinita, o que sonhara Oscar Wilde: “deveríamos ser uma obra de arte ou vestir uma obra de arte” (SONTAG, 1987, p. 320). Esses exemplos determinam a sua perspectiva como pensador da literatura e da cultura brasileiras contemporâneas, proposta pela leitura crítica que se faz concreta pelo viés do questionamento, do enfrentamento e da técnica do deslizar, em que camadas se sobrepõem encaixando umas sobre as outras em constante atrito. Tal proposta é como 1 Doutor em Teoria da Literatura, pela PUCRS. ISBN 978-85-7395-210-0 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL mergulhar no ofício de homem que lida com as palavras, que vive da e para a literatura junto com a perspectiva da leitura crítica que especifico como uma forma ácida de não ser contemplativo com o status quo social e acadêmico. Diante de seu tempo, o crítico deve atuar como um cartógrafo. Precisa levantar vários mapeamentos de sua realidade para fixá-los em rede como sugestão a uma resposta do tempo. Ao ler o mundo, Santiago relembra que Borges lhe dissera “que não precisava ter vergonha de ser leitor, que os livros não são propriedade privada. Somos todos, em arte e artes, grileiros” (SANTIAGO, 2001, p. 434). Nas décadas de 1970 e 1980, como professor da PUC do Rio de Janeiro, Silviano Santiago abriu caminho entre seus pares com a noção de desconstrução segundo Derrida. Ficou famoso, entre os alunos da instituição, certo texto do professor recém-chegado do exterior, provavelmente uma ementa de aula, ou relatório de pesquisa em andamento, significativamente chamado pelos alunos de “o texto da semente”. Nele, estariam os princípios sobre os quais Silviano construiria a sua crítica e a sua didática. Naquele momento, no meio acadêmico carioca, encontravam-se na disciplina de literatura a vertente historicista e os conceitos estruturalistas. No choque entre os instrumentos utilizados para a análise da literatura, Silviano Santiago se identifica com a possibilidade de explicitar as margens do sistema literário brasileiro e a sua historiografia ortodoxa. Mais do que alojar o seu interesse nessa perspectiva crítica, ele dava mostras de estar adentrando aos estudos para além das discussões que na época se faziam presentes. De certa forma, no campo teórico dos estudos literários estavam também as primeiras notas do que hoje chamamos de estudos pós-coloniais. Nos seus ensaios iniciais, Silviano Santiago relia o passado literário brasileiro detectando o etnocentrismo e as relações hierarquizantes da sociedade colonial, como ele faz na leitura crítica do romance de José de Alencar, Iracema, em que aponta, significativamente, em anotações às margens do texto impresso, a força de um discurso europeizante, branco e dominante. Nele, demonstra as diferenças nos rituais de batismo entre Martim, que se “torna” um coatiabo, pintando a pele. Portanto, um batismo epitelial. Já o índio Poti é batizado segundo as regras da religião católica que prescreve mais do que uma relação superficial. Ela exige do outro uma entrega total, principalmente a um só deus, um só coração; a tão procurada e impossível unidade. A chave interpretativa do crítico para os estudos literários se baseava na retomada de um 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 31-45. 32 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL passado que fora registrado somente do ponto de vista do colonizador, para realocá-lo na perspectiva do colonizado. Na segunda metade do século 20 em que se viveu, não só, mas mais intensamente, a experiência da transição da ideia de contínuo temporal, representado pela história e pelo processo em si, em favor da ideia de descontínuo, de estrutura, de tempo dividido em partículas, de fragmentação, de deslocamento e descentramento, muitos pesquisadores pensavam as relações de domínio, já no âmbito dos estudos culturais e/ou da crítica cultural e/ou do pós-colonialismo. Homi Bhabha, Stuart Hall, Marc Auge, Edward Said e Hugo Achugar, entre outros (cada um dentro de seu espaço, do seu posicionamento ideológico, de suas memórias, do seu tempo e da sua cultura), cunharam conceitos que servem como delimitadores das vivências culturais por uma sociedade que está em desenvolvimento e à procura de suas definições atuais, mas não fixadoras. De uma forma ou de outra, a mesma perspectiva está presente na escrita e no pensamento de Silviano Santiago, tanto que ele afirma que “trabalha por um movimento de descentramento” e que tal deslocamento, tanto físico quanto temporal e abstrato só podia levá-lo a compreender, cedo demais, “que tinha nascido em um país extremamente contraditório: pobre e cosmopolita. Como, sendo pobre, não ser cosmopolita de araque?” (HELENA, 1992, p. 94). O movimento de descentralizar, tornando-se mais independente, para Silviano Santiago, começa desde o momento em que ele decide deixar sua terra natal para compreender o vasto espaço geográfico, que acaba por ser traduzido em sua escrita, tanto crítica quanto ficcional. Sua constante procura por uma resposta pode estar reunida na pergunta a que se fez em ter nascido em país periférico, mas com pensamentos cosmopolitas. Paradoxo sobre o qual refletirá nos seus ensaios levantando as ideias de Joaquim Nabuco, Machado de Assis, Sérgio Buarque de Hollanda, entre outros. A preocupação é de entender as questões formadoras da cultura brasileira através da literatura, não se esquecendo do viés ideológico e político, necessário em um país em que o cosmopolitismo leva a instâncias de pura alienação. Enquanto Affonso Romano de Sant´Anna, Luiz Costa Lima e Gilberto Mendonça Teles orientavam teses produzidas na PUC do Rio de Janeiro adotando uma perspectiva formalista, Silviano Santiago, como professor de Literatura Francesa nos Estados Unidos e no Canadá (vejam bem, um brasileiro dando aulas de literatura 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 31-45. 33 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL francesa em países da América do Norte), procurou orientar os seus trabalhos privilegiando uma abordagem interpretativa da obra literária, em oposição à análise textual, então vigente nos estudos estruturalistas. Fica claro que a perspectiva de um estrangeiro, falando de uma literatura estrangeira reclama uma análise fora do texto. Somente uma visada contextualizada, abrangente e com recursos interdisciplinares pode dar conta da análise e da interpretação de uma literatura. De outra feita, suplantando a onda estruturalista veio a teoria da intertextualidade que iniciou um processo de abertura metodológica, expresso no próprio ato de apropriação de um texto por outro. Na mesma direção, Foucault, Deleuze e Derrida ajudam a pensar a questão das relações culturais entre os países, colocando em xeque a ideia de verdade e de origem. Silviano Santiago dialoga com essas teorias para interpretar e refletir criticamente, lendo a sua contemporaneidade como uma multiplicidade dos discursos enunciados pelas diversas instâncias sociais. O espaço de pertencimento, construído pelo pensamento, e ancorado nas realizações da escrita fez de Silviano Santiago um pensador que, segundo Lúcia Helena, “pavimentou o curso de um debate sobre as relações entre nação e narração, cultura e imperialismo, que hoje se veicula no Brasil, principalmente a partir de leituras de Homi Bhabha e de Edward Said, mas que já se antecipava nas páginas de dois de seus livros de ensaio” (HELENA, 1997, p. 80): Uma literatura nos trópicos e Vale quanto pesa. Antes das páginas dos livros de ensaio, o seu laboratório das novas perspectivas de leitura brasileira se deu no âmbito das academias brasileiras, americanas, canadenses, e mexicanas. Silviano Santiago desloca o discurso fixado e lê a influência na cultura e na literatura brasileira desde a época da colonização do Brasil até as questões de multiculturalismo atuais, de um extremo ao outro, como, por exemplo, a sua leitura crítica do discurso do colonizador publicada no ensaio “A palavra de Deus”, na revista Barroco. São analisados ali três autores: Pero Vaz de Caminha, Padre Vieira e José de Alencar e a justificativa de um código linguístico para a implantação da fé, do império, a catequese e a colonização. Na falta de diálogo natural entre duas culturas diversas, num primeiro momento, houve a questão da imitação. Ou seja, o índio ao imitar os gestos do português fez refletir uma cópia de um original. Na sequência do mesmo processo, as peças teatrais de Anchieta apresentavam, visualmente, a imposição da 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 31-45. 34 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL religião e da política portuguesa, em que a imagem e a palavra se instrumentalizaram. O ápice dessa relação se deu com os sermões do padre Vieira em que a doutrina é o espelho que deve ser mirado pelos homens. Silviano Santiago chama a atenção de que a palavra pode ser interpretada, mas a “imagem dos olhos que ouvem a doutrina” transmite apenas “o conceito de cópia, de reprodução verossímil, de mímica” (SANTIAGO, 1971, p. 13). Ou seja, a imposição do colonizador desfez toda e qualquer originalidade que porventura pudesse brotar da outra cultura para transformá-la apenas em uma plateia que quando muito só podia imitar, nada mais. José de Alencar aparece no artigo na condição de autor romântico que recapturou esse momento histórico através de seu romance Iracema. Esse texto é de 1971, o mesmo ano da palestra “o entre-lugar”, em que os mesmos temas, colonização, cópia, originalidade e imitação têm papel preponderante. Sobre o ensaio “O entre-lugar do discurso latino-americano”, é preciso saber a sua genealogia. Eugenio Donato foi convidado para ser professor visitante de literatura francesa na Universidade de Montreal, no Canadá, e introduzir as novas ideias que chegavam da França. Silviano Santiago recebeu convite de Donato para palestrar em um simpósio. O artigo, então escrito em francês, fazia diversas alusões ao Canadá. O crítico trabalhou com um corpus teórico francês, particularmente Foucault e Derrida, e escritores hispano-americanos, conhecidos naquele país, como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. Santiago afirma que se trabalhasse com literatura brasileira os universitários não o compreenderiam, pois não tinham acesso a ela. Desse posicionamento pragmático quanto à região geográfica e cultural da fala do palestrante nasceu esse texto de um brasileiro que cria uma teoria sobre uma literatura de um continente tão amplo quanto o latino-americano. Silviano Santiago, como professor estrangeiro, teve de se posicionar não como brasileiro, o que seria uma referência desconhecida, como ele mesmo percebeu, mas pertencente a uma região cultural de reconhecimento daquele público, que era o de Latino-americano, para poder ter a voz compreendida. Silviano Santiago sabe que não pode abarcar toda a literatura latino-americana, mas aponta em seu texto o que mais sobressai quando se fala sobre países colonizados: a questão da cultura subalterna. A publicação brasileira se deu em 1978, no livro Uma literatura nos trópicos, com um subtítulo revelador: ensaios sobre dependência cultural. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 31-45. 35 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL Utilizando termos hoje já consagrados e que naqueles anos estavam se estruturando como uma base para a crítica cultural, como: terceiro mundo, neocolonialismo, renascimento colonialista, elemento híbrido e imperialismo cultural, na primeira parte do texto, Silviano Santiago retoma o raciocínio básico do artigo anterior “A palavra de Deus”. Neste está a constatação do peso da colonização. Na nova leitura, o crítico dá um passo a mais. Ele reconhece a dependência cultural, mas propõe uma reação agressiva, de falsa obediência a tal situação. O primeiro ato para essa façanha é decretar a falência do método crítico enraizado no sistema universitário de então: as pesquisas que conduziam aos estudos das fontes ou das influências. No lugar, devia-se colocar a valorização crítica à diferença. Esse novo método crítico tem a leitura como um convite à práxis, à transformação, à radicalização. E aqui, ele fala tanto do escritor quanto do produtor de ficção, dando como exemplo o conto de Borges “Pierre Menard, autor Del Quijote”. Como poderia ter dado o exemplo de Eça de Queiroz lendo Gustave Flaubert em O primo Basílio, que o próprio Silviano interpretou usando a metodologia da diferença. A valorização da diferença propõe uma relação de confronto entre as culturas geográficas e pressupõe que o escritor latino-americano deve ter a escritura como “um dever lúcido e consciente” (SANTIAGO, 2000, p. 24). A visualização é de um cenário de guerra, como propõe a abertura do texto. É desse confronto entre a obra original estrangeira e a agressão latino-americana que brota a leitura dos textos românticos do Novo Mundo, isto é, os textos “fundadores” das nacionalidades americanas, como ele fez com Iracema. Uma citação do próprio Santiago se faz necessária e já se tornou antológica sobre a explicação do “entre-lugar”: Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão – ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana (SANTIAGO, 2000, p. 26). O tema da dependência cultural seria retomado por ele 11 anos depois em ensaio intitulado “Apesar de dependente, universal”. A ideia central é a mesma do texto anterior, o conceito de “entre-lugar”: a cultura dominada pode contribuir com a arte afrontando a cultura dominante. Do embate, a consequente produção cultural se insere 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 31-45. 36 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL na universalidade, porque esta pressupõe, segundo o crítico, um processo de expansão em que respostas dos países periféricos são dadas aos valores da metrópole. Trocando o termo “terceiro mundo” do texto anterior por “culturas periféricas”, mais amplo e abrangente, como se nota pelo plural das palavras, e que desfaz a ideia de unidade no subdesenvolvimento, como supõe o primeiro conceito, o autor continua afirmando que o questionamento do estatuto da escrita e do avanço cultural colonizador é base para os textos descolonizados. Como o ensaio não foi escrito para canadense ouvir, mas sim brasileiros, Santiago exemplifica com o seu texto sobre Eça de Queiroz e aponta três antídotos nacionais contra o enciclopedismo eurocêntrico, ou seja, contra o intelectual que produz quantidade de informação sem processar o devido questionamento na análise e interpretação: a “antropofagia cultural”, de Oswald de Andrade; a noção de “traição da memória”, de Mário de Andrade; e o “corte radical”, do grupo concreto. Todos esses conceitos, segundo ele, têm como base o reconhecimento da dependência e a busca da subversão desse estado no diferencial do produto artístico. Ao tema da dependência cultural, juntam-se o do analfabetismo e o papel do intelectual nas reflexões do crítico. O confronto deve ser feito não só entre nações, mas também dentro do mesmo país. Por isso, o conceito de “entre-lugar” está muito próximo do caráter “anfíbio” que Silviano Santiago detecta na produção artística brasileira. A instância literária fornece ao escritor de literatura a oportunidade para que ele possa estender, na esteira de um diálogo sobre criação literária, na televisão, por exemplo, o assunto em pauta, o lançamento de um romance, por exemplo, para digressões que amparem e prolonguem um pequeno sistema cultural (um curto circuito) em que diversos assuntos são postos na mídia: política, educação, justiça, a própria televisão, internet, blogs, redes sociais. O papel do escritor, dessa forma, se amplia, levando o conteúdo do livro até aqueles que, por qualquer motivo (analfabetismo, problemas econômicos), não têm acesso à leitura. E paralelo, vai uma pequena informação de outros conhecimentos necessários à constituição do cidadão. Esse papel não é só do intelectual, mas estende-se para todos os interessados em inclusão. Na visão de Silviano Santiago, as minorias estão tendo outras e mais fortes possibilidades de se fazerem ouvir. Lendo o seu ensaio de 2002 “O cosmopolitismo do pobre”, percebemos em suas palavras um novo olhar, uma nova expectativa com relação 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 31-45. 37 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL aos marginalizados históricos do multiculturalismo da classe dominante do passado. Na esteira da construção do discurso de país-nação, esse multiculturalismo serviu para criar a imagem de um povo unido, vivendo sob as mesmas regras de igualdade e de socialização, enquanto, na realidade, o que se tinha era a fragmentação e o aterramento daqueles, muitos, deixados à beira do caminho. O resgate dos grupos étnicos e sociais, marginalizados historicamente, os índios, as mulheres, os negros se dá, nesses novos tempos, através da implantação de um novo multiculturalismo em que não se deve buscar a homogeneização das partes, mas a convivência e o diálogo entre as diferenças. Em que os grupos de referência se colocam em visibilidade, seja através de ONGs, de inclusão nas redes midiáticas, de busca de raízes comuns entre povos e diferentes países. Em que existe a possibilidade da expansão cultural para além dos limites de fronteira, a internacionalização do movimento MST, por exemplo; ou a descoberta da África pelo governo brasileiro recentemente. Para tanto, é necessário a desnacionalização do espaço urbano e a desnacionalização da política, pois o antigo estado-nação é a “perda da memória individual do marginalizado em favor da artificialidade da memória coletiva”(SANTIAGO, 2004, p. 58). Ora, a coletividade não dá mais conta, se é que alguma vez deu, de conter em si uma única identidade. O que percebemos é que Silviano Santiago vem, desde 1971, perfazendo um circuito constante em seu pensamento. A sua preocupação como crítico é resgatar uma espécie de orgulho por ser um ser pensante, de um espaço periférico, possuidor de uma riqueza cultural que deve ser posta como produto de primeira qualidade. Ao mesmo tempo, buscar, numa segunda camada de referência, aqueles e aquilo que ficaram soterrados dentro da própria cultura brasileira, em virtude de relações de domínio. Falo dos rejeitados: pessoas, gêneros, personagens, passagens históricas. O que Silviano Santiago chama de processo de inclusão: “Como é que você inclui classes sociais? Como é que você inclui outros gêneros? Não é apenas uma inclusão de classes populares ou segmentos marginalizados, é também de gêneros marginalizados, é também de outras coisas” (CUNHA, 2008, p. 205). Uma forma encontrada por Santiago para realizar tal proposta levantada está, também, na sua ficção. Usarei uma frase de Santiago para expor, de relance, parte de sua obra ficcional: “o que eu estou falando é que se precisa de um toque, de determinado empurrão ficcional para que a sociedade se transforme, progrida, 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 31-45. 38 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL melhore... Aliás, essa é a principal função revolucionária da literatura na pósmodernidade” (CUNHA, 2008, p. 202). Será que a ficção nos salvará? Indago. O acesso do leitor à ficção ainda é maior do que o acesso ao ensaio-crítico, praticamente restrito entre as grades da academia. Um modo eficiente de espalhar conceitos e ideias seria, então, a representação ficcional, principalmente nas formas romance e conto. A leitura crítica do ensaísta também se faz presente na ficção. Em sua obra em prosa, Silviano Santiago se apega àquela mesma linha reflexiva de seus textos críticos: excluídos, marginalizados, esquecidos, colocados de lado. Segundo o mesmo, na década de 1980, no Brasil, houve uma explosão das regras tradicionais do gênero romance, caracterizando-se essa época como um momento de transição literária. Tal transição se deu devido as características específicas do momento marcado pela indecisão, o desconforto e a perda de rumo claro e transparente. A falta de limites explícitos, ao contrário do que se possa pensar, ajudou na maleabilidade de estruturas das narrativas, colocou em cena o debate contra as regras impostas, ampliou e canalizou a questão da criatividade do romancista e proporcionou a ampliação das representações das personagens no mundo ficcional pela concretização das narrativas voltadas ao processo de inclusão das minorias. Em vez de excluir, incluir: personagens alijados da sociedade, gêneros esquecidos pela academia, discursos apagados pelo poder. Esses elementos que circulavam pela periferia do sistema literário são iluminados pelo foco crítico e narrativo de Silviano Santiago. Advindo essa necessidade de exposição justamente pelo recalque político-social vigente especialmente na sociedade daquela época, fim de ditadura e começo de democracia. Uma repressão explícita ou mesmo a repressão velada, consciente e arrasadora no convívio sóciocultural, contra mulheres, negros, gays, mendigos, pobres. O ficcionista expõe as mazelas e as fraquezas sociais através da fortificação das personagens excêntricas e periféricas de uma sociedade, também ela, periférica. Como exemplos, devo citar: em O olhar, a narrativa é um constante fluir de pensamentos e reflexões morais a respeito das instituições do casamento e da maternidade, declarados sob o ponto de vista da mulher, que esboça a relação que se esgarça dia após dia. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 31-45. 39 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL Em Stella Manhattan, Eduardo da Costa e Silva, abandonado pelos pais que não o aceitavam devido a sua orientação sexual, reside fora do país. O ano é o de 1969, época da ditadura militar no Brasil. Viver em Nova Iorque dá a Eduardo/Stella a oportunidade de ser quem é, de exprimir a sua vontade mais íntima. Dependendo da ocasião e da necessidade, Eduardo incorpora a personagem Stella Manhattan, um misto de Carmem Miranda e Poliana, inocência e glamour. Em Uma história de família temos um narrador que procura resgatar o passado de seu tio Mário, um renegado pelos seus por ter sido esquizofrênico, popularmente chamado de louco. Tio Mário e o sobrinho são frente e verso de uma mesma realidade. O narrador também é rejeitado pela família por ser aidético. A vida contada de tio Mário é o disfarce para a vida não narrada do protagonista. A relação do homossexual com o núcleo família e com a sociedade está presente de forma explícita ou, sintomaticamente, pela falta de um deles, a família, nos contos de Keith Jarrett no blue note, que retratam, mais do que o estilo gay, uma forma de se viver e de se relacionar com o outro e com o mundo. Da obra ficcional de Silviano Santiago não se pode deixar de falar de duas outras personagens, Graciliano Ramos em Em liberdade e Antonin Artaud em Viagem ao México. Dois livros de dois personagens da história cultural mundial. Duas ficções que recriam “vazios” das vidas biografadas. Em liberdade é romance, diário, ensaio literário, autobiografia e biografia, o que faz dele uma escrita sem gênero definido, proporcionando a que seu autor dê-lhe o título de “uma ficção”. Em Viagem ao México, Silviano parte da relação entre Europa e América, assim como a noção de cultura inferior e cultura superior (colonizador e colonizado), ficcionalizando a viagem de Artaud e problematizando a questão do narrador pós-moderno, aquele que vive e/ou aquele que assiste e narra. Como podemos perceber, a ficção do escritor é muito parelha com a crítica do ensaísta. A ficção contém teorias da narrativa, amplia e dá suporte para as interpretações dos ensaios literários e culturais, assim como esses alargam o horizonte para a escrita da ficção. O diálogo entre ensaio e ficção também se faz, por diversas vezes, dentro de cada texto, extrapolando as fronteiras que delimitam os diferentes discursos. Os textos são intercambiáveis. Trocam informações e expressões entre si, confeccionando uma malha de referências que podem ser analisadas como representativas de certa cultura do 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 31-45. 40 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL final do século 20, chamada por ele de pós-moderna, em que as possibilidades de ampliação das referências da literatura estão abertas para o escritor e o pesquisador interessados em seguir as pistas de novas realizações e questionamentos. Tais possibilidades são conferidas na descentralização de culturas e temas canônicos e na inclusão da periferia no âmbito do debate de ideias. Na sua obra literária ele busca o resgate do discernimento na multiplicidade em todos os níveis (social, cultural, artístico), pois é “entre-lugar” e “anfíbia”. Procura o prazer, a comoção, o ensinamento. Do emaranhado textual de Silviano Santiago (ficção, ensaio, entrevista, resenha), surge a rede literária que faz sua escrita ser como uma malha, em que diferentes pontos se tocam formando um conjunto próprio de referências que solidificam o seu projeto intelectual. Como um traçado urbano, crítica e ficção vão construindo uma arquitetura própria que tem como proposta pensar a contemporaneidade, o lugar de onde se fala. Nesse sentido, Silviano Santiago, como qualquer pensador que desconstrói discursos e referências rígidas, elege outros novos espaços, proliferando-os através de seus textos e colocando-os em confronto com a norma estabelecida. O resgate dos valores eclipsados pelas normas sociais é o reflexo intenso da luta pela liberdade da opressão histórica e social sob ou regimes totalitários ou representados pela ditadura do universal. Mais do que a totalidade, esperamos que a literatura reflita as possibilidades fragmentadas que são partes de um todo constituído historicamente. A periferia existe em relação ao centro, não sob a sua guarda. Por isso, crítica e ficção dialogam: para que possam sustentar a visibilidade da multiplicidade das relações intrínsecas a todo o fazer humano. Onde existe ser humano, há pluralidade. A obra de Silviano, no seu conjunto, comprova à saciedade a sua condição de ser que optou pela discordância e a rebeldia. E essa discordância e essa rebeldia parecem não ter terminado. Podemos dizer que com a edição do livro O cosmopolitismo do pobre, Silviano Santiago terminou um ciclo do seu circuito de pensamento: o foco a respeito das questões culturais, de posicionamento do lugar de quem fala e de quem ouve; a atenção diretiva sobre a crítica com base nas influências e cópias; o direcionar do pensamento para a necessária mescla entre cultura local e cultura internacional; a desmontagem do cosmopolitismo alienante. De posse dessa perspectiva que se tornou metodologia de estudo, Silviano Santiago 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 31-45. 41 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL passa, pouco a pouco, da epistemologia para a hermenêutica. Da ciência para a interpretação filosófica. Do saber para a sabedoria. Em 2006, o mesmo lançou As raízes e o labirinto da América Latina, em que interpreta não mais a literatura, mas a leitura de outros autores a respeito do continente; a interpretação da interpretação, perfazendo um caminho pedagógico. Em contraste com a América vitoriosa, a do Norte, a Latina, com suas raízes europeias, perdeu espaço e significado, voltando-se para a diáspora já na década de 1950, segundo Octavio Paz. No livro, percebemos ecos dos textos de “o entre-lugar”, da “palavra de Deus”, como não poderia ser diferente. É uma nova leitura da América Latina, só que, agora, sobre a interpretação de outros pensadores. Ao relacionar Octavio Paz com Sergio Buarque de Holanda, Silviano Santiago tenta demonstrar em contraste as múltiplas Américas Latinas, em um trabalho que ele chama de arqueológico. Em vez de criar um texto elaborando novos olhares sobre o continente sul-americano, o ensaísta busca em outros intérpretes uma perspectiva consolidada e fundamentada na literatura ocidental. Do mesmo ano de 2006, é a reunião de ensaios literários Ora (direis) puxar conversa, que é o título de um dos textos do livro e que trata de uma questão que indica novos parâmetros para o pensamento de Silviano Santiago. Puxar conversa é uma espécie de metodologia do conhecimento, decorrente da confraternização e de um projeto didático de Mário de Andrade. É o modo de aproximar-se do outro para que haja uma constante troca entre sujeito-objeto-sujeito. É a forma encontrada pelo escritor paulistano para distender, compreender e ensinar literatura. Mário era viciado em conversa, por carta, nos salões, nas mesas de bares, nas entrevistas, nas ruas com passantes desconhecidos. Dessa rede de comunicação, surgiram suas criações ficcionais, ensaios e a pedagogia para escritores da literatura brasileira a partir dos anos de 1920, vide Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, entre outros. Em epígrafe, no ensaio, está escrito que a hermenêutica é a relação entre diversos discursos dentro de uma possível conversa (metafórica) sem chegar, necessariamente a um ponto de convergência. No texto de Richard Rorty, a frase inicial “a hermenêutica é o que nos sobra quando deixamos de ser epistemológicos” (SANTIAGO, 2006, p. 97), está refletida na resposta de Silviano Santiago “minha atitude teórica tem sido a de abandonar o paradigma de leitura epistemológica (científico) em favor dum paradigma hermenêutico (filosófico). Tento fazerem 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 31-45. 42 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL convergir o conhecimento e a sabedoria” (CUNHA, 2009, p. 199). O “puxar conversa” marioandradino seria o conforto da experiência e do conhecimento que se concretiza na literatura. Silviano Santiago mira esse campo no horizonte. A vida já é literatura. Vida e literatura. A vida como literatura e a literatura como vida. Silviano estará, no momento, mais propenso para a literatura do que à cultura? Ou melhor, procurando cada vez mais a cultura pelo viés do sistema letrado, da cidade letrada? Anda procurando nas interpretações a literatura excluída que os estudos culturais levantam? Os subtítulos de seus livros de crítica/ensaio nos dão uma pista desse trajeto epistemológico, que vai do afrontamento explícito das bases político-culturais para o mais completo ensaio literário: Uma literatura nos trópicos é “ensaios sobre dependência cultural”; Vale quanto pesa, “ensaios sobre questões político-culturais”; Nas malhas da letra, “ensaios”; O cosmopolitismo da pobre “crítica literária e crítica cultural”; Ora (direis) puxar conversa!, “ensaios literários”. Estamos na expectativa do que virá pela frente. E Silviano Santiago anda apontando para uma leitura democrática do livro. A sua volta à literatura como hermenêutica seria “a literatura como possibilidade de conversa entre Livros” (CUNHA, 2008, p. 208). Fazer dialogar os livros da literatura ocidental com os da literatura oriental, a bíblia com o alcorão, por exemplo. Seria uma literatura comparada em terceiro grau? Já que a primeira foi resultante das fontes; a segunda, das diferenças. Como diria Machado de Assis, cousas futuras. Silviano Santiago consolidou caminhos e apontou muitos outros, que cabem a nós, pesquisadores e estudiosos da literatura brasileira, levar adiante. Gostaria de finalizar citando Silviano Santiago. Apesar de ter aprendido, ensinado e aplicado as teorias européias e americanas, foi através da leitura de um argentino, ou seja, um intelectual mais próximo de nós geograficamente e, portanto, vislumbrando problemas parecidos com os nossos, que Silviano Santiago teve destrancada a sua leitura de mundo: De imediato Borges me tocou pela maneira luminosa como articula vivência e saber. (...) Luminosa foi a maneira como me ajudou a resolver, pela sua ficção, problemas de alcance teórico que as melhores teorias (os melhores teóricos que lia) deixavam sepultados para todo o sempre. Daquela época e leitura é que me veio uma desconfiança (frutífera) com relação à contribuição que o pensamento ocidental pode trazer para o melhor conhecimento do Novo Mundo. Borges me deu a coragem do pensamento paradoxal (...). Não fui 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 31-45. 43 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL vítima da lucidez racional da Europa como um novo Joaquim Nabuco, nem me deixei seduzir pelo espocar dos fogos de artifício ou pelas cores do carnaval nos trópicos. Fiquei com os dois e com a condição de viver e pensar os dois. Paradoxalmente. Nem o lugar-comum dos nacionalismos brabos, nem o lugar-fetiche do aristocrata saber europeu. Lugar-comum e lugar-fetiche imaginei o entre-lugar e a solidariedade latino-americana. Inventei o entre-lugar do discurso latino-americano que já tinha sido inaugurado pelos nossos melhores escritores (SCHWARTZ, 2001, p. 434). RESUMO O texto enfoca a leitura de Silviano Santiago a respeito da questão da dependência cultural brasileira, da criação ficcional e de como se deve ler criticamente a realidade de países periféricos. PALAVRAS-CHAVE: Dependência cultural. Leitura crítica. Silviano Santiago. ABSTRACT The paper demonstrates on the Silviano Santiago`s reading as respect to Brazilian cultural dependence question. Comment the fictional creation and how to read critically the reality of the peripheral countries. KEYWORDS: Cultural dependence. Critic reading. Silviano Santiago. BIBLIOGRAFIA ALENCAR, José de. Iracema. Notas e orientação didática por Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. CUNHA, Eneida Leal (Org.). Leituras críticas sobre Silviano Santiago. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008. HELENA, Lucia. 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