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Visão e o cheiro dos mortos: uma experiência
etnográfica no Instituto Médico-Legal
Flavia Medeiros
Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.
DOI
10.11606/issn.2316-9133.v23i23p77-89
resumo Neste artigo irei apresentar e analisar
duas circunstâncias diferentes da “experiência etnográfica” que obtive ao realizar trabalho de campo no
Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro (IML).
A “primeira impressão” ao estar em contato com o
campo e ver corpos mortos; e a “experiência reveladora”, que ocorreu quando a pesquisa já estava em
andamento, e me demonstrou como o cheiro é um
elemento constitutivo das relações dos que circulam
cotidianamente entres os corredores e salas do IML.
Para tanto, acionando a percepção de dois sentidos
humanos – a visão e o olfato –, analiso como no
contexto pesquisado estes são ferramentas daqueles
cuja principal atividade é a manipulação de corpos
mortos (médicos legistas, papiloscopistas legistas e
técnicos de necrópsia). Discuto ainda como, ao realizar trabalho de campo entre mortos, identifiquei
as percepções visuais e olfativas como ferramentas
metodológicas centrais para a reflexão da “experiência etnográfica.”
palavras-chave Etnografia; Mortos; Olfato;
Visão; Instituto Médico-Legal.
Sight and smell of corpses: an ethnographic
experience in the Forensic Medicine Institute
abstract In this article I will present and
analyze two different circumstances in “ethnographic experience” that got me while performing fieldwork in the Medical-Legal Institute in
Rio de Janeiro. The “first impression” being in
touch with the field and see the dead bodies; and
“revelatory experience” that occurred when the
research was already underway , and showed me
how the smell is a constitutive element of the relationship among people that circulate daily in
the hallways and rooms of the IML. For this, I
use my perception of two human senses: vision
and smell. And I analyze them as tools that I mobilized for conducting fieldwork with informants
whose main activity was handling with dead bodies. Thus, I present how conducting fieldwork
among the dead I have identified my visual and
olfactory perceptions as central methodological tools for reflection for my ethnographic
experience.
keywords Ethnography; Dead; Smell; Vision;
Medical Legal Institute.
Introdução
Na Antropologia, diversos trabalhos apresentam como a percepção e posterior classificação
dos sentidos humanos, e também os possíveis
usos metafóricos destes, conformam um importante objeto para a análise etnográfica (cf.
CLASSEN, 1993, 1997; BUBANDT, 1998;
VIVEIROS DE CASTRO, 2002; HOWES,
2004; OVERING, 2006; RENOLDI, 2006).
Ao acessar e compreender as experiências de
ser e habitar o mundo, na continuidade e diferenças construídas culturalmente entre o
corpo e a mente (INGOLD, 2000), aciona-se
a percepção dos sentidos humanos, e a experiência advinda daí passa a compor a etnografia
cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014
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e elucidar formas possíveis de relação com o
meio ambiente e o mundo cotidiano.
Construído pela “prática etnográfica”, que
tem no olhar sua principal ferramenta, esse conhecimento sobre o outro é fruto da observação
planejada e continuada (cf. MAGNANI, 2009,
p. 151). Na realização contínua desse exercício,
porém, a etnografia também passa a ser vislumbrada como uma experiência através da qual o
pesquisador não apenas acessa e compreende
os elementos acionados pelos interlocutores,
como também é movido, durante o trabalho
de campo, a perceber a partir de seus próprios
meios, do seu “organismo/pessoa”, aquele meio
ambiente no qual está imerso, acessando assim
um novo mundo para si (INGOLD, 2000,
p.153). E, nesta direção, constitui a “experiência etnográfica”, que desenvolve “tipos não-visuais de percepção”, tendo o cheiro como uma
de suas alternativas para abranger os diferentes
estímulos provocados na realização do trabalho
de campo (BUBANDT, 1998, p. 49).
Neste artigo tenho como objetivo refletir acerca da minha “experiência etnográfica”, durante o
trabalho de campo1 que realizei no Instituto
Médico-Legal do Rio de Janeiro,2 analisando
aquele ambiente a partir de duas formas de percepção: a visão e o olfato. Para cada uma delas,
destacarei uma circunstância distinta da “experi-
ência etnográfica” que obtive. Na primeira, o
olhar, ferramenta de percepção tradicional da
antropologia, se fez central e é apresentado
por meio da “primeira impressão” ao estar em
contato com o campo e ver corpos humanos
sem vida. A outra circunstância descrita tem o
cheiro como forma de percepção que, em uma
“experiência reveladora”, se demonstrou como
um elemento constitutivo das relações dos que
circulam cotidianamente entres os corredores e
salas do IML.
Ademais, minhas percepções, acionadas como
ferramentas que mobilizei para a realização do
trabalho de campo, visão e cheiro foram a mim
apresentadas como habilidades desenvolvidas por
médicos legistas, papiloscopistas e técnicos de necrópsia que, naquele contexto, tinham como principal atividade a manipulação de corpos mortos.
Neste sentido, ao refletir sobre questões oriundas da
realização do trabalho de campo entre mortos, demonstrarei como percepções sensoriais se apresentam como ferramentas metodológicas na reflexão da
experiência etnográfica, ao mesmo tempo em que
foram um elemento relevante na comunicação que
estabeleci com meus interlocutores.
A seguir, o artigo está organizado da seguinte
forma: primeiramente cotejo o trabalho de campo
realizado no IML com aqueles que manipulavam
corpos mortos. Em seguida, apresento as representações e opiniões de colegas, amigos e familiares
sobre os mortos e o IML, e como essas me permitiram compreender as relações de “pureza” e “perigo” (DOUGLAS, 2010) socialmente estabelecidas
em relação aos mortos. Posteriormente, descrevo a
minha “primeira impressão” (MAGNANI, 2009)
no trabalho de campo e demonstro como o ver e
o estar em contato com mortos permitiram-me
acessar as “intensidades específicas”, ou seja, os
“afetos [...] que geralmente não são significáveis” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 159) e que,
por sua vez, tornaram possível a naturalização
da relação de ver e estar em contato com os cadáveres. A seguir, descrevo a “experiência reveladora”
(MAGNANI, 2009) na qual o cheiro de um cadáver específico me alertou para como o odor que preenchia o espaço e impregnava os corpos auxiliava
na classificação dos cadáveres, na organização do
espaço e marcava as relações no meio ambiente.
Além disso, demonstro como para aqueles que têm
a habilidade do faro,3 o olfato é ferramenta de organização nas relações no tempo e no espaço. Por
fim, reflito sobre como essa experiência etnográfica possibilitou compreender aspectos referentes ao
ambiente por mim observado e de qual forma uma
etnografia que leve em conta a multiplicidade das
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percepções é o meio que o antropólogo possui de
construir conhecimento sobre o outro, tanto quanto (re)construir-se após a passagem pelo trabalho de
campo.
O Instituto Médico-Legal
O IML é onde corpos sem vida encontram
a morte e, por meio de técnicas da medicina-legal e de procedimentos burocráticos e policiais,
são definidos como mortos, sendo a morte
institucionalizada. A partir dos processos de
institucionalização e distanciamento da morte,
“tudo se passa na cidade como se já ninguém
morresse” (ARIÈS, 1988, p. 310), mas, no
IML, a caixa preta das vítimas fatais da cidade
do Rio de Janeiro, tudo se passa como se, na
cidade, todo mundo estivesse, a todo tempo,
morrendo.
O Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto,
nome oficial do IML do Rio de Janeiro, está
inscrito na estrutura da Secretaria de Estado de
Segurança, subordinado diretamente à chefia
da Polícia Civil, no grupo de instituições denominado Polícia Técnico-Científica. Além
do IML, compõem esse grupo: o Instituto
de Criminalística Carlos Éboli (ICCE);
o Instituto de Identificação Félix Pacheco
(IIFP); o Instituto de Perícias e Pesquisa
em Genéticas Forense (IPPGF); e os Postos
Regionais de Polícia Técnico-Científica.
O IML está localizado na Leopoldina, região central da cidade do Rio de Janeiro, e funciona num prédio de cinco andares que fora
construído, no ano de 2009, com a finalidade
de abrigar esse instituto. No IML são realizadas perícias médico-legais em corpos humanos
com e sem vida. Tais procedimentos visam à
construção de documentos públicos que permitam estabelecer uma verdade médico-legal
sobre os corpos, envolvidos ocasionalmente em
algum tipo de ocorrência policial.
No que se refere aos corpos humanos sem
vida, são executados exames necroscópicos que
possibilitam identificar a causa mortis, ou melhor, a defini-la em termos médico-legais de
mortes violentas ou daquelas que não tenham
diagnóstico médico conclusivo. Assim, vítimas fatais de acidentes de trânsito; projéteis
por arma de fogo (PAF); perfuração por arma
branca (PAB); incêndios; afogamentos; atropelamento; desabamentos; envenenamento;
suicídios; acidentes em geral; ossadas; partes de
corpos humanos – denominados despojos; cadáveres encontrados em via pública, residência
ou estabelecimento comercial; fetos e alguns
indivíduos que morrem em estabelecimentos
de saúde têm seus corpos encaminhados ao
IML. São esses cadáveres que ocupam as salas
e circulam entre os corredores do Serviço de
Necrópsia do IML. Lá a morte não está escondida, ela é um “acontecimento” (SAHLINS,
1990), pois faz parte do cotidiano. Numa sociedade onde a morte não é bem-vinda e os
mortos são continua, ritual e burocraticamente
expulsos de suas relações sociais, pode-se afirmar que o IML é o esconderijo do “tabu da
morte” (RODRIGUES, 2006).
Inicialmente, meu objetivo era compreender os
procedimentos realizados em relação aos cadáveres,
bem como identificar as lógicas e os valores morais
acionados pelos funcionários dessa instituição no trabalho cotidiano com corpos sem vida. Assim, durante o trabalho de campo, observei como uma série
de procedimentos referentes aos mortos eram
realizados com a finalidade de produzir a identificação civil e estabelecer a causa mortis de um cadáver por meio dos exames médico-legais. Meus
interlocutores se referiam a este conjunto de
procedimentos, que denominei de “construção
institucional de mortos” (MEDEIROS, 2012),
como “matar o morto”. Como demonstrarei ao
longo do artigo, tendo como referência direta o
corpo sem vida, tais procedimentos construíam
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classificações sobre os mortos, projetando neles
ações e ativando suas relações sociais.
pesquisar num lugar sujo, contaminado, fedido,
carregado?
Quem vê, nem acredita que ela possa
fazer um trabalho de campo desses!
Dente de alho
Ao contar a colegas, familiares e até professores no programa de pós-graduação onde seria meu
trabalho de campo, sempre recebia reações,
fossem elas de surpresa, nojo ou preocupação.
Alguns diziam: você é maluca!, outros achavam
corajoso, maneiro, mórbido, sádico, interessante.
Não me recordo de alguém que tenha ficado
apático. Ninguém disfarçava surpresa, nojo, admiração ou preocupação todas as vezes que eu falava
sobre minha pesquisa.
Muitas pessoas não viam em mim alguém que
pudesse trabalhar no IML. Nossa, tão boniti-
nha, tão novinha, tão limpinha. Quem vê, nem
acredita que ela possa fazer um trabalho desses!,
me disse uma professora durante uma aula
de Métodos em Antropologia. Quando vista
como antropóloga fazendo pesquisa no IML, era
atingida pelas preocupações dos outros, em
especial preocupações de caráter emocional e
espiritual, como demonstro adiante.
Após explicitar as motivações e explicar
como construía as questões da pesquisa, as
pessoas demonstravam interesse. Além de fazerem muitas perguntas em relação ao trabalho,
lembravam-se de histórias pessoais ou que ouviram contar a respeito do IML. Muitas pessoas também me indicavam filmes e livros que
remetiam à morte e aos mortos.
No entanto, a reação das pessoas colocava
algumas questões a mim: por que tantas pessoas, apesar de curiosas e de terem algum tipo
de conhecimento sobre a morte e os mortos,
repudiavam a priori o Instituto Médico-Legal?
Por que o fato de uma antropóloga realizar
trabalho de campo com mortos era algo tão
surpreendente? Por que, para muitos, escolhi
Diversas dicas e conselhos me foram apresentados e, em certa medida, me preocupei
com eles. Uma amiga umbandista, ao saber de
minha intenção de pesquisar no IML, recomendou-me o uso de um dente de alho junto
ao peito, pois aquele é um lugar muito pesado.
Eu também deveria tomar banhos especiais –
por exemplo, com sabão de coco antes de ir, e
com sal grosso ao voltar para casa. Os banhos,
sempre do pescoço para baixo, e o dente de
alho funcionariam como uma proteção para as
energias ruins com as quais eu entraria em contato ao também circular naquele espaço. “No
IML as pessoas morreram com muito sofrimento,
seus espíritos ainda não estão tranquilos e ficam
procurando alguém vulnerável para ocupar”, me
explicou.
Muitos poderiam achar esse procedimento
de banhos e dente de alho uma bobagem; outros, no entanto, creem nele e não deixariam
de fazê-lo. Investindo em minha “experiência
etnográfica”, optei pela combinação das duas e,
apesar de achar que poderia ser uma bobagem,
o fiz numa das vezes que fui ao IML. Não sei
se pela crença no ritual ou por acreditar em minha amiga, mas o dente de alho foi comigo ao
IML simplesmente para não ter na consciência
o peso de não carregá-lo.
Como nos apresenta Mary Douglas (2010),
qualquer noção de impureza se relaciona diretamente a determinado sistema de crenças que
se propõe a organizar o mundo a partir de um
sistema de classificação ideal. Ao tomar banho
e colocar dente de alho no peito antes de entrar em contato com os mortos, expressei uma
tentativa de me purificar e proteger-me, afastando os maus espíritos que por lá circulavam.
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Dessa forma, eu mesma reafirmava esse sistema de crenças e reproduzia as representações
de nojo e contaminação em relação à morte e
aos mortos.
Quanto à visão oposta – de que o ritual primitivo nada tem em comum com nossas ideias de
limpeza – lastimo por ser igualmente prejudicial
ao entendimento do ritual. Nesta visão, nossos
atos de lavar, escovar, isolar e desinfetar, têm somente uma semelhança superficial com purificações rituais. Nossas práticas são solidamente
baseadas em higiene; as deles são simbólicas:
nós matamos germes; eles afastam espíritos.
(DOUGLAS, 2010, p. 47) Não é que os “primitivos” apresentem aspectos apenas simbólicos ao que se refere à
sujeira, enquanto “nós” – “ocidentais” e “modernos” – e “nossas ideias de sujeira” se refiram
ao caráter higiênico (DOUGLAS, 2010, p.
49).4 O que é “socialmente mal visto” em nossa
sociedade não é o IML, mas a própria ideia da
morte que o IML e os mortos trazem. Os mortos são representantes da desordem nessa classificação sistemática, e o IML é o lugar onde
os mortos são manipulados e as técnicas sobre
estes são exercidas.
Portanto, o que se expressa pelas reações
e impressões que descrevi pode ser pensado
como repúdio e desejo de distanciamento por
parte daqueles cuja noção não admite a morte
como parte da vida. “Resumindo, nosso comportamento de poluição é a reação que condena
qualquer objeto ou ideia capaz de confundir ou
contradizer classificações ideais” (DOUGLAS,
2010, p. 51).
Estando lá: “primeira impressão”
Deixando de lado as impressões e representações sobre o IML, passei a me focar em
como seria quando eu estivesse no trabalho de
campo. Sabia que naquela instituição há uma
grande diversidade de estados do corpo. Não
seriam apenas corpos de pessoas inertes como
eu já havia visto5. mas também ossadas, carbonizados, despojos, putrefatos, baleados, corpos
com dimensões e formas alteradas etc. As impressões de professores, colegas, amigos e a fala
dos meus interlocutores reforçavam que o IML
era reconhecidamente o espaço dos mortos e
da morte.
Ao se referir ao afeto, a antropóloga
Favret-Saada (2005) apresenta uma nova forma de se relacionar com o trabalho de campo
na qual ao “ser afetado”, o antropólogo permite se expor à dimensão do outro, ao afeto
dos seus interlocutores, enfim, a se submeter
à “experiência etnográfica”. Durante todo o
tempo que estive fazendo trabalho de campo no IML, os policiais buscavam me ensinar
como olhar os corpos e explicitavam sua compreensão acerca das relações de distanciamento naturalmente tomadas diante dos mortos e
da morte. Na minha pesquisa, foi a partir da
experiência cotidiana de meus interlocutores
com os cadáveres que eu pude experimentar
como era o ver e o estar em contato com os
cadáveres.
Desde a “primeira impressão” foi assim.
Vinte e sete de dezembro era a data que havia
marcado com o papiloscopista que se disponibilizou a me auxiliar no início da pesquisa.
Cheguei ao IML no horário marcado e, após
passar pelo balcão, fui direto a sua sala. Lá,
ele me perguntou se eu queria ver os mortos,
ao que respondi que não era uma questão de
querer, mas que poderia vê-los, sim. Naquela
ocasião, ele havia combinado que iria me apresentar a estrutura do prédio do IML, e com a
positividade de minha resposta, saímos pela
entrada principal, passando pelo pátio – que
também serve de estacionamento – e seguimos
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pelos fundos do prédio, onde estava a porta
pela qual os corpos entravam no instituto. Ao
invés de fazer o percurso dos vivos, o papiloscopista optou por me mostrar o IML a partir do
percurso feito pelos mortos.
Assim que subimos a rampa, havia o cadáver de uma senhora de aproximadamente 90
num caixão. Não me assustei, pois já esperava ver um morto e, talvez, porque, depois de
tantos meses ouvindo histórias e absorvendo representações, esperasse por “algo pior”.
Contudo a lembrança daquele corpo franzino e
encolhido com a pele já num tom esverdeado,
mal encaixado num caixão, por muito tempo
foi facilmente acessada em minha mente.
Depois, seguimos pelo Setor de Necrópsia
e passamos em frente às salas onde eram feitos os exames. Em uma delas o cadáver de uma
mulher aguardava para ser aberto. Fomos até
o Laboratório Necropapiloscópico, do lado
oposto do corredor, pegar o E.P.I6. Enquanto
vestia as luvas, observava os potes de vidro
com punhos, falanges e mãos carbonizados que
boiavam nas soluções químicas. Tive a certeza de que naquele momento meu trabalho de
campo havia começado. Minha sensação era de
ansiedade, não apenas por ver outros corpos
mortos, mas, principalmente, para ter certeza
de que eu não teria nojo ou qualquer problema
com cadáveres, pois disso dependia meu trabalho de campo. Hoje compreendo que minha
ansiedade era em ver naturalmente os corpos.
Dirigimo-nos à câmara frigorífica. Quando
passamos novamente pela sala de necrópsia, o
corpo da mulher estava sendo aberto. Olhei rapidamente, mas não consegui ver nada. O papiloscopista abriu a porta da câmara frigorífica.
Junto com a saída do vapor gelado, a minha
ansiedade se resfriou. E então, pela primeira
vez, passei a olhar atentamente para aquela
coleção de corpos em gavetas, dos quais eu só
conseguia ver os pés.
Com a porta da geladeira aberta, o papiloscopista me explicava como é o procedimento
de organização de corpos ali. Foi quando um
dos técnicos de necropsia, responsável pela
remoção de corpos, se aproximou, nos cumprimentou e entrou na câmara. Lá olhou em
três gavetas, abriu a terceira, viu o número de
registro na placa de metal presa no dedão do
pé do cadáver e preparou a maca de remoção. A
funerária havia chegado para buscar o corpo.
Saímos dali.
Voltávamos pelo mesmo corredor, e novamente passamos pela Sala de Necrópsia.
O cadáver da mulher ainda era necropsiado
enquanto o cadáver de um homem aguardava por sua vez na outra mesa. Um pouco
depois, quando os exames já tinham sido realizados, fui com o papiloscopista até o Setor
de Vestes para observá-lo coletar as digitais.
Eram os cadáveres da mulher e do homem
que eu vira minutos antes. Ela havia sofrido
um infarto no miocárdio, e ele fora baleado no abdômen. Ambos os corpos estavam
muito inchados. O papiloscopista iniciou
seu procedimento de coleta de digitais pelas
mãos da mulher.
Enquanto isso, contava-me sobre como
começou a trabalhar com mortos. No começo tinha nojo; quando estava na Academia da
Polícia Civil gastou todas as faltas que podia
nas visitas do IML. A primeira vez que viu um
morto tão de perto na vida foi quando começou
a trabalhar nesse Instituto, e que a dica que deram para ele, a qual usa até hoje, é não olhar
para o corpo, mas apenas para as mãos. Eu não
preciso de mais nada, só de saber se a digital tá
boa ou não.
Ao compartilhar como desenvolveu sua técnica para lidar, manipular e identificar cadáveres, o papiloscopista buscava demonstrar que,
em certo nível, compreendia a sensação de ver
corpos sem vida pela primeira vez, pois já havia
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passado por ela. Ou melhor, além dela, afinal
ele não apenas observava como inclusive deveria tocar e movimentar os corpos. Tentei seguir
a dica por ele oferecida e me concentrar em
olhar as mãos, mas a curiosidade de compreender a costura bizarra que atravessava longitudinalmente o corpo, a cabeça jogada para o lado
direito, a língua quase que para fora da boca e
as pernas inchadas daquele corpo atraíam meu
olhar. Assim como aqueles que trabalham rotineiramente com os cadáveres, eu estava tentando ver um cadáver naturalmente.
A “comunicação involuntária” (FAVRETSAADA, 2005) que estabelecia com meus
interlocutores se dava nos momentos em que
nenhuma fala podia significar a sensação de estar junto aos mortos por mais que se tentasse
fazê-lo. Apesar de descrever minha experiência
e as sensações que tive a partir delas, minha
descrição não é capaz de transmitir tal afeto:
“o próprio fato de que aceito ocupar esse lugar e ser afetada por ele abre uma comunicação
específica com os nativos: uma comunicação
sempre involuntária e desprovida de intencionalidade, e que pode ser verbal ou não”.
(FAVRET-SAADA, 2005, p.159).
No final do dia, saí do IML e joguei fora
o dente de alho que estava junto ao meu peito. Imagens iam e vinham na minha cabeça.
Eram imagens de corpos mortos. E enquanto me dirigia ao ponto de ônibus e passava por transeuntes, rapidamente na minha
mente via essas pessoas como corpos sem
vida, deitadas nas macas de metal do IML
aguardando pela necrópsia. Quanto mais eu
me esforçava para não pensar em cadáveres,
mais eu pensava. Eram cadáveres desconhecidos, de pessoas de quem não sabia o nome
ou a identificação. Na tentativa de parar de
ver imagens dos corpos, me esforçava para
pensar em outras imagens. Buscando naturalizar o ver cadáveres, naquele momento, eu
simplesmente não queria pensar ou me importar com eles.
Assim que cheguei em casa, o primeiro desejo era de tomar banho. Sabia que qualquer
risco de contaminação biológica ou sujeira é
nulo7, mas a sensação era de que minhas roupas
pesavam mais do que de costume.
Impureza ou sujeira é aquilo que não pode
ser incluído, se se quiser manter um padrão.
Reconhecê-lo é o primeiro passo para a compreensão da poluição. Não nos envolve numa
distinção clara entre o sagrado e o secular. O
mesmo princípio se aplica do começo ao fim.
Outrossim, não envolve uma distinção especial
entre primitivos e modernos: estamos todos
sujeitos às mesmas regras. (DOUGLAS, 2010,
p. 56). Nesse dia foi difícil não retomar inconscientemente a imagem dos corpos. Fui deitar
às onze horas da noite. Ainda me esforçava
para pensar em outra coisa e tentei até ficar
cansada de tanto forçar o pensamento, mas
só consegui dormir poucas horas antes do
amanhecer.
[...] quando um etnógrafo aceita ser afetado,
isso não implica identificar-se com o ponto de
vista nativo, nem aproveitar-se da experiência de
campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser
afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de
ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois
se o projeto de conhecimento for onipresente,
não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se perde
em meio a uma aventura, então uma etnografia é
possível. (FAVRET-SAADA, 2005, p.160)
Em algumas semanas de observação, esse
ver involuntário diminuiu. E, depois de algum
tempo, o ver cadáveres já não me impressionava
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tanto. Habituei-me a ver corpos e assistir a todos os procedimentos nos exames de necrópsia.
Aos poucos, no decorrer de um pouco mais do
que a metade dos nove meses de trabalho sistemático de campo, considerava que eu havia me
socializado com os corpos. Já parecia ter naturalizado aquela atividade. E, ao rememorar
os cadáveres para narrá-los, sou capaz de construir mentalmente as imagens desses corpos. Se
após minha “primeira impressão” no IML eu
não tinha controle sobre as visões em minha
mente, depois do trabalho de campo finalizado
continuei não o tendo, só que em um sentido
diferente. Se a princípio essas imagens eram
exarcebadas, depois se tornaram quase nulas.
Eu havia aprendido a ver corpos de pessoas
mortas.
Além disso, compartilhar o mesmo espaço
com corpos sem vida por um período de tempo
construiu em mim uma capacidade de imaginar cadáveres. E, por mais que eu não consiga
vê-los exatamente como os vi nos corredores e
salas do IML, sou capaz de representar mentalmente o cadáver de qualquer pessoa e inclusive
saber que os corpos sem vida que figuram em
filmes e séries policiais, por exemplo, muito
pouco têm a ver com o possível.
Cheiro: “experiência reveladora”
[...] as pessoas podiam fechar os olhos diante da
grandeza, do assustador, da beleza, e podiam tapar os ouvidos diante da melodia ou de palavras
sedutoras. Mas não podiam escapar ao aroma.
Pois o aroma é um irmão da respiração - ele penetra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe
caso queiram viver. E bem para dentro delas é
que vai o aroma, diretamente para o coração,
distinguindo lá categoricamente entre atração e
menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio. Quem
dominasse os odores dominaria o coração das
pessoas. (SUSKIND, 1985). Se, por um lado, eu já havia naturalizado o
ver e o estar com os mortos e até estava protegida deles, por outro me encontrava plenamente
vulnerável a sua presença. O repúdio e a curiosidade em relação ao IML não se dão apenas
por essa via espiritual, em que o contato com
os mortos é visto como algo perigoso. O cheiro
daquele lugar também é tomado como um motivo para o distanciamento e evidência de sua
impureza. É um dos principais motivos para o
repúdio, mas também fator de curiosidade aos
que não conhecem o local.
O sentir cheiro de carnes humanas em estado de putrefação – os chamados corpos podres – é considerado muito desagradável. E, ao
mencionar o IML no Rio de Janeiro, muitas
pessoas comentam que no antigo IML, cujo
endereço é na Rua dos Inválidos no bairro da
Lapa, o cheiro era tão forte e tão ruim que não
só o prédio mas também seu entorno fediam a
corpos putrefatos. No atual lugar, os corpos, em
geral, não circulam no interior do prédio, tendo
uma área anexa reservada e separada a eles. Foi
por isso que, quando o cadáver de Lucilene8 foi
aberto na sala dois do Setor de Necrópsia, um
grande incômodo se instalou, o fedor era muito
forte, e ao perceber a intensidade daquele cheiro, eu passava ali por uma “experiência reveladora” em meu trabalho de campo.
Esqueceram essa mulher no hospital!, exclamou o perito ao constatar que o cadáver, com
morte registrada no hospital às 18 horas, já
estava em estado de putrefação às 21 horas.
No interior do cadáver, vísceras em putrefação
e estômago em estado intermediário de putrefação corroboravam com a hipótese do perito
médico-legista: Sacanagem! Ela tá podre!.
Quando saí da sala de necropsia e entrei na
de digitação de laudos, a policial do setor virou-se e me disse: Vixe, você tá fedendo! Cheirei meu
cabelo e minhas roupas em busca do fedor, e não
encontrei. Sério?! Você acha?, e levei meu cabelo
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para próximo ao nariz dela. Ih, não é você, não!
Você não foi lá fora?. Ela se referia ao outro exame
que ia ser realizado na sala de necrópsias destinada a putrefatos. Não, tava aqui mesmo, respondi.
Não é possível! Esse cheiro é daqui, então?! Meu
Deus! Neguinho perde a noção, espantou-se.
O forte cheiro do cadáver putrefato de
Lucilene ocupou os corredores. O perito médico-legista entrou na sala de digitação de laudos.
Esse podrinho eu acho que vou indeterminar, se
referindo a causa mortis que iria declarar no
Laudo Médico-Legal de Lucilene: morte indeterminada por avançado estado de putrefação do
cadáver. Enquanto o médico-legista e a policial construíam o Laudo, e o técnico de cortes
suturava o cadáver, funcionários da equipe de
limpeza começavam o trabalho no corredor
para amenizar o cheiro. Os produtos de limpeza utilizados eram tão densos, que dessa vez
foi o cheiro da creolina que incomodou perito
e policial. Cacete, isso aqui não tem janela! Cês
querem me matar?, exclamou a policial.
O cheiro, ou fedor, era tema constante
de conversa entre os funcionários do IML.
Os serventes da empresa terceirizada de limpeza
contavam que muitas pessoas, principalmente
mulheres, não conseguiam trabalhar no Setor
de Necrópsia porque passavam mal devido ao
cheiro. Ver morto a gente acostuma, mas o cheiro mexe com a gente diferente... nem sempre tem
como controlar, me explicou uma das serventes.
Para ela, o cheiro é um daqueles sentidos cuja
percepção atinge os sentimentos9.
Diferente do cadáver de Lucilene, durante
a realização de necrópsias de corpos não-putrefatos, o odor é outro. Esse era descrito como
sendo cheiro de sangue, muito sangue misturado. Há também o odor dos órgãos do sistema
digestório e as substâncias presentes neles. Os
cadáveres são frescos, mas os alimentos ingeridos horas antes de morrer, nem tanto. Assim,
quando aberto o abdômen dos cadáveres, por
vezes o odor se assemelha ao de dejetos fecais;
outras vezes, quando coletado o material do estômago, um forte cheiro similar ao de vômito
era exalado. Cadáveres carbonizados também
apresentam seu cheiro característico. Como
carnes que passaram do ponto, o odor de um
corpo humano queimado é percebido como
um dos menos desagradáveis.
Já na câmara frigorífica, junto com o ar frio
que sai desse congelador de corpos, chega o
odor azedo de carne não tão fresca. O cheiro do
Setor de Necrópsia, em geral, não é agradável,
mas, para mim, também não era insuportável.
Quanto mais me aproximava do fim do corredor, onde está a câmara frigorífica, percebia que
menos agradável ficava o cheiro.
Pela percepção de diferentes odores, o olfato auxilia na leitura do corpo, permitindo
identificar seu estado e condição. O olfato é a
ferramenta que faz perceber os cheiros e ativa
a memória dos que por aquelas salas e corredores circulam. O cheiro é uma das maneiras
possíveis de percepção do meio ambiente e de
expressão da existência do “organismo/pessoa”
(INGOLD, 2000, p. 95). A elaboração dos
aromas no corpo e na mente constitui um lugar determinado (CLASSEN, 1993) e, ao mesmo tempo, quando vinda dos corpos sem vida,
mantém viva a presença dos mortos no mundo.
Além daquele dos corpos, outros odores habitam os corredores do IML. Metaforicamente,
o faro é o “olfato dirigido” (RENOLDI, 2007a,
p. 156) que torna os policiais capazes de perceber e intuir o mundo. No Instituto, o faro
policial faz parte do denominado tirar policial,
sendo usado como uma ferramenta de avaliação policial que constitui o saber dos policiais
sobre o outro (KANT DE LIMA, 1995). Ele é
ativado pelos odores que ocupam os corredores
e são indicadores das práticas e dos momentos da rotina de trabalho. O cheiro permite
que se visualizem coisas onde essas não estão
cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 77-89, 2014
86 | Flavia Medeiros
evidentes e que se identifiquem características
nas pessoas, lugares e situações antecipadamente – “o olfato não é nem o ‘treinamento’, nem
a ‘intuição’ em si, mas a complexa coexistência
em movimento dessas habilidades, mais outras,
talvez” (RENOLDI, 2007b, p. 62).
Aos que têm a habilidade do faro, o cheiro é ponto de referência nas relações de espaço
e tempo, sendo um dos indicadores do ritmo
social do IML. Isto é, permite perceber e identificar os diferentes odores que se espalham
pelo ambiente. Gradativamente, no trabalho
de campo, aprendi a perceber que o cheiro de
café entre as 15 e 16 horas era indicativo da
volta do horário de almoço, e do retorno, após
o café, da realização de exames. Passei a identificar também que o cheiro de formol estava nos
laboratórios que conservam órgãos e partes humanas; e que, na parte externa, vez ou outra o
odor de madeira dos caixões da Santa Casa era
encoberto pelo de fumaça que saía dos canos
de descarga dos rabecões, dos carros funerários
e dos veículos da Polícia Militar que entravam
e saíam trazendo pessoas detidas para exames
médico-legais. Diante de tantos aromas, cheiros, fedores e perfumes, o IML seria um paraíso olfativo a Grenouille10.
Estando aqui
Na Antropologia, a textualização dos fenônemos socioculturais observados a partir do
“being there” (GEERTZ, 2009), da “capacidade
de nos convencer de que o que eles (os antropólogos) dizem resulta de haverem realmente penetrado numa outra forma de vida” (GEERTZ,
2009, p. 15), se dá enquanto um processo de
comunicação interpares e de conhecimento. É
por meio de uma linguagem específica, o idioma da disciplina, que as categorias e os conceitos
básicos constitutivos da antropologia se apresentam para a análise do que se viu, ouviu e sentiu.
O escrever se dá enquanto o momento,
ou ato cognitivo, nesse processo de construção do conhecimento quando o olhar previamente orientado é refratado pela disciplina, e
o ouvir atento e exercitado já foram realizados
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998). A etnografia é, assim, a expressão do pensamento e da
memória do antropólogo no “being here” sobre
o “being there”. “Seja a etnografia o que mais
for […], ela é, acima de tudo, uma apresentação do real, uma verbalização da vitalidade.”
(GEERTZ, 2009, p. 186). A etnografia é portanto, uma construção narrativa da experiência
vivida pelo antropológo com seus interlocutores. Para descrever os processos institucionais
de construção de mortos, apresentei algumas
de minhas interações com meus interlocutores
durante o trabalho de campo, destacando as
experiências pelas quais passei ao elaborar essa
etnografia.
A etnografia como experiência
Identificar as sensações que percebia durante
o trabalho de campo fez parte de um processo
que me permitiu obter “uma experiência”, no
sentido apresentado por Dilthey e discutido por
Turner (2005)11. Ao se referir à origem da palavra experiência, Turner demonstra que ela se refere tanto a uma passagem, no sentido de passar
por algo, o que denota um rito; quanto a um
experimento, um perigo em relação a algo que
põe o passante diante do risco do desconhecido.
Nessa perspectiva, ser antropóloga num
espaço de construção da morte foi um experimento tanto quanto uma passagem. Para alguns, um risco junto aos mortos. Para mim,
um rito junto aos vivos. Realizar o trabalho de
campo, esse rito de passagem (DA MATTA,
1981), é necessário antropologicamente e
implica a possibilidade de redescobrir formas de relacionamento social. Foi no IML, a
cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 77-89, 2014
Visão e o cheiro dos mortos | 87
instituição que consolida a linha de separação entre mortos e vivos, que me apresentei para tal rito
da experiência antropológica do trabalho de campo. Lá estabeleci novas relações sociais e explorei
minhas capacidades de percepção e compreensão
sobre um meio ambiente desconhecido, sobre um
mundo ocupado pelos vivos, mas que é representado como sendo dos mortos. E foi a imersão
nesse universo social, o distanciamento das
minhas próprias relações sociais para a constituição de outras, novas, que me permitiram
passar pelas experiências que aqui descrevi e
analisei sob o ponto de vista etnográfico.
Portanto, a reflexão sobre esses sentidos e sensações faz parte de um processo que me permitiu
obter “a experiência etnográfica”. Realizar uma
etnografia num espaço de construção dos mortos foi o experimento que me possibilitou passar pelo que é denominado rito de passagem do
trabalho de campo, e me construir como antropóloga. Logo, foi na instituição que consolida a linha de separação entre mortos e vivos que eu mesma
passei pelo rito antropológico do trabalho de campo.
Para concluir, quero destacar que nos dois
sentidos aqui apresentados – o olfato e a visão – os mortos eram mediadores das relações
entre vivos no tempo e no espaço. Em ambos
os casos, seja pela “primeira impressão”, seja
pela “experiência reveladora”, uma forma específica de estar em contato com os mortos
direcionava a vida de meus interlocutores e,
por consequência, a minha. Em ambas eram
consideradas razões externas e particulares
de relação com os mortos – que têm sua face
negativa quer pelo contágio, quer pelo incômodo. A experiência de convívio cotidiano com
corpos sem vida me permitiu compreender como
os mortos são construídos institucionalmente
e me levou a refletir sobre o distanciamento e a
evitação, a impureza e o perigo que há em relação à morte e, por consequência, em relação aos
mortos.
Notas
1. Realizei nove meses de trabalho de campo nesta instituição, em pesquisa que resultou na etnografia
apresentada em minha dissertação de mestrado em
Antropologia, intitulada “Matar os mortos: a construção institucional de mortos no Instituto Médico-Legal
do Rio de Janeiro”, orientada pelo Prof. Roberto Kant
de Lima e coorientada pela Dra. Lucía Eilbaum. A etnografia foi defendida em abril de 2012 no Programa
de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade
Federal Fluminense.
2. A partir daqui, identificado ao longo do texto pela sigla IML.
3. Ao longo do texto, apresentarei categorias nativas em
itálico. As categorias analíticas estão entre aspas.
4. Redimo-me aqui de qualquer autorreferência ao “nós,
ocidental” construído por Mary Douglas. Ao contrário, suponho que, na perspectiva dessa autora, estou
(enquanto antropóloga brasileira) muito mais próxima da noção “primitivos” do que dos “ocidentais” ou
dos “modernos”.
5. Já havia visto os mortos em ocasião de outra pesquisa, quando fiz trabalho de campo na emergência de
um hospital público em Niterói/RJ. Essa pesquisa resultou em minha monografia de conclusão de curso
de bacharelado em Ciências Sociais, na Universidade
Federal Fluminense, sob orientação do Professor
Dr. Roberto Kant de Lima (cf. MEDEIROS, 2009,
2011).
6. Equipamento de Proteção Individual. Composto por
luvas, touca, máscara e avental.
7.Sobre a possibilidade de contaminação biológica
e as noções de contágio moral e risco no IML, ver
PESCAROLO, 2007.
8. Nome fictício.
9. Outros antropólogos que também passaram pela ex-
cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 77-89, 2014
periência de trabalho de campo em um IML destacam
essa dimensão: “Num primeiro momento pensei que
o termo ‘podrão’ (ou “podre”, frequentemente utilizado) fosse alguma espécie de chiste utilizado pelos
funcionários do IML para se referir a determinados
88 | Flavia Medeiros
corpos, notadamente aqueles em estado avançado de
Referências bibliográficas
decomposição. Rapidamente, porém, descobriria que
o termo é mais denotativo que conotativo, e que a partícula aumentativa não faz, nem de longe, jus ao odor
ARIÉS, Philippe. Sobre a história da morte no Ocidente
desde a Idade Média. Lisboa: Teorema, 1989a.
que corpos nessas condições exalam. Lembro-me de
_________. O homem diante da morte. Trad. Luiza
que meu primeiro pensamento ao adentrar o necroté-
Ribeiro. Rio de Janeiro: Francisco Alves, v.1. 1989b.
rio naquela tarde foi o medo de vomitar logo no início
ARLEY, Patrick. Corpos sem nome, nomes sem cor-
do trabalho de campo; enquanto o segundo foi que
pos: Desconhecidos, desaparecidos e a constituição
não há descrição densa capaz de descrever a densidade
da pessoa. Dissertação de Mestrado. Programa de
do cheiro de um corpo humano em estado avançado
Pós-Graduação em Antropologia. Belo Horizonte:
de putrefação. O máximo que posso dizer a respei-
UFMG, 2012.
to é que se trata de um odor impregnante, algo que
BUBANDT, Nils. The Odour of Things: Smell and the
fica, algo diante do qual se respira com todo o corpo,
Cultural Elaboration of Disgust in Eastern Indonesia.
como se todo o corpo fosse olfato. Pode-se aprender a
In: Ethnos, v. 63. Routledge, 1998, p.48-80.
conviver com esse odor, mas é impossível ignorá-lo.”
(ARLEY, 2012, p. 21).
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do
antropólogo: olhar, ouvir e escrever. In: __________.
10.Jean-Baptiste Grenouille é o personagem princi-
O trabalho do antropólogo. São Paulo: UNESP, 1998.
pal do livro alemão O perfume, de Patrick Süskind.
CLASSEN, Constance. Worlds of Sense: Exploring the
Grenouille é um jovem francês nascido no século
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XVIII que não exalava cheiro algum e que, ao mesmo
York: Routledge, 1993.
tempo, apresentava olfato extremamente desenvolvi-
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estivessem e armazená–los todos em sua memória.
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Em busca do odor humano perfeito, Grenouille tor-
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na-se um assassino em série e um grande perfumista
Perspectiva, 2010.
com técnicas e acervo de odores únicos. Ao alcançar
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o perfume ideal e perfumar-se com ele, torna-se o
de Campo, n. 13. São Paulo: FFLCH/USP, 2005,
principal e único prato de um banquete canibal em
p.155-161.
praça pública.
GEERTZ, Clifford. Obras e Vidas: o antropólogo como au-
11.Sobre a origem da palavra experiência, Turner afirma:
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Reader. Oxford e Nova York: Ed. Berg, 2004.
aventurar-se, arriscar’ – podemos ver como seu duplo,
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Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal
Fluminense (PPGA/UFF).
Recebido em 05/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/2014
cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 77-89, 2014
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