Processo Criativo e Tempo “Livre” como Práticas de Gestão da Inovação na Indústria de Criação: O Caso de uma Empresa Brasileira no Ramo de Decoração Autoria: Magnus Luiz Emmendoerfer RESUMO: Este trabalho é resultado de uma experiência acadêmico-empresarial que buscou descrever o processo criativo e o tempo de trabalho como práticas de gestão da inovação em uma empresa imersa no contexto da indústria de criação no ramo de decoração no Brasil. O método estudo de caso serviu de orientação metodológica, cujos dados foram obtidos no site institucional, documentos internos e por meio de entrevistas com os dirigentes, gerentes e funcionários na empresa estudada. Como resultado, evidenciou-se uma lógica regida pela e para a criação, em que a empresa estudada constituiu-se um local onde não predomine apenas o cálculo inerente ao processo de acumulação capitalista, mas uma amplitude mais variada de práticas de produção, como os dois processos criativos com suporte estratégico do tempo “livre” no trabalho. Eis algo de destaque para as pesquisas na temática das indústrias criativas e gestão da inovação, a pesquisa empírica com presença e observação do pesquisador, cujo achado talvez não teria sido possível se não fosse a tarefa (curiosa e prazerosa) de investigar as organizações. Por fim, este trabalho traz novos insights tanto para discussões sobre as concepções e práticas de gestão nas indústrias de criação, como também um repensar sobre a organização do trabalho e novas relações nas organizações da economia criativa. 1. INTRODUÇÃO Este artigo é resultado de uma experiência acadêmico-empresarial que buscou descrever o processo criativo e o tempo de trabalho como práticas de gestão da inovação em uma empresa imersa no contexto da indústria de criação no ramo de decoração no Brasil. Concorda-se com Caves (2000), Jeffcutt (2000) e o British Council (2005) que na atualidade as indústrias de criação se constituem um dos mais férteis terrenos para práticas inovativas, como também para pesquisa na esfera das ciências administrativas. As organizações imersas neste contexto englobam áreas como a cultura, a moda, o design, o lazer, a arquitetura, a criação em geral, entre outras, onde as indústrias criativas têm configurado arranjos e processos organizacionais os mais variados, levados a cabo por agentes públicos, privados e do terceiro setor, de forma isolada ou associada. Este tema de interesse propõe a discussão de concepções e práticas de processos organizacionais envolvendo a economia criativa de modo a refletir como elas auxiliam a construção de conhecimento no campo dos estudos organizacionais e produzem impactos sobre os indivíduos que trabalham e contribuem para o processo criativo nas indústrias de criação, no caso deste trabalho, do ramo da decoração. Assim, este trabalho procurou contribuir com a discussão nos estudos organizacionais sobre duas grandes questões sobre as indústrias de criação que orientaram o seu desenvolvimento: (1) o que as práticas das organizações da economia da criação ensinam aos estudos organizacionais e a gestão da inovação?; (2) que tipo de conhecimento pode ser construído pelos estudos organizacionais a partir dessas práticas? 2. PERCURSO METODOLÓGICO O método estudo de caso (YIN, 2005) serviu de orientação metodológica para o desenvolvimento deste trabalho. Optou-se em utilizar o anonimato quanto ao nome da 1 empresa investigada, atribuindo-lhe o nome nesta pesquisa de “CRYA” a fim de se concentrar no objeto em estudo e preservar a integridade dos participantes. Foram utilizadas fontes primárias de dados, obtidos por meio da aplicação de entrevistas semi-estruturadas com os dirigentes, gerentes e funcionários na sua unidade empresarial de criação na capital catarinense - Brasil, bem como fontes secundárias extraídas a partir de dados do site e documentos internos da empresa. Analisou-se o conteúdo (BARDIN, 1991) de tais dados, tanto primários quanto secundários, com base em dois temas que serviram de “ponto de partida” do levantamento de dados: o processo criativo e o tempo de trabalho. Durante e, principalmente, após a coleta de dados, por meio da estratégia de triangulação (LAVILLE et al., 1999) foi possível apontar novos temas que emergiram a partir da realidade investigada, relatada pelos participantes da entrevista, como: a existência de dois processos criativos na empresa estudada, com diferentes fontes de estímulos de dentro e de fora da organização, fazendo uso de uma “fatia” do tempo de trabalho de forma ociosa (um tempo de não trabalho semelhante à noção de tempo livre – a ser apresentada na próxima seção) a fim de incentivar o os processos criativos na unidade empresarial para que a mesma atinja os seus objetivos. Tal levantamento a priori e a posteriori permitiu dissertar a respeito do processo de criativo e do tempo livre enquanto práticas de gestão na industria criativa no ramo de decoração, no caso, a empresa brasileira “CRYA” que foram estudados por diversos ângulos, dos dirigente-fundadores, dos gerentes, e dos funcionários, fazendo ainda o confronto com os dados secundários coletados. 3. PRÁTICAS DE GESTÃO NA INDÚSTRIA DE CRIAÇÃO: O CASO DA EMPRESA BRASILEIRA “CRYA” NO RAMO DE DECORAÇÃO A empresa “CRYA” surgiu na década de 80 como uma empresa de artesanatos em uma cidade no interior do Estado do Rio de Janeiro, com o objetivo de fabricar e comercializar artigos de decoração domésticos para eventos festivos anuais como o Natal. Aos poucos, seus produtos receberam o aceite dos consumidores e foram sendo ordenados por empresas de departamentos da capital fluminense. Após dois anos de sua fundação, somado ao acompanhamento da crescente demanda das vendas, a empresa “CRYA” que até então vendia principalmente sob encomenda, organizou sua primeira loja em sua cidade de origem. Por meio desta, somado a existência de um mercado de decorações promissor e, também, confiando na expertise de um de seus sócios, tornou-se possível diversificar os produtos comercializados, com a fabricação de produtos de decoração em geral. Vale ressaltar, que essa empresa pode ser considerada uma organização familiar (EMMENDOERFER & HELAL, 2008), sendo sua gestão inicialmente composta por um casal de heterossexuais, ambos com formação de nível superior. Assim, a empresa brasileira “CRYA” pode ser considerada uma organização imersa no contexto da industria criativa ou de criação por atuar no ramo de decoração envolve, em suas práticas de produção, três áreas: arquitetura, design e moda (CAVES, 2000; BRITISH COUNCIL, 2005). Seus produtos (presentes e decorações) direcionados para as pessoas inserirem em imóveis residenciais e comerciais contemplam conhecimentos arquitetônicos de projetos de móveis e decorações, uma variedade de produtos com diferentes designs e composição de materiais, que procuram acompanhar as orientações das estações da moda produzidas por estilistas e profissionais o setor em feiras e eventos na Europa. Segundo os dirigentes da empresa, houve muita intuição, empirismo e perspectiva de futuro favorável ao negócio, não tendo sido realizada viabilidade econômico-financeira até o lançamento da primeira loja. As principais dificuldades que a empresa CRYA enfrentou, nos primeiros oito anos de sua existência, foram situações semelhantes à maioria dos micro2 empreendimentos, relativos ao crescimento do negócio, desconhecimento do mercado e falta de profissionalização, o que culminou numa consultoria de terceiros a fim de padronizar processos de produção e comercialização, organizar a gestão e iniciar um sistema de franqueamento de lojas. Atualmente, a “CRYA” tornou-se uma empresa de referência no mercado brasileiro, voltada à criação, fabricação e comercialização de presentes e decoração. Possui sua rede de franquias com 68 lojas espalhadas nas capitais brasileiras, localizadas principalmente dentro de shoppings centers, devido ao seu público alvo ser pessoas com médio-alto poder aquisitivo e que acompanham as estações da moda com intuito de manterem-se atualizadas ou com o espírito jovem e diferenciado. A maioria dos consumidores dos produtos da empresa “CRYA”, ao invés de ofertarem seus produtos a alguém, presenteia a si mesmos ou a própria família. A “CRYA” produz mais de mil produtos diversificados com criação exclusiva da unidade estratégica de criação da empresa, sendo de produção própria, quase 50% dos produtos comercializados nas lojas, e a outra metade, por diversos fornecedores selecionados, atuando num sistema de parceria. A matéria prima dos produtos é de procedência nacional, sendo principalmente madeira, alumínio, plástico e acrílico, existindo a tendência da empresa em usar cada vez mais material reciclado. A empresa coloca, em média, quinze novos produtos nas lojas todos os meses, possuindo somente catálogo de produtos na internet, o qual é constantemente atualizado. Para atender a essa demanda, a “CRYA” possui uma estrutura organizacional horizontalizada com dois níveis hierárquicos, com 114 funcionários (incluindo os seus dirigentes fundadores), espalhados em suas três unidades empresariais de negócio: uma unidade estratégica de criação em Santa Catarina (SC); uma unidade fabril de bens comercializáveis e a outra unidade de franqueamento (franchising), ambos na mesma cidade de origem da primeira loja própria, no Rio de Janeiro (RJ). Na atual gestão é compartilhada por duas gerações da mesma família, o casal de fundadores e a sua única filha formada em designer. Cada um dos três ocupa uma diretoria estratégica da “CRYA”, todos na unidade de criação em SC. Na hierarquia inferior, existe um nível gerencial de apoio administrativo à unidade como um todo e a área fim da CRYA, no caso ao setor de criação, composto por três equipes semi-autônomas que estão subordinados as três diretorias da “CRYA”. Entretanto, no cotidiano da organização não ocorre normalmente uma distinção hierárquica enfática no relacionamento entre os funcionários dos três níveis quanto ao cargo, sendo esta distinção mais preponderante às funções e responsabilidades de cada pessoa na empresa. Isso talvez justifique a ausência de um organograma formalizado, destacando o relacionamento informal entre os funcionários e a diretoria. Eis uma particularidade da prática de gestão de uma industria criativa brasileira no ramo de decoração que pode se revelar importante no processo criativo na empresa em estudo. 3.1 O PROCESSO CRIATIVO NA EMPRESA “CRYA” Nos estudos sobre processo criativo, Alencar (1995; 1997) demonstrou a existência de uma relativa concordância de conteúdo entre a maioria das perspectivas sobre o assunto, tendo a maioria das diferenças se concentrado, normalmente, em relação à seqüência de procedimentos e a quantidade de etapas do próprio processo criativo. A primeira abordagem acerca do processo criativo é atribuída a Graham Wallas que, em seu livro a Arte de Pensar (The Art of Thought, 1926) formula um modelo de processo criativo que vem influenciando pesquisas sobre o tema até os dias de hoje como as de Kneller (1978). Segundo este autor, o processo criativo seria composto por cinco etapas: 3 (1) Apreensão - momento em que o indivíduo tem o "insight" da idéia ou do problema que ele deve resolver. Nessa fase, o indivíduo percebe que existe um problema. A apreensão dá a direção e propósito à exploração do criador; (2) Preparação - etapa de pesquisa, de investigação, nesse momento, o sujeito coleta informações sobre o assunto em questão; é o momento de explorar as vias e direções do seu presente estudo ou idéia. (3) Incubação – constitui-se no momento em que o indivíduo pensa, analisa, investiga o assunto sem encontrar para isso a solução. Esse período ocorre quando o sujeito pensa sobre o assunto em questão, tem consciência do que procura e reflete, ou, ainda, de forma inconsciente, quando ele está pensando em outra coisa qualquer, ou também nos momentos em que está com o pensamento liberado, ocorrendo, desse modo, possíveis conexões. (4) Iluminação – ocorre novamente o famoso “insight”, só que, desta vez, voltado à resolução do problema emerso. É nessa etapa que o indivíduo, após fazer o encadeamento, descobre alternativas que possam ser utilizadas na solução do seu questionamento; (5) Verificação - o indivíduo busca uma confirmação para os seus questionamentos anteriores. É a fase de avaliação, em que o indivíduo pode testar a solução encontrada, podendo também abandoná-la. Nessa etapa, coloca-se em prática a lógica e racionalidade em busca da melhor opção. Por outro lado, Amabile (1999) pressupõe que a estrutura organizacional exerça mais influência no processo criativo ao invés de aspectos psicológicos cognitivos. Nesta linha de raciocínio, o estágio de incubação demonstrado por Kneller (1978) não existiria, uma vez que este estaria sendo desenvolvido socialmente e de modo direcionado para os fins organizacionais. Entretanto, acredita-se que esta consideração de Amabile (1999) possa fazer mais sentido em grandes organizações, foco de suas pesquisas, devido ao seu tamanho e condições estruturais mais burocratizadas. Os fatores que influenciam o processo criativo na empresa “CRYA” em sua unidade de criação foram, principalmente, objetividade, trabalho em grupo, presença e autonomia sobre o tempo de trabalho, pressão do tempo para concretização das tarefas, organização, disciplina (dedicação e concentração), ambiente agradável e descontraído, a busca para a resolução de problemas, as experiências de vida, acesso a recursos materiais e informacionais, e originalidade. Este último fator, segundo Caves (2000) tende a ser uma das preocupações dos trabalhadores inseridos no contexto das indústrias criativas. Portanto, todos esses fatores possibilitam que dois processos criativos ocorram na empresa, coordenados pela Diretora de Criação: um direcionado (e previsto) pela empresa e um livre (seredípticoi) de ordem individual ou grupal. São eles: (1) Processo Direcionado de Criação – o objetivo desse processo é gerar novos produtos, bem como renovar produtos que já são campeões de venda e atender a demanda dos clientes por novidades. Segundo a Diretora de Criação, esse processo possui maior importância do que o outro, pois “nós criamos para o mercado, é o cliente quem manda”. Esse processo criativo é considerado direcionado devido ao fato de seguir as diretrizes e especificações enviadas pela equipe de desenvolvimento de produto; 4 (2) Processo Livre de Criação – tem por objetivo “sentar e deixar as idéias aparecerem” – Esse processo criativo é caracterizado pela casualidade, e quase sempre ocorre quando se trabalha em prol do processo direcionado de criação. O processo criativo “direcionado” da “CRYA” é voltado a criação de um conceito a ser inserido no mercado sendo este o foco da empresa, embora exista espaço para o desenvolvimento da criatividade voltado a processos para aqueles funcionários que não participam diretamente dos dois tipos de processo criativo, apresentados anteriormente. Os funcionários que participam diretamente da criação de produtos estão ligados às áreas de criação e desenvolvimento de produtos, que totalizam aproximadamente 18 pessoas. Com base em Mirshawka e Mirshawka Júnior (1993), o processo criativo direcionado de criação tem característica normativa, pois é voltado a resultados, já o processo livre tem característica mais exploratória, voltada para a busca de oportunidades. Segundo a Diretoria alguns elementos podem ser citados no que concerne a influência das idéias surgidas no ambiente de trabalho. Como afirmou um dirigente: “trabalho em grupo sempre gera idéias, uma pessoa alimenta a outra, novas imagens se formam na cabeça e [...] idéias surgem. Acho que não tenho mais idéias porque a rotina do trabalho, a correria me consome. Quando o dia é mais tranqüilo, surgem mais idéias. Poderia dizer que as idéias surgem quando tenho um tempo livre dentro do trabalho”. Tal colocação estimulou o pesquisador compreender mais o tempo de trabalho na “CRYA”, onde os dirigentes mencionaram a existência de flexibilidade no horário de trabalho, sem um controle rigoroso entre funcionários e proprietários. Também existem alguns funcionários com horários especiais, que só trabalham em um período. Contudo, para efeito de coordenação da área de suporte da empresa, existe um sistema de acompanhamento, não rigoroso, de entrada e saída de funcionários. Essa descrição permitiu explorar mais sobre o tempo de trabalho (livre) como um recurso estratégico nesta empresa. 3.2. O TEMPO “LIVRE” COMO RECURSO ESTRATÉGICO NA EMPRESA “CRYA” Aparentemente discutir tempo livre nas organizações apresenta-se como algo contraditório no local de trabalho. Entretanto, pretende-se suscitar uma reflexão sobre a questão conceitual do termo livre na esfera do tempo de trabalho, onde o mesmo revela toda e qualquer “fatia de tempo” ou período da jornada de trabalho, que represente algo que foge das “rotinas”, funções e responsabilidades diárias dos indivíduos, bem como as decisões tomadas em prol do próprio indivíduo, será considerado tempo livre, comprometido com a autorealização pessoal na esfera organizacional (EMMENDOERFER, 2002). Com base neste conceito, será evidenciado o tempo livre como um recurso estratégico na prática de gestão da criação de produtos na empresa “CRYA”. Para efeito deste artigo e compreensão geral do termo “estratégia”, entende-se que ela significa ações iniciadas hoje pela organização que poderão levar essa mesma organização a uma situação mais cômoda no futuro. Nesse sentido, para Gaj (1986), estratégia é uma postura direcionada a procedimentos que devem ser iniciados hoje para se obter no futuro o objetivo que se deseja. Acrescenta ainda, que essa postura estratégica a que se refere, diz respeito à conscientização em direção a um processo de pensamento endereçado a procedimentos executados pela organização como uma forma de se administrar recursos limitados (HAMEL e PRAHALAD, 1994; GAJ, 1986) Hamel e Prahalad (1994), argumentam que a essência da estratégia está em desenvolver vantagens competitivas no futuro mais rápido do que os concorrentes tentam 5 imitar aquelas que se tem hoje. Assim, para eles, a melhor vantagem competitiva de todas, ocorre quando uma empresa tem a capacidade de, não obstante melhorar suas habilidades já existentes, mas também, aprender novas habilidades. Porém, Stonich citado por Gaj (1986) deixa claro que a utilização de uma estratégia por uma organização não significa seu sucesso, como o que pode ocorrer com o processo criativo. Segundo o autor, estratégia é uma maneira de a organização afetar seu comportamento empresarial na busca de sucesso. Mesmo assim, as palavras “estratégia” e “sucesso” não são sinônimas. Assim, a realização de uma, não significa, necessariamente, a obtenção da outra. Ansoff apud Gaj (1986) faz uma importante afirmação quanto a isso. Para ele a elaboração de estratégias tem por finalidade assegurar o sucesso futuro. Drucker (1995) menciona que o sucesso do passado não garante o sucesso no presente nem no futuro e que vitórias não são motivos para comemorações e sim para reflexões. Neste momento, surge a necessidade de aplicar o que Mintzberg (1994) chama de estratégia emergente. A estratégia emergente de Mintzberg (1994) é entendida como um conjunto de ações para se alcançar um diferencial em momentos de crise ou turbulentos. Desta forma, é possível verificar o conceito de estratégia emergente de Mintzberg (1994) sob a ótica do tempo livre nas organizações. Contudo, percebe-se que existe muito que explorar e aprender sobre a questão do tempo livre nas organizações. Os dois casos demonstram, o conflito conceitual no tempo “livre”, concebido durante a jornada de trabalho na organização. Como conceituá-lo se o mesmo está “preso” ao trabalho? Diante da presente questão, Leite (1995) destaca que aqui surge uma dificuldade adicional: talvez não seja correto entender como lazer o tempo em si, os períodos de folga, as horas disponíveis, o tempo livre. Estaria faltando o emprego da folga, dessas horas, sem o que se trataria de tempo apenas. Além do tempo livre, expressão muito corrente na área, existe a idéia do seu emprego de maneira construtiva e, sobretudo, para enriquecer a mente, meditar sobre questões complexas, encontrar soluções. É o que os especialistas consideram lazer criativo, acrescentado à noção de tempo livre a liberdade do espírito, numa linha de pensamento muito mais próxima da que nos vem dos gregos (LEITE, 1995, p.14, grifo nosso). Observou-se que existem tentativas, embora incipientes, em explicar o tempo livre como tempo de lazer dentro das organizações, pois o lazer se vale da satisfação e autorealização dos indivíduos, porém, é importante clarear e enfatizar que a sua inserção não visa distrair os colaboradores da seriedade e comprometimento com o trabalho, como forma de passatempo (DUMAZEDIER, 1999). Mas, Mason (1974) menciona que se o trabalho é vazio de qualquer poder criador, se certas formas de produção são incompatíveis com a condição humana, é no próprio sistema de trabalho que devem ser buscadas soluções para esses problemas. Seguindo essa linha de pensamento: todo indivíduo se movimenta num ciclo diário. Cada um tem uma ocasião durante o dia ou à noite em que está com mais idéias criadoras [...] Seu ciclo pessoal é algo que você mesmo terá de descobrir [...] A prática de pensar um tempo definido à busca de idéias pode ser uma das técnicas mais produtivas que você pode adotar. Quando você concentra realmente sua energia mental num problema, ele tende a despertar-lhe o espírito, possibilitando-lhe alcançar as células mais profundas da memória e a expor maior acervo de experiências e conhecimentos que tenham relação com seu problema (MASON, 1974, p.137-138). 6 Reiterando a menção destacada acima, sobre a questão de um tempo definido à busca de idéias, Amabile (1999) afirma que a pressão do tempo pode ativar a criatividade, fazendo com que as pessoas sintam que devem se apressar. Porém, rotineiramente, as organizações escavam a geração de idéias com prazos falsos e impossíveis de cumprir, tais atitudes geram desconfiança, esgotamento físico. Nesses casos os indivíduos sentem-se controlados em demasia e não realizados, o que invariavelmente prejudica o próprio processo de geração de idéias (AMABILE, 1999). Logo, para corresponder prontamente às necessidades do trabalho, os indivíduos precisam de tempo para cultivar a criatividade, de tempo livre para observar, para interagir, participar de novas atividades, conhecer novos caminhos, descobrir. Enfim, entender, praticar e vivenciar o tempo livre, de maneira individual ou em equipe. Assim, na unidade de criação da empresa “CRYA” foi possível perceber que o tempo livre como recurso estratégico é colocado em prática por meio da atitude ou algo do comportamento humano em que até o trabalho pode ser considerado uma atividade que propicie prazer e satisfação para as pessoas. Na empresa, algumas pessoas expressaram essa condição, ao caracterizarem um conceito pessoal sobre tempo livre, mencionando que o mesmo é “fazer o que gosta, inclusive trabalhar”, “eu trabalho com o que gosto, o que me faz ficar ligado/atento 24 horas por dia. É um prazer, muitas vezes, pensar em trabalho”, e “gostar muito do que se faz”. A existência de tempo livre pode permitir uma liberdade de espírito na organização, fato que foi percebido ao longo da pesquisa com as afirmações expressas por algumas pessoas do Escritório de Criação, de que o tempo livre é visto “quando você pode exercer sua criatividade, expor suas idéias e executá-las sem qualquer impedimento”, envolve “liberdade de expressão”, “o estado de espírito é muito importante”, “num momento de ‘paz de espírito’, é mais propício criar”, e um fator que influencia essa relação é o espaço, ou seja, um local onde se possa ter “tempo livre, tranqüilidade e até mesmo liberdade para tentar, errar e corrigir”. O que vai ao encontro da linha de pensamento de Marcuse (1982) e Leite (1995), que acreditam que essa relação entre a geração de idéias e o tempo livre seja um estado de espírito do cotidiano, não sendo somente uma atitude, mas, também, um estilo de vida. Pode-se perceber, nas respostas dos colaboradores da empresa “CRYA”, que “quando o dia é mais tranqüilo surgem mais idéias. Poderia dizer que as idéias surgem quando tenho um tempo livre dentro do trabalho”, ou se tem “momentos de descontração”. Em certas situações, algumas pessoas revelam que não têm “muitas idéias dentro do ambiente de trabalho, pois tenho muitas tarefas a cumprir que não me dão oportunidade para criar”, tornando necessário mais “espaço de tempo para pensar, não só atuar”, “basicamente, acho que conviver, ver situações diferentes, coisas inesperadas”. Se viver situações diferentes, durante um tempo livre no local de trabalho, estimula a geração de idéias, Mason (1974, p.137) sugere uma prática de pensar um tempo definido à busca de idéias, que, segundo ele, pode ser uma das técnicas mais produtivas que, se pode adotar, para se concentrar realmente num problema. Pois, como sustentam Harman e Hormann (1997), pausa não é perda de tempo e, sim, condição essencial para o ato de construir, compor, criar. É uma necessidade do trabalho criativo. E essa prática pode ser verificada, segundo Kanter, Kao e Wiersema (1998), na empresa 3M, mas não foi identificada na empresa “CRYA” pelo pesquisador neste trabalho. Além disso, como ponto de destaque das evidências obtidas sobre o uso do tempo livre, foi verificado junto aos entrevistados a existência de alguns rituais e/ou eventos de tempo nesta organização. Rituais e eventos de tempo foram categorias de análise já exploradas por outros autores de pesquisas qualitativas expostas por Hassard (1992) e Emmendoerfer (2002; 2004). Na “CRYA” existe um tempo de “não trabalho” instituído. É um tempo diário que 7 ocorre no meio da tarde, com duração de 30 minutos, destinado para relaxamento, lanche e descontração de todos os funcionários da empresa, em que a única regra é “não falar em trabalho”. Este ritual é um momento, durante o tempo de trabalho, destinado a socialização dos funcionários de diferentes níveis hierárquicos na cozinha da organização que vem ganhando importância para os envolvidos na empresa. Somado a este ritual de tempo, existem outros eventos de tempo na empresa “CRYA” voltados também a minimizar o stress e a fadiga do trabalho que são: “tempo do cigarro” e “tempo do cafezinho” em que os funcionários vão fumar ou beber na cozinha ou área externa da empresa. Todos esses rituais de tempo “livre” na “CRYA” é voltado para os interesses da organização em tornar os seus funcionários mais produtivos no processo criativo. Desta forma, notou-se que no caso estudado, a empresa imersa no contexto da indústria criativa no ramo de decoração, tende a envolver em suas práticas (processo criativo e uso do tempo de trabalho) à existência de uma estrutura voltada à inovação que imperam aspectos como: um clima organizacional favorável à geração de idéias, a flexibilidade da jornada de trabalho, coordenação por ajustamento mútuo, eventos e rituais de tempo, apoio da equipe de trabalho, prazer pelo desafio à tarefa, metas para a geração de idéias de futuros produtos, tolerância aos erros, aspectos estes que coadunam com as principais características tratadas por Caves (2000) acerca da configuração de indústrias criativas. Assim, tal desfecho permite suscitar algumas considerações finais. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Entende-se que os estudos organizacionais no contexto das práticas de gestão nas indústrias criativas como o caso da empresa “CRYA” que atua no ramo de decoração, mostram-se um terreno particularmente fértil para o aprendizado sobre este tema. Com uma lógica regida pela e para a criação, essas organizações podem constituir-se num campo onde não predomine apenas o cálculo inerente ao processo de acumulação capitalista, mas uma amplitude mais variada de práticas de produção, como os dois processos criativos vistos na “CRYA” com suporte estratégico do tempo “livre” no trabalho. Eis a contribuição desta pesquisa ao demonstrar particularidades de uma industria criativa do ramo de decoração no Brasil. Vale destacar que a descoberta da prática do tempo “livre” na empresa “CRYA” foi algo não previsto inicialmente e que foi sendo levantando a partir de sua evidenciação in loco. Eis algo de destaque para as pesquisas na temática das indústrias criativas, a pesquisa empírica com presença e observação do pesquisador, cujo achado talvez não teria sido possível se não fosse a tarefa (curiosa e prazerosa) de investigar as organizações. Ao refletir sobre o uso do tempo nas organizações, percebe-se que ele vem sendo, desde a Antiguidade até as organizações contemporâneas, inclusive aquelas da industria de criação, uma forma de manipulação ideológica, operacionalizada através da dicotomia entre o tempo de trabalho e o tempo livre. Este último revela uma atitude de seus dirigentes em tornar o seu capital intelectual cada vez mais produtivo e comprometido com o negócio da organização. Isso merece estudos mais aprofundados sobre a consciência ou não das causas e conseqüências dessa prática, em termos de dominação e controle organizacional, gerados pelas estruturas organizacionais no contexto da indústria de criação que atingiu o tempo de trabalho. Por outro lado, isso reforça uma prática para resolver os problemas atuais, através da estratégia da inovação, pois, para as organizações contemporâneas centradas no mercado, os controles do tempo não são tão determinados e previsíveis como são os modelos racionalizados nas organizações modernas (CLEGG, 1998). Tais colocações apresentadas reforçam a necessidade de se realizar mais pesquisas sobre a temporalidade nas organizações, 8 envolvendo a questão do tempo livre e do controle organizacional nos estudos organizacionais e nos debates sobre gestão da inovação em indústrias de criação. Por fim, este trabalho trouxe novos insights tanto para discussões sobre as concepções e práticas de gestão da inovação nas indústrias de criação, como também um repensar sobre a organização e as relações de trabalho nas organizações da economia criativa. REFERÊNCIAS ALENCAR, E. M. L. S. Como desenvolver o potencial criador. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1995. ALENCAR, E.M. L. S. Criatividade. 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