O lugar da criança na família: criança-rei ou criança-vítima?
Pascal Reuillard
Psicólogo, psicoterapeuta
Instituto Cyro Martins
OBS.: O texto na entrega encontra-se na revista da CEAPIA, nº 19, 2010.
Ao longo dos séculos, a família sofreu profundas transformações. Construída na
antiguidade em torno de um pai monarca, será preciso esperar muitos anos até que a
mulher e, depois, a criança possam reivindicar um lugar legítimo. Isso foi ainda mais
difícil para a criança, considerada por muito tempo como um sujeito inapto, incapaz de
contribuir para o bom andamento da sociedade. Hoje em dia, embora esse tipo de
discurso não tenha mais razão de ser, ele foi progressivamente substituído por outro,
que também provoca indagações: o discurso do “tudo [e imediatamente] para a criança”,
ou seja, seu bem-estar a qualquer preço. Essa apologia da criança ideal e idealizada deu
lugar pouco a pouco ao surgimento de um fenômeno hoje amplamente difundido, a
“criança-rei”, para quem o princípio de prazer parece primar sobre o princípio de
realidade.. Entretanto, ninguém é rei sem ter sido escolhido. Qual é a posição dos pais?
A criança privilegiada é afinal uma criança-rei ou uma criança-vítima de pais-reis?
A família e a criança: breve histórico
Poder paterno absoluto. Na Grécia antiga, o chefe de família tem todos os direitos
sobre a família. Em relação à criança, é ele quem decide sobre sua vida ou sua morte.
Em Roma, esse poder paterno persista mas em contrapartida os sentimentos acerca da
criança são marcados por ambivalência. Se, de um lado, ela é vista como um ser
incompetente (infans), que não fala, não caminha, não é autônomo, de outro, não se
hesita em lhe atribuir uma certa inocência e uma grande pureza. A criança medieval
parece ter herdado essa visão dupla da antiguidade. Santo Agostinho insistiu muito
sobre as imperfeições e as incapacidades da criança. Mas, paralelamente, evidenciava-se
a imagem positiva da pureza e da inocência infantil, ainda mais presente com a
progressão do cristianismo.
Esboço de um status. A partir do século XIX, a tríade pai/mãe/filho se emancipa e se
torna um modelo social com poderosos laços. Nesse novo modelo familiar burguês,
mais centrado no casal e nos filhos, o pai continua, entretanto, a conduzir os rumos da
família. Porém essa nova família começa a limitar os nascimentos para evitar a divisão
do capital adquirido entre vários herdeiros. O número de crianças como fonte de riqueza
perde sua força nas classes abastadas (Esse novo status não reflete, todavia, a sociedade
como um todo). Com a escalada do individualismo e da livre escolha do cônjuge, o
casamento se privatiza. O casamento arranjado cede lugar ao casamento por amor.
Torna-se um contrato livremente consentido entre um homem e uma mulher, uma
história de casal e de sexo, mas não sem riscos: baseando-se agora na afetividade, ele
mostra que o desejo não é eterno. A perda de seu caráter sagrado vai levar a um
aumento dos divórcios. Privilegiando a vida privada e conjugal, os pais começam a se
preocupar mais com a educação dos filhos. Até aquele momento vista como um adulto
em miniatura, começa-se a descobrir a criança como um sujeito em si. A partir da
metade do século XX, várias mudanças modificaram a estrutura familiar e, portanto, o
lugar da criança. Um dos fatos mais marcantes foi o advento da contracepção. Outrora
subproduto da atividade sexual, a criança passou a ser seu produto direto. Segundo A.
Naouri (2005), a criança se teria tornado, antes, o resultado de uma reflexão intelectual,
de um controle intelectual da procriação. A criança é desejada em um momento preciso,
não para a sociedade, mas para si mesmo. É um filho programado que deve chegar no
momento em que é esperado. Nos anos 1960-70, Françoise Dolto insiste que o bebê é
uma “pequena” pessoa, um sujeito em devir que se deve educar, socializar e que
permanece dependente dos outros.
Crianças de hoje em dia, todas crianças-reis? Na verdade, todos nós fomos criançasreis. (Quase) todos nós tivemos de renunciar a isso. Parece ser essa renúncia que causa
problemas hoje em dia. Na Psicanálise, a criança kleiniana abalou a imagem idealizada
veiculada sobre o bebê. Melanie Klein nos mostrou um bebê às voltas com pulsões
sádicas, movido por tendências destruidoras em relação ao corpo materno. Para se
tornar humano, esse monstrinho deve contar com o amor e a atenção de seus pais, em
todas as fases do desenvolvimento psicológico, e com a cultura e a civilização.
Winnicott nos oferece uma visão um pouco menos “dramática” do que Melanie Klein.
Para ele, a criança não busca exclusivamente a satisfação pulsional interna do objeto,
mas também a realidade do contato com a cuidadora. Quando vem ao mundo, o bebê se
encontra em uma situação de dependência absoluta de sua mãe. Respondendo às suas
necessidades, esta lhe permite experimentar (ilusoriamente) a onipotência. Quando
começa a caminhar, a criança parte à descoberta dos objetos e das pessoas que a cercam.
À preensão se acrescentam as coisas novas que ela vê e não conhece. Normalmente, os
pais entram em cena para impor as primeiras proibições. A criança só é responsável por
seu desejo e vai tentar impô-lo. Inicia-se então uma guerra pelo “lugar”. Observemos
igualmente que a criança consegue fazer ‘não’ com a cabeça bem antes de conseguir
dizer e fazer ‘sim’, o que mostra que o ‘não’ marca o início da consciência de seu
próprio desejo diante daquele do adulto. A onipotência faz parte, portanto, do
desenvolvimento da criança. Para reconhecer a si mesma como um outro, ela deve
experimentar precocemente a frustração e o aprendizado dos limites. Caso contrário,
seu narcisismo corre o risco de entravar esse reconhecimento do outro e de si mesma.
Não há dúvida de que as crianças de hoje em dia são freqüentemente hipervalorizadas,
hiperestimuladas, colocadas em um pedestal. Todavia, abordar a noção de criança-rei
requer compreendê-la através da relação criança-adulto. No momento atual, a criança
tornou-se o pivô do edifício familiar. Desinstitucionalizando-se, a família privilegiou o
laço geracional em detrimento do laço conjugal. Paralelamente, os efeitos da
democratização e da igualdade entre adultos e crianças se fazem sentir. Sobrecarregados
pelas preocupações da vida profissional e social, os pais parecem desejar evitar um
vínculo conflituoso com os filhos. Antes mesmo que a criança venha ao mundo, o medo
dos genitores não diz mais somente respeito a seu estado (ela será normal? Terá boa
saúde?), mas também ao estado do mundo no qual eles a fazem entrar.
Projeção narcísica. Ainda que permaneça um prolongamento narcísico dos pais, a
criança também é o depositário de seus aspectos regressivos. De fato, ela carrega os pais
em si, mas não somente: também carrega a infância de seus pais. Aliás, os problemas
educativos dos pais com freqüência despertam conflitos antigos não resolvidos ou mal
resolvidos com seus próprios pais. Eles reativam os aspectos positivos e/ou negativos
dos modelos relacionais.
Chegar ao trono, mas a que preço? A hipermodernidade obriga a criança a mostrar
desempenho. É programada cada vez mais cedo para o sucesso escolar e social. E essa
precocidade se tornou quase uma norma, pelo menos uma aspiração. Provam isso as
agendas, na maioria das vezes, sobrecarregadas de atividades. Há um descompasso, pois
dela se exige que seja adulta antes do tempo, mas permanecendo criança. Com a
precarização das fronteiras, fica difícil encontrar o próprio lugar. O período de latência
tende a se reduzir cada vez mais, precipitando a criança num mundo adulto cujas
solicitações ultrapassam suas capacidades psíquicas reais. A divisão habitual das idades
de vida se modificou: adolescência prolongada, puberdade cada vez mais precoce,
procriação mais tardia. Os adultos aceitam cada vez menos o curso natural do
envelhecimento, como mostra a explosão dos tratamentos estéticos, que permitem
principalmente às mulheres manter a juventude eterna... Reflexo do adulto
contemporâneo, a criança busca constantemente o prazer imediato. Ora, “em muitos
aspectos, o adulto contemporâneo se recusa a se submeter à lei humana da
temporalidade, da mortalidade, da diferença dos sexos e das gerações. Uma criança-rei,
de certo modo...” (Kroff-Sausse,). Em suma, com quem se identificar se os adultos se
parecem cada vez mais com as crianças? Confrontadas com as angústias temporais de
seus pais, as crianças reivindicam por sua vez uma felicidade imediata, constante. Por
vezes, elas se tornam insensíveis ao desejo para privilegiar o querer. Surgem então as
dificuldades... Apoiada nessas conquistas, consegue culpabilizar com mais facilidade
aqueles que a cercam. Não é raro ouvir pais dizendo a seu filho: “tu não podes... está
bem?”. O problema é que esse “está bem” minimiza a determinação do adulto a se
impor. Tem-se tendência a favorecer a comunicação, o que, em si, representa um
progresso inegável. Mas, para evitar o conflito, tende-se a privilegiar uma verbalização
excessiva. No entanto, justificar-se demais para uma criança pode equivaler a inverter a
ordem geracional, fazendo dela juiz de si mesma. Mais uma vez, isso significa esquecer
que a criança não passa de uma “pequena” pessoa, que deve fazer o duro exercício da
violência e da ambivalência constitutivas. Ambivalência porque ela é a criança
maravilhosa, idealizada e, ao mesmo tempo, um ser inquietante que, ao nascer, nos
remete forçosamente à nossa própria morte. Sem dúvida devemos aceitar que não
podemos ser senão “pais suficientemente bons”, divididos entre a vontade de agir
corretamente e o fracasso inerente a uma tarefa tão complicada.
Considerações finais Então, o que fazer?, Voltar aos métodos antigos, restabelecer a
punição? Não, certamente não. A urgência se encontraria mais no lugar que lhe
atribuímos, percebendo-a como um sujeito capaz de enfrentar as intempéries da vida do
mesmo modo que os adultos. Superinvestida, a criança tende a perder a liberdade de ser
apenas uma criança, um sujeito em devir. Ela precisa que imponhamos limites, mas sem
cair na armadilha da culpa. Conforme a posição assumida pelos pais durante o
desenvolvimento da criança, a magia do conto de fadas não precisa desaparecer sob os
dentes do lobo malvado. Para ver a criança como o pequeno príncipe que ela
naturalmente é aos nossos olhos, não precisamos fazer dela um monarca. O perigo surge
quando ela se torna uma “criança-vítima”, amputada das condições psíquicas
necessárias à manutenção de seu lugar na família e na sociedade.
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