3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS:
UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS
e
100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL
SILVIANO SANTIAGO E A LEITURA CRÍTICA
Roberto Carlos Ribeiro 1
Ao palestrar em um simpósio para um público americano em 1999, Silviano
Santiago afirmou que o intelectual brasileiro é quase sempre questionado quanto à
contribuição da cultura do Brasil para com a teoria crítica mundial. Lendo na entrelinha
da pergunta a intenção de um cidadão que se colocava como metropolitano, superior e
universal, Silviano Santiago não aceitou que o brasileiro fosse identificado como
periférico, subalterno e particular. Ele propôs que houvesse um diálogo entre as duas
instâncias e indicou duas contribuições brasileiras apresentadas por Susan Sontag para a
questão: a de Carmen Miranda para a teoria camp na indústria cultural e a ficção de
Machado de Assis para a teoria do romance ocidental (SANTIAGO, 2004, p. 195). Ou
seja, nós temos material para ser objeto teórico, se bem que às vezes nos falta
pesquisador, visão e o movimento de olharmos para o nosso espaço para nos darmos
conta de que podemos contribuir para a cultura mundial.
Na mesma perspectiva, enquanto foi professor na Universidade de Buffalo/USA,
Silviano Santiago pôde levar aos seus alunos americanos tanto Glauber Rocha quanto
Hélio Oiticica e até mesmo o espetáculo teatral Arena conta Zumbi. De certa forma, o
crítico tentava materializar a reflexão sobre o diálogo entre culturas ao apresentar o
Brasil aos americanos. E por falar nisso, não é à toa que as duas edições dos livros de
Silviano Santiago, O cosmopolitismo do pobre e Ora (direis) puxar conversa! trazem
imagens dos parangolés de Hélio Oiticica estampadas nas capas. Naquele, Nildo da
Mangueira veste parangolé em 1964. Neste, cidadão veste parangolé no metrô de Nova
Iorque em 1972. Hélio Oiticica faz, em escala infinita, o que sonhara Oscar Wilde:
“deveríamos ser uma obra de arte ou vestir uma obra de arte” (SONTAG, 1987, p. 320).
Esses exemplos determinam a sua perspectiva como pensador da literatura e da
cultura brasileiras contemporâneas, proposta pela leitura crítica que se faz concreta pelo
viés do questionamento, do enfrentamento e da técnica do deslizar, em que camadas se
sobrepõem encaixando umas sobre as outras em constante atrito. Tal proposta é como
1
Doutor em Teoria da Literatura, pela PUCRS.
ISBN 978-85-7395-210-0
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e
100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL
mergulhar no ofício de homem que lida com as palavras, que vive da e para a literatura
junto com a perspectiva da leitura crítica que especifico como uma forma ácida de não
ser contemplativo com o status quo social e acadêmico. Diante de seu tempo, o crítico
deve atuar como um cartógrafo. Precisa levantar vários mapeamentos de sua realidade
para fixá-los em rede como sugestão a uma resposta do tempo. Ao ler o mundo,
Santiago relembra que Borges lhe dissera “que não precisava ter vergonha de ser leitor,
que os livros não são propriedade privada. Somos todos, em arte e artes, grileiros”
(SANTIAGO, 2001, p. 434).
Nas décadas de 1970 e 1980, como professor da PUC do Rio de Janeiro,
Silviano Santiago abriu caminho entre seus pares com a noção de desconstrução
segundo Derrida. Ficou famoso, entre os alunos da instituição, certo texto do professor
recém-chegado do exterior, provavelmente uma ementa de aula, ou relatório de pesquisa
em andamento, significativamente chamado pelos alunos de “o texto da semente”. Nele,
estariam os princípios sobre os quais Silviano construiria a sua crítica e a sua didática.
Naquele momento, no meio acadêmico carioca, encontravam-se na disciplina de
literatura a vertente historicista e os conceitos estruturalistas. No choque entre os
instrumentos utilizados para a análise da literatura, Silviano Santiago se identifica com a
possibilidade de explicitar as margens do sistema literário brasileiro e a sua
historiografia ortodoxa. Mais do que alojar o seu interesse nessa perspectiva crítica, ele
dava mostras de estar adentrando aos estudos para além das discussões que na época se
faziam presentes. De certa forma, no campo teórico dos estudos literários estavam
também as primeiras notas do que hoje chamamos de estudos pós-coloniais.
Nos seus ensaios iniciais, Silviano Santiago relia o passado literário brasileiro
detectando o etnocentrismo e as relações hierarquizantes da sociedade colonial, como
ele faz na leitura crítica do romance de José de Alencar, Iracema, em que aponta,
significativamente, em anotações às margens do texto impresso, a força de um discurso
europeizante, branco e dominante. Nele, demonstra as diferenças nos rituais de batismo
entre Martim, que se “torna” um coatiabo, pintando a pele. Portanto, um batismo
epitelial. Já o índio Poti é batizado segundo as regras da religião católica que prescreve
mais do que uma relação superficial. Ela exige do outro uma entrega total,
principalmente a um só deus, um só coração; a tão procurada e impossível unidade. A
chave interpretativa do crítico para os estudos literários se baseava na retomada de um
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crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 31-45.
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passado que fora registrado somente do ponto de vista do colonizador, para realocá-lo
na perspectiva do colonizado.
Na segunda metade do século 20 em que se viveu, não só, mas mais
intensamente, a experiência da transição da ideia de contínuo temporal, representado
pela história e pelo processo em si, em favor da ideia de descontínuo, de estrutura, de
tempo dividido em partículas, de fragmentação, de deslocamento e descentramento,
muitos pesquisadores pensavam as relações de domínio, já no âmbito dos estudos
culturais e/ou da crítica cultural e/ou do pós-colonialismo. Homi Bhabha, Stuart Hall,
Marc Auge, Edward Said e Hugo Achugar, entre outros (cada um dentro de seu espaço,
do seu posicionamento ideológico, de suas memórias, do seu tempo e da sua cultura),
cunharam conceitos que servem como delimitadores das vivências culturais por uma
sociedade que está em desenvolvimento e à procura de suas definições atuais, mas não
fixadoras. De uma forma ou de outra, a mesma perspectiva está presente na escrita e no
pensamento de Silviano Santiago, tanto que ele afirma que “trabalha por um movimento
de descentramento” e que tal deslocamento, tanto físico quanto temporal e abstrato só
podia levá-lo a compreender, cedo demais, “que tinha nascido em um país
extremamente contraditório: pobre e cosmopolita. Como, sendo pobre, não ser
cosmopolita de araque?” (HELENA, 1992, p. 94).
O movimento de descentralizar, tornando-se mais independente, para Silviano
Santiago, começa desde o momento em que ele decide deixar sua terra natal para
compreender o vasto espaço geográfico, que acaba por ser traduzido em sua escrita,
tanto crítica quanto ficcional. Sua constante procura por uma resposta pode estar
reunida na pergunta a que se fez em ter nascido em país periférico, mas com
pensamentos cosmopolitas. Paradoxo sobre o qual refletirá nos seus ensaios levantando
as ideias de Joaquim Nabuco, Machado de Assis, Sérgio Buarque de Hollanda, entre
outros. A preocupação é de entender as questões formadoras da cultura brasileira
através da literatura, não se esquecendo do viés ideológico e político, necessário em um
país em que o cosmopolitismo leva a instâncias de pura alienação.
Enquanto Affonso Romano de Sant´Anna, Luiz Costa Lima e Gilberto
Mendonça Teles orientavam teses produzidas na PUC do Rio de Janeiro adotando uma
perspectiva formalista, Silviano Santiago, como professor de Literatura Francesa nos
Estados Unidos e no Canadá (vejam bem, um brasileiro dando aulas de literatura
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crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 31-45.
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francesa em países da América do Norte), procurou orientar os seus trabalhos
privilegiando uma abordagem interpretativa da obra literária, em oposição à análise
textual, então vigente nos estudos estruturalistas. Fica claro que a perspectiva de um
estrangeiro, falando de uma literatura estrangeira reclama uma análise fora do texto.
Somente uma visada contextualizada, abrangente e com recursos interdisciplinares pode
dar conta da análise e da interpretação de uma literatura. De outra feita, suplantando a
onda estruturalista veio a teoria da intertextualidade que iniciou um processo de abertura
metodológica, expresso no próprio ato de apropriação de um texto por outro. Na mesma
direção, Foucault, Deleuze e Derrida ajudam a pensar a questão das relações culturais
entre os países, colocando em xeque a ideia de verdade e de origem. Silviano Santiago
dialoga com essas teorias para interpretar e refletir criticamente, lendo a sua
contemporaneidade como uma multiplicidade dos discursos enunciados pelas diversas
instâncias sociais.
O espaço de pertencimento, construído pelo pensamento, e ancorado nas
realizações da escrita fez de Silviano Santiago um pensador que, segundo Lúcia Helena,
“pavimentou o curso de um debate sobre as relações entre nação e narração, cultura e
imperialismo, que hoje se veicula no Brasil, principalmente a partir de leituras de Homi
Bhabha e de Edward Said, mas que já se antecipava nas páginas de dois de seus livros
de ensaio” (HELENA, 1997, p. 80): Uma literatura nos trópicos e Vale quanto pesa.
Antes das páginas dos livros de ensaio, o seu laboratório das novas perspectivas de
leitura brasileira se deu no âmbito das academias brasileiras, americanas, canadenses, e
mexicanas.
Silviano Santiago desloca o discurso fixado e lê a influência na cultura e na
literatura brasileira desde a época da colonização do Brasil até as questões de
multiculturalismo atuais, de um extremo ao outro, como, por exemplo, a sua leitura
crítica do discurso do colonizador publicada no ensaio “A palavra de Deus”, na revista
Barroco. São analisados ali três autores: Pero Vaz de Caminha, Padre Vieira e José de
Alencar e a justificativa de um código linguístico para a implantação da fé, do império,
a catequese e a colonização. Na falta de diálogo natural entre duas culturas diversas,
num primeiro momento, houve a questão da imitação. Ou seja, o índio ao imitar os
gestos do português fez refletir uma cópia de um original. Na sequência do mesmo
processo, as peças teatrais de Anchieta apresentavam, visualmente, a imposição da
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religião e da política portuguesa, em que a imagem e a palavra se instrumentalizaram. O
ápice dessa relação se deu com os sermões do padre Vieira em que a doutrina é o
espelho que deve ser mirado pelos homens. Silviano Santiago chama a atenção de que a
palavra pode ser interpretada, mas a “imagem dos olhos que ouvem a doutrina”
transmite apenas “o conceito de cópia, de reprodução verossímil, de mímica”
(SANTIAGO, 1971, p. 13). Ou seja, a imposição do colonizador desfez toda e qualquer
originalidade que porventura pudesse brotar da outra cultura para transformá-la apenas
em uma plateia que quando muito só podia imitar, nada mais. José de Alencar aparece
no artigo na condição de autor romântico que recapturou esse momento histórico através
de seu romance Iracema.
Esse texto é de 1971, o mesmo ano da palestra “o entre-lugar”, em que os
mesmos temas, colonização, cópia, originalidade e imitação têm papel preponderante.
Sobre o ensaio “O entre-lugar do discurso latino-americano”, é preciso saber a sua
genealogia. Eugenio Donato foi convidado para ser professor visitante de literatura
francesa na Universidade de Montreal, no Canadá, e introduzir as novas ideias que
chegavam da França. Silviano Santiago recebeu convite de Donato para palestrar em um
simpósio. O artigo, então escrito em francês, fazia diversas alusões ao Canadá. O crítico
trabalhou com um corpus teórico francês, particularmente Foucault e Derrida, e
escritores hispano-americanos, conhecidos naquele país, como Jorge Luis Borges e Julio
Cortázar. Santiago afirma que se trabalhasse com literatura brasileira os universitários
não o compreenderiam, pois não tinham acesso a ela.
Desse posicionamento pragmático quanto à região geográfica e cultural da fala
do palestrante nasceu esse texto de um brasileiro que cria uma teoria sobre uma
literatura de um continente tão amplo quanto o latino-americano. Silviano Santiago,
como professor estrangeiro, teve de se posicionar não como brasileiro, o que seria uma
referência desconhecida, como ele mesmo percebeu, mas pertencente a uma região
cultural de reconhecimento daquele público, que era o de Latino-americano, para poder
ter a voz compreendida. Silviano Santiago sabe que não pode abarcar toda a literatura
latino-americana, mas aponta em seu texto o que mais sobressai quando se fala sobre
países colonizados: a questão da cultura subalterna. A publicação brasileira se deu em
1978, no livro Uma literatura nos trópicos, com um subtítulo revelador: ensaios sobre
dependência cultural.
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Utilizando termos hoje já consagrados e que naqueles anos estavam se
estruturando como uma base para a crítica cultural, como: terceiro mundo,
neocolonialismo, renascimento colonialista, elemento híbrido e imperialismo cultural,
na primeira parte do texto, Silviano Santiago retoma o raciocínio básico do artigo
anterior “A palavra de Deus”. Neste está a constatação do peso da colonização. Na nova
leitura, o crítico dá um passo a mais. Ele reconhece a dependência cultural, mas propõe
uma reação agressiva, de falsa obediência a tal situação. O primeiro ato para essa
façanha é decretar a falência do método crítico enraizado no sistema universitário de
então: as pesquisas que conduziam aos estudos das fontes ou das influências. No lugar,
devia-se colocar a valorização crítica à diferença.
Esse novo método crítico tem a leitura como um convite à práxis, à
transformação, à radicalização. E aqui, ele fala tanto do escritor quanto do produtor de
ficção, dando como exemplo o conto de Borges “Pierre Menard, autor Del Quijote”.
Como poderia ter dado o exemplo de Eça de Queiroz lendo Gustave Flaubert em O
primo Basílio, que o próprio Silviano interpretou usando a metodologia da diferença. A
valorização da diferença propõe uma relação de confronto entre as culturas geográficas
e pressupõe que o escritor latino-americano deve ter a escritura como “um dever lúcido
e consciente” (SANTIAGO, 2000, p. 24). A visualização é de um cenário de guerra,
como propõe a abertura do texto. É desse confronto entre a obra original estrangeira e a
agressão latino-americana que brota a leitura dos textos românticos do Novo Mundo,
isto é, os textos “fundadores” das nacionalidades americanas, como ele fez com
Iracema. Uma citação do próprio Santiago se faz necessária e já se tornou antológica
sobre a explicação do “entre-lugar”:
Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a
submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião,
entre a assimilação e a expressão – ali, nesse lugar aparentemente
vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual
antropófago da literatura latino-americana (SANTIAGO, 2000, p. 26).
O tema da dependência cultural seria retomado por ele 11 anos depois em ensaio
intitulado “Apesar de dependente, universal”. A ideia central é a mesma do texto
anterior, o conceito de “entre-lugar”: a cultura dominada pode contribuir com a arte
afrontando a cultura dominante. Do embate, a consequente produção cultural se insere
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na universalidade, porque esta pressupõe, segundo o crítico, um processo de expansão
em que respostas dos países periféricos são dadas aos valores da metrópole.
Trocando o termo “terceiro mundo” do texto anterior por “culturas periféricas”,
mais amplo e abrangente, como se nota pelo plural das palavras, e que desfaz a ideia de
unidade no subdesenvolvimento, como supõe o primeiro conceito, o autor continua
afirmando que o questionamento do estatuto da escrita e do avanço cultural colonizador
é base para os textos descolonizados. Como o ensaio não foi escrito para canadense
ouvir, mas sim brasileiros, Santiago exemplifica com o seu texto sobre Eça de Queiroz e
aponta três antídotos nacionais contra o enciclopedismo eurocêntrico, ou seja, contra o
intelectual que produz quantidade de informação sem processar o devido
questionamento na análise e interpretação: a “antropofagia cultural”, de Oswald de
Andrade; a noção de “traição da memória”, de Mário de Andrade; e o “corte radical”,
do grupo concreto. Todos esses conceitos, segundo ele, têm como base o
reconhecimento da dependência e a busca da subversão desse estado no diferencial do
produto artístico.
Ao tema da dependência cultural, juntam-se o do analfabetismo e o papel do
intelectual nas reflexões do crítico. O confronto deve ser feito não só entre nações, mas
também dentro do mesmo país. Por isso, o conceito de “entre-lugar” está muito próximo
do caráter “anfíbio” que Silviano Santiago detecta na produção artística brasileira. A
instância literária fornece ao escritor de literatura a oportunidade para que ele possa
estender, na esteira de um diálogo sobre criação literária, na televisão, por exemplo, o
assunto em pauta, o lançamento de um romance, por exemplo, para digressões que
amparem e prolonguem um pequeno sistema cultural (um curto circuito) em que
diversos assuntos são postos na mídia: política, educação, justiça, a própria televisão,
internet, blogs, redes sociais. O papel do escritor, dessa forma, se amplia, levando o
conteúdo do livro até aqueles que, por qualquer motivo (analfabetismo, problemas
econômicos), não têm acesso à leitura. E paralelo, vai uma pequena informação de
outros conhecimentos necessários à constituição do cidadão.
Esse papel não é só do intelectual, mas estende-se para todos os interessados em
inclusão. Na visão de Silviano Santiago, as minorias estão tendo outras e mais fortes
possibilidades de se fazerem ouvir. Lendo o seu ensaio de 2002 “O cosmopolitismo do
pobre”, percebemos em suas palavras um novo olhar, uma nova expectativa com relação
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aos marginalizados históricos do multiculturalismo da classe dominante do passado. Na
esteira da construção do discurso de país-nação, esse multiculturalismo serviu para criar
a imagem de um povo unido, vivendo sob as mesmas regras de igualdade e de
socialização, enquanto, na realidade, o que se tinha era a fragmentação e o aterramento
daqueles, muitos, deixados à beira do caminho. O resgate dos grupos étnicos e sociais,
marginalizados historicamente, os índios, as mulheres, os negros se dá, nesses novos
tempos, através da implantação de um novo multiculturalismo em que não se deve
buscar a homogeneização das partes, mas a convivência e o diálogo entre as diferenças.
Em que os grupos de referência se colocam em visibilidade, seja através de ONGs, de
inclusão nas redes midiáticas, de busca de raízes comuns entre povos e diferentes
países. Em que existe a possibilidade da expansão cultural para além dos limites de
fronteira, a internacionalização do movimento MST, por exemplo; ou a descoberta da
África
pelo
governo
brasileiro
recentemente.
Para
tanto,
é
necessário
a
desnacionalização do espaço urbano e a desnacionalização da política, pois o antigo
estado-nação é a “perda da memória individual do marginalizado em favor da
artificialidade da memória coletiva”(SANTIAGO, 2004, p. 58). Ora, a coletividade não
dá mais conta, se é que alguma vez deu, de conter em si uma única identidade.
O que percebemos é que Silviano Santiago vem, desde 1971, perfazendo um
circuito constante em seu pensamento. A sua preocupação como crítico é resgatar uma
espécie de orgulho por ser um ser pensante, de um espaço periférico, possuidor de uma
riqueza cultural que deve ser posta como produto de primeira qualidade. Ao mesmo
tempo, buscar, numa segunda camada de referência, aqueles e aquilo que ficaram
soterrados dentro da própria cultura brasileira, em virtude de relações de domínio. Falo
dos rejeitados: pessoas, gêneros, personagens, passagens históricas. O que Silviano
Santiago chama de processo de inclusão: “Como é que você inclui classes sociais?
Como é que você inclui outros gêneros? Não é apenas uma inclusão de classes
populares ou segmentos marginalizados, é também de gêneros marginalizados, é
também de outras coisas” (CUNHA, 2008, p. 205).
Uma forma encontrada por Santiago para realizar tal proposta levantada está,
também, na sua ficção. Usarei uma frase de Santiago para expor, de relance, parte de
sua obra ficcional: “o que eu estou falando é que se precisa de um toque, de
determinado empurrão ficcional para que a sociedade se transforme, progrida,
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melhore... Aliás, essa é a principal função revolucionária da literatura na pósmodernidade” (CUNHA, 2008, p. 202). Será que a ficção nos salvará? Indago. O acesso
do leitor à ficção ainda é maior do que o acesso ao ensaio-crítico, praticamente restrito
entre as grades da academia. Um modo eficiente de espalhar conceitos e ideias seria,
então, a representação ficcional, principalmente nas formas romance e conto. A leitura
crítica do ensaísta também se faz presente na ficção.
Em sua obra em prosa, Silviano Santiago se apega àquela mesma linha reflexiva
de seus textos críticos: excluídos, marginalizados, esquecidos, colocados de lado.
Segundo o mesmo, na década de 1980, no Brasil, houve uma explosão das regras
tradicionais do gênero romance, caracterizando-se essa época como um momento de
transição literária. Tal transição se deu devido as características específicas do momento
marcado pela indecisão, o desconforto e a perda de rumo claro e transparente. A falta de
limites explícitos, ao contrário do que se possa pensar, ajudou na maleabilidade de
estruturas das narrativas, colocou em cena o debate contra as regras impostas, ampliou e
canalizou a questão da criatividade do romancista e proporcionou a ampliação das
representações das personagens no mundo ficcional pela concretização das narrativas
voltadas ao processo de inclusão das minorias. Em vez de excluir, incluir: personagens
alijados da sociedade, gêneros esquecidos pela academia, discursos apagados pelo
poder.
Esses elementos que circulavam pela periferia do sistema literário são
iluminados pelo foco crítico e narrativo de Silviano Santiago. Advindo essa necessidade
de exposição justamente pelo recalque político-social vigente especialmente na
sociedade daquela época, fim de ditadura e começo de democracia. Uma repressão
explícita ou mesmo a repressão velada, consciente e arrasadora no convívio sóciocultural, contra mulheres, negros, gays, mendigos, pobres. O ficcionista expõe as
mazelas e as fraquezas sociais através da fortificação das personagens excêntricas e
periféricas de uma sociedade, também ela, periférica.
Como exemplos, devo citar: em O olhar, a narrativa é um constante fluir de
pensamentos e reflexões morais a respeito das instituições do casamento e da
maternidade, declarados sob o ponto de vista da mulher, que esboça a relação que se
esgarça dia após dia.
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Em Stella Manhattan, Eduardo da Costa e Silva, abandonado pelos pais que não
o aceitavam devido a sua orientação sexual, reside fora do país. O ano é o de 1969,
época da ditadura militar no Brasil. Viver em Nova Iorque dá a Eduardo/Stella a
oportunidade de ser quem é, de exprimir a sua vontade mais íntima. Dependendo da
ocasião e da necessidade, Eduardo incorpora a personagem Stella Manhattan, um misto
de Carmem Miranda e Poliana, inocência e glamour.
Em Uma história de família temos um narrador que procura resgatar o passado
de seu tio Mário, um renegado pelos seus por ter sido esquizofrênico, popularmente
chamado de louco. Tio Mário e o sobrinho são frente e verso de uma mesma realidade.
O narrador também é rejeitado pela família por ser aidético. A vida contada de tio Mário
é o disfarce para a vida não narrada do protagonista.
A relação do homossexual com o núcleo família e com a sociedade está presente
de forma explícita ou, sintomaticamente, pela falta de um deles, a família, nos contos de
Keith Jarrett no blue note, que retratam, mais do que o estilo gay, uma forma de se
viver e de se relacionar com o outro e com o mundo.
Da obra ficcional de Silviano Santiago não se pode deixar de falar de duas outras
personagens, Graciliano Ramos em Em liberdade e Antonin Artaud em Viagem ao
México. Dois livros de dois personagens da história cultural mundial. Duas ficções que
recriam “vazios” das vidas biografadas. Em liberdade é romance, diário, ensaio
literário, autobiografia e biografia, o que faz dele uma escrita sem gênero definido,
proporcionando a que seu autor dê-lhe o título de “uma ficção”. Em Viagem ao México,
Silviano parte da relação entre Europa e América, assim como a noção de cultura
inferior e cultura superior (colonizador e colonizado), ficcionalizando a viagem de
Artaud e problematizando a questão do narrador pós-moderno, aquele que vive e/ou
aquele que assiste e narra.
Como podemos perceber, a ficção do escritor é muito parelha com a crítica do
ensaísta. A ficção contém teorias da narrativa, amplia e dá suporte para as interpretações
dos ensaios literários e culturais, assim como esses alargam o horizonte para a escrita da
ficção. O diálogo entre ensaio e ficção também se faz, por diversas vezes, dentro de
cada texto, extrapolando as fronteiras que delimitam os diferentes discursos. Os textos
são intercambiáveis. Trocam informações e expressões entre si, confeccionando uma
malha de referências que podem ser analisadas como representativas de certa cultura do
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final do século 20, chamada por ele de pós-moderna, em que as possibilidades de
ampliação das referências da literatura estão abertas para o escritor e o pesquisador
interessados em seguir as pistas de novas realizações e questionamentos. Tais
possibilidades são conferidas na descentralização de culturas e temas canônicos e na
inclusão da periferia no âmbito do debate de ideias.
Na sua obra literária ele busca o resgate do discernimento na multiplicidade em
todos os níveis (social, cultural, artístico), pois é “entre-lugar” e “anfíbia”. Procura o
prazer, a comoção, o ensinamento. Do emaranhado textual de Silviano Santiago (ficção,
ensaio, entrevista, resenha), surge a rede literária que faz sua escrita ser como uma
malha, em que diferentes pontos se tocam formando um conjunto próprio de referências
que solidificam o seu projeto intelectual. Como um traçado urbano, crítica e ficção vão
construindo
uma
arquitetura
própria
que
tem
como
proposta
pensar
a
contemporaneidade, o lugar de onde se fala.
Nesse sentido, Silviano Santiago, como qualquer pensador que desconstrói
discursos e referências rígidas, elege outros novos espaços, proliferando-os através de
seus textos e colocando-os em confronto com a norma estabelecida. O resgate dos
valores eclipsados pelas normas sociais é o reflexo intenso da luta pela liberdade da
opressão histórica e social sob ou regimes totalitários ou representados pela ditadura do
universal. Mais do que a totalidade, esperamos que a literatura reflita as possibilidades
fragmentadas que são partes de um todo constituído historicamente. A periferia existe
em relação ao centro, não sob a sua guarda. Por isso, crítica e ficção dialogam: para que
possam sustentar a visibilidade da multiplicidade das relações intrínsecas a todo o fazer
humano. Onde existe ser humano, há pluralidade. A obra de Silviano, no seu conjunto,
comprova à saciedade a sua condição de ser que optou pela discordância e a rebeldia.
E essa discordância e essa rebeldia parecem não ter terminado. Podemos dizer
que com a edição do livro O cosmopolitismo do pobre, Silviano Santiago terminou um
ciclo do seu circuito de pensamento: o foco a respeito das questões culturais, de
posicionamento do lugar de quem fala e de quem ouve; a atenção diretiva sobre a crítica
com base nas influências e cópias; o direcionar do pensamento para a necessária mescla
entre cultura local e cultura internacional; a desmontagem do cosmopolitismo alienante.
De posse dessa perspectiva que se tornou metodologia de estudo, Silviano Santiago
3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A
crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 31-45.
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passa, pouco a pouco, da epistemologia para a hermenêutica. Da ciência para a
interpretação filosófica. Do saber para a sabedoria.
Em 2006, o mesmo lançou As raízes e o labirinto da América Latina, em que
interpreta não mais a literatura, mas a leitura de outros autores a respeito do continente;
a interpretação da interpretação, perfazendo um caminho pedagógico. Em contraste com
a América vitoriosa, a do Norte, a Latina, com suas raízes europeias, perdeu espaço e
significado, voltando-se para a diáspora já na década de 1950, segundo Octavio Paz. No
livro, percebemos ecos dos textos de “o entre-lugar”, da “palavra de Deus”, como não
poderia ser diferente. É uma nova leitura da América Latina, só que, agora, sobre a
interpretação de outros pensadores. Ao relacionar Octavio Paz com Sergio Buarque de
Holanda, Silviano Santiago tenta demonstrar em contraste as múltiplas Américas
Latinas, em um trabalho que ele chama de arqueológico. Em vez de criar um texto
elaborando novos olhares sobre o continente sul-americano, o ensaísta busca em outros
intérpretes uma perspectiva consolidada e fundamentada na literatura ocidental.
Do mesmo ano de 2006, é a reunião de ensaios literários Ora (direis) puxar
conversa, que é o título de um dos textos do livro e que trata de uma questão que indica
novos parâmetros para o pensamento de Silviano Santiago. Puxar conversa é uma
espécie de metodologia do conhecimento, decorrente da confraternização e de um
projeto didático de Mário de Andrade. É o modo de aproximar-se do outro para que haja
uma constante troca entre sujeito-objeto-sujeito. É a forma encontrada pelo escritor
paulistano para distender, compreender e ensinar literatura. Mário era viciado em
conversa, por carta, nos salões, nas mesas de bares, nas entrevistas, nas ruas com
passantes desconhecidos. Dessa rede de comunicação, surgiram suas criações ficcionais,
ensaios e a pedagogia para escritores da literatura brasileira a partir dos anos de 1920,
vide Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, entre outros.
Em epígrafe, no ensaio, está escrito que a hermenêutica é a relação entre
diversos discursos dentro de uma possível conversa (metafórica) sem chegar,
necessariamente a um ponto de convergência. No texto de Richard Rorty, a frase inicial
“a hermenêutica é o que nos sobra quando deixamos de ser epistemológicos”
(SANTIAGO, 2006, p. 97), está refletida na resposta de Silviano Santiago “minha
atitude teórica tem sido a de abandonar o paradigma de leitura epistemológica
(científico) em favor dum paradigma hermenêutico (filosófico). Tento fazerem
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convergir o conhecimento e a sabedoria” (CUNHA, 2009, p. 199). O “puxar conversa”
marioandradino seria o conforto da experiência e do conhecimento que se concretiza na
literatura. Silviano Santiago mira esse campo no horizonte. A vida já é literatura. Vida e
literatura. A vida como literatura e a literatura como vida. Silviano estará, no momento,
mais propenso para a literatura do que à cultura? Ou melhor, procurando cada vez mais
a cultura pelo viés do sistema letrado, da cidade letrada? Anda procurando nas
interpretações a literatura excluída que os estudos culturais levantam?
Os subtítulos de seus livros de crítica/ensaio nos dão uma pista desse trajeto
epistemológico, que vai do afrontamento explícito das bases político-culturais para o
mais completo ensaio literário: Uma literatura nos trópicos é “ensaios sobre
dependência cultural”; Vale quanto pesa, “ensaios sobre questões político-culturais”;
Nas malhas da letra, “ensaios”; O cosmopolitismo da pobre “crítica literária e crítica
cultural”; Ora (direis) puxar conversa!, “ensaios literários”. Estamos na expectativa do
que virá pela frente. E Silviano Santiago anda apontando para uma leitura democrática
do livro. A sua volta à literatura como hermenêutica seria “a literatura como
possibilidade de conversa entre Livros” (CUNHA, 2008, p. 208). Fazer dialogar os
livros da literatura ocidental com os da literatura oriental, a bíblia com o alcorão, por
exemplo. Seria uma literatura comparada em terceiro grau? Já que a primeira foi
resultante das fontes; a segunda, das diferenças. Como diria Machado de Assis, cousas
futuras. Silviano Santiago consolidou caminhos e apontou muitos outros, que cabem a
nós, pesquisadores e estudiosos da literatura brasileira, levar adiante.
Gostaria de finalizar citando Silviano Santiago. Apesar de ter aprendido,
ensinado e aplicado as teorias européias e americanas, foi através da leitura de um
argentino, ou seja, um intelectual mais próximo de nós geograficamente e, portanto,
vislumbrando problemas parecidos com os nossos, que Silviano Santiago teve
destrancada a sua leitura de mundo:
De imediato Borges me tocou pela maneira luminosa como articula
vivência e saber. (...) Luminosa foi a maneira como me ajudou a
resolver, pela sua ficção, problemas de alcance teórico que as
melhores teorias (os melhores teóricos que lia) deixavam sepultados
para todo o sempre. Daquela época e leitura é que me veio uma
desconfiança (frutífera) com relação à contribuição que o pensamento
ocidental pode trazer para o melhor conhecimento do Novo Mundo.
Borges me deu a coragem do pensamento paradoxal (...). Não fui
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vítima da lucidez racional da Europa como um novo Joaquim Nabuco,
nem me deixei seduzir pelo espocar dos fogos de artifício ou pelas
cores do carnaval nos trópicos. Fiquei com os dois e com a condição
de viver e pensar os dois. Paradoxalmente. Nem o lugar-comum dos
nacionalismos brabos, nem o lugar-fetiche do aristocrata saber
europeu. Lugar-comum e lugar-fetiche imaginei o entre-lugar e a
solidariedade latino-americana. Inventei o entre-lugar do discurso
latino-americano que já tinha sido inaugurado pelos nossos melhores
escritores (SCHWARTZ, 2001, p. 434).
RESUMO
O texto enfoca a leitura de Silviano Santiago a respeito da questão da dependência
cultural brasileira, da criação ficcional e de como se deve ler criticamente a realidade de
países periféricos.
PALAVRAS-CHAVE: Dependência cultural. Leitura crítica. Silviano Santiago.
ABSTRACT
The paper demonstrates on the Silviano Santiago`s reading as respect to Brazilian
cultural dependence question. Comment the fictional creation and how to read critically
the reality of the peripheral countries.
KEYWORDS: Cultural dependence. Critic reading. Silviano Santiago.
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