Processo Criativo e Tempo “Livre” como Práticas de Gestão da Inovação na Indústria
de Criação: O Caso de uma Empresa Brasileira no Ramo de Decoração
Autoria: Magnus Luiz Emmendoerfer
RESUMO:
Este trabalho é resultado de uma experiência acadêmico-empresarial que buscou descrever o
processo criativo e o tempo de trabalho como práticas de gestão da inovação em uma empresa
imersa no contexto da indústria de criação no ramo de decoração no Brasil. O método estudo
de caso serviu de orientação metodológica, cujos dados foram obtidos no site institucional,
documentos internos e por meio de entrevistas com os dirigentes, gerentes e funcionários na
empresa estudada. Como resultado, evidenciou-se uma lógica regida pela e para a criação, em
que a empresa estudada constituiu-se um local onde não predomine apenas o cálculo inerente
ao processo de acumulação capitalista, mas uma amplitude mais variada de práticas de
produção, como os dois processos criativos com suporte estratégico do tempo “livre” no
trabalho. Eis algo de destaque para as pesquisas na temática das indústrias criativas e gestão
da inovação, a pesquisa empírica com presença e observação do pesquisador, cujo achado
talvez não teria sido possível se não fosse a tarefa (curiosa e prazerosa) de investigar as
organizações. Por fim, este trabalho traz novos insights tanto para discussões sobre as
concepções e práticas de gestão nas indústrias de criação, como também um repensar sobre a
organização do trabalho e novas relações nas organizações da economia criativa.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo é resultado de uma experiência acadêmico-empresarial que buscou descrever
o processo criativo e o tempo de trabalho como práticas de gestão da inovação em uma
empresa imersa no contexto da indústria de criação no ramo de decoração no Brasil.
Concorda-se com Caves (2000), Jeffcutt (2000) e o British Council (2005) que na
atualidade as indústrias de criação se constituem um dos mais férteis terrenos para práticas
inovativas, como também para pesquisa na esfera das ciências administrativas. As
organizações imersas neste contexto englobam áreas como a cultura, a moda, o design, o
lazer, a arquitetura, a criação em geral, entre outras, onde as indústrias criativas têm
configurado arranjos e processos organizacionais os mais variados, levados a cabo por agentes
públicos, privados e do terceiro setor, de forma isolada ou associada.
Este tema de interesse propõe a discussão de concepções e práticas de processos
organizacionais envolvendo a economia criativa de modo a refletir como elas auxiliam a
construção de conhecimento no campo dos estudos organizacionais e produzem impactos
sobre os indivíduos que trabalham e contribuem para o processo criativo nas indústrias de
criação, no caso deste trabalho, do ramo da decoração.
Assim, este trabalho procurou contribuir com a discussão nos estudos organizacionais
sobre duas grandes questões sobre as indústrias de criação que orientaram o seu
desenvolvimento: (1) o que as práticas das organizações da economia da criação ensinam aos
estudos organizacionais e a gestão da inovação?; (2) que tipo de conhecimento pode ser
construído pelos estudos organizacionais a partir dessas práticas?
2. PERCURSO METODOLÓGICO
O método estudo de caso (YIN, 2005) serviu de orientação metodológica para o
desenvolvimento deste trabalho. Optou-se em utilizar o anonimato quanto ao nome da
1
empresa investigada, atribuindo-lhe o nome nesta pesquisa de “CRYA” a fim de se concentrar
no objeto em estudo e preservar a integridade dos participantes.
Foram utilizadas fontes primárias de dados, obtidos por meio da aplicação de entrevistas
semi-estruturadas com os dirigentes, gerentes e funcionários na sua unidade empresarial de
criação na capital catarinense - Brasil, bem como fontes secundárias extraídas a partir de
dados do site e documentos internos da empresa. Analisou-se o conteúdo (BARDIN, 1991) de
tais dados, tanto primários quanto secundários, com base em dois temas que serviram de
“ponto de partida” do levantamento de dados: o processo criativo e o tempo de trabalho.
Durante e, principalmente, após a coleta de dados, por meio da estratégia de triangulação
(LAVILLE et al., 1999) foi possível apontar novos temas que emergiram a partir da realidade
investigada, relatada pelos participantes da entrevista, como: a existência de dois processos
criativos na empresa estudada, com diferentes fontes de estímulos de dentro e de fora da
organização, fazendo uso de uma “fatia” do tempo de trabalho de forma ociosa (um tempo de
não trabalho semelhante à noção de tempo livre – a ser apresentada na próxima seção) a fim
de incentivar o os processos criativos na unidade empresarial para que a mesma atinja os seus
objetivos. Tal levantamento a priori e a posteriori permitiu dissertar a respeito do processo de
criativo e do tempo livre enquanto práticas de gestão na industria criativa no ramo de
decoração, no caso, a empresa brasileira “CRYA” que foram estudados por diversos ângulos,
dos dirigente-fundadores, dos gerentes, e dos funcionários, fazendo ainda o confronto com os
dados secundários coletados.
3. PRÁTICAS DE GESTÃO NA INDÚSTRIA DE CRIAÇÃO: O CASO DA EMPRESA
BRASILEIRA “CRYA” NO RAMO DE DECORAÇÃO
A empresa “CRYA” surgiu na década de 80 como uma empresa de artesanatos em
uma cidade no interior do Estado do Rio de Janeiro, com o objetivo de fabricar e
comercializar artigos de decoração domésticos para eventos festivos anuais como o Natal.
Aos poucos, seus produtos receberam o aceite dos consumidores e foram sendo ordenados por
empresas de departamentos da capital fluminense. Após dois anos de sua fundação, somado
ao acompanhamento da crescente demanda das vendas, a empresa “CRYA” que até então
vendia principalmente sob encomenda, organizou sua primeira loja em sua cidade de origem.
Por meio desta, somado a existência de um mercado de decorações promissor e, também,
confiando na expertise de um de seus sócios, tornou-se possível diversificar os produtos
comercializados, com a fabricação de produtos de decoração em geral. Vale ressaltar, que
essa empresa pode ser considerada uma organização familiar (EMMENDOERFER &
HELAL, 2008), sendo sua gestão inicialmente composta por um casal de heterossexuais,
ambos com formação de nível superior.
Assim, a empresa brasileira “CRYA” pode ser considerada uma organização imersa no
contexto da industria criativa ou de criação por atuar no ramo de decoração envolve, em suas
práticas de produção, três áreas: arquitetura, design e moda (CAVES, 2000; BRITISH
COUNCIL, 2005). Seus produtos (presentes e decorações) direcionados para as pessoas
inserirem em imóveis residenciais e comerciais contemplam conhecimentos arquitetônicos de
projetos de móveis e decorações, uma variedade de produtos com diferentes designs e
composição de materiais, que procuram acompanhar as orientações das estações da moda
produzidas por estilistas e profissionais o setor em feiras e eventos na Europa.
Segundo os dirigentes da empresa, houve muita intuição, empirismo e perspectiva de
futuro favorável ao negócio, não tendo sido realizada viabilidade econômico-financeira até o
lançamento da primeira loja. As principais dificuldades que a empresa CRYA enfrentou, nos
primeiros oito anos de sua existência, foram situações semelhantes à maioria dos micro2
empreendimentos, relativos ao crescimento do negócio, desconhecimento do mercado e falta
de profissionalização, o que culminou numa consultoria de terceiros a fim de padronizar
processos de produção e comercialização, organizar a gestão e iniciar um sistema de
franqueamento de lojas.
Atualmente, a “CRYA” tornou-se uma empresa de referência no mercado brasileiro,
voltada à criação, fabricação e comercialização de presentes e decoração. Possui sua rede de
franquias com 68 lojas espalhadas nas capitais brasileiras, localizadas principalmente dentro
de shoppings centers, devido ao seu público alvo ser pessoas com médio-alto poder aquisitivo
e que acompanham as estações da moda com intuito de manterem-se atualizadas ou com o
espírito jovem e diferenciado. A maioria dos consumidores dos produtos da empresa
“CRYA”, ao invés de ofertarem seus produtos a alguém, presenteia a si mesmos ou a própria
família.
A “CRYA” produz mais de mil produtos diversificados com criação exclusiva da
unidade estratégica de criação da empresa, sendo de produção própria, quase 50% dos
produtos comercializados nas lojas, e a outra metade, por diversos fornecedores selecionados,
atuando num sistema de parceria. A matéria prima dos produtos é de procedência nacional,
sendo principalmente madeira, alumínio, plástico e acrílico, existindo a tendência da empresa
em usar cada vez mais material reciclado. A empresa coloca, em média, quinze novos
produtos nas lojas todos os meses, possuindo somente catálogo de produtos na internet, o qual
é constantemente atualizado.
Para atender a essa demanda, a “CRYA” possui uma estrutura organizacional
horizontalizada com dois níveis hierárquicos, com 114 funcionários (incluindo os seus
dirigentes fundadores), espalhados em suas três unidades empresariais de negócio: uma
unidade estratégica de criação em Santa Catarina (SC); uma unidade fabril de bens
comercializáveis e a outra unidade de franqueamento (franchising), ambos na mesma cidade
de origem da primeira loja própria, no Rio de Janeiro (RJ). Na atual gestão é compartilhada
por duas gerações da mesma família, o casal de fundadores e a sua única filha formada em
designer. Cada um dos três ocupa uma diretoria estratégica da “CRYA”, todos na unidade de
criação em SC. Na hierarquia inferior, existe um nível gerencial de apoio administrativo à
unidade como um todo e a área fim da CRYA, no caso ao setor de criação, composto por três
equipes semi-autônomas que estão subordinados as três diretorias da “CRYA”. Entretanto, no
cotidiano da organização não ocorre normalmente uma distinção hierárquica enfática no
relacionamento entre os funcionários dos três níveis quanto ao cargo, sendo esta distinção
mais preponderante às funções e responsabilidades de cada pessoa na empresa. Isso talvez
justifique a ausência de um organograma formalizado, destacando o relacionamento informal
entre os funcionários e a diretoria. Eis uma particularidade da prática de gestão de uma
industria criativa brasileira no ramo de decoração que pode se revelar importante no processo
criativo na empresa em estudo.
3.1 O PROCESSO CRIATIVO NA EMPRESA “CRYA”
Nos estudos sobre processo criativo, Alencar (1995; 1997) demonstrou a existência de
uma relativa concordância de conteúdo entre a maioria das perspectivas sobre o assunto,
tendo a maioria das diferenças se concentrado, normalmente, em relação à seqüência de
procedimentos e a quantidade de etapas do próprio processo criativo.
A primeira abordagem acerca do processo criativo é atribuída a Graham Wallas que, em
seu livro a Arte de Pensar (The Art of Thought, 1926) formula um modelo de processo criativo
que vem influenciando pesquisas sobre o tema até os dias de hoje como as de Kneller (1978).
Segundo este autor, o processo criativo seria composto por cinco etapas:
3
(1) Apreensão - momento em que o indivíduo tem o "insight" da idéia ou do problema
que ele deve resolver. Nessa fase, o indivíduo percebe que existe um problema. A
apreensão dá a direção e propósito à exploração do criador;
(2) Preparação - etapa de pesquisa, de investigação, nesse momento, o sujeito coleta
informações sobre o assunto em questão; é o momento de explorar as vias e
direções do seu presente estudo ou idéia.
(3) Incubação – constitui-se no momento em que o indivíduo pensa, analisa, investiga
o assunto sem encontrar para isso a solução. Esse período ocorre quando o sujeito
pensa sobre o assunto em questão, tem consciência do que procura e reflete, ou,
ainda, de forma inconsciente, quando ele está pensando em outra coisa qualquer,
ou também nos momentos em que está com o pensamento liberado, ocorrendo,
desse modo, possíveis conexões.
(4) Iluminação – ocorre novamente o famoso “insight”, só que, desta vez, voltado à
resolução do problema emerso. É nessa etapa que o indivíduo, após fazer o
encadeamento, descobre alternativas que possam ser utilizadas na solução do seu
questionamento;
(5) Verificação - o indivíduo busca uma confirmação para os seus questionamentos
anteriores. É a fase de avaliação, em que o indivíduo pode testar a solução
encontrada, podendo também abandoná-la. Nessa etapa, coloca-se em prática a
lógica e racionalidade em busca da melhor opção.
Por outro lado, Amabile (1999) pressupõe que a estrutura organizacional exerça mais
influência no processo criativo ao invés de aspectos psicológicos cognitivos. Nesta linha de
raciocínio, o estágio de incubação demonstrado por Kneller (1978) não existiria, uma vez que
este estaria sendo desenvolvido socialmente e de modo direcionado para os fins
organizacionais. Entretanto, acredita-se que esta consideração de Amabile (1999) possa fazer
mais sentido em grandes organizações, foco de suas pesquisas, devido ao seu tamanho e
condições estruturais mais burocratizadas.
Os fatores que influenciam o processo criativo na empresa “CRYA” em sua unidade de
criação foram, principalmente, objetividade, trabalho em grupo, presença e autonomia sobre o
tempo de trabalho, pressão do tempo para concretização das tarefas, organização, disciplina
(dedicação e concentração), ambiente agradável e descontraído, a busca para a resolução de
problemas, as experiências de vida, acesso a recursos materiais e informacionais, e
originalidade. Este último fator, segundo Caves (2000) tende a ser uma das preocupações dos
trabalhadores inseridos no contexto das indústrias criativas. Portanto, todos esses fatores
possibilitam que dois processos criativos ocorram na empresa, coordenados pela Diretora de
Criação: um direcionado (e previsto) pela empresa e um livre (seredípticoi) de ordem
individual ou grupal. São eles:
(1) Processo Direcionado de Criação – o objetivo desse processo é gerar novos
produtos, bem como renovar produtos que já são campeões de venda e atender a
demanda dos clientes por novidades. Segundo a Diretora de Criação, esse processo
possui maior importância do que o outro, pois “nós criamos para o mercado, é o
cliente quem manda”. Esse processo criativo é considerado direcionado devido ao
fato de seguir as diretrizes e especificações enviadas pela equipe de
desenvolvimento de produto;
4
(2) Processo Livre de Criação – tem por objetivo “sentar e deixar as idéias aparecerem”
– Esse processo criativo é caracterizado pela casualidade, e quase sempre ocorre
quando se trabalha em prol do processo direcionado de criação.
O processo criativo “direcionado” da “CRYA” é voltado a criação de um conceito a ser
inserido no mercado sendo este o foco da empresa, embora exista espaço para o
desenvolvimento da criatividade voltado a processos para aqueles funcionários que não
participam diretamente dos dois tipos de processo criativo, apresentados anteriormente. Os
funcionários que participam diretamente da criação de produtos estão ligados às áreas de
criação e desenvolvimento de produtos, que totalizam aproximadamente 18 pessoas. Com
base em Mirshawka e Mirshawka Júnior (1993), o processo criativo direcionado de criação
tem característica normativa, pois é voltado a resultados, já o processo livre tem característica
mais exploratória, voltada para a busca de oportunidades.
Segundo a Diretoria alguns elementos podem ser citados no que concerne a influência
das idéias surgidas no ambiente de trabalho. Como afirmou um dirigente: “trabalho em grupo
sempre gera idéias, uma pessoa alimenta a outra, novas imagens se formam na cabeça e [...]
idéias surgem. Acho que não tenho mais idéias porque a rotina do trabalho, a correria me
consome. Quando o dia é mais tranqüilo, surgem mais idéias. Poderia dizer que as idéias
surgem quando tenho um tempo livre dentro do trabalho”. Tal colocação estimulou o
pesquisador compreender mais o tempo de trabalho na “CRYA”, onde os dirigentes
mencionaram a existência de flexibilidade no horário de trabalho, sem um controle rigoroso
entre funcionários e proprietários. Também existem alguns funcionários com horários
especiais, que só trabalham em um período. Contudo, para efeito de coordenação da área de
suporte da empresa, existe um sistema de acompanhamento, não rigoroso, de entrada e saída
de funcionários. Essa descrição permitiu explorar mais sobre o tempo de trabalho (livre) como
um recurso estratégico nesta empresa.
3.2. O TEMPO “LIVRE” COMO RECURSO ESTRATÉGICO NA EMPRESA “CRYA”
Aparentemente discutir tempo livre nas organizações apresenta-se como algo
contraditório no local de trabalho. Entretanto, pretende-se suscitar uma reflexão sobre a
questão conceitual do termo livre na esfera do tempo de trabalho, onde o mesmo revela toda e
qualquer “fatia de tempo” ou período da jornada de trabalho, que represente algo que foge das
“rotinas”, funções e responsabilidades diárias dos indivíduos, bem como as decisões tomadas
em prol do próprio indivíduo, será considerado tempo livre, comprometido com a autorealização pessoal na esfera organizacional (EMMENDOERFER, 2002). Com base neste
conceito, será evidenciado o tempo livre como um recurso estratégico na prática de gestão da
criação de produtos na empresa “CRYA”.
Para efeito deste artigo e compreensão geral do termo “estratégia”, entende-se que ela
significa ações iniciadas hoje pela organização que poderão levar essa mesma organização a
uma situação mais cômoda no futuro. Nesse sentido, para Gaj (1986), estratégia é uma postura
direcionada a procedimentos que devem ser iniciados hoje para se obter no futuro o objetivo
que se deseja. Acrescenta ainda, que essa postura estratégica a que se refere, diz respeito à
conscientização em direção a um processo de pensamento endereçado a procedimentos
executados pela organização como uma forma de se administrar recursos limitados (HAMEL
e PRAHALAD, 1994; GAJ, 1986)
Hamel e Prahalad (1994), argumentam que a essência da estratégia está em
desenvolver vantagens competitivas no futuro mais rápido do que os concorrentes tentam
5
imitar aquelas que se tem hoje. Assim, para eles, a melhor vantagem competitiva de todas,
ocorre quando uma empresa tem a capacidade de, não obstante melhorar suas habilidades já
existentes, mas também, aprender novas habilidades. Porém, Stonich citado por Gaj (1986)
deixa claro que a utilização de uma estratégia por uma organização não significa seu sucesso,
como o que pode ocorrer com o processo criativo. Segundo o autor, estratégia é uma maneira
de a organização afetar seu comportamento empresarial na busca de sucesso. Mesmo assim,
as palavras “estratégia” e “sucesso” não são sinônimas. Assim, a realização de uma, não
significa, necessariamente, a obtenção da outra. Ansoff apud Gaj (1986) faz uma importante
afirmação quanto a isso. Para ele a elaboração de estratégias tem por finalidade assegurar o
sucesso futuro.
Drucker (1995) menciona que o sucesso do passado não garante o sucesso no presente
nem no futuro e que vitórias não são motivos para comemorações e sim para reflexões. Neste
momento, surge a necessidade de aplicar o que Mintzberg (1994) chama de estratégia
emergente. A estratégia emergente de Mintzberg (1994) é entendida como um conjunto de
ações para se alcançar um diferencial em momentos de crise ou turbulentos. Desta forma, é
possível verificar o conceito de estratégia emergente de Mintzberg (1994) sob a ótica do
tempo livre nas organizações.
Contudo, percebe-se que existe muito que explorar e aprender sobre a questão do tempo
livre nas organizações. Os dois casos demonstram, o conflito conceitual no tempo “livre”,
concebido durante a jornada de trabalho na organização. Como conceituá-lo se o mesmo está
“preso” ao trabalho? Diante da presente questão, Leite (1995) destaca que aqui surge uma
dificuldade adicional:
talvez não seja correto entender como lazer o tempo em si, os períodos de
folga, as horas disponíveis, o tempo livre. Estaria faltando o emprego da
folga, dessas horas, sem o que se trataria de tempo apenas. Além do tempo
livre, expressão muito corrente na área, existe a idéia do seu emprego de
maneira construtiva e, sobretudo, para enriquecer a mente, meditar sobre
questões complexas, encontrar soluções. É o que os especialistas consideram
lazer criativo, acrescentado à noção de tempo livre a liberdade do
espírito, numa linha de pensamento muito mais próxima da que nos vem dos
gregos (LEITE, 1995, p.14, grifo nosso).
Observou-se que existem tentativas, embora incipientes, em explicar o tempo livre
como tempo de lazer dentro das organizações, pois o lazer se vale da satisfação e autorealização dos indivíduos, porém, é importante clarear e enfatizar que a sua inserção não visa
distrair os colaboradores da seriedade e comprometimento com o trabalho, como forma de
passatempo (DUMAZEDIER, 1999).
Mas, Mason (1974) menciona que se o trabalho é vazio de qualquer poder criador, se
certas formas de produção são incompatíveis com a condição humana, é no próprio sistema de
trabalho que devem ser buscadas soluções para esses problemas. Seguindo essa linha de
pensamento:
todo indivíduo se movimenta num ciclo diário. Cada um tem uma ocasião
durante o dia ou à noite em que está com mais idéias criadoras [...] Seu ciclo
pessoal é algo que você mesmo terá de descobrir [...] A prática de pensar um
tempo definido à busca de idéias pode ser uma das técnicas mais produtivas
que você pode adotar. Quando você concentra realmente sua energia mental
num problema, ele tende a despertar-lhe o espírito, possibilitando-lhe
alcançar as células mais profundas da memória e a expor maior acervo de
experiências e conhecimentos que tenham relação com seu problema
(MASON, 1974, p.137-138).
6
Reiterando a menção destacada acima, sobre a questão de um tempo definido à busca de
idéias, Amabile (1999) afirma que a pressão do tempo pode ativar a criatividade, fazendo com
que as pessoas sintam que devem se apressar. Porém, rotineiramente, as organizações
escavam a geração de idéias com prazos falsos e impossíveis de cumprir, tais atitudes geram
desconfiança, esgotamento físico. Nesses casos os indivíduos sentem-se controlados em
demasia e não realizados, o que invariavelmente prejudica o próprio processo de geração de
idéias (AMABILE, 1999).
Logo, para corresponder prontamente às necessidades do trabalho, os indivíduos
precisam de tempo para cultivar a criatividade, de tempo livre para observar, para interagir,
participar de novas atividades, conhecer novos caminhos, descobrir. Enfim, entender, praticar
e vivenciar o tempo livre, de maneira individual ou em equipe.
Assim, na unidade de criação da empresa “CRYA” foi possível perceber que o tempo
livre como recurso estratégico é colocado em prática por meio da atitude ou algo do
comportamento humano em que até o trabalho pode ser considerado uma atividade que
propicie prazer e satisfação para as pessoas. Na empresa, algumas pessoas expressaram essa
condição, ao caracterizarem um conceito pessoal sobre tempo livre, mencionando que o
mesmo é “fazer o que gosta, inclusive trabalhar”, “eu trabalho com o que gosto, o que me faz
ficar ligado/atento 24 horas por dia. É um prazer, muitas vezes, pensar em trabalho”, e “gostar
muito do que se faz”.
A existência de tempo livre pode permitir uma liberdade de espírito na organização, fato
que foi percebido ao longo da pesquisa com as afirmações expressas por algumas pessoas do
Escritório de Criação, de que o tempo livre é visto “quando você pode exercer sua
criatividade, expor suas idéias e executá-las sem qualquer impedimento”, envolve “liberdade
de expressão”, “o estado de espírito é muito importante”, “num momento de ‘paz de espírito’,
é mais propício criar”, e um fator que influencia essa relação é o espaço, ou seja, um local
onde se possa ter “tempo livre, tranqüilidade e até mesmo liberdade para tentar, errar e
corrigir”. O que vai ao encontro da linha de pensamento de Marcuse (1982) e Leite (1995),
que acreditam que essa relação entre a geração de idéias e o tempo livre seja um estado de
espírito do cotidiano, não sendo somente uma atitude, mas, também, um estilo de vida.
Pode-se perceber, nas respostas dos colaboradores da empresa “CRYA”, que “quando o
dia é mais tranqüilo surgem mais idéias. Poderia dizer que as idéias surgem quando tenho um
tempo livre dentro do trabalho”, ou se tem “momentos de descontração”. Em certas situações,
algumas pessoas revelam que não têm “muitas idéias dentro do ambiente de trabalho, pois
tenho muitas tarefas a cumprir que não me dão oportunidade para criar”, tornando necessário
mais “espaço de tempo para pensar, não só atuar”, “basicamente, acho que conviver, ver
situações diferentes, coisas inesperadas”.
Se viver situações diferentes, durante um tempo livre no local de trabalho, estimula a
geração de idéias, Mason (1974, p.137) sugere uma prática de pensar um tempo definido à
busca de idéias, que, segundo ele, pode ser uma das técnicas mais produtivas que, se pode
adotar, para se concentrar realmente num problema. Pois, como sustentam Harman e
Hormann (1997), pausa não é perda de tempo e, sim, condição essencial para o ato de
construir, compor, criar. É uma necessidade do trabalho criativo. E essa prática pode ser
verificada, segundo Kanter, Kao e Wiersema (1998), na empresa 3M, mas não foi identificada
na empresa “CRYA” pelo pesquisador neste trabalho.
Além disso, como ponto de destaque das evidências obtidas sobre o uso do tempo livre,
foi verificado junto aos entrevistados a existência de alguns rituais e/ou eventos de tempo
nesta organização. Rituais e eventos de tempo foram categorias de análise já exploradas por
outros autores de pesquisas qualitativas expostas por Hassard (1992) e Emmendoerfer (2002;
2004). Na “CRYA” existe um tempo de “não trabalho” instituído. É um tempo diário que
7
ocorre no meio da tarde, com duração de 30 minutos, destinado para relaxamento, lanche e
descontração de todos os funcionários da empresa, em que a única regra é “não falar em
trabalho”. Este ritual é um momento, durante o tempo de trabalho, destinado a socialização
dos funcionários de diferentes níveis hierárquicos na cozinha da organização que vem
ganhando importância para os envolvidos na empresa. Somado a este ritual de tempo, existem
outros eventos de tempo na empresa “CRYA” voltados também a minimizar o stress e a
fadiga do trabalho que são: “tempo do cigarro” e “tempo do cafezinho” em que os
funcionários vão fumar ou beber na cozinha ou área externa da empresa. Todos esses rituais
de tempo “livre” na “CRYA” é voltado para os interesses da organização em tornar os seus
funcionários mais produtivos no processo criativo.
Desta forma, notou-se que no caso estudado, a empresa imersa no contexto da indústria
criativa no ramo de decoração, tende a envolver em suas práticas (processo criativo e uso do
tempo de trabalho) à existência de uma estrutura voltada à inovação que imperam aspectos
como: um clima organizacional favorável à geração de idéias, a flexibilidade da jornada de
trabalho, coordenação por ajustamento mútuo, eventos e rituais de tempo, apoio da equipe de
trabalho, prazer pelo desafio à tarefa, metas para a geração de idéias de futuros produtos,
tolerância aos erros, aspectos estes que coadunam com as principais características tratadas
por Caves (2000) acerca da configuração de indústrias criativas. Assim, tal desfecho permite
suscitar algumas considerações finais.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entende-se que os estudos organizacionais no contexto das práticas de gestão nas
indústrias criativas como o caso da empresa “CRYA” que atua no ramo de decoração,
mostram-se um terreno particularmente fértil para o aprendizado sobre este tema. Com uma
lógica regida pela e para a criação, essas organizações podem constituir-se num campo onde
não predomine apenas o cálculo inerente ao processo de acumulação capitalista, mas uma
amplitude mais variada de práticas de produção, como os dois processos criativos vistos na
“CRYA” com suporte estratégico do tempo “livre” no trabalho. Eis a contribuição desta
pesquisa ao demonstrar particularidades de uma industria criativa do ramo de decoração no
Brasil. Vale destacar que a descoberta da prática do tempo “livre” na empresa “CRYA” foi
algo não previsto inicialmente e que foi sendo levantando a partir de sua evidenciação in loco.
Eis algo de destaque para as pesquisas na temática das indústrias criativas, a pesquisa
empírica com presença e observação do pesquisador, cujo achado talvez não teria sido
possível se não fosse a tarefa (curiosa e prazerosa) de investigar as organizações.
Ao refletir sobre o uso do tempo nas organizações, percebe-se que ele vem sendo,
desde a Antiguidade até as organizações contemporâneas, inclusive aquelas da industria de
criação, uma forma de manipulação ideológica, operacionalizada através da dicotomia entre o
tempo de trabalho e o tempo livre. Este último revela uma atitude de seus dirigentes em tornar
o seu capital intelectual cada vez mais produtivo e comprometido com o negócio da
organização. Isso merece estudos mais aprofundados sobre a consciência ou não das causas e
conseqüências dessa prática, em termos de dominação e controle organizacional, gerados
pelas estruturas organizacionais no contexto da indústria de criação que atingiu o tempo de
trabalho. Por outro lado, isso reforça uma prática para resolver os problemas atuais, através da
estratégia da inovação, pois, para as organizações contemporâneas centradas no mercado, os
controles do tempo não são tão determinados e previsíveis como são os modelos
racionalizados nas organizações modernas (CLEGG, 1998). Tais colocações apresentadas
reforçam a necessidade de se realizar mais pesquisas sobre a temporalidade nas organizações,
8
envolvendo a questão do tempo livre e do controle organizacional nos estudos organizacionais
e nos debates sobre gestão da inovação em indústrias de criação.
Por fim, este trabalho trouxe novos insights tanto para discussões sobre as concepções
e práticas de gestão da inovação nas indústrias de criação, como também um repensar sobre a
organização e as relações de trabalho nas organizações da economia criativa.
REFERÊNCIAS
ALENCAR, E. M. L. S. Como desenvolver o potencial criador. 3.ed. Petrópolis: Vozes,
1995.
ALENCAR, E.M. L. S. Criatividade. Brasília: UnB, 1997.
AMABILE, T. M. Como não matar a criatividade. HSM Management, São Paulo, n.12,
jan/fev, p.110-118, 1999.
BARDIN, L. L'analyse de contenu. 6.ed. Paris: PUF, 1991.
BRITISH COUNCIL. Mapping the creative industries: the UK context. London, oct.2005.
15p.
BRUNS, H. T. O corpo parceiro e o corpo adversário. São Paulo : Papirus, 1993.
CAVES, R. E. Creative industries: contracts between art and commerce. Cambridge:
Harvard University Press, 2000.
CLEGG, S. R. As organizações modernas. Oeiras : Celta, 1998.
DRUCKER, P. F. O seu tempo no trabalho. In: O gerente eficaz. Rio de Janeiro : Guanabara,
1967. p.25-51.
DRUCKER, P. F. Administrando em tempos de grandes mudanças. São Paulo, Pioneira,
1995.
DUMAZEDIER, J. A revolução cultural do tempo livre. São Paulo : Nobel; SESC, 1994.
______. Sociologia empírica do lazer. 2.ed. São Paulo : Perspectiva; SESC, 1999
EMMENDOERFER, M. L. Geração de idéias e tempo livre. Florianópolis, 2002.
Monografia (Trabalho de conclusão de curso em administração), Universidade Federal de
Santa Catarina.
EMMENDOERFER, M. L. Controle do tempo: a percepção dos atores gerenciais da
USIMINAS S.A. Florianópolis, 2004. 199 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal
de Santa Catarina, Centro Sócio-Econômico. Programa de Pós-Graduação em Administração
EMMENDOERFER, M. L.; HELAL, D. H. Organizações Familiares: Um Espaço de Geração
de Idéias e Produtos?. In: CARRIERI, Alexandre de Pádua; SARAIVA, Luiz Alex Silva;
GRZYBOVSKI, Denize. (Org.). Organizações Familiares: Um Mosaico Brasileiro. 1 ed.
Passo Fundo (RS): Universidade de Passo Fundo / SEBRAE-RS, 2008.
9
GAJ, L. Administração estratégica: ‘O Estado da Arte’, conceitos, técnicas e sistema de
adequação empresarial. Tese de Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1986.
HAMEL, G.; PRAHALAD, C.K. Strategic intent. In: Global strategies: insights from the
world’s leading thinkers. The Harvard Business Review Book Series, p.03-28, 1994.
HARMAN, W.; HORMANN, J. O trabalho criativo: o papel construtivo dos negócios numa
sociedade em transformação. São Paulo : Cultrix, 1997.
HASSARD, J. Time and industrial sociology. In: BLYTON, P. et al. Time, work and
organization. Londres : Routledge, 1992.
JEFFCUTT, P. Management and the creative industries. Studies in Cults, Orgs. and Socs.,
vol.6, p.123-127, 2000.
KANTER, R. M.; KAO, J. WIERSEMA, F. Inovação: pensamento inovador na 3M, DuPont,
GE, Pfizer e Rubbermaid. São Paulo : Negócio, 1998.
KNELLER, G. F. Arte e ciência da criatividade. 3.ed. São Paulo : IBRASA, 1978.
LAVILLE, C.; DIONNE, J; SIMAN, L. M. de C. A construção do saber. Porto Alegre:
Artmed, 1999.
LEITE, C. B. O século do lazer. São Paulo : LTr, 1995.
MARCUSE, H. A ideologia da sociedade industrial. 6.ed. Rio de Janeiro : Zahar, 1982.
MASON, J. G. O dirigente criativo: criatividade aplicada à direção de empresas. 2.ed. São
Paulo : Ibrasa, 1974.
MIRSHAWKA, V.; MIRSHAWKA JUNIOR, V. Qualidade da criatividade. São Paulo:
Makron Books, 1993.
MINTZBERG, H. The Rise and Fall of Strategic Planning. FreePress: New York, 1994.
PINTO, J. A. N. Abordagem do ato de criatividade serendíptica segundo características
próprias de comportamento do indivíduo. Florianópolis, 1996. 114f. Tese (Doutorado em
Engenharia da Produção) - Universidade Federal de Santa Catarina.
ROBERTS, R. M. Descobertas acidentais em ciências. São Paulo : Papirus, 1989
YIN, R. K. Estudo de Caso. 3.ed. Porto Alegre: Bookman, 2005.
i
Cf. Roberts (1989) e Pinto (1996, p.6) “A palavra serendipidade não foi incorporada à língua portuguesa. Sua
origem, em 1754, na língua inglesa é atribuída à Horace Walpole. A serendipidade descreve as descobertas
casuais ou fortuitas.”
10
Download

1 Processo Criativo e Tempo “Livre” como Práticas de