Jour après jour…
Do possível no mundo:
Notas para uma imagem audiovisual
Sebastian Wiedemann
Uma ou várias perguntas nos instigam: em que lugar, sob quais condições, sob que
procedimentos um por-vir do cinema é possível? Estas interrogações, só podem achar
uma resposta provisória em singularidades, em casos pontuais e tomando partido na defesa
de um certo modo da percepção.
Neste ponto nos encontramos com “Jour après jour” de Jean-Daniel Pollet. Vivemos o
mundo como clichê1. Este se impôs e nos deixou em um estado de anestesia perceptivo,
privando-nos justamente da experiência no mundo. Domina a lógica do mercado, do
tempo televisivo e publicitário, que toma por refém o olho, deixando-nos em estado
catatônico e de estupidez. Nesta sociedade de controle2 em que vivemos, cremos ter
liberdade de eleição, no entanto o que na realidade acontece é que o olho é saturado,
até ser engasgado com o espetáculo3 e então, a impotência e tristeza são o que prospera.
Ante este estado, ante esta falta de mundo, “Jour après jour” vem a se impor e a resistir.
Defende-se uma política da imagem. Desejando que esta nunca seja estéril, que nunca
seja impotente e triste, que sempre seja afirmativa, vital e alegre. É radical e, como
ética da existência, resiste-se à anestesia para que um mundo deixe de faltar, para que
um mundo possa despertar e ser reinventado. É neste ponto, onde Pollet -o cineasta- , como
caso singular em “Jour après jour”, faz-nos sentir quão amalgamadas podem estar uma
ética e uma estética, que escapam do extensivo e se abrem ao intensivo, que afirmam a
potência e liberam intensidades saindo da representação dominante do mundo.
Em “Jour après jour” vemos e sentimos como um corpo resiste, afirma-se e está à altura
do acontecimento que se avizinha. Pollet sabe que lhe resta pouco tempo de vida. Depois de

Mestrando em Estudos Contemporâneos das Artes – PPGCA-UFF. Licenciado en Dirección
Cinematográfica por la Universidad del Cine (FUC) - Argentina. E-mail: [email protected]
1
Cf. Deleuze, G. (2007). Pintura. El concepto de diagrama. (pp.55-60) Buenos Aires: Cactus. O clichê é
aquilo do qual devemos nos subtrair. Apagá-lo, limpá-lo, não deixar que devore o mundo. Lutar contra ele.
Escapar-se para que algo se possa ver. Recordemos que a experiência e o ato criador que fazem abrir o olho se
dão arrancando-nos do clichê.
2
Cf. Deleuze, G. (1995). Post-Scriptum sobre las sociedades de control. In Conversaciones. (pp.150-155)
Santiago de Chile: Escuela de Filosofía Universidad ARCIS.
3
Cf. Debord, G. (1995) La sociedad del espectáculo. Buenos Aires: La Marca.
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um acidente, ficou em cadeira de rodas. Um trem passou por cima dele, deixando-o imóvel,
ainda que isso seja só na aparência. Passa os últimos dias de sua vida em sua casa de
campo, próxima ao Mediterrâneo. Decide fazer um último filme. Um filme de menos, que
certamente não é um testamento. Um filme, entre sua casa e seu jardim, “Jour après jour”4,
onde nada se conta, ou em todo caso, ocupa-se sem contar5, para tão somente poder
continuar. Continua-se e com o transcorrer do filme a perseverança de uma vida também o
faz, dia após dia, foto após foto.
O gesto de Pollet grita: Amor fati! como o grita Nietzsche. Em “Jour après jour” reinventase uma imagem, reinventa-se uma vida. Novas possibilidades surgem, onde se dança a
vida, onde se dá um devir vida da morte. E onde um mundo é possível, graças a uma ética,
a uma estética das intensidades onde constantemente se estão inventando novos modos para
a maior das artes que é viver. Um mundo é possível, porque nos negamos à banalidade como
mundo, e pelo contrário o entendemos como expressão “que quer dizer-se, afirmar-se,
levada como por uma corrente (…), rio ou fogo, que cada vez que é ameaçada de apagarse, encontra seu caminho” (Lins, 2007, p.77). Expressão, proliferação intensiva de bons
encontros, que acha seu caminho na que chamaremos: imagem audiovisual.
Antes de entrar de fato no funcionamento desta imagem, que emerge de “Jour après
jour”, iremos muito rápido ainda que seja para voltar e dizermos: Não é tão simples
arrancar intensidades do mundo já que este ao mesmo tempo se impõe como clichê. E talvez
frente ao aturdimento do olho o único modo de reinventá-lo seja por um ouvido, por uma
escuta que possa ver. Uma imagem audiovisual, onde a partir de um fundo comum de
sonoridades6, o cinema se possa dizer como “devir-música7”
Trata-se de liberar ritmos, ritmos na matéria de expressão, porém também na vida,
ritmos vitais. E é por esta conjunção entre ética e estética que apelamos ao filme de Pollet.
4
É importante remarcar, que o filme foi finalizado post-mortem pelo amigo de Pollet, Jean Paul Fargier.
Cf. Deleuze, G. (1998). Boulez, Proust y el tiempo: ocupar sin contar. Archipiélago: Cuadernos de crítica de
la cultura, 18-23.
6
Entendemos à maneira de Ferraz, sonoridade como a totalidade dos desdobramentos implicados na
escuta,não na coisa sonora. Trata-se de ouvir não o som, nem o que está no som, e sim o que está no ouvir,
nas potências que nos afectam e que se movem e que são criadas na escuta. Isto é, as sonoridades implicam um
devir-intensivo, um devir-música. Ferraz agregara que há musicalidades, imagens musicais sem referência
direta ao som. Paul Klee pinta a Bach. Não se trata de acompanhar ou transpor, mas sim de sentir
ressonâncias, de contagiar-se, de encontrar-se, de sentir vizinhanças. Cf. Ferraz, S. (2005) Livro das
Sonoridades: notas dispersas sobre composição. Rio de Janeiro: 7 Letras.
7
Cf. Deleuze, G., & Guattari, F. (1988).Devenir-intenso, devenir-animal, devenir-imperceptible. In Mil
Mesetas. Mil Mesetas. Valencia: Pre-Textos. Do devir Deleuze nos dirá pensando em Espinoza que são os afetos
mesmos. Os afetos são devires. E esses devires se expresam num tempo não pulsado flutuante, tempo de Aiôn,
tempo do acontecimento. Devir é a passagem do molar ao molecular.
5
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Filme que diremos, confunde-se com a composição musical. O ferreiro e o
músico 8confundem-se e o cineasta -Pollet- tem mais de pintor e de compositor que de
outra coisa. O cinema devém-música, e com ele o fazedor de imagens devém-compositor.
Pollet em seu duplo movimento onde uma ética/estética das intensidades se amassa e
toma lugar, vem a dizer-nos que nem a imagem, nem a montagem são suficientes. Há que
reinventá-las desde uma margem impensada. Há que alcançar a imagem 9, há que ensaiá-la,
há que fazê-la imagem-matéria. E à montagem há que subordiná-la a una lógica onde o
ouvido se imponha ante o olho. Lógica do ritornelo, da metalização bi-face.
Para compor precisamos antes de mais nada uma imagem-matéria, cine-matéria10, onde se
entra e se está entre as coisas, onde a imagem como força-material pode ser modulada,
já que é fendida. Imagem que encontra seus antecedentes em experimentações radicais,
como as de Vertov, Brakhage e Jarman.
Assim pois, fender e alcançar a imagem em sua materialidade, é deixar-se arrastar
pela vertigem e a violência de uma visão háptica, na que se corre o risco de se perder,
antes que cuidá-la a distância na comodidade de uma visão ótica bem orientada. Violenta-se
a imagem, fá-la órfã e solitária, devolve-se sua alegria ao liberá-la da transcendência de
uma significação. Muda, afirma-se longe de qualquer encadeamento sensório-motriz, é
imagem qualquer, imagem não-específica, imagem objetiva. Imagem que privilegia sua
planitude e achatamento, para liberar a diagonal, não na perspectiva (falso problema, o da
profundidade), mas na superfície, no plano flutuante. Imagem que abandona a verticalidade
(deixa atrás o cavalete que a freia e delimita a partir de uma subjetividade) e se tomba sem
medo de enlamear-se, entrega-se à horizontalidade que bem conhecia Pollock, entrega-se
a “estar imersa no mundo, em uma ação dentro de uma horizontalidade deslocalizada e
deslocalizável.” (Xavier, 2008, p. 323). “O horizonte ótico reverteu-se por completo em
solo tátil” (Deleuze, 2002, p.108) Imagem ótica e sonora pura, em estado gasoso. Estado
“demasiado quente da matéria para que distingamos nela corpos sólidos. É um mundo
de universal variação, universal ondulação: não há eixos nem centro, direita nem
esquerda, alto nem baixo...” (Deleuze, La imagen-movimiento. Estudios sobre cine 1,
8
Cf. Deleuze, G. (2005).Música y Metalurgia. En Derrames. Entre el capitalismo y la esquizofrenia. Buenos
Aires: Cactus.
9
Trata-se de alcanzar a imagem, trata-se de facer da imagen um processo de formação. Ao respeito da
“Gestaltung” processo de formação no lugar da “Gestalt” forma, Cf. Klee, P. (2007) Teoría del arte moderno.
Buenos Aires: Cactus.
10
Cf. Parente, A. (2000). Narrativa e Modernidade. Campinas, SP: Papirus. (pp.94-97)
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2005, p.90). Não há mais janela-quadro pela qual olhar, a imagem ganha legibilidade.
Imagem que se diz em multiplicidade de parâmetros e em séries divergentes. Imagem
implicada em um diagrama11, em uma modulação constante, em um processo aberto de
devires intensivos.
Ou seja, é uma imagem onde as intensidades puras podem ser liberadas e afirmadas.
Cinema da imanência, que é definido pelas longitudes e latitudes de suas intensidades,
por suas relações de velocidade e lentidão, do mesmo modo que ocorre na música. Cinema
da imanência: pôr um olho que entre na matéria, como o indica Vertov.
O procedimento com que “Jour après jour” consegue, é fazer que a imagem seja imagem
de imagem e que por multiplicação de séries se deforme ou prolifere. Em ambos os casos o
modelo que servia para a representação foi deixado para atrás. E neste sentido não é menor
a escolha do recurso da fotografia fixa, de preferência à cinematográfica ou vídeo-gráfica.
Pollet pôde ter utilizado uma câmera de vídeo portável e, no entanto não o faz. Prefere a
intensidade concentrada do instante, fotograma detido e repetido sobre si mesmo ao
infinito, e onde os afetos da captura da forma e da cor são mais latentes. De um lado, a
fotografia analógica é digitalizada, e é imagem da imagem sem modelo. Diz-se muitas
fotografias na tela: oscila constantemente entre uma e quatro imagens. Ou o que é o mesmo,
fala-se uma e multíplice ao mesmo tempo. Do outro lado, apelando ao fotograma, Pollet
busca ir direto ao elemento genético da imagem, ao elemento diferencial do movimento. A
imagem é una e multíplice ao mesmo tempo. Recordemos que o fotograma é a potência
rítmica que gera o intervalo. Na tela mesma, dividida em quatro -entre imagens- há algo
assim como intervalos em espessuras internos à própria imagem. A imagem é modulada,
é composta internamente, é composta sobre ela mesma e deste modo mantém sua
autonomia e permanece sem encadeamento sensório-motor algum.
Esta imagem, em estado de formação constante, onde a matéria-movimento não é
coagulada, nem tampouco sedimentada, busca contágios, busca conexões para liberar
ritmos, que como dissemos encontram sua gênese nas sonoridades. Ritmos, afetos desatados
por entre os interstícios do composto sonoro-visual, graças à lógica do ritornelo como
princípio de composição.
O ritornelo
é uma máquina,
uma fábrica que produz
tempos, tempos
não
cronológicos, tempos que se suspendem na duração. Quer dizer, “tempos não pulsados”12,
11
Cf. Deleuze,G. (2007). Pintura. El concepto de diagrama. Buenos Aires: Cactus. (pp. 89-106)
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onde se ocupa sem contar, onde intensidades são liberadas. O ritornelo modula e conecta
fragmentos, séries, nunca de forma linear, sempre em espiral, dando voltas, fazendo
que a cada ponto lhe corresponda alguma série, algum fragmento, se desprenda, adquira
autonomia e se ponha a girar em outro ritornelo. O ritornelo não só cria tempos nãopulsados ou lisos, também cria “tempos pulsados” ou “estriados”. E são estas estrias, que
como o já codificado, que como repetições periódicas, são rede ou cerca por onde as
intensidades e os ritmos já desprendidos se coam. Tempo do acontecimento que conecta
com as estrelas e tempo do hábito que conecta com cronos. Assim, em desdobramento, o
ritornelo vem do caos, passando pela terra, onde o território e a casa têm lugar, para
finalmente
se
abrir
ao
cosmos.
Territorializar- Desterritorializar-Reterritorializar.
Passagem do extensivo ao intensivo. Pequeno e grande ritornelo, do ethos ao perder-se no
cosmos. Linhas de fuga são traçadas, uma transversal, uma diagonal, uma linha flutuante
pela que se passa. Sempre em tensão entre o pequeno e grande ritornelo, para não cair no
buraco negro. Sempre forma a deformação. Então compor, é desfazer constantemente os
territórios, é abrir o ritornelo, para que o devir tenha lugar. Estar nesse vai e vem, nesse
movimento de ida e volta, sendo cauto, prudente, para não se desanimar, para liberar as
diferenças eficientes sem ser tragado pelo abismo.
“Jour après jour” como lugar da imagem audiovisual, alia-se com o ritornelo, embora este
por si só não seja suficiente. Os blocos sonoro-visuais estão dispostos a serem modulados, a
se conectarem em relações impensadas, a liberarem ritmos. Entretanto é preciso que as
sonoridades, transmitam um impulso às visualidades, um primeiro contágio para manter
o movimento sempre ativo e desejante. As sonoridades são a imagem do desejo, lugar
da gênese dos ritmos. E é pela metalização13 bi-face, que prolongam o desejo nas
visualidades. Uma metalização interna à matéria sonora faz continuar a ondulação para que
uma escuta não se fixe, enquanto as visualidades também são metalizadas. Metalização biface, como o procedimento que faz o devir-música do cinema e que portanto define a
imagem áudio- visual. Processo pelo qual as sonoridades fazem devir às visualidades,
podendo recuar e retroalimentar este processo. Pois é como se estes dois meios, que fazem
o composto sonoro- visual, “compartilhassem a mesma sombra, que se estende através de
sua natureza diferente e lhes acompanha sempre.” (Deleuze, 1992, p. 220)
O composto sonoro-visual, compartilha uma mesma sombra, uma mesma causa imanente
que faz possível a interferência mútua. Contudo é no baixo fundo das sonoridades onde o
ritmo jaz, por mais que este seja liberado através dos interstícios do composto. Como diz
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Bellour: “estamos mais além da imagem em uma mistura sem nome” (2008, p.168).
Estamos em um entre-imagens, e é nesse entre onde a sombra habita e na passagem,
produz um passear-se e permite liberar os ritmos.
Esta sombra é o inaudível-invisível que entra em uma vertigem, em uma zona de
indistinção, passear-se indiscernível entre o inaudível e o invisível, onde se dá um
constituir-se visitante. Inaudível e invisível se interferem, visitam-se mutuamente, sem
distinção, são um passear-se e fazem possível a passagem e o circuito Audível//inaudívelinvisível//Visível.
As sonoridades audíveis modulam-se, devêm moleculares, alcançando o inaudível,
alcançando as sonoridades inaudíveis da imagem visual. Estas sonoridades inaudíveis, por
sua vez fazem modular a matéria-luz da imagem. Circuito sustentado nas sonoridades,
circuito reversível que faz à metalização bi-face, e ao ritornelo como possibilidade do
cinematógrafo.
Cinema que libera ritmos, que se alimenta da sombra, pois nós antes de mais nada somos
sombra. Cinema das intensidades, que se passeia, que se diz imagem a udiovisual.
Pollet entra e sai constantemente de sua casa. Não pode alcançar fisicamente o mar (está na
cadeira de rodas), mas intensivamente o faz. Sai de seu ethos, passeia pelo jardim que o
circunda com cada fotografia que toma, devém-jardim, devém-flor, devém-molecular e
alcança o cosmos. Sempre movido por uma sonoridade que alimenta a expressão e o
impulsa e sustém. Essa sonoridade é a da “onda”. Através dela, da “onda” Pollet finalmente
alcança o Mediterrâneo.
Ali entre o grande e o pequeno ritornelo, onde a matéria-movimento não é retida e sempre
a forma progride até a deformação, é inevitável que o “eu”, -que Pollet-, se quebre e
alcance o impessoal em seu devir. Devir-cosmos, devir-imperceptível. Pois o “eu” é
tomado por uma emoção que o descentra -como um acontecimento- e o leva até a terceira
pessoa do plural e logo, até o impessoal (devém-se).
Pollet, devém cor, devém vermelho, verde, canto de pássaro, sussurro de onda. Devircosmos, devir-imperceptível, que por sua vez faz que a imagem audiovisual, seja devirmúsica. Ali é onde está, adquire sua maior singularidade. Em “Jour après jour”, a imagem
audiovisual não só é gesto estético que libera intensidades, antes que nada é gesto ético
que sustenta e faz continuar uma vida.
Finalmente um cinema da imanência, das sonoridades que nos lembra que somos
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“hecceidades” que devem fluir como a música, para que a vida não tenha sido um erro e os
ritmos sigam vibrantes.
Devir, interferir, passear-se. Imagem intensiva, imagem audiovisual.
Dia após dia, afirmar uma imagem, afirmar uma vida.
Um por-vir para o cinema se fez possível.
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Referências e trabalhos citados
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