A HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA E SEU DESEJO DE CRIAR UMA HISTÓRIA DA LITERATURA - DOS AUTORES ESTRANGEIROS A ANTONIO CANDIDO Juliane Cardozo de Mello (FURG) A historiografia da literatura brasileira surge juntamente com os primórdios do Romantismo no Brasil, e por isso, está intimamente vinculada ao intuito de criação de uma literatura como expressão da nação independente, pois a história da literatura também faz parte das formulações necessárias para a construção de uma nação que combine com um Estado moderno, como se acreditava ser aquele que dom Pedro proclamou às margens plácidas do Ipiranga. (LAJOLO, 1994: 26) Pode-se dizer que, na verdade, as primeiras manifestações românticas são oriundas dos pressupostos de Ferdinand Denis e Almeida Garret, que apresentaram algumas das temáticas que seriam fundamentais ao movimento, pois esses primeiros estudiosos se preocuparam em: determinar como ela [a literatura] surgiu aqui, já que o relativismo então reinante ensinara que as instituições da cultura radicam nas condições do meio, variando segundo elas. E como a época era de exigente nacionalismo, consideravam que lutara dois séculos para se formar, a partir do nada, como expressão de uma realidade local própria, descobrindo aos poucos o verdadeiro caminho, isto é, a descrição dos elementos diferenciais, notadamente a natureza e o índio. (...) Daí a concepção passou à crítica naturalista, e dela aos nossos dias, levando a conceber a literatura como processo retilíneo de abrasileiramento, por descoberta da realidade da terra ou recuperação de uma posição idealmente pré-portuguesa, quando não antiportuguesa. (CANDIDO, 2008: 99) Devemos aos autores estrangeiros as primeiras contribuições historiográficas, que ressaltaram a cor local como caráter distintivo de nossa literatura. O primeiro que se interessou pelas letras da incipiente nação foi Friedrich Bouterwek que escreveu a História da Poesia e da Eloquência Portuguesa (1805), sendo seguido por vários outros autores: Simonde de Sismondi em De La Littérature Du Midi De L’Europe (1813), C. 95 Schlichthorst em seu texto O Rio de Janeiro como é (1824-1826), José da Gama e Castro em artigo publicado no Jornal do Comércio (1842), Alexandre Herculano em artigo intitulado Futuro Literário de Portugal e do Brasil publicado na Revista Universal Lisbonense no ano de 1847 e Ferdinand Wolf que escreve O Brasil Literário - História da Literatura Brasileira (1863). Maior destaque, nessa análise, merece o francês Ferdinand Denis e o seu Resumo da História Literária do Brasil anexo ao Resumo da História Literária de Portugal (1826), com uma postura distinta dos autores que o antecederam. Influenciado pela independência brasileira, Denis separa a literatura brasileira da literatura portuguesa, ressaltando que o país deve ser livre tanto no governo quanto na poesia, e sendo o povo livre a literatura “deve rejeitar as ideias mitológicas devidas às fábulas da Grécia” (Denis, 1978, p. 36). Denis também influenciou a historiografia posterior sendo, nas palavras de Antonio Candido, o fundador da “teoria da nossa literatura segundo os moldes românticos, num sentido que a orientaria por meio século e iria repercutir quase até os nossos dias” (Candido, 2009: 638). O português Almeida Garret em seu Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa (1826), unifica as literaturas portuguesa e brasileira, mostrando um retrocesso com relação ao posicionamento de Denis, afirmando, após tratar de Cláudio Manuel da Costa, que “agora começa a literatura portuguesa a avultar e enriquecer-se com as produções dos engenhos brasileiros” (Garret, 1978: 90). Apesar dessa postura, Garret, assim como Denis, ressalta a importância da cor local, mostrando que poesias como as de Tomás Antonio Gonzaga poderiam ser melhores se ilustradas com a paisagem brasileira. E ainda ao tratar de Basílio da Gama o autor elogia-o pelas cenas naturais presentes n’O Uraguai, o que evidencia a cor local como um dos critérios para se determinar o que é verdadeiramente nacional e legitimamente americano. Verifica-se uma progressão a respeito da historiografia e crítica realizada pelos autores estrangeiros, salvo duas exceções - Bouterwek e Gama e Castro -, aonde a autonomia da literatura brasileira vai sendo reafirmada e a cor local passa de simples tema a caráter nacional. E vê-se também, voltando à citação de Antonio Candido, que os traços diferenciais, como a natureza e o índio, são os meios pelos quais os primeiros historiadores conseguiram afirmar nossa literatura, não mais como um segmento da portuguesa, e sim como manifestação dos anseios de uma nação independente e livre. Passaremos agora à análise dos críticos brasileiros que compilaram e escreveram prefácios e introduções discutindo as nossas letras. O primeiro deles foi o 96 Cônego Januário da Cunha Barbosa que, inspirado no Parnaso Lusitano de Garret, escreveu o Parnaso Brasileiro (1829), recolhendo poesias de diversos autores com o intuito de evitar que esses textos fossem perdidos e apartados do conhecimento das novas gerações. Joaquim Norberto de Sousa e Silva escreve Modulações Poéticas (1841), livro de poesias próprias, no qual insere uma introdução denominada Bosquejo da História da Poesia Brasileira; Joaquim Manuel Pereira da Silva escreve o seu Parnaso Brasileiro (1843) e é o primeiro a apontar explicitamente o Romantismo como caminho para a expressão da literatura brasileira. Destaca-se o seu caráter nacionalista, pois o autor propõe uma nova literatura em termos de América, fugindo das imitações dos padrões europeus e, além disso, seus escritos mostram o que Antonio Candido denominou literatura empenhada. Emílio Adet e Joaquim Norberto de Sousa e Silva escreveram em conjunto a obra Mosaico Poético (1844) e como o próprio subtítulo já diz trata de “poesias brasileiras antigas e modernas, raras e inéditas, acompanhadas de notas, notícias biográficas e críticas e de uma introdução sobre a literatura nacional”(ADET; NORBERTO, 1998: 187), o que evidencia o desejo de reunir textos e divulgá-los, a fim de construir retroativamente as nossas letras. Francisco Adolfo de Varnhagen escreveu o Florilégio da poesia brasileira (1850), defendendo a ideia de que a poesia seja o mais brasileira possível, e também mostra, assim como Pereira da Silva, um entusiasmo pela América, pregando que se escrevesse o que por mais americano tivéssemos. Macedo Soares escreveu as Harmonias Brasileiras (1859), que consiste também em uma compilação de autores brasileiros acompanhada das biografias de muitos deles e de um Ensaio Histórico sobre as Letras do Brasil, cujo traço marcante é o seu nacionalismo. Quintino Antonio Ferreira de Souza escreveu a Lírica Nacional (1862), que apresenta uma nova concepção de nacionalismo, pois o caráter nacional, para esse crítico, está no indivíduo. Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro escreveu o Meandro Poético (1864), uma coletânea de quatorze poetas e de suas respectivas biografias, e nessa compilação vê-se acentuado caráter didático, com intuito de doutrinar os jovens para a poesia nacional. Alguns poetas e romancistas também estudaram a literatura brasileira; é o caso de Gonçalves de Magalhães que publicou na Revista Niterói o artigo intitulado Discurso sobre a História da Literatura do Brasil (1836), no qual vemos um grande 97 nacionalismo, que é acompanhado por um sentimento de antilusitanismo. Magalhães reitera o aspecto da cor local e também da originalidade, recorrente dos autores estrangeiros e vê, assim como os outros críticos nacionais, a necessidade de compilação de autores e da escrita de uma história da literatura, e ainda afirma que a nova literatura brasileira deveria seguir a influência dos franceses. Já José de Alencar vai muito mais além do que Gonçalves de Magalhães, pois “suas reflexões contribuem para a expansão do debate sobre o nacionalismo literário e para a definição da prática literária exigida para o Brasil” (MOREIRA, 1991: 113), e na polêmica presente nas Cartas Sobre a Confederação dos Tamoios (1856) o posicionamento do romancista ultrapassa “a condição de crítica para se transformar numa exposição dos princípios teóricos sobre a literatura brasileira e a poética do futuro romancista” (MOREIRA, 1991: 113). Em outros dois textos, no pós-escrito ao romance Diva (1865) e no prefácio ao romance Sonhos d’ouro (1872), o autor estende o debate iniciado nas Cartas, naquele abordando a temática da língua, defendendo o seu progresso e o seu enriquecimento com novas palavras, pois para ele “a língua é a nacionalidade do pensamento como a pátria é a nacionalidade do povo” (ALENCAR, 1959: 559); e neste dialoga de forma irônica com o seu “livrinho” a cerca da sua futura não aceitação pela crítica por estar “desbotado do matiz brasileiro” (ALENCAR, s.d.: 9). E a partir dessa suposta ironia o romancista cria um conceito de literatura: A literatura nacional que outra coisa é senão a alma da pátria, que transmigrou para este solo virgem com uma raça ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana desta terra que lhe serviu de regaço; e cada dia se enriquece ao contato de outros povos e ao influxo da civilização? (ALENCAR, s.d.: 9) Alencar traça também uma periodização da literatura relacionando-a com a sua contribuição literária, dividindo-a em três períodos: o primitivo; o histórico; o período após a independência política que mostra o contato entre os povos e da luta entre o espírito conterrâneo e a invasão estrangeira. E nesse último período citado pelo autor se vê a mudança da cor local, pois agora o Brasil é civilizado, e com isso reivindica que a literatura brasileira não é só a que fala dos índios, mas a que expressa à realidade do país. Machado de Assis, em seu artigo intitulado Instinto de Nacionalidade publicado na revista O Novo Mundo (1873), marca um grande progresso em relação aos 98 pensamentos anteriores, pois insere a literatura brasileira no âmbito da cultura, traz uma visão dos gêneros literários e, principalmente, porque pensa a independência literária como um processo não concluído, que irá ocorrer ao longo do tempo. Vejamos as palavras do autor a este respeito: Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem Canto do Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração, nem de duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo. (ASSIS, 1959: 28) O pensamento de Machado desenvolve, mas vai além do de Alencar com relação à cor local, porque para ele a literatura não é nacional apenas por usar como tema a natureza brasileira, sendo que esse caráter nacional está ligado a um sentimento íntimo que torne o autor “homem do seu tempo e do seu país” (ASSIS, 1959: 29). O escritor também se mostra céptico em relação ao indianismo como único caminho para a nossa literatura e defende que não está no elemento indiano todo o seu patrimônio, deixando claro que não recusa a tradição portuguesa como parte constituinte da mesma e, além disso, evidenciando o esgotamento do Romantismo como escola literária. Sílvio Romero em sua História da Literatura Brasileira (1888), o primeiro historiador strictu senso da literatura brasileira, adota critérios filosóficos em voga na Europa para explicar não só a expressão literária como se tinha feito até então, se propondo a estudar as manifestações da inteligência de um povo abordando a política, a economia, as criações populares, a arte, as ciências e etc., ampliando o conceito de literatura tornando-a sinônimo de cultura. Pretendendo escrever um trabalho naturalista sobre a história da literatura brasileira. Munido do critério popular e étnico para explicar o nosso caráter nacional, não esquecerei o critério positivo e evolucionista da nova filosofia, quando tratar de notar as relações do Brasil com a humanidade em geral (ROMERO, 1960: 57). Romero, como fica claro no trecho citado, é influenciado pelo darwinismo, pelo evolucionismo, pelo cientificismo e pelo determinismo, sendo que considera os três fatores fundamentais a serem estudados da literatura brasileira o meio, a raça e as influências estrangeiras. Há nos escritos do autor uma grande diferenciação do posicionamento nacionalista que vinha sendo analisado neste artigo, pois para ele o “lado nacional das literaturas” (ROMERO, 1960: 58) está vinculado ao princípio da 99 hereditariedade, enquanto a fatura universal está vinculada ao princípio da adaptação, e o autor com isso dá continuidade ao esforço romântico de construir a nacionalidade, porém se opondo a sua estética, seguindo os critérios da crítica darwinista. José Veríssimo escreve a sua História da Literatura Brasileira (1915) de forma bastante distinta de Romero, pois não se baseia em preceitos filosóficos, e sim no conceito clássico de belas letras, utilizando o aspecto estético como fator determinante. E, além disso, apresenta um conceito mais estrito de literatura, caracterizando-a como um instrumento de cultura interior, opondo-se a visão amplificada da literatura como sinônimo de cultura. Diferentemente de seu antecessor, para Veríssimo a história da literatura é: a história do que da nossa atividade literária sobrevive na nossa memória coletiva de nação. Como não cabem nela os nomes que não logram viver além do seu tempo também não cabem nomes que por mais ilustres que regionalmente sejam não conseguirem, ultrapassando as raias das suas províncias, fazerem-se nacionais. (VERÍSSIMO, 1981: 33) Aproximando-se da ideia de sistema literário de Antonio Candido, o autor defende que a literatura “só existe pelas obras que vivem, pelo livro lido, de valor efetivo e permanente e não momentâneo e contingente”, sendo que a história da literatura deve ser a da “literatura viva” (VERÍSSIMO, 1981: 33). Assumindo a sua relação de dívida com seus dois predecessores Antonio Candido, em seu célebre Formação da Literatura Brasileira - Momentos Decisivos (1959) avalia as obras esteticamente, porém o conceito beletrista de Veríssimo não é utilizado, e, além disso, o seu cânone se aproxima ao de Romero devido à inclusão de intelectuais que contribuíram para a nossa evolução como, por exemplo, no capítulo Promoção das Luzes em que vemos o papel do intelectual como um dos fatores importantes para a configuração de nossa literatura. O historiador cita o jornalista Evaristo Veiga pela influência que exerceu sobre os primeiros românticos. Aproxima-se de Veríssimo em sua periodização, pois para ambos antes do Romantismo a literatura que se fazia no Brasil era portuguesa, até que gradativamente vai se manifestando o sentimento nacional até chegar ao período que sucedeu à Independência política, no qual nossa literatura torna-se autônoma, e esse conceito histórico que une aspectos literários à emancipação política é utilizado pelo precursor é reaproveitado pelo seu sucessor que o camufla com o seu conceito de sistema. 100 Para compreender o conceito de sistema literário, vejamos as palavras do autor em relação à sua pretensão: Para compreender em que sentido é tomada a palavra formação, e porque se qualificam de decisivos os momentos estudados, convém principiar distinguindo manifestações literárias, de literatura propriamente dita, considerada aqui um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase. Estes denominadores são, além das características internas, (língua, temas, imagens), certos elementos da natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. (CANDIDO, 2009: 25) E esses elementos de natureza social e psíquica são: os produtores literários que estejam mais ou menos conscientes do seu papel; o conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público; e o mecanismo transmissor que é a linguagem traduzida em estilos. E é do conjunto desses três elementos que se dá a literatura como um sistema simbólico, “por meio dos quais as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretações de diferentes esferas da realidade” (CANDIDO, 2009: 25). Para o autor é necessário que os textos estejam integrados ao sistema para que se constitua uma tradição, e o que não está incluso no sistema se pode denominar manifestações literárias e é sob esta alcunha que Candido classifica o período que compreende o período formativo inicial que vai do século XVI ao século XVIII. Na sua concepção é só com os árcades mineiros, com as últimas academias e com o surgimento de certos intelectuais ilustrados, que surge o intuito de criar uma literatura, sendo que esses homens foram considerados fundadores por seus sucessores “estabelecendo-se desse modo uma tradição contínua de estilos, temas, formas ou preocupações.” (CANDIDO, 2009: 27). A “exclusão” 1 do Barroco se justifica também por ser a partir do Arcadismo que surge o que Candido chama de “literatura empenhada”, que se constitui em um traço característico, pois, nesse período, os intelectuais têm o desejo de construir uma literatura brasileira a fim de mostrar que os brasileiros eram tão capazes quanto os portugueses. E com advento da independência política e sob o influxo do Romantismo 1 A cerca da “exclusão” do barroco do consultar: CAMPOS, Haroldo. O seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos. Fundação casa de Jorge Amado: Salvador, 1989. 101 esse intuito de criar uma literatura se tornou um dever patriótico, a fim de mostrar que o Brasil também era independente culturalmente de Portugal. Antonio Candido se afasta das perspectivas de alguns críticos já estudados por considerar a literatura brasileira e a portuguesa comuns até meados do século XIX, afirmando que seu intuito não é estudar a união ou separação das duas, como, aliás, foi feito por muitos críticos que acreditavam que o valor de uma obra literária estava no seu caráter representativo do país, mas sim estudar a literatura como um fenômeno de civilização. E vai além afirmando que: uma obra é uma realidade autônoma, cujo valor está na fórmula que obteve para plasmar elementos não-literários: impressões, paixões, ideias, fatos, acontecimentos, que são a matéria-prima do ato criador. A sua importância quase nunca é devida à circunstância de exprimir um aspecto da realidade, social ou individual, mas à maneira por que o faz. No limite, o elemento decisivo é o que permite compreendê-la e apreciá-la, mesmo que não soubéssemos onde, quando, por quem foi escrita. (CANDIDO, 2009: 35) O valor de uma obra literária não está ligado ao seu caráter nacional, nem pela expressão ou não de cor local, como podemos ver nos primeiros críticos analisados, está no sentimento que é transmitido e na aceitação deste pelo leitor, as obras valem porque “inventam uma vida nova, segundo a organização formal, tanto quanto possível nova, que a imaginação imprime ao seu objeto” (CANDIDO, 2009: 35). Ao falar dos pressupostos conceituais de sua história da literatura o autor destaca o eixo básico de seu trabalho investigativo que é descobrir a coerência das produções literárias, e essa se define por ser a “integração orgânica dos diferentes elementos e fatores, (meio, vida, ideias, temas, imagens e etc.), formando uma diretriz, um tom, um conjunto, cuja descoberta explica a obra como fórmula, obtida pela elaboração do escritor” (CANDIDO, 2009: 39). A análise da obra de arte literária, ao qual o historiador se propõe, não visa contemplar apenas a forma como o texto foi escrito, visa interpretá-lo em conjunto com aspectos de natureza social que estejam integrados no mesmo. Outro fator discordante no pensamento de Antonio Candido, em relação à crítica que o antecedeu, é que ele não condena o Classicismo e o Arcadismo por serem meras imitações dos padrões europeus, pois para ele a dominação pertencente ao processo de colonização se estendia à literatura, as manifestações literárias produzidas no país eram, então, a reprodução do status quo, e, além disso: 102 os padrões clássicos (no sentido amplo, abrangendo todo o período colonial) foram eficazes, por vários motivos e sob as suas diversas formas: humanismo de influência italiana, no século XVI, barroco de influência espanhola, no século XVII, neo-classicismo de influência francesa, no século XVIII. Em qualquer destes casos, tratava-se de uma disciplina intelectual coerente que levou a inteligência a se exercer com rigor; isto lhe deu consistência e resistência na sociedade atrasada e por vezes caótica do período colonial. Além disso, a convenção greco-latina era fator de universalidade, uma espécie de idioma comum a toda a civilização do Ocidente; por conseguinte, na medida em que a utilizaram, os escritores do Brasil integraram nesta civilização as manifestações espirituais da sua terra, dentro, é claro e como ficou dito, do propósito colonizador de dominação, inclusive através da literatura. (CANDIDO, 1989: 176) Antonio Candido aborda na Formação diversas obras dos períodos supracitados levando em conta sua importância histórica e seus critérios estéticos, analisando não apenas as de grande vulto, mas também as que contribuíram mesmo como coadjuvantes para a literatura brasileira. E aborda também a historiografia antecedente, ou seja, a romântica, destacando alguns dos autores já citados neste artigo, evidenciando a importância dos mesmos no processo de nossa independência literária. Dentre seus antecessores se destaca na Formação Machado de Assis, o herói oculto da Formação nas palavras de Callado: A Formação tem seu herói oculto, ou semi-oculto, preservado com astúcia e maestria. As qualidades desse herói são amealhadas, entesouradas, e se distribuem, ao longo da narração, com parcimônia, para que o herói surja, quando surgir, em sua completa e indiscutível glória. Todos sabemos que o grande herói da Eneida, por exemplo, é Roma, mas Roma permanece no horizonte do poema. E só aparece, assim mesmo como profecia, quando Enéias desce ao reino dos mortos(CALLADO, 1992: 142). A luz das palavras de Antonio Callado se torna claro que Machado de Assis é o herói oculto porque é a sua obra que marca a consolidação da literatura brasileira, e é nela também que o processo formativo se conclui para avultar um grande escritor que utiliza temas universais mantendo o caráter nacional na forma. Não é por acaso que a Formação termina com uma citação retirada do Instinto de Nacionalidade, pois ao falar da consciência literária, Antonio Candido destaca o caráter interessado de nossa literatura evidenciando a tomada de consciência e o amadurecimento da literatura e da 103 crítica literária romântica, e estes aspectos estão representados tanto no escrito supracitado como na própria obra romanesca de Machado de Assis. Pode-se concluir a partir dos textos analisados neste artigo, que a historiografia literária brasileira vem desde os autores estrangeiros se configurando, os pressupostos lançados por alguns deles (Schlichthorst, Denis, Wolf, e etc.) influenciaram os críticos românticos, que imbuídos de patriotismo, compilaram e discutiram a nossa literatura. Poetas e romancistas também se aventuraram nessa discussão cabendo a Machado de Assis o destaque por ser o primeiro a configurar a nossa independência literária como um processo. Romero e Veríssimo caminharam a passos largos e fundaram a nossa história da literatura como a conhecemos hoje, com influências evidentes na obra de Antonio Candido, o consolidador da nossa historiografia 2 e síntese das tendências analisadas neste artigo, sua “história dos brasileiros no seu intuito de ter uma literatura” (CANDIDO, 2009, p. 27) se apresenta como um marco importante no processo de construção de nossa história da literatura, como ápice desse processo constitutivo. REFERÊNCIAS ALENCAR. J. Obra Completa. Rio de Janeiro. Aguilar, 1959. ALENCAR. J. Sonhos d’ouro. 4 ed. São Paulo: Melhoramentos. s.d. ASSIS. M. Instinto de nacionalidade. In Machado de Assis: crítica, notícia da atual literatura brasileira. São Paulo: Agir, 1959. CALLADO, A. Formação da Literatura Brasileira: um monólogo interior. In: D’INCAO, M. A.; SCARABOTOLO, E.F. (orgs.), Dentro do texto, dentro da vida: ensaios sobre Antonio Candido, São Paulo, Cia. Das Letras, 1992. CANDIDO, A. Formação da Literatura Brasileira v. I- II. São Paulo: Itatiaia, 1975. 2 Neste artigo não foram contempladas histórias da literatura como as de Nelson Werneck Sodré, Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho e etc., em virtude da temática abordada no mesmo: o desejo nacionalista de criar uma história da literatura. 104 CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2008. CÉSAR. G. Historiadores e críticos do Romantismo. São Paulo: EDUSP, 1978. LAJOLO, M. Literatura e história da literatura: senhoras muito intrigantes. In: MALARD, L. et alii. História da literatura: ensaios. Campinas: editora da UNICAMP, 1994. MOREIRA, M. E. Nacionalismo literário e crítica romântica. POA: IEL, 1991. ROMERO. S. História da Literatura Brasileira. Tomo I. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960. VERÍSSIMO. J. História da Literatura Brasileira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. ZILBERMAN, R.; MOREIRA, M. E. O berço do cânone. 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