IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES
27 a 29 de Maio de 2015
Universidade do Estado da Bahia – Campus I
Salvador - BA
PRATICAS MÉDICAS E SUBJETIVIDADES
Estrella Maestre1
Resumo
A presente comunicação tem como objetivo a apresentação da 1) identificação dum numero
de praticas medicas exercidas em pediatria na atualidade, 2) exposição da conversão das praticas
médicas em virtudes ou valores epistémicos, e 3) transferência dessas virtudes ou valores
epistémicos em virtudes o valores morais na sociedade. Nesse sentido, neste trabalho discutimos
como se produze a transferência de uma atividade cientifica ao mundo moral ou ético.
É dessa forma exposta a partir desses três itens que pensamos que podem-se relacionar a
atividade médica como as subjetividades de mães e crianças e cuidadores na atualidade.
Palavras-chave: praticas médicas, subjetividade, epistemologia, ética.
1. Introdução
Não há dúvida de que propostas como a História da Infância oferecida por Philippe Ariès
(ARIÈS, 1981) ou os discursos de glorificação da maternidade como os referidos por Elisabeth
Badinter (BADINTER, 1985) contribuem de forma significativa para que possamos compreender a
tendência à sentimentalização nos últimos séculos de que falam os historiadores: um processo de
exaltação da afetividade no que a medicina teve um papel relevante, fornecendo para a
"naturalização" de muitas propostas morais (RODRIGUEZ-OCAÑA, 2003, p. 28).
O universo moral e a medicina estão, portanto, em contínuo diálogo já há algum tempo. A
medicalização da maternidade é um fenômeno que ainda não cessou de avançar, especialmente no
que concerne às novas tecnologias de reprodução assistida (STRATHERN, 1995) e, portanto, áreas
como a ginecologia ou a pediatria, e, dentro desta, especialmente a puericultura, são campos
privilegiados para observá-lo.
Nesste trabalho, com o fim de salientar a transferência do discurso médico (concretamente
pediátrico) ao universo moral, vamos transladar um conceito teórico bem conhecido na Historia das
Ciências e Epistemologia, “virtudes epistêmicas” (GRECO e TURRI, 2013) como ferramenta
metodológica para o nosso dos Estudos Culturais. Achamos que esta estratégia transdisciplinar
supõe um importante beneficio teórico e prático para os nossos fins, porque nos permite mover o
horizonte teórico da medicalização da maternidade, fazendo, assim, com que, no dito deslocamento,
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Doutora em Biologia. Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo ([email protected]).
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apareça desenhada a figura do pediatra como a de uma pessoa, no sentido de pessoa científica ou
“scientific self”, integrada num dispositivo de saber-poder foucaultiano.
"Pessoa científica" é um conceito recentemente desenvolvido dentro da história social da
ciência; uma particularização feita a partir do ensaio seminal do antropólogo francês Marcel Mauss
sobre o desenvolvimento histórico e cultural da categoria pessoa (MAUSS, 2003). Trata-se, com
esta versão cientifica, de pessoa na história social da ciência, de entender o modo como a ciência é
incorporada e realizada de forma convincente, e como esse desempenho torna-se parte do mesmo
processo epistemológico (DASTON E SIBUM, 2003). A pessoa científica aparece assim como um
construto científico, no mesmo sentido que o conceito de pessoa é pensado por Marcel Mauss como
construção histórica, ao comparar diversas épocas e grupos humanos.
Neste sentido, para entender a construção da pessoa científica, o conceito teórico em questão
que achamos de interesse para este estudo é, como dizíamos, as “virtudes epistêmicas”. Falar de
virtudes epistêmicas é falar da excelência intelectual, ou seja, é invocar noções de virtudes
intelectuais. Así, exibimos excelência cognitiva quando acreditamos virtuosamente, ou seja, de
acordo com características como a sabedoria, a prudência, a compreensão, a criatividade, o
discernimento, a discrição, a previdência, o amor da verdade, etc. A receita para uma excelente vida
intelectual, então, é que devemos cultivar dentro de nós mesmos virtudes e evitar vícios intelectuais
(WOOD, 2009). Ou seja, os cientistas, e, por extensão, os médicos, ao atuar como cientistas ou
praticantes da ciência, aplicam, implícita ou explicitamente, em sua tarefa intelectual, modelos ou
ideais éticos que buscam atingir a sua própria experiência diária profissional. As praticas cientificas
estão vinculadas aqui, portanto, a um modo de ser científico.
Então, será que essas virtudes, esses ideais, esses valores em que os cientistas e os médicos
se treinam diariamente não tem por si mesmas correspondência com a vida cotidiana? Será que as
virtudes epistêmicas dos pediatras não influenciam nas virtudes comuns das pessoas que atuam
como aliados (mães, enfermeiros, cuidadores, etc.) quando eles transmitem seus modos de praticar a
medicina? Isso ocorre especialmente numa área como a puericultura, a qual necessita de um
parceiro, um aliado, alguém para conversar, para o seu exercício, como mencionamos antes. E
cómo é que se produce essa transferência ou difusão da prática médica a partir do exercício das
virtudes epistêmicas? Acreditamos, por tudo o que já foi dito, que o modelo da medicalização dos
corpos foucaultiano (FOUCAULT, 1976) encaixa-se bem com o estudo das virtudes epistêmicas
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para possibilitar a compreensão da construção das subjetividades de mulher, porque também as
virtudes epistêmicas são construções históricas, segundo o modelo de pessoa de Marcel Mauss.
Mas o que é exatamente isso das virtudes epistêmicas? Os historiadores da ciência Lorraine
Daston e Peter Galison têm mostrado que as práticas científicas ligadas à prática da objetividade
estão associadas a uma série de normas ou conjunto de regras epistêmicas que são incorporadas e
internalizadas pelo cientista no próprio ato de apreender o conhecimento. Os autores aqui referidos
chamam a esse conjunto de regras que apelam a determinados valores éticos de “virtudes
epistêmicas” (DASTON e GALISON, 2007, p. 40). Assim o cientista, através da incorporação de
um conjunto de virtudes epistêmicas, consegue fazer emergir nele um "si mesmo científico"
("scientific self") (DASTON e GALISON, 2007, p. 17), o qual será moldado em cada período de
acordo com o conjunto de práticas científicas usadas (DASTON e GALISON, 2007, p. 19). Em
geral, as virtudes epistêmicas podem ser, por exemplo, a prática da verdade e da objetividade, mas
também praticar a exatidão, a precisão e a repetibilidade (DASTON e GALISON, 2007, p. 33). A
objetividade mecânica científica, como exemplo de virtude epistêmica, é realizada quando o olhar é
um olhar sem prejuízo, sem mediação e cego (DASTON e GALISON, 2007, p. 16). Daston e
Galison estão se referendo aqui à objetividade mecânica, essa objetividade praticada principalmente
nas ciências físicas e que têm permeado e difundido tanto no nosso pensamento científico
positivista atual. Resumindo, professar uma objetividade científica (praticada diversamente segundo
a época referida, dado que a objetividade não é um universal, senão, mais uma vez, uma construção
cultural de acordo com o conceito de objetividade de Daston e Galison) implica modelar, educar e
configurar um suposto "si mesmo científico", seguindo a aplicação de uma serie de virtudes
epistêmicas. O que resulta finalmente é que a cada objetividade científica corresponde
complementarmente e historicamente certa subjetividade científica, como em um jogo de espelhos.
São os dois lados da mesma moeda.
Nesse sentido, na puericultura, ao ser necessária a ajuda de um cuidador (mães, pais,
familiais, enfermeiros, etc.), o puericultor (ou pediatra) acaba por atuar também como educador.
Desse modo, nessa educação se está transladando as suas virtudes epistêmicas ao cuidador. É dessa
forma que pensamos poder se relacionar as virtudes epistêmicas com as virtudes morais, contando
com que o puericultor sugira determinadas práticas a partir de sua experiência de sua própria prática
médica. Vinculamos assim as subjetividades de mulher com as práticas médicas e a maternidade,
mediante a conexão da prática das virtudes epistêmicas e da maternidade.
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2. Metodologia
Assim, para estudar algumas das mudanças de nossas construções de identidades para as
quais a prática médica está contribuindo tão significativamente, temos proposto e realizado uma
análise crítica das práticas médicas de acordo com o estudo de materiais bibliograficos de
puericultura. Concretamente, a análise crítica é realizada a partir do manual "Bésame Mucho: como
criar os seus filhos com amor", do pediatra espanhol Carlos González (GONZÁLEZ, 2005).
Dirigimos nossa pesquisa ao mencionado manual Bésame mucho, de aqui em adiante,
porque apresenta uma clara mudança ao respeito do discurso pediátrico hegemónico ou padrão atual
de livros como o célebre e clássico A vida do bebê do Rinaldo de Lamare (DE LAMARE, 2009).
Em resumo, dada a perspectiva histórica mencionada acima, neste trabalho realizamos um
estudo sobre a modificação das práticas de pediatras na educação dos filhos observando a
emergência, manifestação e atenuação de diversas virtudes epistêmicas segundo o modo como elas
aparecem ou não num manual que mostra um desplazamiento dos presupuestos iniciais da pratica
normal da pediatria como mostraremos no seguente. Com outras palavras, se uma mudança nas
práticas científicas envolve uma mudança nas virtudes epistêmicas, então a mudança das práticas
dos pediatras que descrevemos abaixo a partir do estudio do manual Bésame mucho, também pode
estar indicando uma mudança da transformação do olhar pediátrico. Para ilustrar melhor esta
diversificação, em nossa análise crítica temos encontrado duas formas diferentes de praticar a
puericultura, a hegemónica e a ativa.
3. A normatividade e a disciplina no discurso da puericultura hegemónica
Foucault dizia que os juízes da normalidade estão presentes em todos os lugares: como o
professor-juiz, o médico-juiz, o educador-juiz, o assistente social-juiz; todos estão espalhando a
universalidade normativa, e todos, no ponto onde ficam, submetem aos corpos, gestos,
comportamentos, atitudes, etc. (FOUCAULT, 2002, p. 312).
Segundo Foucault, a psicologia do século XIX herdou a preocupação do Iluminismo de
alinhar-se com as ciências da natureza e de redescobrir no homem a prolongação das leis que regem
os fenômenos naturais. A determinação de vínculos quantitativos, a elaboração de leis que operam
na forma de funções matemáticas, a implementação de hipóteses explicativas são tentativas de
aplicar na psicologia, não sem artifício, uma metodologia do natural (FOUCAULT, 1994). A
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pediatria hegemónica herdou também essa preocupação de alinhar-se com as ciências mais
objetivas (objetivas, mecanicamente falando) e tender aos universais. Prova disso são as múltiplas
referências da teoria do desenvolvimento proposta por Piaget, por exemplo, no que se refere ao que
a criança deve saber fazer ou não em cada fase em manuais de pediatria hegemonicos (DIAS, 2013;
SANTOS, 2009).
O pediatra não pode então renunciar à determinação por vínculos quantitativos das
características principais da criança, à construção de hipóteses e à verificação experimental
(FOUCAULT, 1994), tal e como atuam as ciências psi na sua condição de ciências experimentais.
A virtude epistêmica da busca da universalidade passa, para a pediatria hegemónica, pela prática de
um saber experimental e quantitativo.
Nesse sentido, a consequência de distribuir, tendo em vista um padrão, um número de
indivíduos, referindo-os uns aos outros pela comparação, implica uma espécie de hierarquia
(FOUCAULT, 2002, p. 226) com a finalidade de ver o lugar que ocupam uns em relação aos outros.
E além disso, implica também sua desincorporação e coisificação. A objetividade mecânica também
descorporiza o sujeito. Objeto e sujeito são apenas pontos sem matéria segundo a objetividade da
dinâmica, do matemático, do determinado.
González, por sua vez, critica fortemente a persistência destas técnicas no manual Bésame
Mucho mostrando sua oposição aos modos disciplinantes ou de obediência e criticando sua
disseminação em manuais alemães e espanhóis do século XX, e até mesmo em alguns mais recentes
(GONZÁLEZ, 2009, p. 126).
O autor de Bésame Mucho faz crítica também daquelas pedagogias repressoras que tentam
instrumentalizar a pais e mães através da aplicação de disciplinas rígidas e dos castigos. Acredita
que essas teorias pedagógicas, nascidas de regimes absolutistas e despóticos, trazem para o seio da
família o modelo repressor do Estado e convertem ao pai em polícia, juiz e verdugo e à mãe numa
simples subordinada (GONZÁLEZ, 2009, p. 122) e adverte assim dos perigos encontrados quando a
pedagogia atua como modo de doutrinação política. E descreve como exemplo diversos trechos
desta vertente pedagógica fazendo referencia a seu colega o espanhol Rafael Ramos, catedrático de
pediatria em Barcelona depois da guerra civil no pleno ciclo do triunfo da ditadura franquista
espanhola. O pediatra escrevia da seguinte forma em sua obra Pediatria publicada em 1941:
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«A criança em todos os momentos e desde o primeiro dia da sua vida deve saber
que existe alguém superior a ela que vai cuidar dela, não apenas com alimentos,
calor, etc., mas que vai também refrear os seus instintos: a mãe [...].
a) Desde que a criança nasce deve ser colocada no seu berço e ir apenas para a
cama da mãe quando vai ser amamentada. Se chora, não se lhe deve pegar ao colo
nem embalá-la, mas limpá-la no caso de estar suja, colocá-la ao peito se chegou a
hora de o fazer e aconchegá-la se tiver frio [...], ou se chora porque tem
necessidade de chorar simplesmente, mas sem que necessite de nada, deixa-se
chorar tranquilamente [...].
A experiência de tantas mães assegura, se a razão científica não fosse suficiente,
que uma criança recém-nascida chora durante dez, doze, quinze dias, mas, quando
se observa rigorosamente esta atitude de não lhe pegar ao colo, não a embalar
nem lhe dar a chupeta, passado este intervalo, convencida da ineficácia dos seus
protestos, a criança vai diminuindo a intensidade do choro [...].
b) Não se deve amamentá-los sempre que chorem, mas quando for o momento e de
uma maneira sistemática [...]. Também é habitual que a mãe se queixe da
pontualidade que exige a alimentação do filho, mas que pouco importante que isso
é se tivermos em conta o tempo e a escravidão prolongada que lhe custaria se, por
negligência sua, o pequeno contraísse qualquer transtorno ou doença!
c) Sem ceder aos seus caprichos, quando a criança começa a compreender - o que,
ainda que não o manifeste, acontece antes do que é habitual crer-se -, deverá
fazer-lhe saber que esta atitude severa é para o seu bem.
E assim, pouco a pouco, deposita-se na consciência da criança uma semente de
valor incalculável, que a mãe vai fazendo crescer.
O filho sabe que existe alguém a quem está submetido, que cuida dele e o dirige,
de quem recebe os castigos, se bem que não tenha outro objetivo que a sua
felicidade. A esta criança, mais tarde um adulto, que fácil será obedecer a uma
autoridade superior! Mas, se este homem não for assim educado desde o berço, irá
rebelar-se à menor contrariedade, enfrentando o seu mestre, o seu chefe, a polícia,
o Estado que o governa...»2.
Dentro dessa lógica de uma puericultura que não busca uma aliança com o cuidador, mas
uma submissão por parte deste, a mãe, que tem tendência para pegar no filho e responder ao seu
choro, segundo o autor da pós-guerra, educa mal por “negligência“, assinala Gonzalez. Portanto,
continua, seguir as regras e os horários, pelo contrário, é difícil e a mãe queixa-se disso, mas deve
“sacrificar-se“ para não fazer com que a criança contraia doenças. A consequência, para o defensor
de uma puericultura ética é a aparição da ameaça e a culpa nas mães (GONZÁLEZ, 2009, p. 123124).
Este discurso da culpa se opõe frontalmente ao discurso do empoderamento que tenta
fomentar em seus leitores e leitoras o pediatra com seu livro Bésame Mucho. Um empoderamento,
que afinal de contas, consiste numa transferência de poder na educação das crianças do saber
médico ao ambiente familiar. No prólogo de uma reedição de três de seus livros com o título
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RAMOS, 1941 em GONZALEZ, 2005, pp. 66-67.
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Comer, Amar, Mamar, González afirma: "Para ser buenos padres, no hace falta leer ningún libro"
e continua explicando porque escreveu seus livros "para ofrecer a esos padres preocupados otro
punto de vista, para ayudarles a liberarse de normas y prejuicios, a hacer sin miedo lo que su
corazón y su hijo les piden."
Este pediatra fica bem longe do modo de entender as práticas parentais como uma renuncia
de si o auto-negação e, sabendo que a orientação de um médico raramente é explicitada pelo desejo
de manter a objetividade científica, ele toma partido:
“El libro que tiene usted en sus manos no busca el «justo medio», sino que toma
claro partido. Este libro parte de la base de que los niños son esencialmente
buenos, de que sus necesidades afectivas son importantes y de que los padres les
debemos cariño, respeto y atención” 3
E esta declaração de princípios está acima de qualquer outra consideração. A subjetividade
do pediatra não está, aqui, agora em retirada ou na remoção do si mesmo médico ou científico, mas
na localização dentro dum pretendido compromisso ético. Neste caso, o pediatra não está
disciplinando-se como fizeram os médicos e pedagogos alemães no início do século XX (MILLER,
1998) para ser objetivo e aplacar os seus mesmos "inimigos internos" – nas palavras de Goethe –
pela aplicação de regras metodológicas, medições e disciplina de trabalho (DASTON e GALISON,
2007, p. 186), mas apostando no seu compromisso ético. É uma aposta ética colocada dentro dum
dispositivo de puericultura ativa em diálogo com uma prática concreta de maternidade ativa.
González é defensor de uma puericultura ética; ou seja, um tipo de puericultura na qual as
considerações éticas são sempre primordiais e tem prioridade sobre a eficácia o a utilidade. Com
certos métodos e determinadas técnicas, argumenta o pediatra, talvez os nossos filhos comessem
"melhor", ou dormissem mais, ou nos obedecessem sem hesitar, ou estivessem mais calados; mas
não os podemos usar. E não necessariamente porque tais métodos sejam inúteis ou
contraproducentes nem porque não sejam eficazes. Não os usamos porque existem coisas que
simplesmente não se fazem (GONZÁLEZ, 2009, pp. 37-38). Gonzalez, a partir de sua experiência
clínica, tornou-se ciente da existência do dispositivo saber˗poder exercido a partir da pediatria. Ou
seja, ele é consistente do “conjunto resolutamente heterogêneo, comportando discursos, instituições,
3
GONZÁLEZ, Carlos. Comer, Amar, Mamar. Guía de Crianza Natural. Ediciones Temas de hoy, Madrid,
2009, p. 30. Segundo nossa tradução: "O livro que você tem em suas mãos não está buscando o "meio-termo", mas
toma partido de modo claro. Este livro assume que as crianças são essencialmente boas, que suas necessidades
emocionais são importantes e que os pais lhes devemos amor, respeito e cuidado"
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arranjos arquiteturais, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados
científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, abreviando: do dito tanto como do nãodito” (FOUCAULT, 1994, p. 299) incorporado na sua prática médica e em todo o exercício da
pediatria na clínica. A este respeito, no livro Bésame mucho conta a história que uma vez chegou
muito cedo a sua clínica e se entreteve conversando com a recepcionista. Na sala havia apenas uma
mãe com um bebê de alguns meses num carrinho, à espera de outro colega. O bebê começou a
chorar, e a mãe tentou acalmá-lo movendo o carrinho para trás e para a frente. Cada vez os gritos
eram mais desesperados, e a mãe caminhava de forma mais frenética. Quando uma criança chora
com toda sua força, os minutos parecem horas. Ele se perguntava: «O que está ela a fazer? Por que
não o leva para fora do carrinho e o pega ao colo?».
González esperou e esperou, mas a mãe não fazia nada. Finalmente, decidiu intervir
respeitosamente e se decidiu a lançar uma indireta suave:
―«Que aborrecido está o bebê! Parece que quer colo... »
Então, como que movida por uma mola, a mãe aventurou-se para tirar o bebê do carrinho
(que se acalmou instantaneamente) e explicou:
―«É que como os pediatras dizem que não é bom pegar-lhes ao colo... »
Essa mãe não se atrevia a pegar no filho porque estava na presença de um pediatra! Naquele
dia, o pediatra entendeu o poder que os médicos têm e de quantas pressões e temores são obrigadas
a enfrentar todos os dias as mães. (GONZÁLEZ, 2009, pp. 31). González expõe no seu livro que
existem três grandes tabus modernos em puericultura: os relacionados com (1) o choro: incentivase, por vezes, a ignorar as crianças que choram, a levá-los ao colo, a dar-lhes o que eles pedem; (2)
o sono: desaprova-se dormir com as crianças no colo ou no peito, assim como dormir na mesma
cama com eles; (3) a amamentação: é proibido amamentar a qualquer momento ou em qualquer
lugar; e também amamentar uma criança muito grande. Quase todos eles têm uma coisa em comum:
dificultar o contato físico entre mãe e filho (GONZÁLEZ, 2009, p. 36).
O pediatra acredita que todos estes tabus e preconceitos fazem as crianças chorar e também
não fazem os pais felizes. E se pergunta: A quem satisfazem então? Talvez a alguns pediatras,
psicólogos, educadores e vizinhos que os defendem? Eles não têm o direito de lhe dar ordens, de lhe
dizer como deve viver a sua vida e tratar o seu filho. (GONZÁLEZ, 2009, p. 37). E então, por que
não escolher uma rotina com a qual você e o seu filho sejam mais felizes? (GONZÁLEZ, 2009, p.
129); por que razão não desfruta, como mãe, dessa maravilhosa sensação de amor absoluto?
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(GONZÁLEZ, 2009, p. 111); brinquem com os vossos filhos para poderem desfrutar dessa época
parece-me um bom conselho para os pais principiantes (GONZÁLEZ, 2009, p. 216). O discurso da
obediência cega à autoridade parecia lógico para os súditos do século XIX, mas os cidadãos do
século XXI deveriam aspirar a algo mais (GONZÁLEZ, 2009, p. 175), reflete o pediatra.
A imposição de limites nas crianças também ocupa um lugar importante em seu livro. A
imposição de fronteiras aos filhos é uma técnica pedagógica popular que o doutor também analisa
no seu livro posicionando-se e discutindo a pertinência segundo sua ética de seus usos. Entre a
disjuntiva de não colocar nenhum limite e a imposição abusiva de uma multidão de regras e
fronteiras não permitidas, o pediatra coloca seu discurso novamente no questionamento dos limites
artificiosos que requer da aliança dos pais. Ele não defende que não se imponham limites. No que
insiste é na imposição de limites artificiais e artificiosos. Se a criança nos pede algo, afirma o
doutor, que não irá prejudicar a sua saúde, que não irá destruir o meio ambiente, acho que sim, que
podemos comprar, que sim, que temos tempo para conceder-lhe..., não o proibamos apenas para
marcar limites ou para que se acostume a obedecer (GONZÁLEZ, 2009, p. 169). Novamente, apela
ao direito de respeito, embora agora não dos pais e das mães, mas das opiniões e desejos das
crianças. Neste sentido, o pediatra defenderia relações de poder mais horizontais dentro do
dispositivo saber-poder praticado na pediatria, se comparamos com o modelo das relações mais
hierarquizadas e verticais da puericultura hegemónica.
Em qualquer caso, e a modo de conclusão do dito acima, a retirada desde uma posição
paternalista (da puericultura hegemónica) nas relações de poder ate uma posição não autoritária e
mais permissiva de respeito aos desejos, interesses e opiniões das pessoas envolvidas na relação
com o saber pediátrico (da puericultura ativa) faz que estas tenham a possibilidade de participar
como agentes ativos mostrando sua própria localização no dispositivo saber-poder pediátrico. Nesse
sentido, o ativismo social, associacionismo, blogs de apoio à maternidade e biosociedades cumprem
um papel essencial.
Não enanto, o dito encima não explica o dislocamento do discurso pediatrico ativo. Para
explicar a mudança no discurso pediátrico hegemónico, vamos observar e analisar o surgimento do
multiculturalismo e da perspectiva antropológica, ou seja, da entrada de abordagens multiculturais
no discurso médico pediátrico, segundo mostramos a seguir.
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4. As práticas médicas abraçam a diversidade cultural: a influência da antropologia no
discurso da puericultura ativa
Há muito que sabemos que o discurso científico faz com que o poder seja legitimado e que
este, por sua vez, institucionaliza o conhecimento (FOUCAULT, 2005). Nesse sentido, como já
vimos, o discurso hegemónico da pediatria “faz parte de um dispositivo que visa, através das mães
bem instruídas, promover biopolíticas que buscam a constituição de crianças saudáveis,
disciplinadas, inteligentes e normais, assegurando, através da medicalização das crianças e das
famílias, o controle social pela Medicina” (SANTOS, 2009, p. 180). Além disso, dito discurso
hegemónico é normalmente endereçado a mães heterossexuais, casadas, brancas, de classe média e
alta e urbanas (SANTOS, 2009, p. 7).
É bem possível que o manual Besame Mucho também seja lido majoritariamente por leitoras
deste grupo social; no entanto, as fontes científicas das quais parte, bem como suas premissas, são
bastante diferentes, pois fala de estilos de parentalidade praticados em outras culturas não
ocidentais. González, por exemplo, cita como uma de suas fontes a Human Relations Area Files
(HRAF, http://hraf.yale.edu/) (GONZÁLEZ, 2009, p. 45). Como é bem sabido, a HRAF, fundada
em 1949 na Universidade de Yale, é uma organização reconhecida internacionalmente no campo da
antropologia cultural. A missão do DHAA é incentivar e facilitar o estudo transcultural da cultura
humana, da sociedade e do comportamento no passado e no presente.
Ou seja, o manual de puericultura ativa encontra muitos de seus pontos para fundamentar-se
no que é conhecido como estudos etnopediátricos (GONZÁLEZ, 2009, p. 81).
O objetivo da etnopediatría (SMALL, 2011) é dar início ao estudo de pais, mães e filhos
através das culturas, e explorar maneiras pelas quais diferentes formas de parentalidade afetam
saúde, bem-estar e sobrevivência das crianças (SMALL, 2011). Desse modo, através da comparação
de dados transculturais e de uma visão holística dos problemas infantis, a etnopediatria evidencia o
fato de que os estilos parentais do Ocidente não são necessariamente os melhores para os bebês. E,
além disso, a biologia está continuamente mostrando que nenhum organismo está sozinho, nenhum
organismo está isolado tanto como entidade biológica como entidade cultural. A etnopediatria,
continua Meredith Small, mais do que qualquer outra ciência, hoje, abraça este ponto de vista.
O que a puericultura consegue na incorporação do discurso antropológico, estudando os
diversos estilos parentais em outras culturas, é liberar-se do seu viés ocidentalizado (universal e
objetivo). Em seu livro, Small descreve sua perplexidade quando, a partir de sua perspectiva
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norteamericana, começou a conhecer a forma em que outros bebês cresciam em outras sociedades
supostamente não guiadas por valores ocidentais: os bebês eram levados com sling todo o dia,
dormiam com seus pais na mesma cama, eram amamentados “à demanda” durante anos, etc., de
modo que, em muitas dessas culturas, as crianças não choravam tão frequentemente como nos
Estados Unidos, nem desenvolviam tão frequentemente as temidas cólicas do lactante. Estas
evidências contribuem para uma perspectiva completamente diferente de como se desenvolviam as
crianças quando o modo de criação seguia os conselhos do famoso Dr. Spock (autor norteamericano do famoso libro “The Common Sense Book of Baby and Child Care” (SPOCK, 1946);
livro que teve sua primeira publicação em julho de 1946 e que foi traduzido para cerca de 40
idiomas; e, em 1998, já tinha vendido mais de 50 milhões de cópias). Um pediatra, o Dr. Spock que,
como é bem sabido, instruiu durante várias décadas a forma de criar as crianças nos Estados Unidos
e que, poderíamos dizer, representa, dado o momento histórico no qual exerce sua maior influência
e as premissas psicanalistas em que se baseia, o que estamos nomeando como puericultura
hegemónica. Pois bem, como dizíamos, uma vez Margaret Mead escreveu que os adolescentes de
Samoa, com a exceção de alguns casos, diferentemente do que ocorria e ocorre no Ocidente,
durante sua adolescência, não apresentavam normalmente um período de crise ou de estresse
(MEAD, 1928). Por isso, ela se perguntava se não seria a cultura ocidental a que estaria
favorecendo o surgimento nos jovens de tal período de crise, aparentemente inexistente em outras
culturas. E, assim, é por isso que Meredith Small se pergunta se não se poderia então estar
colocando os bebês em condições de crescimento que fariam com que a primeira infância fosse já
de por si, dada a prática médica ocidental, um período intrinsecamente de crise.
González se apoia nos estudos etnopediátricos para questionar até que ponto a forma
existente de criação dos bebês hoje em dia está atravessada por preconceitos culturais: por exemplo,
para este “el colecho no es una consecuencia de la pobreza o la falta de habitaciones, sino que se
considera fundamental para la correcta educación del niño” (GONZÁLEZ, 2009, p. 81); quer
dizer, o co-leito, ou o arranjo de dormir próximo de alguém, não é uma consequência da pobreza ou
da falta de quartos, considera-se essencial para a educação adequada da criança. Ele lê, portanto, de
forma entusiasta os estudos etnopediátricos, e se fascina ao comparar os diversos estilos parenterais
de outras culturas: “es apasionante comparar cómo se cría a los niños en distintas culturas”
(GONZÁLEZ, 2009, p. 81), destacando a negativa influência que tiveram no passado alguns
conselhos médicos. Concretamente, suas críticas ao discurso médico padrão são mais evidentes, por
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exemplo, quanto a questões associadas ao aleitamento, especialmente no que se refere à rigidez dos
horários para amamentar: “fueron médicos los que recomendaron hace un siglo dar el pecho diez
minutos cada cuatro horas, lo que llevó al fracaso casi total de la lactancia” (GONZÁLEZ, 2009,
p. 41); ao sonho: “¡dormir solo! El gran objetivo de la puericultura del siglo XX” (GONZÁLEZ,
2009, p. 76). Ele demanda, em fim, como meta uma “puericultura ética”, e considera que as
sociedades ocidentais não tratam as crianças com o mesmo respeito com que tratam os adultos:
“Cuando hablamos de un adulto, las consideraciones éticas son siempre primordiales y tienen
prioridad sobre la eficacia o la utilidad” (GONZÁLEZ, 2009, p. 38).
5. Puericultura hegemónica (conhecimento objetivo mecânico, universal, disciplinar e
normativo) vs. puericultura ativa (conhecimento objetivo historicamente e culturalmente
localizado)
Como vimos, o discurso pediátrico da puericultura hegemónica é guiado por práticas
epistemológicas ligadas à normatividade, a ordem e a disciplina. Essas virtudes levam a práticas que
fomentam um estilo paternal paternalista com base na independência. Este quadro discursivo
pertence a uma visão colonizadora e dominante do objeto do conhecimento (principalmente da
criança ou da díade mãe-criança); uma objetividade médica universal e ubíqua que produz corpos
passivos de filhos, filhas, mães e pais. As praticas médicas guiadas por semelhante proceder
coisificam o objeto médico em questão, coisificam o menor, o cuidador e a díade mãe-criança, sem
reconhecer o seu papel ativo.
Por outro lado, no discurso pediátrico da puericultura ativa, o olhar pediátrico é um olhar
parcial que parte de virtudes epistêmicas associadas a uma atenção específica da rede de
relacionamentos da criança: localiza o menor no seu tecido cotidiano e sociocultural. E
especificamente, em vez de buscar a normalidade dos universais, promove a atenção pelas diversas
sensibilidades multiculturais. O objetivo, nesse sentido, é tender a praticar uma forma de
conhecimento vinculado a um conhecimento situado (HARAWAY, 1988); ou seja, um
conhecimento parcial a partir de uma posição situada, que parte da subjetividade em si e de seu
contexto cultural, percebendo suas desigualdades. Portanto, é essencial que o si mesmo científico ou
médico evite coisificar, o que só é possível de se fazer com os objetos de conhecimento atores
(geralmente, mãe, filho, relação mãe-filho). Ou seja, considerando a estes agentes mesmos
(HARAWAY, 1988, p. 592); o que implica um respeito por suas posições e seus desejos. Por isso é
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que consideramos que chamar puericultura ativa a esta forma de praticar este saber médico é algo
acertado: porque aqueles que formam parte desta forma de saber são agentes ativos: o pediatra que
toma uma postura ética e os cuidadores que, às vezes, praticam o ativismo social. Quer dizer, no
discurso de puericultura ativa os objetos de conhecimento sejam considerados atores e agentes, o
que tem correspondência com algumas formas concretas ativas de praticar a maternidade hoje
(ativismo social).
Além disso, uma virtude epistémica ligada a esta pratica é a compreensão holística (não
reducionista, como sucedia na objetividade mecânica): todos tentam entender os problemas fazendo
o esforço de compreender as outras posições implicadas (incluindo o respeito às distintas fases de
maduração das crianças). Este conhecimento situado na puericultura ativa achamos que pode estar
produzindo um modelo baseado em valores interdependentes, inversamente ao que a puericultura
hegemónica produzia, por sugerir que se alentasse a partir de um modelo baseado na independência.
Assim, no discurso médico surgem, portanto, uma série de virtudes epistêmicas relacionadas com
valores interdependentes como a cooperação (equipes de trabalho interdisciplinar de médicos,
psicólogos, sociólogos, etc.), parceria (colaboração com as associações ativistas), envolvimento nas
instituições políticas, etc.
Embora a maternidade hegemónica tenha evoluído principalmente na esfera privada, na
atualidade a maternidade ativa busca muitas vezes a exposição, ou seja, ganhar alguma visibilidade,
se colocando como uma arma de protesto ou de empoderamento das mulheres, praticando-se e
aprendendo-se, muitas vezes, no domínio público. Por exemplo, nas reuniões dos grupos de apoio
duma maternidade ativa, promove-se uma atitude positiva, ativa e consciente da maternidade. Lá
ocorre uma existência comunal, uma forma de identificação coletiva, nas quais as mães encontramse para partilhar as suas experiências e apoiar umas às outras. Essa atividade de comunidade
responde ao modelo de associação chamado 'biosociedade'; um termo cunhado por Paul Rabinow e
que abrange a formação de comunidades que compartilham alguma preocupação relacionada a um
problema de saúde que promove alguma ou algumas formas de ativismo cidadão, como foi em seu
tempo, por conta da sua exemplaridade, o ativismo que surgiu na luta contra a AIDS (ROSE, 2007,
p. 23). Profissionais da saúde estão também envolvidos nas biosociedades, de tal forma que,
matronas, enfermeiras, pediatras, etc. participam com as mães num diálogo horizontal não
paternalista e pró-ativo. Aqui, a atividade desenvolvida tende a um conhecimento situado, prático e
localizado nas necessidades concretas de cada comunidade.
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Portanto, à guisa de conclusão, podemos afirmar que a puericultura hegemónica está
baseada numa prática cientifica que promove virtudes epistêmicas associadas à disciplina, à vontade
do controle de todas as condições, à tendência acreditar em valores universais e eternos, e que
persegue, além disso, um conhecimento objetivo que coisifica o paciente (e a mãe, no caso) num
sujeito atomizado, não corporizado. Em resumo: a atitude do pediatra, especialmente frente ao seu
objeto de conhecimento (criança, díade bebê-cuidador, díade bebê-mãe), é paternalista e
controladora, o que causa uma forte rejeição dos movimentos da teoria feminista.
As virtudes epistêmicas associadas à pratica da puericultura ativa, inversamente, ficariam
dentro do que Donna Haraway chama de um conhecimento situado. Ou seja, a retirada de posições
paternalistas do médico até atitudes integradoras mais respeitosas com as condições concretas e
reais do bebê, díades, etc. O saber, nesse caso fica localizado. Além disso, desaparece a arrogância
positivista e cientificista da pretensão universal, colonizadora – isso porque ela é deslocada: o
pediatra deve reconhecer com humildade as limitações do seu saber que já não é universal nem
comum para todas as culturas. Além disso, o que está se revelando a ele é a infinita diversidade de
cada contexto sociocultural. As virtudes epistêmicas já não portam mais o viés colonizador que as
definiam. Nesse sentido, agora o pediatra precisa praticar relações de poder mais horizontais, nas
quais as opiniões da criança, das mães, dos agentes sociais, dos agentes públicos, etc. sejam
escutadas atentamente e respeitadas. O pediatra, neste caso, pratica um saber mais democratizado.
A objetividade praticada pelo pediatra se afasta da objetividade ligada aos valores
mecanicistas para ir deslocando-se até pressupostos relacionados com uma objetividade
corporalizada (embodied objectivity) (HARAWAY, 1988, p. 581). E as virtudes são agora as
virtudes do imanente e do perdurável, não eternas como no caso da puericultura hegemónica.
As virtudes epistêmicas são por isso ativas, porque obrigam ao médico a tomar partido ou
escolher entre umas ou outras posições éticas e morais. Ao mesmo tempo, as díades são também
agentes ativos que ocupam uma localização determinada em defesa de determinados direitos que
acham legítimos. A localização, finalmente, pretende situar-se entre todo totalitarismo e todo
relativismo (HARAWAY, 1988, p. 584).
A ciência individualista da puericultura hegemónica passa o testemunho a uma ciência das
relações, da interdependência, das comunidades (HARAWAY, 1988, p. 590). O sujeito cientifico já
não fica só frente ao quadro do saber, mas interconectado com as relações complexas de seu meio
ambiente e social.
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6. Agradecimentos
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo financiamento
deste trabalho.
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praticas médicas e subjetividades